quinta-feira, 2 de julho de 2020

A falta que faz uma boa direita

A Procuradoria-Geral da República, sob o comando de Augusto Aras, já não esconde nem disfarça: está em campanha para liquidar a Lava-Jato, o conjunto de forças-tarefas organizadas em Curitiba, São Paulo e Rio. O argumento, alinhado em documento do vice-procurador Humberto Jacques de Medeiros, não chega a dizer que essas forças são ilegais, mas é isso mesmo que se quer dizer. Ou seja, que a Lava-Jato se tornou uma espécie de monstro fora de controle da cúpula do Ministério Público Federal. E que não é mais eficiente.

Nenhum argumento resiste. Comecemos pela eficiência: em apenas seis anos, a operação instaurou 1,6 mil processos nas três instâncias do Judiciário, firmou 298 acordos de colaboração premiada, dos quais 183 homologados pelo Supremo Tribunal Federal. Aliás , há 71 inquéritos no STF oriundos da Lava-Jato, com 126 denunciados.

Esse combate à corrupção se fez com os métodos mais modernos do mundo — tanto que 12 países da América Latina montaram suas próprias operações com base em fatos apurados pela parte brasileira. Grandes empresas brasileiras, como a Odebrecht, levadas por Lula, espalharam a corrupção mundo afora. A Lava-Jato foi atrás e apanhou gente mundo afora. E trouxe de volta para o Brasil bilhões de reais que haviam sido roubados do contribuinte.

Eis o ponto. A Lava-Jato inovou na investigação, sempre coordenada, envolvendo Ministério Público, Polícia Federal, Receita Federal, Unidade de Inteligência Financeira, ex-Coaf, (que já conseguiram abafar) e outros órgãos. Utilizou instrumentos contemporâneos, como a delação premiada, e introduziu novas interpretações jurídicas. Tudo isso permitiu caracterizar e punir os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha entre governantes, políticos e empresários.



A operação não apanhou alguns casos de corrupção. O “direito penal de Curitiba” descobriu e apanhou um monstruoso assalto ao Estado que vinha sendo praticado há muitos e muitos anos. Lembra-se do “rouba, mas faz”?

O outro direito penal, o velho, o da corte brasiliense, simplesmente não viu nada disso. Onde o velho direito, chamado garantista, via “simples caixa dois”, uma simples infração eleitoral, o novo descobriu lavagem de dinheiro — movimento, aliás, que começou a mudança.

A confirmação das sentenças em todas as instâncias desmonta o argumento de que a Lava-Jato opera de forma ilegal. O velho direito — aqui incluídos advogados, magistrados, políticos e empresários acostumados a viver do dinheiro público — fez o possível para absolver Lula. O máximo que conseguiu foi tirá-lo da cadeia derrubando, de forma vergonhosa, a prisão em segunda instância.

Agora, o ataque à Lava-Jato é mais incisivo, pois parte de um governo que alardeava ter levado a Lava-Jato para Brasília, dando um superministério a Sergio Moro, para ampliar o combate à corrupção e à velha política.

Moro está fora, a velha política está de volta, o presidente, incapaz de governar, só pensa em se livrar (e os filhos) de um passado suspeito perto das milícias do Rio.

Já escrevi aqui que um dos problemas da política brasileira é a falta de uma boa direita. Quando a sociedade, de algum modo, se inclinava para uma agenda conservadora/liberal, deu Collor. Depois dos anos do PT, com um Lula moderado no primeiro mandato, antes de cair na ampliação do Estado —para dar cargo e dinheiro aos correligionários —, a sociedade de novo se inclinou para a direita. E deu o capitão do Rio das Pedras.

A agenda anticorrupção já era. A agenda de Paulo Guedes está funcionando só na cabeça de Paulo Guedes. Sim, a pandemia tornou necessário o aumento brutal do gasto público — aliás, feito com baixa eficiência — mas a questão é que não se vê a preparação para a volta da agenda reformista.

