sábado, 9 de maio de 2020

A cara da morte



Temos filas na Caixa e corpos em valas comuns
Rafael Galliez, professor de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ

A marcha dos camisas pardas

Um grupo de brucutus apoiadores do presidente Jair Bolsonaro – chamados “300 do Brasil” – armou acampamento no entorno da Praça dos Três Poderes para organizar uma invasão ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os camisas pardas do bolsonarismo, que agora vestem verde e amarelo e roupas camufladas, programam uma marcha sobre Brasília neste fim de semana. “Nós temos um comboio organizado para chegar a Brasília até o final desta semana. Pelo menos uns 300 caminhões, muitos militares da reserva, muitos civis, homens e mulheres, talvez até crianças, para virem para cá e darmos cabo dessa patifaria”, ameaçou Paulo Felipe, um dos líderes da milícia acampada, em vídeo divulgado em uma rede social.


A palavra “patifaria” não foi escolhida ao acaso. Resulta de uma irresponsável incitação. No dia 19 de abril, dirigindo-se a apoiares reunidos em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, o presidente Jair Bolsonaro exortou a súcia que pedia o fechamento das instituições democráticas a “lutar” com ele. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. Acabou a patifaria!”, bradou Bolsonaro, como se estivesse prestes a descer da Sierra Maestra, e não de uma caminhonete transformada em palanque.

Segundo o portal Congresso em Foco, outro que está por trás da gravíssima ameaça de assalto ao Congresso e à Corte Suprema é Marcelo Stachin, um dos líderes da campanha de formação da Aliança pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro pretende criar para chamar de seu. Ainda não se sabe quando, e se, a Aliança pelo Brasil cumprirá os requisitos legais e será autorizada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Fato é que a agremiação está muito mais próxima de um movimento golpista do que de um partido político.

Nos regimes democráticos, em especial em democracias representativas como é o caso do Brasil, os partidos políticos são as organizações por meio das quais os cidadãos participam da vida pública para contribuir na construção daquilo que em ciência política se convencionou chamar de “vontade do Estado”. Como se afigura, a Aliança pelo Brasil pretende o exato oposto, qual seja, eliminar qualquer possibilidade de diálogo para a formação daquela vontade. Assumindo a ação direta, como a criminosa intentona em Brasília, assemelha-se à tropa de segurança do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, criada em 1920 e precursora da temida Sturmabteilung (SA), a Seção de Assalto de triste memória. Quem duvida que veja as imagens das agressões dos camisas pardas a enfermeiras e jornalistas.

Na essência do movimento de formação da Aliança pelo Brasil, defendido e liderado por alguns dos que estão acampados em Brasília a ameaçar o Congresso e o STF, estão todos os elementos que identificam um movimento golpista, e não um partido político: a evocação a um passado mítico e glorioso; a propaganda (não raro disseminando informações falsas ou distorcendo fatos); o anti-intelectualismo; a vitimização de Jair Bolsonaro, tratado como um bom homem cercado de “patifes” por todos os lados, o “sistema”; o apelo a uma noção de “pátria” por meio da apropriação dos símbolos nacionais; e, por fim, a ação pela desarticulação da União e da sociedade. O que pode ser mais desagregador do que um movimento que ameaça partir para a ação violenta com o objetivo de fechar a Casa de representação do povo e a mais alta instância do Poder Judiciário? Não por acaso, o STF tem despertado especial revolta entre os camisas pardas do bolsonarismo. Classificada pelo tal Paulo Felipe como uma “casa maldita, composta por onze gângsteres”, a Corte Suprema tem se erguido em defesa da Constituição contra os avanços autoritários do presidente Jair Bolsonaro.

Um ato golpista desse jaez, cujos desdobramentos são imprevisíveis, é repugnante por si só e merece imediata condenação por todas as forças amantes da lei e da liberdade no País, em especial as Forças Armadas, citadas nominalmente tanto pelo presidente como por alguns dos líderes da ação golpista. É ainda mais acintoso porque toma justamente o local que representa a essência desta República para urdir um ataque aos Poderes Legislativo e Judiciário. Terá esse episódio mais uma vez o apoio explícito do chefe do Poder Executivo?

Regina, fria, insensível e debochada

Quando Regina Duarte foi anunciada como substituta do nazista demitido da Secretaria de Cultura há dois meses, muitos se equivocaram (este colunista inclusive) acreditando que o setor ganharia com sua nomeação. Afinal, era uma atriz com meio século de experiência e que conhecia muito bem a cultura nacional, suas necessidades e precariedades. O fato de ser aliada de primeira hora de Jair Bolsonaro fazia parte do jogo, não se podia esperar que o presidente chamasse Chico Buarque para o posto. Foi um engano terrível.

A entrevista que Regina concedeu aos repórteres Daniel Adjuto, Daniela Lima e Reinaldo Gottino, da CNN, mostrou o lado mais obscuro da atriz, a sua frieza e insensibilidade, o caráter tão deformado quanto o do seu antecessor Roberto Alvim. Debochada, a secretária zombou da morte, da tortura, fazendo uma dancinha patética na cadeira enquanto cantarolava “Pra Frente Brasil”, música-hino da seleção brasileira de 1970 mas que também serviu como propaganda do governo do general Emílio Médici, o mais brutal do ciclo militar que durou 21 anos.

Somente uma pessoa gelada pode tratar de tortura e assassinatos a mando do Estado como coisa natural. “Sempre houve tortura”, disse Regina. “Na humanidade, não para de morrer (gente)”, acrescentou desavergonhadamente. E depois, ridícula, perguntou “por que que as pessoas ficam oh, oh, oh (diante da morte), por que?”. A atriz não difere em nada dos trogloditas que avançam sobre enfermeiras, que agridem jornalistas, que carregam faixas pregando a volta do AI-5, a intervenção militar ou o fechamento de Supremo e Congresso.

Regina também protagonizou um episódio de incoerência explícita, atributo muito comum entre os radicais do bolsonarismo. Ao iniciar sua entrevista, disse que falava à CNN porque adora “essa ideia de dois lados”. A atriz quis sugerir que os demais veículos não dão os dois lados de uma história. Bobagem. O importante foi o que se viu mais adiante, quando a secretária produziu um faniquito ao vivo porque a emissora colocou um vídeo com Maitê Proença cobrando medidas da secretária de Cultura. Regina não quis ouvir o outro lado e chegou a tirar o fone de ouvido que usava.

Não preciso repetir aqui a confusão produzida ao vivo pela atriz ao perceber que um VT de Maitê estava entrando no ar para questioná-la. