segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Faroeste e febre amarela

Matar ou Morrer (High noon) é um clássico do gênero western. Com ele Gary Cooper faturou o Oscar de melhor ator em 1952. O enredo é inesquecível. Fazia cinco anos que Hadleyville, uma pequena cidade do velho oeste, vivia sua vida pacata, livre de tiroteios e assassinatos. Devia tal privilégio ao xerife Will Kane (Gary Cooper), que havia prendido o pistoleiro Frank Miller. Despachado para um presídio estadual, Miller é condenado à morte por enforcamento, sentença depois comutada para prisão perpétua.

No dia em que o xerife Kane, recém-casado, entrega o cargo para viver em outra região, chega a notícia-bomba. Indultado pelo governador, Frank Miller e vários comparsas estão a caminho de Hadleyville. Chegarão no trem do meio-dia.

Kane tem apenas uma hora para conseguir reforços entre os cidadãos. Procura um amigo, dirige-se à nata da sociedade local, reunida na igreja, e à turma do carteado no saloon, mas nada. Ninguém se dispõe a ajudá-lo. Ao contrário, o que vê é muita gente ansiosa por deixar a cidade. Escafeder-se.

Um cidadão de escol lhe diz que a questão não diz respeito à cidade. Trata-se de uma vendeta pessoal entre ele e Frank Miller. A solidão e a coragem de Will Kane crescem na exata proporção da covardia e da fuga dos varões de Hadleyville.

No fim dá tudo certo, claro. Todos os bandidos são mortos e seus corpos estão à vista na rua principal.

A refilmagem de 2000 é idêntica, com exceção da última cena. Na versão original, Will Kane, exausto, abraça sua mulher. Hadleyville reconquista a paz de que tanto se orgulhava. Na refilmagem, Kane arranca do peito a estrela de xerife e joga-a no chão. A câmera fecha em close, mostrando-a na lama, convidando o espectador a explorar outras possíveis interpretações do acontecido.

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E realmente, pelo ângulo da ciência política, a questão central é a da participação. O ato de participar (assim como a recusa a fazê-lo) pode ser entendido em termos da relação custo/benefício.

O custo não é necessariamente pecuniário. Pode ser o tempo necessário para avaliar a situação, ou o grau de risco que ela envolve.

Em Hadleyville, se tudo desse certo (como deu), o benefício auferido pelos que optassem por apoiar o xerife seria o orgulho de defender a cidade e de contribuir para o restabelecimento da ordem. Bom, mas não muito. O custo, bem, o custo poderia ser um tiro na cabeça. A morte.

Acrescente-se que a paz, a lei e a ordem são situações do tipo que os economistas denominam bens coletivos. São bens indivisíveis. Não há como provê-los a alguns cidadãos e negá-los aos demais. Se Will Kane desse conta do recado, aqueles benefícios ficariam novamente à disposição de todos os moradores, indistintamente.

A vida cotidiana apresenta-nos uma infinidade de oportunidades de participar (ou não participar), a maioria, felizmente, implicando custos radicais como o de encontrar Frank Miller e sua turma na rua principal. Outra boa notícia é que a internet reduziu dramaticamente os custos da participação. O custo de trocar informações, auscultar o ânimo dos concidadãos, combinar uma reunião, etc., despencou para quase zero. Essa constatação é de suma relevância para as intricadas questões da saúde pública e do saneamento.

São Paulo, por exemplo, voltou a contar com autoridades municipais sérias e competentes. Mas a Prefeitura não pode fazer tudo. No aspecto preventivo, principalmente, a participação cidadã é decisiva. Sem um envolvimento ativo das famílias o poder público ficará como um Sísifo, empurrando sua pedra morro acima, ou, para dizê-lo em termos mais caseiros, não fará muito mais que enxugar gelo.

No momento, o nordeste de Minas Gerais e uma parte do Espírito Santo estão seriamente ameaçados pela febre amarela. Tida como erradicada, a doença está de volta. O mesmo acontece com seu grande vetor urbano, o mosquito Aedes aegypti. Quase extinto no Brasil há cerca de 15 anos, ele hoje marca presença em todos os Estados.

Se – queira Deus que não! – a febre chegar a São Paulo, teremos um cenário macabro. E, ironia das ironias, seu epicentro poderá ser a orla do Rio Pinheiros, uma imundície que ainda chamamos de rio só para abreviar a conversa.

Sim, claro, há fatores favoráveis. Um, já mencionado, a qualidade da atual administração municipal. Outro, a atuação das associações de bairro e a existência de alguns projetos sérios, como o Águas Claras do Rio Pinheiros. Terceiro, as margens do rio abrigam muitos dos bairros ditos “nobres”, ou seja, áreas habitadas por gente de altos rendimentos e alta escolarização, presumivelmente mais disponível para estimular operações preventivas.

Um rápido passeio pelos bairros a que me estou referindo é suficiente para fazermos algumas constatações relevantes. A administração anterior deixou a cidade num estado de inacreditável sujeira. Há mato por toda parte. Uma parcela importante da nossa sociedade carece, infelizmente, do mínimo indispensável de responsabilidade e educação sanitária.

Concluindo, não podemos perder de vista que, comparado ao Aedes aegypti, Frank Miller era café pequeno. O mosquito equivale a milhões de Franks Millers, tem ótima pontaria e munição a dar com pau. Lembremos também que São Paulo – e mesmo a zona oeste, cuja vida é decisivamente influenciada pelo Pinheiros – é centenas de vezes maior que Hadleyville. Nossos varões não têm a opção de ir embora no primeiro trem. Tampouco podem imaginar que a desigualdade social transfira todo o ônus para os bairros pobres ou para as favelas que também existem à beira do rio. Acontecendo o desastre, a primeira classe também cai.

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