Saímos da velha e corrupta esquerda, do capitalismo de amigos, para cair em algo que nem se pode chamar de velha direita. É uma súcia.

Os sócios do vírus

A pandemia do coronavírus matou, em quatro meses, 60 mil brasileiros, o que deixa o país na condição de vice-campeão mundial em número de vítimas. No mesmo período, o Brasil acumulou mais de 28 milhões de desempregados e desalentados.

O vírus, no entanto, não fez apenas vítimas. Ao longo desse tempo, angariou também muitos sócios. Ninguém desejava a pandemia, mas há quem mais do que sobreviver, está a tirar vantagem dela. Na política e na economia, as desigualdades pregressas só se acentuam com as medidas governamentais.

A queda de juros, por exemplo, melhora a vida de todo mundo, mas beneficia muito mais a das grandes empresas que, em condições de emitir debêntures (dívidas) com taxas mais baixas do que aquelas que vigoravam antes da pandemia, se capitalizam não necessariamente para investir agora, mas para largar na frente quando a atividade voltar. Até porque da sucessão de reformas trabalhistas pré-pandemia às medidas provisórias mais recentes, as empresas puderam reduzir custos trabalhistas.

Mas não são apenas as medidas do governo que produzem sócios do coronavírus, mas a falta delas. O presidente Jair Bolsonaro se elegeu, em grande parte, não para mudar o Estado mas para dizimá-lo. A covid-19 mobilizou as atenções e facilitou a tarefa em áreas como o meio-ambiente, como tão bem traduziu Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril. Um mês depois, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que o ministro escancarou a passagem da boiada, com um aumento de 55% no desmatamento no primeiro quadrimestre do ano em relação ao mesmo período de 2019.

Nas selvas urbanas da periferia a ausência de uma política de segurança pública também facilitou a sociedade entre o vírus e a letalidade policial. Com menos circulação de pessoas nas ruas, os policiais ganharam, finalmente, o ansiado excludente de ilicitude do bolsonarismo. O Rio teve o abril de maior letalidade policial dos últimos 18 anos. Em São Paulo, as mortes em conflitos com a presença de policiais cresceu mais de 50%. A pandemia facilitou o cumprimento do ideário bolsonarista "na dúvida, atire". Mas isso não impediu que o Centrão se valha da situação para pressionar por mais um cargo de primeiro escalão no governo, a Pasta da Segurança Pública.

Durante a pandemia, o bloco não apenas se acercou de órgãos cujos gastos têm impacto direto nas prefeituras, como FNDE e Funasa, como se aproximou do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, recentemente desfiliado do PSDB e titular de outro manancial de obras, e avançou para aumentar seu domínio sobre agências reguladoras.


Uma delas, a Agência de Vigilância Sanitária, é uma das maiores chanceladoras da carteirinha de sócios da pandemia. É sobre a Anvisa que os atravessadores de respiradores superfaturados fazem pressão contra o licenciamento de aparelhos baratos desenvolvidos nas universidades. É a agência também que chancela a licença para a comercialização, nas farmácias, de um dos embustes da pandemia, os testes rápidos. Tão caros quanto ineficientes, os testes fizeram a festa de algumas indústrias farmacêuticas, sócias da tragédia desde o apogeu da cloroquina.

Se as sessões remotas adotadas na pandemia permitiram a aprovação de projetos importantes para a sobrevivência de milhões de brasileiros, como o auxílio emergencial, tem também favorecido a concentração de poder nas mãos do Centrão. Em decisões cada vez mais monocráticas, os líderes decidem a pauta e controlam as votações remotas com possibilidades restritas de debate ou obstrução. Se o cerco dos milicianos sobre o presidente da República aumenta o cacife do bloco, é pela condução da pauta remota de votações que seus líderes exercem redobrado poder.

