O conflito não é mais entre classes, é de cada um com a sociedadeZygmunt Bauman
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017
A queima das bandeiras
Cresce, e mais crescerá, o debate sobre a necessidade de profunda revisão no pacto federativo. Do jeito que está, não dá mais. Os Estados encontram-se à beira da falência, se é que alguns já não faliram. Somos uma Federação de mentirinha. Sem a União, isto é, o poder central, que também vai de mal a pior, a Federação se desmancharia.
Será sempre bom lembrar que o golpe de 37 implantou no Brasil o Estado Unitário, com a nova Constituição centralizando todo o poder nas mãos do presidente da República. Textos e fotos de velhos jornais nos remetem ao final daquele ano, quando no Largo do Russell, no Rio, formados militarmente, centenas de estudantes das escolas públicas confluíam para o centro da praça. Lá fora montada uma pira de grandes proporções. Uma escola após outra, os batalhões de rapazes marchavam levando as bandeiras de 21 Estados, que logo eram incineradas. Meninas garbosas vinham a seguir, trazendo nas mãos as partituras dos hinos estaduais, que também viravam cinzas. Getúlio Vargas discursou que dali em diante uma só bandeira seria hasteada no país, a brasileira. E apenas um hino entoado, o nacional.
De tabela, tinham sido demitidos os governadores, chamados de presidentes dos Estados, substituídos por interventores nomeados pelo presidente. O fascismo dominava a Europa e o Brasil não ficou atrás. O singular é que não se disparou um tiro. Leis trabalhistas de rara sensibilidade levaram os trabalhadores a um apoio unânime ao novo regime, no caso, de justiça social e de exaltação à ditadura, pois o Congresso, as assembleias legislativas e os partidos políticos haviam sido fechados. Era o fim da Federação, estabelecido o Estado Unitário. O tempo passou, voltaram a democracia, mais tarde a ditadura, outra vez, e agora fomos até rebatizados de República Federativa.
Só que ela não funciona. Os Estados andam em frangalhos. O Poder Central, quase isso. É preciso tomar cuidado, pois muitos desiludidos e outro tanto de patetas não demoram a pregar a queima das bandeiras e das partituras.
Só que ela não funciona. Os Estados andam em frangalhos. O Poder Central, quase isso. É preciso tomar cuidado, pois muitos desiludidos e outro tanto de patetas não demoram a pregar a queima das bandeiras e das partituras.
Uma nova Arca de Noé para o Brasil?
Deus, que era brasileiro, precisará de uma nova Arca de Noé para salvar do dilúvio da corrupção, um punhado de governantes decentes, capazes de resgatar a política adoecida.
Os meios de comunicação nomearam as delações dos 77 chefões do império multinacional da Odebrecht no processo da Lava Jato, como as do “fim do mundo”. E a sociedade se pergunta quem ficará a salvo após a hecatombe que ameaça políticos de ontem e de hoje e que ultrapassou as fronteiras do país.
A literatura ofereceu em todos os tempos mitos e simbolismos para interpretar a realidade do presente. No relato bíblico da Arca de Noé é narrado, por exemplo, que Deus “vendo que a maldade dos homens se espalhava pela terra”, decidiu destruí-la através de um dilúvio universal (Gênesis, 6ss).
Passado seu “fim do mundo”, o Brasil precisará encontrar com urgência novos Noés, sobreviventes da classe política que voltem a oferecer esperança ao país.
Há quem se pergunte, de fato, para onde caminha o Brasil império já que hoje o gigante parece desorientado.
O admirado intelectual e antropólogo brasileiro, o falecido Darcy Ribeiro, se perguntava em sua obra clássica, O Povo Brasileiro (Cia. Das Letras), por que esse país “ainda não deu certo”. Dedicou, para responder, trinta anos de profundos estudos. Sua conclusão foi que o projeto Brasil, a chamada “brasilidade” é tão original e diferente de outros da América Latina pela mistura, nele, de tantas civilizações sobrepostas, que o fazem ser ao mesmo tempo, reconciliador e violento, justo e desigual, festivo e melancólico, sincero e malandro.
Um país que precisará de tempo, mas que acabará, na profecia de Darcy, ressurgindo como uma “nova Roma tropical”.
O desejo dos cidadãos de bem que continuam lutando para que o país não afunde ainda mais, é que o Brasil saia purificado do dilúvio que golpeia sua classe política.
Noé soube que as águas haviam baixado quando soltou uma pomba que voltou trazendo um ramo de oliveira em seu bico, símbolo de uma nova esperança para a Humanidade, levada a recomeçar mais uma vez de seus escombros. Não existe, de fato, pôr do sol, por mais longa que seja a noite, sem que venha a aurora.
Deus voltará, então, a ser novamente brasileiro ou continuará irritado, como em Sodoma e Gomorra ao não encontrar um punhado de governantes capazes de mais além de enriquecer e se perpetuar no poder, em projetar e dar vida a um país que, na profecia de Darcy, acabe encontrando sua verdadeira identidade?
Eu sou dos que, como o antropólogo, preferem continuar acreditando que o Brasil será capaz de se reconciliar com o melhor de si mesmo, após saber se livrar da escória que hoje o ofusca e machuca.
Porque, além disso, como escreveu o lúcido e crítico ecologista, Fernando Gabeira, “esse é o tempo em que nos coube viver”. Não podemos desprezá-lo.
E o do Brasil é um povo que, mesmo em meio às tormentas provocadas por seus governantes, continua apostando no abraço e na vontade de festejar. Seja o que for.
Meu colega, Antonio Jiménez, dias atrás foi embora de Salvador. De lá escreveu, antes de voltar a Madri, sua última reportagem sobre a festa de Iemanjá, a doce deusa das águas.
E na que um dia foi a capital do Brasil, Antonio compreendeu que a felicidade é a vocação desse povo, algo que, escreve, “não se ensina e se aprende”.
E por isso, também não pode ser exportado. Com todas as suas contradições, o Brasil precisa ser entendido aqui, lado a lado com ele.
Os meios de comunicação nomearam as delações dos 77 chefões do império multinacional da Odebrecht no processo da Lava Jato, como as do “fim do mundo”. E a sociedade se pergunta quem ficará a salvo após a hecatombe que ameaça políticos de ontem e de hoje e que ultrapassou as fronteiras do país.
A literatura ofereceu em todos os tempos mitos e simbolismos para interpretar a realidade do presente. No relato bíblico da Arca de Noé é narrado, por exemplo, que Deus “vendo que a maldade dos homens se espalhava pela terra”, decidiu destruí-la através de um dilúvio universal (Gênesis, 6ss).
Passado seu “fim do mundo”, o Brasil precisará encontrar com urgência novos Noés, sobreviventes da classe política que voltem a oferecer esperança ao país.
O admirado intelectual e antropólogo brasileiro, o falecido Darcy Ribeiro, se perguntava em sua obra clássica, O Povo Brasileiro (Cia. Das Letras), por que esse país “ainda não deu certo”. Dedicou, para responder, trinta anos de profundos estudos. Sua conclusão foi que o projeto Brasil, a chamada “brasilidade” é tão original e diferente de outros da América Latina pela mistura, nele, de tantas civilizações sobrepostas, que o fazem ser ao mesmo tempo, reconciliador e violento, justo e desigual, festivo e melancólico, sincero e malandro.
Um país que precisará de tempo, mas que acabará, na profecia de Darcy, ressurgindo como uma “nova Roma tropical”.
O desejo dos cidadãos de bem que continuam lutando para que o país não afunde ainda mais, é que o Brasil saia purificado do dilúvio que golpeia sua classe política.
Noé soube que as águas haviam baixado quando soltou uma pomba que voltou trazendo um ramo de oliveira em seu bico, símbolo de uma nova esperança para a Humanidade, levada a recomeçar mais uma vez de seus escombros. Não existe, de fato, pôr do sol, por mais longa que seja a noite, sem que venha a aurora.
Deus voltará, então, a ser novamente brasileiro ou continuará irritado, como em Sodoma e Gomorra ao não encontrar um punhado de governantes capazes de mais além de enriquecer e se perpetuar no poder, em projetar e dar vida a um país que, na profecia de Darcy, acabe encontrando sua verdadeira identidade?
Eu sou dos que, como o antropólogo, preferem continuar acreditando que o Brasil será capaz de se reconciliar com o melhor de si mesmo, após saber se livrar da escória que hoje o ofusca e machuca.
Porque, além disso, como escreveu o lúcido e crítico ecologista, Fernando Gabeira, “esse é o tempo em que nos coube viver”. Não podemos desprezá-lo.
E o do Brasil é um povo que, mesmo em meio às tormentas provocadas por seus governantes, continua apostando no abraço e na vontade de festejar. Seja o que for.
Meu colega, Antonio Jiménez, dias atrás foi embora de Salvador. De lá escreveu, antes de voltar a Madri, sua última reportagem sobre a festa de Iemanjá, a doce deusa das águas.
E na que um dia foi a capital do Brasil, Antonio compreendeu que a felicidade é a vocação desse povo, algo que, escreve, “não se ensina e se aprende”.
E por isso, também não pode ser exportado. Com todas as suas contradições, o Brasil precisa ser entendido aqui, lado a lado com ele.
A febre que silencia as florestas
Numa floresta das terras altas da região central do Espírito Santo, o chiado das cigarras é interrompido por risadas distantes. O riso, na verdade, é o grito de alerta de um bando de sauás, que se embrenha pela mata e desaparece. Os sauás da Reserva Biológica de Santa Lucia, em Santa Teresa, são sobreviventes de um massacre. Fogem da segunda onda de destruição da Mata Atlântica em menos de dois anos. À medida que a febre amarela se alastra, ninguém mais canta, ninguém ri. A febre calou os macacos, as vozes mais estridentes da floresta, e mergulhou a Mata Atlântica numa de suas maiores tragédias.
A primeira onda veio em lama e rocha de mineração. Arrancou árvores. Sepultou rios. A segunda se derrama agora pela copa das florestas, vence montanhas, espalha morte. A febre amarela provoca o que especialistas já consideram a maior matança de animais na história recente da Mata Atlântica. Depois da onda de rejeitos da barragem da Samarco em Mariana, em 2015, o mais devastado dos biomas do Brasil sofre outra vez. De novo, o epicentro é o Vale do Rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Mas há registros de macacos mortos também em São Paulo, Bahia, Goiás e Mato Grosso do Sul.
O primatologista Sérgio Lucena, que há três décadas estuda a região do Doce, diz que só no Espírito Santo 600 carcaças de macacos foram encontradas desde o início de janeiro. Esse número, segundo ele, representa apenas entre 10% a 20% do real. Em Minas, os macacos simplesmente desapareceram de algumas regiões. Começaram a morrer meses antes e ninguém sabe calcular ainda a perda. A única certeza é o silêncio da mata. Os ruidosos macacos, em sua maioria, morreram.
— Só é possível recuperar uma pequena parcela dos animais, aqueles que morreram no chão da floresta, mas muitos deles estão nas árvores. São milhares os macacos mortos. Esse é um desastre sem precedentes na história da Mata Atlântica. Estamos no olho do furacão — afirma o cientista, professor do Laboratório de Biologia de Conservação de Vertebrados da Universidade Federal do Espírito Santo.
As principais vítimas são os bugios ou barbados (Alouatta guariba), outrora muito comuns em toda a região. Mas nesta epidemia em animais — epizootia, no jargão da ciência — morrem também sauás ou guigós (Callicebus personatus), macacos-pregos (Supajus nigritus) e micos-de-cara-branca (Callithrix geoffrey).
A região é habitat de espécies ameaçadas de extinção. O mais precioso de todos, o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthu), o maior primata das Américas, por enquanto tem se mantido a salvo — a espécie parece ser mais resistente ao vírus da febre amarela. Mas o raro e ameaçado sagui-da-serra (Callithrix flaviceps) não escapou. Na semana passada, de um bando de 14 animais, 12 morreram de febre hemorrágica em Ipanema, município mineiro na divisa com o Espírito Santo.
— Os macacos são mais vulneráveis do que o ser humano. Para eles, não há a proteção da vacina. Nas florestas, a febre amarela silvestre ocorre em ciclos de cerca de sete anos. Mata macacos e depois desaparece para reemergir, quando a população se recupera. Mas nada com a dimensão que vemos agora aconteceu antes. É sem precedentes — salienta Lucena.
A febre amarela não é uma doença originária da floresta brasileira. É um flagelo que acompanhou a desgraça da escravidão. Os navios negreiros do século XVII trouxeram da África também o vírus e o mosquito Aedes aegypti. A febre era inicialmente urbana.
Mas o vírus se espalhou e nos anos 30 do século XX, a forma silvestre foi descrita no Vale do Canaã, no Espírito Santo, onde agora volta a assombrar. O vírus se tornou capaz de infectar os mosquitos silvestres e estes o transmitiram para suas vítimas preferenciais, os macacos. O principal reservatório é o mosquito. E o macaco se tornou hospedeiro. Não é o homem que morre da doença do macaco. É o macaco que morre da doença do homem.
A despeito disso, macacos que escapam do vírus têm sido atacados e mortos por gente com medo da febre. Na semana passada, um barbado foi morto a tiros em Realeza, em Minas.
— É uma barbaridade que só vai agravar as coisas. Pois o macaco é uma sentinela. Ele é tão vítima quanto nós — lamenta Sérgio Lucena.
Ele lidera uma força-tarefa de cerca de 20 pesquisadores que passam os dias nas matas para localizar carcaças e bandos sobreviventes e trabalha em colaboração com a vigilância sanitária. Buscam descobrir a causa e a origem da epidemia.
Na semana passada, numa encosta íngreme da Serra dos Pregos, em Santa Teresa, Lucena, o técnico ambiental Rogério Ribeiro dos Santos e a estudante de Biologia Bruna Pacheco Pena tentavam acompanhar sem sucesso um filhote de barbado, cuja mãe morrera.
— Ele não tem salvação. Se não adoecer, gaviões ou cobras o apanharão. Não é o primeiro filhote que vemos órfão. Por algum motivo, os adultos parecem estar morrendo primeiro — diz Santos.
Leia mais
Vista geral da região afetada pela febre amarela no Espírito Santo, perto de Itaguaçu |
O primatologista Sérgio Lucena, que há três décadas estuda a região do Doce, diz que só no Espírito Santo 600 carcaças de macacos foram encontradas desde o início de janeiro. Esse número, segundo ele, representa apenas entre 10% a 20% do real. Em Minas, os macacos simplesmente desapareceram de algumas regiões. Começaram a morrer meses antes e ninguém sabe calcular ainda a perda. A única certeza é o silêncio da mata. Os ruidosos macacos, em sua maioria, morreram.
— Só é possível recuperar uma pequena parcela dos animais, aqueles que morreram no chão da floresta, mas muitos deles estão nas árvores. São milhares os macacos mortos. Esse é um desastre sem precedentes na história da Mata Atlântica. Estamos no olho do furacão — afirma o cientista, professor do Laboratório de Biologia de Conservação de Vertebrados da Universidade Federal do Espírito Santo.
As principais vítimas são os bugios ou barbados (Alouatta guariba), outrora muito comuns em toda a região. Mas nesta epidemia em animais — epizootia, no jargão da ciência — morrem também sauás ou guigós (Callicebus personatus), macacos-pregos (Supajus nigritus) e micos-de-cara-branca (Callithrix geoffrey).
A região é habitat de espécies ameaçadas de extinção. O mais precioso de todos, o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthu), o maior primata das Américas, por enquanto tem se mantido a salvo — a espécie parece ser mais resistente ao vírus da febre amarela. Mas o raro e ameaçado sagui-da-serra (Callithrix flaviceps) não escapou. Na semana passada, de um bando de 14 animais, 12 morreram de febre hemorrágica em Ipanema, município mineiro na divisa com o Espírito Santo.
— Os macacos são mais vulneráveis do que o ser humano. Para eles, não há a proteção da vacina. Nas florestas, a febre amarela silvestre ocorre em ciclos de cerca de sete anos. Mata macacos e depois desaparece para reemergir, quando a população se recupera. Mas nada com a dimensão que vemos agora aconteceu antes. É sem precedentes — salienta Lucena.
A febre amarela não é uma doença originária da floresta brasileira. É um flagelo que acompanhou a desgraça da escravidão. Os navios negreiros do século XVII trouxeram da África também o vírus e o mosquito Aedes aegypti. A febre era inicialmente urbana.
Mas o vírus se espalhou e nos anos 30 do século XX, a forma silvestre foi descrita no Vale do Canaã, no Espírito Santo, onde agora volta a assombrar. O vírus se tornou capaz de infectar os mosquitos silvestres e estes o transmitiram para suas vítimas preferenciais, os macacos. O principal reservatório é o mosquito. E o macaco se tornou hospedeiro. Não é o homem que morre da doença do macaco. É o macaco que morre da doença do homem.
A despeito disso, macacos que escapam do vírus têm sido atacados e mortos por gente com medo da febre. Na semana passada, um barbado foi morto a tiros em Realeza, em Minas.
— É uma barbaridade que só vai agravar as coisas. Pois o macaco é uma sentinela. Ele é tão vítima quanto nós — lamenta Sérgio Lucena.
Ele lidera uma força-tarefa de cerca de 20 pesquisadores que passam os dias nas matas para localizar carcaças e bandos sobreviventes e trabalha em colaboração com a vigilância sanitária. Buscam descobrir a causa e a origem da epidemia.
Na semana passada, numa encosta íngreme da Serra dos Pregos, em Santa Teresa, Lucena, o técnico ambiental Rogério Ribeiro dos Santos e a estudante de Biologia Bruna Pacheco Pena tentavam acompanhar sem sucesso um filhote de barbado, cuja mãe morrera.
— Ele não tem salvação. Se não adoecer, gaviões ou cobras o apanharão. Não é o primeiro filhote que vemos órfão. Por algum motivo, os adultos parecem estar morrendo primeiro — diz Santos.
Leia mais
Como o narcisismo dominou a política mundial
Deus está morto, Marx está morto, mas o Eu está mais vivo do que nunca. As grandes ideologias e cosmovisões evaporaram do espectro político. À direita resta apenas um vestígio da velha democracia-cristã ou dos neos (liberais, conservadores, fascistas). E à esquerda se apagam os ecos do socialismo e do marxismo. Emancipamo-nos, entrando num período de política pragmática, em que procuramos as melhores soluções para os problemas coletivos? Ou ficamos escravos do culto ao eu, abrindo uma era de política narcisista em que apenas nós importamos?
Cada geração reclama da egolatria da seguinte. Dos jovens da Babilônia há milhares de anos aos millennials. Os agora virtuosos baby boomers (aqueles nascidos nas décadas do pós-guerra) foram apelidados na época como a “geração do eu”. Por isso, sejamos cautelosos na hora de interpretar os modismos do dia como mudanças culturais de fundo. No entanto, temos razões para pensar que as placas tectônicas sobre as quais estão assentadas as nossas sociedades democráticas estão se deslocando.
Somos mais individualistas. E isso tem efeitos positivos. Os países onde os valores individualistas predominam têm melhores resultados em quase todas as dimensões do bem-estar humano do que aqueles com valores mais coletivistas. As sociedades individualistas, ao gratificar a autonomia e a responsabilidade pessoal, promovem o desenvolvimento econômico. Os cidadãos têm mais incentivos para investir, inovar e acumular riqueza.
O individualismo também fomenta Governos mais responsáveis. Um estudo realizado pelo economista Andreas Kyriacou, da Universidade de Girona, mostra como os países mais individualistas têm instituições públicas mais imparciais. Por outro lado, as sociedades coletivistas valorizam mais a lealdade e a coesão do grupo. Os Governos sentem que devem favorecer os seus. Assim, naqueles lugares onde os cidadãos têm valores mais coletivistas, as instituições públicas acabam sendo mais nepotistas e corruptas.
No entanto, o individualismo tem um lado escuro: o narcisismo. Dados heterogêneos que vão de operações cirúrgicas até os nomes que colocamos nas crianças indicam que nos tornamos mais egoístas. Os testes psicológicos registram um aumento das personalidades narcísicas. De acordo com o Gallup, meio século atrás, apenas 12% dos adolescentes norte-americanos acreditava ser “muito importantes”. Agora, são mais de 80%. Até as letras das canções, mapas das preocupações cotidianas, também se tornaram mais individualistas e narcisistas.
O narcisismo projeta uma sombra tenebrosa sobre a democracia. Por definição, o narcisista tem problemas para criar empatia e interagir com os outros. E nisso se baseia a democracia. Desde a Grécia clássica, os filósofos insistiam que uma discussão saudável sobre o bem comum exige que os cidadãos transcendam seus interesses privados para se converterem no que Aristóteles chamou de animais políticos.
Hoje, em política, ninguém quer transcender. Substituímos a família de políticos tradicionais por uma nova dinastia de políticos narcisistas como Berlusconi e Beppe Grillo na Itália ou Trump nos Estados Unidos. Sempre sofremos com líderes megalomaníacos. Mas desta vez padecemos nas democracias mais estabelecidas, as que indicam o caminho para o resto. E por vontade própria. Em maior ou menor grau, nos identificamos com sua egolatria palhaça. Esses políticos exalam o narcisismo moral que, de acordo com Roger Simon, definiria o nosso tempo. Ou seja, a sensação de que o que nos faz bem é o que nós acreditamos. O que gritamos aos quatro ventos. Não o que fazemos.
Até certo ponto isso é um processo inevitável. O devir do mundo nos tornou mais egocêntricos. Pertencemos aos primeiros grupos na história da humanidade dos quais não se espera que sacrifiquem a vida por Deus ou pela pátria. O Estado de bem-estar, com todas as suas deficiências, garante aos cidadãos uma série de serviços que, como apontou Habermas há muito tempo, clientilizaram o conceito de cidadania. Sentimo-nos mais consumidores do que acionistas do Estado.
Socialmente, há muitos sinais de esperança. Somos tolerantes e solidários. Fazemo-nos voluntários de causas nobres. E proliferam os códigos éticos e deontológicos que guiam nossa vida cotidiana profissional.
Mas politicamente negligenciamos as virtudes cívicas. Não sentimos obrigações para com a comunidade. Deixamos tudo a cargo das instituições. E, como estamos vendo com Trump, nem os pesos e contrapesos da democracia mais estável do mundo parecem suficientes para deter uma política desprovida de civilidade.
Não é irreversível. Porque, em grande parte, o desprezo da cultura cívica é resultado dos relatos políticos dominantes nas últimas décadas. De direita e de esquerda. Todos contribuíram para diluir o espírito público. Por um lado, a direita ocidental se desprendeu dos freios democrata-cristãos e conservadores que continham a busca do puro interesse individual. Hoje vale tudo se beneficia você ou o seu país. A chanceler Angela Merkel é a última resistente, leal às suas fortes convicções morais. Mas é assediada em todas as frentes, externas e internas.
A esquerda não está livre de culpa. Desde sua torre de vigia moral, atacou o ultraliberalismo sem coração da direita. Mas sua crítica, escrupulosa e cômoda, não vem acompanhada pela sempre incômoda demanda de cultura cívica. A esquerda não reivindicou uma maior responsabilidade aos cidadãos para enfrentar os grandes desafios coletivos e as inescusáveis reformas do Estado de bem-estar. Focalizou em pedir maior participação na tomada de decisões. Dê-nos poder, mas não nos peça demasiados esforços. Uma pena, porque o princípio da responsabilidade pessoal e da obrigação social não é uma invenção socioliberal da terceira via, como muitos denunciam de maneira interesseira. Pelo contrário, está no próprio coração do pensamento socialista desde sua origem.
A esquerda abandonou a promoção do caráter cívico. De alguma forma perversa, a esquerda inverteu o sonho de uma de suas referências, Martin Luther King. O ativista dos direitos civis desejava uma nação em que os cidadãos fossem julgados pelo conteúdo do seu caráter e não por outras características estáticas, como a cor da pele. Mas a palavra “caráter” provoca alergia a uma esquerda contemporânea que prefere que os bens e as políticas sejam distribuídos em função das características passivas dos cidadãos.
Os eleitores são clientes sensíveis que precisam ser satisfeitos. Na política para narcisos só há espaço para vendedores divertidos. Não para pregadores como King ou Merkel.
Victor Lapuente Giné
Cada geração reclama da egolatria da seguinte. Dos jovens da Babilônia há milhares de anos aos millennials. Os agora virtuosos baby boomers (aqueles nascidos nas décadas do pós-guerra) foram apelidados na época como a “geração do eu”. Por isso, sejamos cautelosos na hora de interpretar os modismos do dia como mudanças culturais de fundo. No entanto, temos razões para pensar que as placas tectônicas sobre as quais estão assentadas as nossas sociedades democráticas estão se deslocando.
Somos mais individualistas. E isso tem efeitos positivos. Os países onde os valores individualistas predominam têm melhores resultados em quase todas as dimensões do bem-estar humano do que aqueles com valores mais coletivistas. As sociedades individualistas, ao gratificar a autonomia e a responsabilidade pessoal, promovem o desenvolvimento econômico. Os cidadãos têm mais incentivos para investir, inovar e acumular riqueza.
O individualismo também fomenta Governos mais responsáveis. Um estudo realizado pelo economista Andreas Kyriacou, da Universidade de Girona, mostra como os países mais individualistas têm instituições públicas mais imparciais. Por outro lado, as sociedades coletivistas valorizam mais a lealdade e a coesão do grupo. Os Governos sentem que devem favorecer os seus. Assim, naqueles lugares onde os cidadãos têm valores mais coletivistas, as instituições públicas acabam sendo mais nepotistas e corruptas.
No entanto, o individualismo tem um lado escuro: o narcisismo. Dados heterogêneos que vão de operações cirúrgicas até os nomes que colocamos nas crianças indicam que nos tornamos mais egoístas. Os testes psicológicos registram um aumento das personalidades narcísicas. De acordo com o Gallup, meio século atrás, apenas 12% dos adolescentes norte-americanos acreditava ser “muito importantes”. Agora, são mais de 80%. Até as letras das canções, mapas das preocupações cotidianas, também se tornaram mais individualistas e narcisistas.
O narcisismo projeta uma sombra tenebrosa sobre a democracia. Por definição, o narcisista tem problemas para criar empatia e interagir com os outros. E nisso se baseia a democracia. Desde a Grécia clássica, os filósofos insistiam que uma discussão saudável sobre o bem comum exige que os cidadãos transcendam seus interesses privados para se converterem no que Aristóteles chamou de animais políticos.
Hoje, em política, ninguém quer transcender. Substituímos a família de políticos tradicionais por uma nova dinastia de políticos narcisistas como Berlusconi e Beppe Grillo na Itália ou Trump nos Estados Unidos. Sempre sofremos com líderes megalomaníacos. Mas desta vez padecemos nas democracias mais estabelecidas, as que indicam o caminho para o resto. E por vontade própria. Em maior ou menor grau, nos identificamos com sua egolatria palhaça. Esses políticos exalam o narcisismo moral que, de acordo com Roger Simon, definiria o nosso tempo. Ou seja, a sensação de que o que nos faz bem é o que nós acreditamos. O que gritamos aos quatro ventos. Não o que fazemos.
Até certo ponto isso é um processo inevitável. O devir do mundo nos tornou mais egocêntricos. Pertencemos aos primeiros grupos na história da humanidade dos quais não se espera que sacrifiquem a vida por Deus ou pela pátria. O Estado de bem-estar, com todas as suas deficiências, garante aos cidadãos uma série de serviços que, como apontou Habermas há muito tempo, clientilizaram o conceito de cidadania. Sentimo-nos mais consumidores do que acionistas do Estado.
Socialmente, há muitos sinais de esperança. Somos tolerantes e solidários. Fazemo-nos voluntários de causas nobres. E proliferam os códigos éticos e deontológicos que guiam nossa vida cotidiana profissional.
Mas politicamente negligenciamos as virtudes cívicas. Não sentimos obrigações para com a comunidade. Deixamos tudo a cargo das instituições. E, como estamos vendo com Trump, nem os pesos e contrapesos da democracia mais estável do mundo parecem suficientes para deter uma política desprovida de civilidade.
Não é irreversível. Porque, em grande parte, o desprezo da cultura cívica é resultado dos relatos políticos dominantes nas últimas décadas. De direita e de esquerda. Todos contribuíram para diluir o espírito público. Por um lado, a direita ocidental se desprendeu dos freios democrata-cristãos e conservadores que continham a busca do puro interesse individual. Hoje vale tudo se beneficia você ou o seu país. A chanceler Angela Merkel é a última resistente, leal às suas fortes convicções morais. Mas é assediada em todas as frentes, externas e internas.
A esquerda não está livre de culpa. Desde sua torre de vigia moral, atacou o ultraliberalismo sem coração da direita. Mas sua crítica, escrupulosa e cômoda, não vem acompanhada pela sempre incômoda demanda de cultura cívica. A esquerda não reivindicou uma maior responsabilidade aos cidadãos para enfrentar os grandes desafios coletivos e as inescusáveis reformas do Estado de bem-estar. Focalizou em pedir maior participação na tomada de decisões. Dê-nos poder, mas não nos peça demasiados esforços. Uma pena, porque o princípio da responsabilidade pessoal e da obrigação social não é uma invenção socioliberal da terceira via, como muitos denunciam de maneira interesseira. Pelo contrário, está no próprio coração do pensamento socialista desde sua origem.
A esquerda abandonou a promoção do caráter cívico. De alguma forma perversa, a esquerda inverteu o sonho de uma de suas referências, Martin Luther King. O ativista dos direitos civis desejava uma nação em que os cidadãos fossem julgados pelo conteúdo do seu caráter e não por outras características estáticas, como a cor da pele. Mas a palavra “caráter” provoca alergia a uma esquerda contemporânea que prefere que os bens e as políticas sejam distribuídos em função das características passivas dos cidadãos.
Os eleitores são clientes sensíveis que precisam ser satisfeitos. Na política para narcisos só há espaço para vendedores divertidos. Não para pregadores como King ou Merkel.
Victor Lapuente Giné
Em nome dos fatos
Dois dias atrás, o Departamento do Trabalho americano divulgou a última leva de dados compilada ainda antes da posse de Donald Trump. A taxa de desemprego de 4,8% que Barack Obama entrega ao sucessor deve ter soado quase incômoda, por difícil de ser melhorada a canetadas.
Trump elegeu-se garantindo criar 25 milhões de empregos novos em dez anos, enquanto Obama criara 12 milhões e George W. Bush não ultrapassara o 1,3 milhão.
Então das duas uma: ou o 45º ocupante do cargo põe o colosso produtivo dos Estados Unidos em marcha acelerada, ou ele fabrica numerologias.
Seis meses atrás, durante a feroz campanha eleitoral, Trump reagiu assim à divulgação da taxa de desemprego, que era de 5%: “Esse número é um dos maiores embustes da história política americana. É provável que o número real seja 28%, ou 29%, chegue a 35%. Na verdade, ainda recentemente me falaram em 42%”.
Disparate de candidato? Há quem não queira pagar para ver.
Mark Twain já ensinou o quanto fatos são teimosos enquanto estatísticas são maleáveis.
É comum que por trás dos discursos de transição colaborativa entre um governo vitorioso nas urnas e o que foi enxotado do poder ocorra um desfile de frustrações pessoais, decepções ideológicas, medo da mudança, críticas por antecipação. Muito conspira contra uma entrega sem solavancos da máquina burocrática que faz funcionar um país.
No caso da equipe recém-empossada de Trump, contudo, a desconfiança é mais do que epidérmica. Já porque levantamento divulgado pela publicação “The Hill”, bíblia dos viciados em política de Washington, 95% das doações de campanha feitas em 2016 por funcionários dos 14 ministérios foram para a democrata Hillary Clinton.
Ainda assim, surpreende o surgimento de uma espécie de “quinta coluna” no interior de setores da administração pública dos Estados Unidos. A oposição mais vocal brotou dentro do Departamento de Estado, onde Hillary reinou entre 2009 a 2013. Um manifesto contra o polêmico decreto de Trump que suspendeu a imigração de refugiados foi assinado por mais de mil funcionários daquele ministério.
Nas áreas de coleta e publicação de material estatístico, censo e banco de dados a preocupação é com o futuro do seu bem maior: a preservação dos fatos.
Reportagem do “Washington Post” relata a multiplicação de fóruns e workshops para funcionários públicos que buscam aconselhamento jurídico sobre desobediência civil.
Também lista a preocupação de cientistas e ambientalistas com guinadas irreversíveis nas respectivas áreas. Um exemplo de ativismo explícito citado é a “página de resistência” @viralCDC, criada por um imunologista egresso do Centro de Controle e Prevenção de Doenças para a postagem de informações sobre vacinas e saúde pública. Ele teme que dados possam vir a ser omitidos do site oficial.
Operações-tartaruga em alguns departamentos, alerta sobre cortes no financiamento de séries estatísticas voltadas para questões sociais, vigília quanto à interpretação ou alteração de metodologia para a coleta de dados, dúvidas sobre a futura divulgação de pesquisas na íntegra — a desconfiança em relação às formas do governo Trump poder falsear a realidade são múltiplas.
Houve quem tomasse providências bem antes de o republicano topetudo chegar ao Salão Oval, revogar mais de 60 mil vistos de imigrantes, banir o ingresso temporário de 134 milhões de cidadãos de seis países e ter vazados dois de seus telefonemas alfa-macho da Casa Branca — um deles para o primeiro-ministro da universalmente simpática Austrália.
Brewster Kahle, 56 anos, é um engenheiro de computação formado pelo Massachusetts Institute of Technology. É advogado militante do direito universal ao conhecimento e bibliotecário digital. É, sobretudo, o fundador do Internet Archive, uma das maiores bibliotecas digitais do mundo, que engloba a Wayback Machine, onde estão preservados sites e páginas antigos que seus donos ou governos já deletaram.
Nos Estados Unidos, a cada término de mandato, tudo o que estava armazenado no endereço WhiteHouse.gov desaparece automaticamente, e o site readquire vida nova sob nova direção, enquanto os registros oficiais do governo anterior passam a ser disponibilizados nos anais do National Archives — com restrições e após o habitual processo de armazenamento.
Graças a um dos braços da biblioteca montada por Brewster, o End of Term Archive (arquivo Fim de Mandato), tudo já está lá, disponível, nas suas páginas e bancos de dados originais, sem poder ser apagado, adulterado, corrigido. O mesmo vale para o conteúdo total do Arquive.org.
Trata-se de um tesouro incalculável. E, a juízo de seu criador, talvez ameaçado. Por isso, Brewster e um exército de colaboradores internacionais tratou de organizar o acesso seguro e permanente do Internet Archive também a partir do Canadá, país mais acolhedor para bibliotecas digitais.
Em longa entrevista à jornalista Amy Goodman, do site “Democracy Now”, onde explica a complexidade desse refúgio que construiu para a História, Brewster lembra que bibliotecas como a de Alexandria costumam ser incendiadas, e por governos, para cem anos depois alguém se arrepender. E acrescenta: “Promessas de campanha e políticas atuais podem ser mudadas por quem controla o website do momento, pois quem controla o presente controla o passado”.
De fato, não fosse a Wayback Machine montada pelo engenheiro, não seria mais possível ver o site original da campanha legislativa de 2001 do atual vice presidente Mike Pence, na qual se lê que “O Congresso deve se opor a todo esforço em reconhecer homossexuais como minoria discreta e insular com direito à proteção das leis antidiscriminatórias...”
Brewster concorda com George Orwell que quem controla o presente também controla o futuro.
Trump elegeu-se garantindo criar 25 milhões de empregos novos em dez anos, enquanto Obama criara 12 milhões e George W. Bush não ultrapassara o 1,3 milhão.
Então das duas uma: ou o 45º ocupante do cargo põe o colosso produtivo dos Estados Unidos em marcha acelerada, ou ele fabrica numerologias.
Seis meses atrás, durante a feroz campanha eleitoral, Trump reagiu assim à divulgação da taxa de desemprego, que era de 5%: “Esse número é um dos maiores embustes da história política americana. É provável que o número real seja 28%, ou 29%, chegue a 35%. Na verdade, ainda recentemente me falaram em 42%”.
Disparate de candidato? Há quem não queira pagar para ver.
Mark Twain já ensinou o quanto fatos são teimosos enquanto estatísticas são maleáveis.
É comum que por trás dos discursos de transição colaborativa entre um governo vitorioso nas urnas e o que foi enxotado do poder ocorra um desfile de frustrações pessoais, decepções ideológicas, medo da mudança, críticas por antecipação. Muito conspira contra uma entrega sem solavancos da máquina burocrática que faz funcionar um país.
No caso da equipe recém-empossada de Trump, contudo, a desconfiança é mais do que epidérmica. Já porque levantamento divulgado pela publicação “The Hill”, bíblia dos viciados em política de Washington, 95% das doações de campanha feitas em 2016 por funcionários dos 14 ministérios foram para a democrata Hillary Clinton.
Ainda assim, surpreende o surgimento de uma espécie de “quinta coluna” no interior de setores da administração pública dos Estados Unidos. A oposição mais vocal brotou dentro do Departamento de Estado, onde Hillary reinou entre 2009 a 2013. Um manifesto contra o polêmico decreto de Trump que suspendeu a imigração de refugiados foi assinado por mais de mil funcionários daquele ministério.
Nas áreas de coleta e publicação de material estatístico, censo e banco de dados a preocupação é com o futuro do seu bem maior: a preservação dos fatos.
Reportagem do “Washington Post” relata a multiplicação de fóruns e workshops para funcionários públicos que buscam aconselhamento jurídico sobre desobediência civil.
Também lista a preocupação de cientistas e ambientalistas com guinadas irreversíveis nas respectivas áreas. Um exemplo de ativismo explícito citado é a “página de resistência” @viralCDC, criada por um imunologista egresso do Centro de Controle e Prevenção de Doenças para a postagem de informações sobre vacinas e saúde pública. Ele teme que dados possam vir a ser omitidos do site oficial.
Operações-tartaruga em alguns departamentos, alerta sobre cortes no financiamento de séries estatísticas voltadas para questões sociais, vigília quanto à interpretação ou alteração de metodologia para a coleta de dados, dúvidas sobre a futura divulgação de pesquisas na íntegra — a desconfiança em relação às formas do governo Trump poder falsear a realidade são múltiplas.
Houve quem tomasse providências bem antes de o republicano topetudo chegar ao Salão Oval, revogar mais de 60 mil vistos de imigrantes, banir o ingresso temporário de 134 milhões de cidadãos de seis países e ter vazados dois de seus telefonemas alfa-macho da Casa Branca — um deles para o primeiro-ministro da universalmente simpática Austrália.
Brewster Kahle, 56 anos, é um engenheiro de computação formado pelo Massachusetts Institute of Technology. É advogado militante do direito universal ao conhecimento e bibliotecário digital. É, sobretudo, o fundador do Internet Archive, uma das maiores bibliotecas digitais do mundo, que engloba a Wayback Machine, onde estão preservados sites e páginas antigos que seus donos ou governos já deletaram.
Nos Estados Unidos, a cada término de mandato, tudo o que estava armazenado no endereço WhiteHouse.gov desaparece automaticamente, e o site readquire vida nova sob nova direção, enquanto os registros oficiais do governo anterior passam a ser disponibilizados nos anais do National Archives — com restrições e após o habitual processo de armazenamento.
Graças a um dos braços da biblioteca montada por Brewster, o End of Term Archive (arquivo Fim de Mandato), tudo já está lá, disponível, nas suas páginas e bancos de dados originais, sem poder ser apagado, adulterado, corrigido. O mesmo vale para o conteúdo total do Arquive.org.
Trata-se de um tesouro incalculável. E, a juízo de seu criador, talvez ameaçado. Por isso, Brewster e um exército de colaboradores internacionais tratou de organizar o acesso seguro e permanente do Internet Archive também a partir do Canadá, país mais acolhedor para bibliotecas digitais.
Em longa entrevista à jornalista Amy Goodman, do site “Democracy Now”, onde explica a complexidade desse refúgio que construiu para a História, Brewster lembra que bibliotecas como a de Alexandria costumam ser incendiadas, e por governos, para cem anos depois alguém se arrepender. E acrescenta: “Promessas de campanha e políticas atuais podem ser mudadas por quem controla o website do momento, pois quem controla o presente controla o passado”.
De fato, não fosse a Wayback Machine montada pelo engenheiro, não seria mais possível ver o site original da campanha legislativa de 2001 do atual vice presidente Mike Pence, na qual se lê que “O Congresso deve se opor a todo esforço em reconhecer homossexuais como minoria discreta e insular com direito à proteção das leis antidiscriminatórias...”
Brewster concorda com George Orwell que quem controla o presente também controla o futuro.
Sonegando o direito
O que espanta a plateia é a insistência com que o partido (PMDB) sabota o interesse público, sonegando ao Brasil o direito de interromper sua tradição de logro para tentar um recomeço
Josias de Souza
A montanha dos mágicos
O Brasil não tem as montanhas mais altas do mundo. Mas a proeminência topográfica do sistema político sobre a sociedade faz dele um pico intransponível para cidadãos. A análise de seus efeitos sobre os costumes exige mais do que investigações judiciais.
A combinação da crise político-econômico-judicial requer uma análise cultural sobre o significado prático-moral da arte de representar, defender e encarcerar os outros.
Ninguém vai impor coerência ao sistema político, devolver coesão e respeito à ordem social e estimular o desenvolvimento econômico aliado de tantas guerras por domínio.
Todos os poderes têm deveres uns para com os outros, e a insanidade atual é achar que não é responsabilidade de políticos, juízes e promotores a violência nas ruas e nos presídios.
A atmosfera filosófica obscura da política estendeu seus males a todos os setores. O próprio Poder Judiciário, que protege os juízes que condena, como o Ministério Público, esse Robespierre que só imagina guilhotina no pescoço alheio, quando fazem maquinações para acumulação de mando, interferindo na balança de poder, correm o risco de transformar a ação positiva num objetivo negativo.
Os crimes verbais na internet, parte da violência atual, são o mesmo pântano criado pela representação confusa de partidos fictícios e demagogos que seguem em frente sem parar.
O mal transbordou para toda a sociedade e situou o modelo político em desconformidade com fins de interesse geral. Contrapondo o gosto e o belo todos os dias, em decisões, tragédias e flagrantes, o poder do Estado está em total assimetria com a monotonia da normalidade dos honestos.
A afetada arquitetura do modelo político ruiu. É osso duro de roer ver que o que é útil à sociedade precisa, primeiro, ser considerado útil ao interesse do sistema político.
O poder de cada um não é visto como essencial ao equilíbrio da sociedade. Por isso, a decisão de cada poder mira sempre na legitimidade diante do outro poder. Eles aspiram ao mesmo trono, proclamam e negam que a Constituição seja sua mãe. Não há mais enredo suficiente para tais atores. Está generalizada a confusão entre a satisfação de ser artista e o dever de ser autoridade.
Em relação ao político, a sensação de ser bom não tem mais um ajuizamento interior que leve em conta o interesse do outro. Maiorias ocasionais se formaram essa semana, continuarão maioria quando o interesse for o da sociedade? É regra: o prazer material de ter mandato é maior que o prazer moral da representação. Mas não é verdade que sempre foi assim.
O sucesso da Lava-Jato não é a ética da sua motivação. É o desvendar de antigas fronteiras ocupadas por um sistema comum. Acrescido do princípio simplificado de que pela despesa é que se conhece o homem público.
Não é mais a falta de universalismo moral das atitudes que ofende os brasileiros. É o excesso de cálculo da política dos Três Poderes. Que não consegue contrariar, nem deter, antes impulsiona motivações egoístas dos sentidos, permitindo que em torno do Estado se possa ir tão longe no erro. Um apetite doentio pois, a maioria ainda não percebeu, que honra e proveito não cabem no mesmo saco.
A combinação da crise político-econômico-judicial requer uma análise cultural sobre o significado prático-moral da arte de representar, defender e encarcerar os outros.
Ninguém vai impor coerência ao sistema político, devolver coesão e respeito à ordem social e estimular o desenvolvimento econômico aliado de tantas guerras por domínio.
Todos os poderes têm deveres uns para com os outros, e a insanidade atual é achar que não é responsabilidade de políticos, juízes e promotores a violência nas ruas e nos presídios.
Os crimes verbais na internet, parte da violência atual, são o mesmo pântano criado pela representação confusa de partidos fictícios e demagogos que seguem em frente sem parar.
O mal transbordou para toda a sociedade e situou o modelo político em desconformidade com fins de interesse geral. Contrapondo o gosto e o belo todos os dias, em decisões, tragédias e flagrantes, o poder do Estado está em total assimetria com a monotonia da normalidade dos honestos.
A afetada arquitetura do modelo político ruiu. É osso duro de roer ver que o que é útil à sociedade precisa, primeiro, ser considerado útil ao interesse do sistema político.
O poder de cada um não é visto como essencial ao equilíbrio da sociedade. Por isso, a decisão de cada poder mira sempre na legitimidade diante do outro poder. Eles aspiram ao mesmo trono, proclamam e negam que a Constituição seja sua mãe. Não há mais enredo suficiente para tais atores. Está generalizada a confusão entre a satisfação de ser artista e o dever de ser autoridade.
Em relação ao político, a sensação de ser bom não tem mais um ajuizamento interior que leve em conta o interesse do outro. Maiorias ocasionais se formaram essa semana, continuarão maioria quando o interesse for o da sociedade? É regra: o prazer material de ter mandato é maior que o prazer moral da representação. Mas não é verdade que sempre foi assim.
O sucesso da Lava-Jato não é a ética da sua motivação. É o desvendar de antigas fronteiras ocupadas por um sistema comum. Acrescido do princípio simplificado de que pela despesa é que se conhece o homem público.
Não é mais a falta de universalismo moral das atitudes que ofende os brasileiros. É o excesso de cálculo da política dos Três Poderes. Que não consegue contrariar, nem deter, antes impulsiona motivações egoístas dos sentidos, permitindo que em torno do Estado se possa ir tão longe no erro. Um apetite doentio pois, a maioria ainda não percebeu, que honra e proveito não cabem no mesmo saco.
Desde 1911 animando a festa
Concerto de 2015 no Texas com a Austin Symphonic Band e o grupo Boston Brass tocando "Alexander’s Ragtime Band", de Irving Berlin, lançada há mais de um século
Faroeste e febre amarela
Matar ou Morrer (High noon) é um clássico do gênero western. Com ele Gary Cooper faturou o Oscar de melhor ator em 1952. O enredo é inesquecível. Fazia cinco anos que Hadleyville, uma pequena cidade do velho oeste, vivia sua vida pacata, livre de tiroteios e assassinatos. Devia tal privilégio ao xerife Will Kane (Gary Cooper), que havia prendido o pistoleiro Frank Miller. Despachado para um presídio estadual, Miller é condenado à morte por enforcamento, sentença depois comutada para prisão perpétua.
No dia em que o xerife Kane, recém-casado, entrega o cargo para viver em outra região, chega a notícia-bomba. Indultado pelo governador, Frank Miller e vários comparsas estão a caminho de Hadleyville. Chegarão no trem do meio-dia.
Kane tem apenas uma hora para conseguir reforços entre os cidadãos. Procura um amigo, dirige-se à nata da sociedade local, reunida na igreja, e à turma do carteado no saloon, mas nada. Ninguém se dispõe a ajudá-lo. Ao contrário, o que vê é muita gente ansiosa por deixar a cidade. Escafeder-se.
Um cidadão de escol lhe diz que a questão não diz respeito à cidade. Trata-se de uma vendeta pessoal entre ele e Frank Miller. A solidão e a coragem de Will Kane crescem na exata proporção da covardia e da fuga dos varões de Hadleyville.
No fim dá tudo certo, claro. Todos os bandidos são mortos e seus corpos estão à vista na rua principal.
A refilmagem de 2000 é idêntica, com exceção da última cena. Na versão original, Will Kane, exausto, abraça sua mulher. Hadleyville reconquista a paz de que tanto se orgulhava. Na refilmagem, Kane arranca do peito a estrela de xerife e joga-a no chão. A câmera fecha em close, mostrando-a na lama, convidando o espectador a explorar outras possíveis interpretações do acontecido.
E realmente, pelo ângulo da ciência política, a questão central é a da participação. O ato de participar (assim como a recusa a fazê-lo) pode ser entendido em termos da relação custo/benefício.
O custo não é necessariamente pecuniário. Pode ser o tempo necessário para avaliar a situação, ou o grau de risco que ela envolve.
Em Hadleyville, se tudo desse certo (como deu), o benefício auferido pelos que optassem por apoiar o xerife seria o orgulho de defender a cidade e de contribuir para o restabelecimento da ordem. Bom, mas não muito. O custo, bem, o custo poderia ser um tiro na cabeça. A morte.
Acrescente-se que a paz, a lei e a ordem são situações do tipo que os economistas denominam bens coletivos. São bens indivisíveis. Não há como provê-los a alguns cidadãos e negá-los aos demais. Se Will Kane desse conta do recado, aqueles benefícios ficariam novamente à disposição de todos os moradores, indistintamente.
A vida cotidiana apresenta-nos uma infinidade de oportunidades de participar (ou não participar), a maioria, felizmente, implicando custos radicais como o de encontrar Frank Miller e sua turma na rua principal. Outra boa notícia é que a internet reduziu dramaticamente os custos da participação. O custo de trocar informações, auscultar o ânimo dos concidadãos, combinar uma reunião, etc., despencou para quase zero. Essa constatação é de suma relevância para as intricadas questões da saúde pública e do saneamento.
São Paulo, por exemplo, voltou a contar com autoridades municipais sérias e competentes. Mas a Prefeitura não pode fazer tudo. No aspecto preventivo, principalmente, a participação cidadã é decisiva. Sem um envolvimento ativo das famílias o poder público ficará como um Sísifo, empurrando sua pedra morro acima, ou, para dizê-lo em termos mais caseiros, não fará muito mais que enxugar gelo.
No momento, o nordeste de Minas Gerais e uma parte do Espírito Santo estão seriamente ameaçados pela febre amarela. Tida como erradicada, a doença está de volta. O mesmo acontece com seu grande vetor urbano, o mosquito Aedes aegypti. Quase extinto no Brasil há cerca de 15 anos, ele hoje marca presença em todos os Estados.
Se – queira Deus que não! – a febre chegar a São Paulo, teremos um cenário macabro. E, ironia das ironias, seu epicentro poderá ser a orla do Rio Pinheiros, uma imundície que ainda chamamos de rio só para abreviar a conversa.
Sim, claro, há fatores favoráveis. Um, já mencionado, a qualidade da atual administração municipal. Outro, a atuação das associações de bairro e a existência de alguns projetos sérios, como o Águas Claras do Rio Pinheiros. Terceiro, as margens do rio abrigam muitos dos bairros ditos “nobres”, ou seja, áreas habitadas por gente de altos rendimentos e alta escolarização, presumivelmente mais disponível para estimular operações preventivas.
Um rápido passeio pelos bairros a que me estou referindo é suficiente para fazermos algumas constatações relevantes. A administração anterior deixou a cidade num estado de inacreditável sujeira. Há mato por toda parte. Uma parcela importante da nossa sociedade carece, infelizmente, do mínimo indispensável de responsabilidade e educação sanitária.
Concluindo, não podemos perder de vista que, comparado ao Aedes aegypti, Frank Miller era café pequeno. O mosquito equivale a milhões de Franks Millers, tem ótima pontaria e munição a dar com pau. Lembremos também que São Paulo – e mesmo a zona oeste, cuja vida é decisivamente influenciada pelo Pinheiros – é centenas de vezes maior que Hadleyville. Nossos varões não têm a opção de ir embora no primeiro trem. Tampouco podem imaginar que a desigualdade social transfira todo o ônus para os bairros pobres ou para as favelas que também existem à beira do rio. Acontecendo o desastre, a primeira classe também cai.
No dia em que o xerife Kane, recém-casado, entrega o cargo para viver em outra região, chega a notícia-bomba. Indultado pelo governador, Frank Miller e vários comparsas estão a caminho de Hadleyville. Chegarão no trem do meio-dia.
Kane tem apenas uma hora para conseguir reforços entre os cidadãos. Procura um amigo, dirige-se à nata da sociedade local, reunida na igreja, e à turma do carteado no saloon, mas nada. Ninguém se dispõe a ajudá-lo. Ao contrário, o que vê é muita gente ansiosa por deixar a cidade. Escafeder-se.
Um cidadão de escol lhe diz que a questão não diz respeito à cidade. Trata-se de uma vendeta pessoal entre ele e Frank Miller. A solidão e a coragem de Will Kane crescem na exata proporção da covardia e da fuga dos varões de Hadleyville.
No fim dá tudo certo, claro. Todos os bandidos são mortos e seus corpos estão à vista na rua principal.
A refilmagem de 2000 é idêntica, com exceção da última cena. Na versão original, Will Kane, exausto, abraça sua mulher. Hadleyville reconquista a paz de que tanto se orgulhava. Na refilmagem, Kane arranca do peito a estrela de xerife e joga-a no chão. A câmera fecha em close, mostrando-a na lama, convidando o espectador a explorar outras possíveis interpretações do acontecido.
O custo não é necessariamente pecuniário. Pode ser o tempo necessário para avaliar a situação, ou o grau de risco que ela envolve.
Em Hadleyville, se tudo desse certo (como deu), o benefício auferido pelos que optassem por apoiar o xerife seria o orgulho de defender a cidade e de contribuir para o restabelecimento da ordem. Bom, mas não muito. O custo, bem, o custo poderia ser um tiro na cabeça. A morte.
Acrescente-se que a paz, a lei e a ordem são situações do tipo que os economistas denominam bens coletivos. São bens indivisíveis. Não há como provê-los a alguns cidadãos e negá-los aos demais. Se Will Kane desse conta do recado, aqueles benefícios ficariam novamente à disposição de todos os moradores, indistintamente.
A vida cotidiana apresenta-nos uma infinidade de oportunidades de participar (ou não participar), a maioria, felizmente, implicando custos radicais como o de encontrar Frank Miller e sua turma na rua principal. Outra boa notícia é que a internet reduziu dramaticamente os custos da participação. O custo de trocar informações, auscultar o ânimo dos concidadãos, combinar uma reunião, etc., despencou para quase zero. Essa constatação é de suma relevância para as intricadas questões da saúde pública e do saneamento.
São Paulo, por exemplo, voltou a contar com autoridades municipais sérias e competentes. Mas a Prefeitura não pode fazer tudo. No aspecto preventivo, principalmente, a participação cidadã é decisiva. Sem um envolvimento ativo das famílias o poder público ficará como um Sísifo, empurrando sua pedra morro acima, ou, para dizê-lo em termos mais caseiros, não fará muito mais que enxugar gelo.