O repique da covid-19 no Distrito Federal já arrisca prolongar ainda mais o funcionamento remoto do Congresso. O governador Ibaneis Rocha, um dos primeiros a adotar medidas restritivas, liberou a cidadela do poder antes da hora e possibilitou um novo pico que hoje ocupa nove de cada 10 leitos de UTI privados. Ibaneis não se mostra disposto a arredar o pé para a abertura total do Distrito Federal no início de agosto, mas o repique pode impedir que o Congresso Nacional o faça.

Com a consultoria do ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, já se estudavam as medidas para o retorno, com a presença facultativa dos parlamentares do grupo de risco, medição de temperatura e sem confirmação digital do voto. O adiamento das sessões presenciais, porém, não prejudica o Centrão. Na verdade, até ajuda.

Com as sessões remotas, as comissões e os conselhos de ética da Câmara e do Senado não funcionam. Com isso, se contêm as pressões para que sejam analisadas as representações lá protocoladas contra Eduardo e Flávio Bolsonaro. Com o adiamento se evitaria que a retomada dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal em agosto, tenha repercussão nas Casas. É depois do recesso que o STF deve mandar voltar para a primeira instância o processo que investiga a rachadinha no gabinete do ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro.

Foi na casa de um dos expoentes do Centrão, o deputado e ex-ministro Marcos Pereira (Republicanos-SP), que representantes do bloco e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, receberam o senador Flávio Bolsonaro, o mais afável e mais encrencado dos filhos do presidente. Na versão de um dos participantes, a ideia era mostrar ao presidente da República que não havia predisposição, entre os comensais, contra seu primogênito. Só faltou Flávio Bolsonaro sair de lá com um cartão de visitas de cada um: “Guardiões de seu mandato”.

Até as eleições municipais é assim que pretendem se fazer valer. Até lá, além da prorrogação do auxílio emergencial, vão tratar de arrancar dos cofres públicos dinheiro suficiente para prefeitos e vereadores inundarem a campanha de cestas básicas. É pelo assistencialismo, outro acionista desta tragédia, que o Centrão pretende fazer a festa da situação.

Passadas as eleições, contados mortos, feridos e desempregados, terá chegado a hora de a assembleia de acionistas decidir se o presidente Jair Bolsonaro ainda deve se manter na condição de sócio majoritário desta pandemia.

Pensamento do Dia


Destruição ambiental eleva pressão externa contra Brasil

O cerco contra a destruição ambiental no Brasil está se fechando. O mais recente episódio, não o único nem o mais eloquente, foi a decisão do presidente da França, Emmanuel Macron, de protelar a aprovação do acordo da União Europeia com o Mercosul, e de impedir acertos com quem não respeitar o Acordo de Paris. No mesmo dia, 265 organizações civis da Europa e América Latina denunciaram o governo brasileiro por agressões ao ambiente e aos direitos humanos.

Depois de sua conduta execrável em relação ao maior desmatamento na Amazônia em dez anos, em 2019 (10,1 mil km2) e refutar os fatos, demitindo cientistas que os divulgaram, o governo Bolsonaro diminuiu sua exposição na área. Isso não significou que suas ações contra o ambiente cessaram, apenas que seguem agora em silêncio, tão longe dos olhos públicos quanto possível. A ideia de “passar a boiada” enquanto as atenções estiverem voltadas para a covid-19 explicita um programa de governo.

Salles, que teve sigilo bancário de seu escritório de advocacia quebrado em investigação por suposto enriquecimento ilícito enquanto foi secretário do governador Geraldo Alckmin, desestruturou os órgãos como ICMBio e Ibama, militarizou as direções regionais ou as entrega a neófitos, agora indicados pelo Centrão. Anteontem foi nomeado como superintendente do Ibama em Santa Catarina, um administrador de empresas que desde 2014 está com bens bloqueados pela Justiça devido a ação pública por improbidade administrativa pelo Ministério Público (O Estado de S. Paulo, 1-7).