No momento, o nordeste de Minas Gerais e uma parte do Espírito Santo estão seriamente ameaçados pela febre amarela. Tida como erradicada, a doença está de volta. O mesmo acontece com seu grande vetor urbano, o mosquito Aedes aegypti. Quase extinto no Brasil há cerca de 15 anos, ele hoje marca presença em todos os Estados.
Se – queira Deus que não! – a febre chegar a São Paulo, teremos um cenário macabro. E, ironia das ironias, seu epicentro poderá ser a orla do Rio Pinheiros, uma imundície que ainda chamamos de rio só para abreviar a conversa.
Sim, claro, há fatores favoráveis. Um, já mencionado, a qualidade da atual administração municipal. Outro, a atuação das associações de bairro e a existência de alguns projetos sérios, como o Águas Claras do Rio Pinheiros. Terceiro, as margens do rio abrigam muitos dos bairros ditos “nobres”, ou seja, áreas habitadas por gente de altos rendimentos e alta escolarização, presumivelmente mais disponível para estimular operações preventivas.
Um rápido passeio pelos bairros a que me estou referindo é suficiente para fazermos algumas constatações relevantes. A administração anterior deixou a cidade num estado de inacreditável sujeira. Há mato por toda parte. Uma parcela importante da nossa sociedade carece, infelizmente, do mínimo indispensável de responsabilidade e educação sanitária.
Concluindo, não podemos perder de vista que, comparado ao Aedes aegypti, Frank Miller era café pequeno. O mosquito equivale a milhões de Franks Millers, tem ótima pontaria e munição a dar com pau. Lembremos também que São Paulo – e mesmo a zona oeste, cuja vida é decisivamente influenciada pelo Pinheiros – é centenas de vezes maior que Hadleyville. Nossos varões não têm a opção de ir embora no primeiro trem. Tampouco podem imaginar que a desigualdade social transfira todo o ônus para os bairros pobres ou para as favelas que também existem à beira do rio. Acontecendo o desastre, a primeira classe também cai.
Ongs lançam campanha contra venda de bolinho de tubarão em Noronha
O arquipélago de Fernando de Noronha é um dos poucos locais ao longo da costa brasileira onde se pode realizar mergulho de observação de tubarões. O mesmo santuário que permite o avistamento desses animais ameaçados serve aos seus visitantes um bolinho com recheio de… tubarão. O cardápio inusitado segue sendo livremente comercializado, mas as ONGs ambientalistas Divers for Sharks e Rede Nacional Pró Unidades de Conservação (Rede Pró UC) se uniram para chamar atenção para a evidente contradição desta prática.
Os ambientalistas alertam principalmente para a falta de identificação das espécies que viram recheio do "tubalhau". Não se sabe se a espécie consumida consta na lista vermelha de espécie ameaçada, por exemplo. Em dezembro, ((o))eco publicou uma coluna da instrutora de mergulho Adriana Castro, que relatou vários problemas que ela presenciou na ilha, entre eles, a visível diminuição da fauna marinha.
A campanha será veiculada nas redes sociais e segue o mote da fala da Angela: se não é permitido comer iguaria feita com espécie ameaçada em qualquer outro ambiente, porque se permite comer tubarão em Noronha.
O inferno é aqui
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
Italo Calvino
Vazamentos
O Brasil está sendo passado a limpo. O grau de corrupção ganhou proporções inauditas, permeando as instituições. Os exemplos mais variados mostram quanto ela adentrou o Executivo, o Legislativo e mesmo o Judiciário, embora deste último tenham nascido as medidas moralizadoras e punitivas. O sistema partidário foi, certamente, o mais atingido, perdendo até suas condições de representatividade.
O combate à corrupção foi – e é – capitaneado por um grupo de juízes, desembargadores, promotores e procuradores, contando com o apoio decisivo da sociedade e da mídia. Poderosos são julgados e condenados, alguns já estão presos. Do ponto de vista social, a transformação é imensa, pois não se trata de ladrões de galinha pagando por pequenos delitos, mas dos próprios corruptores das instituições nacionais.
Acontece, porém, que um processo desse tipo não se faz sem atropelos e efeitos colaterais importantes. Prisões preventivas são utilizadas abusivamente, indivíduos são encarcerados por longo tempo antes de serem efetivamente condenados e punições, sob a forma de condenações públicas, tornam-se a regra.
Com razão, muitos se insurgem contra atos que não asseguram devidamente a defesa de acusados e violam garantias constitucionais. Não são pessoas que possam ser vistas, de uma forma maniqueísta, como defensoras da impunidade.
A questão, todavia, deve ser vista de outra maneira. Teria sido possível a Lava Jato prosperar sem certos atropelos da lei? É plausível que, numa guerra, as regras de civilidade e convenções internacionais sejam estritamente seguidas?
Se o contexto é de limpeza da cena pública, a varredura deve ser necessariamente rigorosa, obedecendo à sua própria lógica e suas condições. Se a cidadela da impunidade precisa ser conquistada, os meios utilizados devem levar em conta adversários encastelados em suas posições de poder.
O atual sistema legal até agora vinha apenas assegurando a impunidade dos corruptos. Essa era a regra, com todas as justificativas jurídicas.
Tomemos o caso do foro privilegiado. Trata-se de instituto vigente que tinha fim nobre: assegurar o exercício das atividades parlamentar e ministerial contra qualquer tipo de intervenção política arbitrária. Acontece que ele acabou sendo desviado de sua função, tornando-se um abrigo dos que querem fugir da Justiça.
Observe-se que muitos políticos nem entram no mérito das acusações que contra eles são lançadas, como se isso não tivesse a menor importância. Atêm-se somente a pequenas considerações legais, respaldadas no foro privilegiado, e ressaltando que não foram julgados. Ora, não foram julgados e eventualmente condenados por usufruírem o privilégio de foro, que funciona como um escudo da impunidade.
Note-se que as condenações em primeira instância da Lava Jato, em Curitiba, e referendadas pelo TRF-4, em Porto Alegre, já ultrapassaram uma centena. A justiça, nessa esfera, está sendo, portanto, feita.
No Supremo Tribunal, contudo, não há nenhuma condenação dos que gozam de foro privilegiado. Sua morosidade acaba por consagrar a impunidade. A alegação de que a Procuradoria-Geral da República não está fazendo seu trabalho a contendo só agrava a situação, pois também ela estaria consagrando a impunidade. Artifícios legais e tergiversações não podem ser instrumentos da injustiça.
Tomemos o caso dos vazamentos. Evidentemente, não são eles inocentes, mas perseguem certos objetivos. São seletivos, escolhendo determinados alvos e, nesse sentido, são arbitrários. Qualquer um pode ser atingido a qualquer momento. Inocentes podem ter sua honra destruída, sem ter sido julgados.
Exemplos são delações como a de Claudio Mello Filho. Algumas das acusações – outras são precisas – são baseadas em meras impressões, sem fundamento fidedigno. Provas materiais devem ser apresentadas, pois sem elas as alegações não passam disso.
A questão é que elas se tornam a base de matérias jornalísticas superficialmente feitas. E assim se procede à contagem de quantas menções foram feitas a certos políticos. Algumas alcançam dezenas. Entretanto, uma leitura acurada do documento mostra que seu fundamento consiste em referências do tipo: fulano foi recebido por sicrano (uma menção), este o convidou a sentar-se (a segunda), ofereceu-lhe um cafezinho (terceira), e assim continua até o aperto de mãos na despedida, perfazendo dezenas de menções.
A questão, porém, deve ser abordada também sob outra perspectiva. Considerando que as instituições vigentes têm consagrado a impunidade, teria sido a Operação Lava Jato efetiva sem os vazamentos? Não cumprem eles uma função saneadora da vida pública? Se o segredo da instrução fosse efetivamente assegurado, estariam os poderosos sendo investigados e condenados?
Os vazamentos são um efeito colateral de instituições que não vêm cumprindo suas finalidades. Se o sistema jurídico estivesse voltado realmente para a condenação dos políticos que usufruem o foro privilegiado, a disfuncionalidade dos vazamentos não existiria, pela simples razão de que seriam desnecessários.
Os vazamentos e sua repercussão jornalística desempenham um papel essencial: o de esclarecerem a sociedade sobre seus representantes. Sem eles não se teria acesso à informação, nem consciência de quem nos dirige. A consciência social e nacional seria capenga.
Basta que as condições que tornam necessários os vazamentos sejam suprimidas para que estes desapareçam ou se tornem irrelevantes. Dentre elas, o fim do foro privilegiado como hoje existe, a morosidade dos julgamentos e a eliminação do segredo de processos de agentes públicos, que devem prestar contas a toda a Nação.
Falsas singularidades
Desconfio da especificidade da maioria das coisas que damos como especificamente brasileiras. Não somos tão singulares assim.
Como nunca acreditei piamente nisso, levantei a dúvida. Será que não existiria jeitinho na África ou na Rússia, por exemplo?
Vieram informações preciosas. Entre outras coisas, a professora Marília Mattos citou um velho ditado espanhol: “hecha la lei, hecha la trampa”. Márcia Cris Effe relatou casos de jeitinho na Alemanha. E o antropólogo Mércio Gomes falou da universalidade da prática.
Outra “singularidade” em que muitos insistem: parece que o Brasil foi o único país do mundo em que houve escravidão. “Ah, somos assim ou assado por causa da escravidão”, repete-se ad nauseam. E ainda nos esquecemos de que, mesmo sociedades que não conheceram a escravidão, experimentaram processos igualmente cruéis.
Outro dia, dei uma entrevista a uma revista da USP em que repisei o assunto. Me perguntaram se, considerando a história de violência brasileira (colônia, escravidão, etc.), eu achava possível pensar o conceito de "espaço público" aqui tal e qual ele foi formulado na Europa?
Respondi que é claro que o processo brasileiro foi diverso do que o que aconteceu na Europa, embora não devamos passar ao largo de algo fundamental: a violência da Revolução Industrial, massacrando cruelmente adultos e crianças das classes trabalhadoras, não ficou nada a dever ao escravismo nas Américas, como demonstrado por Marx e Engels.
Lembrei que crianças de seis anos de idade eram mandadas à força para as fábricas de Manchester, onde trabalhavam praticamente o dia inteiro (somente em 1802, e na Inglaterra apenas, a legislação cortou o emprego de crianças à noite e reduziu a duração do trabalho infantil para 12 horas por dia!). Ou seja: a violência e a espoliação lá, não foram menores que aqui.
Além disso, nosso processo (colonialismo, escravidão, etc.) foi bem próximo do que se viu nos EUA e na Argentina, por exemplo. Daí que também possamos dizer, com Lyn Lofland, que é o espetáculo da diversidade das pessoas, no espaço público, que dá à cidade a sua “qualidade essencial”.
Enfim, isto é para sublinhar que não somos assim tão desgraçadamente singulares como se costuma supor.
Como nunca acreditei piamente nisso, levantei a dúvida. Será que não existiria jeitinho na África ou na Rússia, por exemplo?
Vieram informações preciosas. Entre outras coisas, a professora Marília Mattos citou um velho ditado espanhol: “hecha la lei, hecha la trampa”. Márcia Cris Effe relatou casos de jeitinho na Alemanha. E o antropólogo Mércio Gomes falou da universalidade da prática.
Outra “singularidade” em que muitos insistem: parece que o Brasil foi o único país do mundo em que houve escravidão. “Ah, somos assim ou assado por causa da escravidão”, repete-se ad nauseam. E ainda nos esquecemos de que, mesmo sociedades que não conheceram a escravidão, experimentaram processos igualmente cruéis.
Outro dia, dei uma entrevista a uma revista da USP em que repisei o assunto. Me perguntaram se, considerando a história de violência brasileira (colônia, escravidão, etc.), eu achava possível pensar o conceito de "espaço público" aqui tal e qual ele foi formulado na Europa?
Respondi que é claro que o processo brasileiro foi diverso do que o que aconteceu na Europa, embora não devamos passar ao largo de algo fundamental: a violência da Revolução Industrial, massacrando cruelmente adultos e crianças das classes trabalhadoras, não ficou nada a dever ao escravismo nas Américas, como demonstrado por Marx e Engels.
Lembrei que crianças de seis anos de idade eram mandadas à força para as fábricas de Manchester, onde trabalhavam praticamente o dia inteiro (somente em 1802, e na Inglaterra apenas, a legislação cortou o emprego de crianças à noite e reduziu a duração do trabalho infantil para 12 horas por dia!). Ou seja: a violência e a espoliação lá, não foram menores que aqui.
Além disso, nosso processo (colonialismo, escravidão, etc.) foi bem próximo do que se viu nos EUA e na Argentina, por exemplo. Daí que também possamos dizer, com Lyn Lofland, que é o espetáculo da diversidade das pessoas, no espaço público, que dá à cidade a sua “qualidade essencial”.
Enfim, isto é para sublinhar que não somos assim tão desgraçadamente singulares como se costuma supor.
Dois momentos do ladrão
O movimento de carros era intenso na avenida do comércio. Desses que se o motorista não dirigir com cuidado ultrapassa o sinal vermelho e certamente será flagrado na infração pelo guarda ou, infalivelmente, pelo censor instalado no poste próximo da sinaleira.
A moto parou no sinal vermelho.
Apareceu como um raio, arma em punho, apontando para a cabeça.
– Passe a carteira, se tem amor à vida.
Branco de medo. Na garupa da moto a mulher chorava.
– Entregue logo, o que está esperando?
Adiante, o ladrão abriu a carteira, contou as cédulas com o dinheiro gordo. Todo risonho. Começava bem o dia.
De repente foi lançado ao ar. Caiu estatelado. A moto pegou a dele em cheio. Era aquele mesmo motoqueiro, que tinha sido antes a vítima daquele mesmo cara de cabelos grandes e olhos sanguíneos, pilotando uma moto veloz. A vítima, que de repente virou o agressor, melhor dizendo, agente, pegou a sua carteira que caiu no chão com o dinheiro gordo.
Saiu disparado na moto, a mulher na garupa cantando.
O ladrão entrou na delegacia, zangado.
O rosto inchado, o corpo doendo.
Contou o ocorrido ao delegado.
Várias costelas quebradas, o corte no rosto.
Perdeu quatro dentes, a boca ferida, a língua machucada.
Gosto de sangue pisado.
Escapou por sorte.
No final declarou:
– Quero ser indenizado.
Indenização gorda. Direito líquido, certo, inquestionável, pensou com a careta feia que fez no rosto.
Providências cabíveis deviam ser tomadas. Urgentes. O caso exigia rapidez em razão da estupidez daquele motoqueiro imprudente. Imprudência, negligência ou imperícia. Fosse o que fosse.
Cyro de Mattos
A moto parou no sinal vermelho.
Apareceu como um raio, arma em punho, apontando para a cabeça.
– Passe a carteira, se tem amor à vida.
Branco de medo. Na garupa da moto a mulher chorava.
– Entregue logo, o que está esperando?
Adiante, o ladrão abriu a carteira, contou as cédulas com o dinheiro gordo. Todo risonho. Começava bem o dia.
De repente foi lançado ao ar. Caiu estatelado. A moto pegou a dele em cheio. Era aquele mesmo motoqueiro, que tinha sido antes a vítima daquele mesmo cara de cabelos grandes e olhos sanguíneos, pilotando uma moto veloz. A vítima, que de repente virou o agressor, melhor dizendo, agente, pegou a sua carteira que caiu no chão com o dinheiro gordo.
Saiu disparado na moto, a mulher na garupa cantando.
O ladrão entrou na delegacia, zangado.
O rosto inchado, o corpo doendo.
Contou o ocorrido ao delegado.
Várias costelas quebradas, o corte no rosto.
Perdeu quatro dentes, a boca ferida, a língua machucada.
Gosto de sangue pisado.
Escapou por sorte.
No final declarou:
– Quero ser indenizado.
Indenização gorda. Direito líquido, certo, inquestionável, pensou com a careta feia que fez no rosto.
Providências cabíveis deviam ser tomadas. Urgentes. O caso exigia rapidez em razão da estupidez daquele motoqueiro imprudente. Imprudência, negligência ou imperícia. Fosse o que fosse.
Cyro de Mattos
Canudos, a cidade do fim do mundo
O trovão soa na colina não muito distante do sítio, e Julio Redondo (camisa suja de terra, facão pendurado no cinto) levanta a cabeça espantado dentro de casa. Diz só uma palavra:
– Chuva.
Fala com emoção e alívio. Com a entonação feliz de quem espera há muito por alguém que enfim aparece.
Yamilson Mendes, um guia turístico de 35 anos (boné de ciclista, óculos de sol, bermuda), olha para o velho pastor de 85, é contagiado com seu otimismo e acrescenta duas palavras para confirmar a boa notícia:
– Chuva, sim.
Saem de casa sem falar, aproximam-se do cercado das cabras e ficam olhando em silêncio o borbotão de nuvens cinzentas e negras que avança envolto num rumor surdo de Canudos encharcando tudo. Está chovendo em dezembro no sertão brasileiro. Isso prenuncia uma temporada de chuvas para esta terra condenada à seca eterna. Mas nenhum dos dois, nem o temeroso velho sabe-tudo nem o jovem estudioso da história de seu povo, se atreve a assegurar isso. Pode ser que chova até fevereiro. Ou pode ser que não chova além desta tarde. Quem sabe? Isso, dizem os dois, só sabe Deus, que esconde as cartas.
A cidade de Canudos fica no interior vazio do Nordeste do Brasil, no meio desta região arisca e dura, o sertão, de uma vegetação única e singularmente bonita, a caatinga, que aguenta por 11 meses a mordida de um sol incandescente. Mas Canudos é famosa por outra coisa: em 1896, um batalhão de milhares de camponeses miseráveis, assolados por esta mesma seca, ajudados por grupos de bandoleiros e capatazes bravos de gado acostumados a lutar e a matar, ergueram-se em armas e enfrentaram a jovem república brasileira de então nesta cidade fora de todos os mapas. Liderados por Antônio Conselheiro, para alguns um fanático paranoico e retrógrado, para outros um santo milagreiro iluminado pela graça divina. O Conselheiro peregrinou durante anos por estradinhas sob esse mesmo sol torturante, de povoado em povoado, consertando igrejas e muros de cemitérios, antes de se negar a obedecer a qualquer autoridade, proibir o dinheiro, fundar a nova Canudos e arrastar para a morte a maioria de seus seguidores, que acreditaram cegamente nele até o último dia. Canudos rechaçou inacreditavelmente três expedições militares e só sucumbiu em outubro de 1897 à quarta, composta por um exército de mais de 4.000 homens, com canhões e metralhadoras, vindos de todos os Estados do Brasil. Tudo isso é contado num português primoroso por Euclides da Cunha, que viajou com essa quarta expedição, em Os Sertões, obra essencial da literatura brasileira. E é narrado magistralmente por Mario Vargas Llosa em A Guerra do Fim do Mundo.
Também o recordam, por meio das histórias de seus avós, os descendentes dos poucos que conseguiram fugir antes que o último cerco militar atingisse a cidade ou que sobreviveram à última batalha. Muitos deles – não todos – continuam a idolatrar o Conselheiro, como fizeram seus tataravós há mais de um século, transformando o tempo e a modernidade numa miragem.
“Meu tio, Chiquinho, lutou ao lado de Antônio Conselheiro. Quando eu era criança, enquanto balançávamos na rede, me cantava canções da Canudos velha, do tempo dos soldados. Eu lhe perguntava: ‘Matou muitos com o facão?’. E ele me respondia: ‘Uns poucos’. Mas não sei se era verdade. E me falava do Conselheiro, de como era bom, que fazia milagres e penitências, que as pessoas estavam contentes ao seu lado”. Maria Antônia Butão, Dona Maria, agora tem 77 anos e olha também, com um sorriso ausente, as nuvens que redemoinham em volta da sua casa nesta tarde estranha de vento e chuva. Vive numa chácara minúscula com cabras e um poço quase seco muito perto do campo de batalha de Canudos, das primeiras trincheiras, onde não é raro até hoje encontrar pentes de balas, botões de fardas e até esqueletos de soldados. Ao redor da casa se estende o mato baixo, salpicado de cactos como arame e de árvores peladas, cinzentas e esqueléticas da caatinga. Olhando para as nuvens também, sentado no chão, apoiado na parede da casa, há um homem de 45 anos. É filho de Dona Maria. Uma paralisia lhe vem inutilizando aos poucos as pernas há anos, sem que nenhum médico da região atine com a doença. Simplesmente as coisas são assim. Agora se arrasta ou a mãe o leva num piscar de olhos de fora para dentro da casa, de dentro para fora.
O fotógrafo fica com Dona Maria para a foto um pouco mais tarde. Enquanto isso, ela sugere, seria bom falar com uma amiga sua do povoado: Dona Durú. De 81 anos, Júlia Maria dos Santos, Dona Durú, foi professora leiga (sem diploma) durante metade da vida, ensinando as crianças e ler e escrever. Seu avô paterno também conheceu Antônio Conselheiro. E o pai desse avô. E duas bisavós. Ela se lembra bem das histórias da família: “Um dia, meu avô e meu bisavô saíram de Canudos para conseguir comida. Mas quando tentaram voltar a entrar, o cerco tinha se completado. Minhas bisavós ficaram dentro. E quando tudo acabou, os soldados as levaram para a Bahia. Uma puseram para cuidar dos filhos de uns senhores. A outra, para trabalhar no jardim. Mas poucos meses depois lhes perguntaram se queriam voltar para Canudos, mesmo estando destruída e queimada. Responderam que sim, porque sabiam que seus maridos estavam por aqui. E os encontraram.” Dona Durú se levanta para buscar numa cômoda uma foto de sua bisavó. Reclama. Não pode ficar de pé muito tempo. O vírus chikungunya, um dos transmitidos pelo mosquito responsável também pela zika e pela dengue, rói-lhe faz tempo as articulações dos joelhos. “Estas pernas já estão gastas”, resume. Depois acrescenta: “Ali, em Canudos, com o Conselheiro, a vida era boa, tudo era união, todo mundo era feliz, não havia brigas, não havia prostituição”. Dona Durú reproduz em 2017 em uma frase apenas o mesmo relato idealizado do paraíso já feito com estupefação por Euclides da Cunha em seu tempo, descrito por Vargas Llosa em seu romance; a mesma ideia quase mística que levou tantas pessoas dos quatro cantos do sertão a se encerrar em Canudos para defender o Conselheiro e seu mundo.