Os holofotes foram deslocados para o vice-presidente Hamilton Mourão, que chefia desde abril um Conselho da Amazônia composto por 19 militares, sem membros do Ibama e da Funai. Mourão recorreu à Garantia da Lei e da Ordem para realizar algumas incursões contra o desmatamento na região, com os órgãos ligados ao ambiente subordinados ao comando militar. As impressões de fiscais que participaram das primeiras ações são negativas e não afastam a impressão de que seriam “para inglês ver”.

Outras ações destrutivas seguem o curso parlamentar, como o projeto que permite a mineração em terras indígenas e o lamentável projeto de regularização de terras, batizada de MP da grilagem. A MP caiu, tornou-se projeto de lei e tramita no Congresso, sem perspectiva de que os interesses de preservação ambiental sejam respeitados.

Enquanto isso, o desmatamento na Amazônia Legal não dá tréguas. Dados preliminares apontam que o recorde de 2019 pode ser igualado ou superado. No ano até maio foram emitidos alertas de desmate envolvendo 2.032 km2, um crescimento de 34,5% sobre igual período de 2019.

A mensagem dada de várias formas por Salles e pelo presidente Jair Bolsonaro, de que não se oporão a atividades de exploração nocivas ao ambiente, foi entendida por garimpeiros, grileiros e empresários inescrupulosos, e estimularam o desmatamento. Ele está espalhado por todos os biomas. Medido pelos avisos de desmate do sistema Deter, neste ano até junho, o Cerrado é a região mais atingida (34,1%), à frente da Amazônia (32,1%). Em ambos, o Mato Grosso se aproxima rapidamente do Pará na liderança da motosserra.

O presidente Jair Bolsonaro disse que a pressão externa se deve à “desinformação”. A blague faz pouco da tendência global por maior rigor na regulação ambiental sobre comércio e investimentos, que pode seguir um atalho com a pandemia. Esse consenso que se forma, por motivos legítimos, favorece disfarces protecionistas, como os da França. Macron deu declarações duras após perder eleições em algumas das principais cidades francesas para os verdes, em ascensão em toda a Europa. Merkel, cujo governo está na vanguarda do combate ao aquecimento global, assumiu ontem a presidência rotativa da UE.

O plano verde da Comissão Europeia caminha para impor compensações tarifárias sobre países que desrespeitam esforços para redução de emissões de carbono. Carta enviada a 8 embaixadas brasileiras por fundos que administram US$ 4 trilhões em ativos afirma que as atitudes do governo em relação ao ambiente “elevam os riscos de reputação, operacionais e regulatórios de seus clientes”. Parlamentos da Holanda e Áustria alegaram o desastre ambiental para rejeitar o acordo com o Mercosul. Uma vitória democrata, expelindo Donald Trump do poder dos EUA, trará mais um poderoso foco de atrito com o Brasil. Por inúmeros motivos, seria importante começar, ainda que tarde, a fazer a coisa certa.

Sem prazo de validade

Não temos um aprendizado com o que está acontecendo. O isolamento vai e volta, mas não vejo ninguém explicando por que deu certo ou errado.
 
A discussão do lockdown é pobre, cada vez mais difícil de conseguir. A reação é cada vez mais difícil. Todo mundo deveria tentar criar um programa único (de medidas de distanciamento) e recomeçar do zero. Essa situação da pandemia não tem hora para acabar
Nelson Teich,. ex-ministro da Saúde

Forças Armadas, para que servem?

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, estava ontem em território Ianomâmi. Foi numa viagem de rotina para acompanhar a operação de atendimento médico e orientação nas aldeias. Os aviões da FAB já deram o equivalente a 11 voltas ao mundo, em três meses, só levando e trazendo material e equipamento médico que antes eram deslocados pela aviação comercial. Sete mil e quinhentos militares foram contaminados com o vírus, exatamente porque eles estão presentes em muitas frentes ao mesmo tempo. Há uma sensação nas Forças Armadas de que seu trabalho no combate ao Covid-19 não aparece em função dos enormes ruídos causados pela discussão política sobre o risco de um novo golpe.

— Estamos apanhando mais atualmente do que nos últimos 30 anos. Assuntos que já estavam resolvidos voltaram com uma força enorme — disse um oficial superior.


O relato do que as Forças Armadas estão fazendo neste momento é interessante porque ilumina exatamente o seu papel no meio de uma pandemia num país continental, com gigantescos desafios. Sendo, como têm que ser, uma instituição do Estado, e não braço de um governo, tudo fica mais fácil de ver e de valorizar. Lá dentro se diz que é nisso que as tropas estão realmente pensando, no seu papel tradicional. Enquanto isso, manifestantes bolsonaristas fazem passeatas pedindo intervenção militar, e o próprio presidente fez constantes ameaças que alimentaram velhas dúvidas e temores. Certos fatos incendiaram ainda mais o debate, como o dia em que o ministro Azevedo sobrevoou com o presidente uma dessas manifestações que pediam o fechamento do Supremo.

Na época das Olimpíadas havia uma grande preocupação com o risco de atentados terroristas. Houve um investimento nas Forças Armadas em treinamento e qualificação para ações de defesa contra ameaças química, nuclear e radiológica. Isso ficou como um legado e foi usado agora no combate ao Covid-19. Militares fizeram mais de duas mil descontaminações de espaços públicos. E até por ser em áreas de muita população essas ações tiveram mais visibilidade. Estiveram em locais de mais difícil acesso, ilha de Marajó, por exemplo, para distribuir cestas básicas. Ao todo, em vários pontos do país, e até aldeias indígenas, em três meses distribuíram mais de meio milhão de cestas básicas.

— Tem um programa que nasceu também na esteira dos Jogos Olímpicos, em que crianças carentes saíam da escola e iam no contraturno para os quartéis para a prática de esporte. Trinta mil crianças nesse programa. De uma hora para outra, as escolas fecharam, e eles não iam mais para o reforço escolar. Ficaram sem duas refeições. O dinheiro foi revertido em kit alimentação para a família dos jovens — conta um oficial.

Um programa entre CNI, Senai e hospitais, para consertar respiradores no Brasil inteiro, foi possível porque os aviões da FAB ou caminhões do Exército ficaram no leva e traz de equipamentos. Foram 1.500 respiradores consertados. Quando os restaurantes à beira das rodovias pararam, o país poderia ter tido um colapso logístico, porque os caminhoneiros não teriam onde se alimentar. Os militares fizeram pontos de parada e distribuição de quentinha para os motoristas.

Médicos militares foram deslocados para alguns hospitais com falta aguda de pessoal. Saíram, por exemplo, do Sul, que estava pouco afetado, para regiões de quase colapso como Macapá, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga.

Porque estiveram em várias frentes de combate o índice de contaminação de militares foi de 2%, considerado alto. Morreram 20 dos 7.500 contaminados, mas já estão recuperados 80%.

— O militar mesmo está com pouco tempo para discussão política. Há pontos no país onde só nós conseguimos chegar com rapidez, uma ONG bem intencionada consegue ajudar, mas as Forças Armadas fazem em grande volume. Isso sem falar em todo o trabalho de sempre, de patrulhamento, de vigilância de fronteira — me disse um oficial.

A politização das Forças Armadas foi evitada durante 30 anos. O presidente Jair Bolsonaro, de forma deliberada, fez uma mistura entre seu governo e o poder que elas têm. Se os militares forem viabilizadores de um governo que estimula o conflito, e que está em crise, será, como tenho dito aqui, um risco para o país e para a própria instituição.

Tragédia e estatística

O presidente Jair Bolsonaro descobriu o Brasil. Ele permaneceu por 19 meses na capital federal. Visitou diversos países, mas evitou Rio, São Paulo e sobretudo os estados do Nordeste, onde teve desempenho eleitoral muito fraco. Neste período só deixou a Capital Federal para visitar instalações militares.