Da velha Canudos não resta nada. Foi reduzida a cinzas depois da guerra. Os sobreviventes – os avós de Dona Maria, de Dona Durú e outros tantos – regressaram meses depois e ergueram uma nova cidade sobre os alicerces da anterior. Mas no início dos anos 50 o Governo brasileiro construiu uma represa que a cobriu por inteiro. A nova Canudos foi edificada de novo, a vários quilômetros de distância, à margem do lago. Hoje é uma cidade de mais de 15.000 habitantes, com casas de alvenaria habitadas por pessoas amáveis, com uma avenida asfaltada, uma feira às sextas, uma minipraia com quiosque, ruas de terra e um banco sem dinheiro depois que os encarregados, fartos, decidiram retirar os fundos há um ano e meio, depois de sofrer quatro ataques quase seguidos de quadrilhas de ladrões vindas de fora. Yamilson Mendes, o guia turístico, bisneto de uma sobrevivente da guerra, está convencido de que o Governo construiu a represa sem pedir permissão à população para, entre outras coisas, afundar a cidade velha e sua memória nas águas do lago.
Mas a represa trouxe água abundante o ano inteiro para uma parte da população. Só uma parte: vários milhares de pessoas, como Dona Maria e Julio Redondo, o pastor de cabras, vivem em chácaras isoladas que dependem de poços artesanais quase sempre agônicos e, desde que foi instaurado o sistema no Governo Lula, dos carros-pipa mantidos pelo Exército, que passam uma vez por mês e que, apesar de tudo, são insuficientes. Também veio com a represa –junto com a estrada que chegou há uma dezena de anos – uma plantação rentável e organizada de bananeiras, que constitui a principal fonte de riqueza da comarca, junto com a tradicional venda de carne de cabra. Há pizzarias no centro da cidade. Mas há também mulheres que gastam o domingo de manhã caminhando pelo acostamento da estrada por vários quilômetros para recolher (e carregar na cabeça na volta) as mangas maduras que caem na área das bananeiras e são necessárias em casa.
– Chuva.
Fala com emoção e alívio. Com a entonação feliz de quem espera há muito por alguém que enfim aparece.
Yamilson Mendes, um guia turístico de 35 anos (boné de ciclista, óculos de sol, bermuda), olha para o velho pastor de 85, é contagiado com seu otimismo e acrescenta duas palavras para confirmar a boa notícia:
– Chuva, sim.
Saem de casa sem falar, aproximam-se do cercado das cabras e ficam olhando em silêncio o borbotão de nuvens cinzentas e negras que avança envolto num rumor surdo de Canudos encharcando tudo. Está chovendo em dezembro no sertão brasileiro. Isso prenuncia uma temporada de chuvas para esta terra condenada à seca eterna. Mas nenhum dos dois, nem o temeroso velho sabe-tudo nem o jovem estudioso da história de seu povo, se atreve a assegurar isso. Pode ser que chova até fevereiro. Ou pode ser que não chova além desta tarde. Quem sabe? Isso, dizem os dois, só sabe Deus, que esconde as cartas.
A cidade de Canudos fica no interior vazio do Nordeste do Brasil, no meio desta região arisca e dura, o sertão, de uma vegetação única e singularmente bonita, a caatinga, que aguenta por 11 meses a mordida de um sol incandescente. Mas Canudos é famosa por outra coisa: em 1896, um batalhão de milhares de camponeses miseráveis, assolados por esta mesma seca, ajudados por grupos de bandoleiros e capatazes bravos de gado acostumados a lutar e a matar, ergueram-se em armas e enfrentaram a jovem república brasileira de então nesta cidade fora de todos os mapas. Liderados por Antônio Conselheiro, para alguns um fanático paranoico e retrógrado, para outros um santo milagreiro iluminado pela graça divina. O Conselheiro peregrinou durante anos por estradinhas sob esse mesmo sol torturante, de povoado em povoado, consertando igrejas e muros de cemitérios, antes de se negar a obedecer a qualquer autoridade, proibir o dinheiro, fundar a nova Canudos e arrastar para a morte a maioria de seus seguidores, que acreditaram cegamente nele até o último dia. Canudos rechaçou inacreditavelmente três expedições militares e só sucumbiu em outubro de 1897 à quarta, composta por um exército de mais de 4.000 homens, com canhões e metralhadoras, vindos de todos os Estados do Brasil. Tudo isso é contado num português primoroso por Euclides da Cunha, que viajou com essa quarta expedição, em Os Sertões, obra essencial da literatura brasileira. E é narrado magistralmente por Mario Vargas Llosa em A Guerra do Fim do Mundo.
Também o recordam, por meio das histórias de seus avós, os descendentes dos poucos que conseguiram fugir antes que o último cerco militar atingisse a cidade ou que sobreviveram à última batalha. Muitos deles – não todos – continuam a idolatrar o Conselheiro, como fizeram seus tataravós há mais de um século, transformando o tempo e a modernidade numa miragem.
“Meu tio, Chiquinho, lutou ao lado de Antônio Conselheiro. Quando eu era criança, enquanto balançávamos na rede, me cantava canções da Canudos velha, do tempo dos soldados. Eu lhe perguntava: ‘Matou muitos com o facão?’. E ele me respondia: ‘Uns poucos’. Mas não sei se era verdade. E me falava do Conselheiro, de como era bom, que fazia milagres e penitências, que as pessoas estavam contentes ao seu lado”. Maria Antônia Butão, Dona Maria, agora tem 77 anos e olha também, com um sorriso ausente, as nuvens que redemoinham em volta da sua casa nesta tarde estranha de vento e chuva. Vive numa chácara minúscula com cabras e um poço quase seco muito perto do campo de batalha de Canudos, das primeiras trincheiras, onde não é raro até hoje encontrar pentes de balas, botões de fardas e até esqueletos de soldados. Ao redor da casa se estende o mato baixo, salpicado de cactos como arame e de árvores peladas, cinzentas e esqueléticas da caatinga. Olhando para as nuvens também, sentado no chão, apoiado na parede da casa, há um homem de 45 anos. É filho de Dona Maria. Uma paralisia lhe vem inutilizando aos poucos as pernas há anos, sem que nenhum médico da região atine com a doença. Simplesmente as coisas são assim. Agora se arrasta ou a mãe o leva num piscar de olhos de fora para dentro da casa, de dentro para fora.
O fotógrafo fica com Dona Maria para a foto um pouco mais tarde. Enquanto isso, ela sugere, seria bom falar com uma amiga sua do povoado: Dona Durú. De 81 anos, Júlia Maria dos Santos, Dona Durú, foi professora leiga (sem diploma) durante metade da vida, ensinando as crianças e ler e escrever. Seu avô paterno também conheceu Antônio Conselheiro. E o pai desse avô. E duas bisavós. Ela se lembra bem das histórias da família: “Um dia, meu avô e meu bisavô saíram de Canudos para conseguir comida. Mas quando tentaram voltar a entrar, o cerco tinha se completado. Minhas bisavós ficaram dentro. E quando tudo acabou, os soldados as levaram para a Bahia. Uma puseram para cuidar dos filhos de uns senhores. A outra, para trabalhar no jardim. Mas poucos meses depois lhes perguntaram se queriam voltar para Canudos, mesmo estando destruída e queimada. Responderam que sim, porque sabiam que seus maridos estavam por aqui. E os encontraram.” Dona Durú se levanta para buscar numa cômoda uma foto de sua bisavó. Reclama. Não pode ficar de pé muito tempo. O vírus chikungunya, um dos transmitidos pelo mosquito responsável também pela zika e pela dengue, rói-lhe faz tempo as articulações dos joelhos. “Estas pernas já estão gastas”, resume. Depois acrescenta: “Ali, em Canudos, com o Conselheiro, a vida era boa, tudo era união, todo mundo era feliz, não havia brigas, não havia prostituição”. Dona Durú reproduz em 2017 em uma frase apenas o mesmo relato idealizado do paraíso já feito com estupefação por Euclides da Cunha em seu tempo, descrito por Vargas Llosa em seu romance; a mesma ideia quase mística que levou tantas pessoas dos quatro cantos do sertão a se encerrar em Canudos para defender o Conselheiro e seu mundo.
Da velha Canudos não resta nada. Foi reduzida a cinzas depois da guerra. Os sobreviventes – os avós de Dona Maria, de Dona Durú e outros tantos – regressaram meses depois e ergueram uma nova cidade sobre os alicerces da anterior. Mas no início dos anos 50 o Governo brasileiro construiu uma represa que a cobriu por inteiro. A nova Canudos foi edificada de novo, a vários quilômetros de distância, à margem do lago. Hoje é uma cidade de mais de 15.000 habitantes, com casas de alvenaria habitadas por pessoas amáveis, com uma avenida asfaltada, uma feira às sextas, uma minipraia com quiosque, ruas de terra e um banco sem dinheiro depois que os encarregados, fartos, decidiram retirar os fundos há um ano e meio, depois de sofrer quatro ataques quase seguidos de quadrilhas de ladrões vindas de fora. Yamilson Mendes, o guia turístico, bisneto de uma sobrevivente da guerra, está convencido de que o Governo construiu a represa sem pedir permissão à população para, entre outras coisas, afundar a cidade velha e sua memória nas águas do lago.
Dona Durú, cujos avós foram combatentes |
Nem o fogo nem a água conseguiram apagar nossa história. Minha bisavó, que visitou o cemitério pouco antes de ficar submerso para sempre, dizia que seus mortos iam morrer duas vezes
Mas a represa trouxe água abundante o ano inteiro para uma parte da população. Só uma parte: vários milhares de pessoas, como Dona Maria e Julio Redondo, o pastor de cabras, vivem em chácaras isoladas que dependem de poços artesanais quase sempre agônicos e, desde que foi instaurado o sistema no Governo Lula, dos carros-pipa mantidos pelo Exército, que passam uma vez por mês e que, apesar de tudo, são insuficientes. Também veio com a represa –junto com a estrada que chegou há uma dezena de anos – uma plantação rentável e organizada de bananeiras, que constitui a principal fonte de riqueza da comarca, junto com a tradicional venda de carne de cabra. Há pizzarias no centro da cidade. Mas há também mulheres que gastam o domingo de manhã caminhando pelo acostamento da estrada por vários quilômetros para recolher (e carregar na cabeça na volta) as mangas maduras que caem na área das bananeiras e são necessárias em casa.
Assinar:
Postagens (Atom)