Aqui frequentou manifestações, a pé, a cavalo ou de helicóptero, contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Desperdiçou este período em discussões estéreis e não desenvolveu nenhuma iniciativa para chamar de sua. Está condenado a inaugurar obras de infraestrutura planejadas pelo Ministro Tarcísio Gomes de Freitas, que trabalhou na área nos governos Dilma e Temer.


É o único setor do governo que tem diretriz e planejamento. O resto é improviso. Ele inaugurou o eixo norte da transposição do rio São Francisco, no Ceará, obra iniciada no governo Lula. A inauguração foi apenas o pretexto para ele viajar ao nordeste e andar no meio do povo naquela região do país. Este movimento está dentro da política de melhorar relações com o Congresso, com os adversários e voltar os olhos para o Brasil. Acabar com as brigas e deixar os ministros trabalharem.

Quando a pandemia deu as caras no Brasil no início de março, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta disse que em junho o país chegaria à cinquenta mil mortes por causa da covid 19. Ele foi ridicularizado, confrontado e demitido.

A realidade venceu a ficção e o negacionismo. Seu sucessor durou um mês na cadeira. O General Eduardo Pazuello chegou para gerenciar a crise. Uma de suas tentativas foi escamotear os números. Não deu certo porque imprensa brasileira e órgãos especializados internacionais denunciaram a manobra.

O presidente perdeu muito tempo com discursos raivosos e com a preocupação de demonstrar que ele era a Constituição. Encontrou resistência no Supremo e no Congresso. O sistema democrático de pesos e contrapesos se mostrou eficiente.

Os filósofos dizem que a única coisa que os humanos não recuperam é o tempo. Ele é precioso e deve ser respeitado. Bolsonaro subiu no palanque e negou a pandemia. Disse que era uma gripezinha. Fechou os olhos para os mortos, não visitou um único hospital, nem as cidades mais afetadas pelo vírus.

Perguntado sobre sua ausência, respondeu com um cínico “e daí”. Ele repetiu Josef Stalin, por incrível que pareça. Quando questionado sobre a grande fome ocorrida entre 1932 e 33, respondeu com uma frase reveladora do desprezo pelo ser humano. “Uma única morte é tragédia. A morte de milhões é estatística”. Aqui morreram milhares em nome da bagunça, da falta de liderança, da corrupção e da profunda indiferença do presidente da República em relação a seus cidadãos.

Agora, ele pretende se reencontrar com seus nacionais. Seu prestígio caiu muito dentro e fora do Brasil. A rejeição a Abraham Weintraub verificada entre os funcionários do Banco Mundial é algo espantoso e raro. Nunca ocorreu antes.

O episódio da prisão do Queiroz, as contraditórias declarações do advogado Frederick Wassef, e a estranha decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que contornou julgado do Supremo Tribunal Federal para proteger o senador Flávio Bolsonaro revelam que o presidente está pisando em terreno pantanoso. Os índices de popularidade estão desabando. O caminho razoável para se manter no poder é conversar, negociar e suspender o tiroteio.

Há outro aspecto na confusa administração Bolsonaro, consequência da influência do filho na divulgação de atos do governo. A área de comunicação da Presidência foi confinada às ações do chamado gabinete do ódio. Algumas inciativas interessantes da administração federal, como a entrega dos primeiros jatos Grippen à Força Aérea, ocorrida na Suécia, ficou restrita à propaganda do fabricante. O governo não aproveitou o momento.

As assinaturas de contrato de concessão da ferrovia norte/sul e da ferrovia oeste/leste, que vai de Barreiras a Ilhéus, são iniciativas positivas em favor do desenvolvimento nacional. Estes fatos ficaram escondidos no noticiário de pé de página nos jornais. A área de comunicação deste governo é péssima. A única preocupação é proteger o presidente porque ele pode, a qualquer momento, dizer alguma bobagem ou soltar um palavrão.

O presidente Bolsonaro foi ao Rio de Janeiro para o velório de um paraquedista que morreu durante treinamento. Emocionado, ele foi as lágrimas. Uma morte é tragédia, mas 60 mil mortes constituem uma estatística. Curioso como os extremos se tocam.
 

Brasil se tornou pária internacional, sem aliados nem simpatias

Nada ilustra tão claramente a perda de soft power pelo Brasil quanto a resistência crescente na Europa contra o acordo de livre-comércio Mercosul-União Europeia e o desmatamento da Amazônia. Três parlamentos nacionais europeus votaram contra a ratificação. Centenas de ONGs protestam contra a cooperação com a América do Sul, sobretudo por causa do Brasil. Bancos, fundos e empresas querem retirar seus investimentos se os incêndios na região amazônica não diminuírem.

É inegável: no momento, criticar abertamente o Brasil vale a pena. Com isso, se conquistam votos entre eleitores, empresas ganham clientes, e organizações não governamentais angariam doações e atenção. Isso mostra que a imagem do Brasil nunca foi tão ruim como agora – algo que sairá caro para o país.

É uma questão de "poder suave"– ou melhor, da perda dele. Nas décadas desde o retorno à democracia, em 1985, o Brasil pôde acumular uma reserva considerável de soft power – termo cunhado pelo cientista político americano Joseph Nye para designar a influência que um país exerce no mundo sem empregar incentivos econômicos ou poder militar.


O Brasil sempre utilizou seu soft power estrategicamente. Com destreza de negociação e diplomacia, os governos democráticos ampliaram sua influência mundial. Por certo tempo, o país jogou numa liga da política internacional mais elevada do que lhe permitiriam seu poder econômico ou potencial de ameaça: na discussão do clima, no livre comércio, na defesa dos direitos humanos, no combate à pobreza, na política global de saúde, mesmo na crise financeira de 2008, o Brasil sentou-se à mesa de negociações junto com as grandes potências.

Pela capacidade de falar e se entender com todos, o Brasil tinha influência. Por isso, o politólogo Parag Khanna já o via como um dos ganhadores da globalização; todas as potências queriam tê-lo como parceiro, por ser capaz de impulsionar ou restringir o êxito delas. Além disso, o Brasil era uma nação cultural e esportiva admirada em todo o mundo, um cobiçado destino de viagens e de residência para muitos. Também isso constituía o soft power brasileiro.

Mas esses tempos se foram. "Poucos países perderam tanto a reputação como o Brasil", comenta Rubens Ricupero, jurista e ex-embaixador. Sob a ditadura militar, a imagem do país no mundo era igualmente ruim, mas em compensação a economia nacional apresentou crescimento recorde.

O rebaixamento começou com os grandes escândalos de corrupção, que atravessaram toda a América Latina e lançaram uma sombra retroativa sobre os governos Lula e Dilma. A eleição do populista de direita Jair Bolsonaro como presidente acelerou o declínio. Seus permanentes ataques à democracia, sua governança caótica, a persistente crise econômica, e agora, acima de tudo, a má gestão da crise da covid-19, colocando o país no segundo lugar de casos confirmados e mortes: tudo isso transformou o Brasil num pária do mundo. Sem aliados, sem simpatias.

Os custos dessa perda de soft power já se fazem sentir desde já: há poucos dias, 29 bancos e fundos globais enviaram uma carta aberta ao governo brasileiro. Administradores de um total de 3,75 trilhões de dólares em ativos, eles expressaram apreensão pelo aumento do desmatamento na Amazônia e o declínio da política ambiental e de direitos humanos.

Desse modo, os protagonistas financeiros reagiram à pressão de seus acionistas. Para eles, uma política agrária justa, a proteção da floresta tropical, de minorias e indígenas e uma política de gênero são base para seus investimentos no Brasil – senão, vão retirar seu capital.

Serão necessárias décadas para recuperar essa confiança.
Alexander Busch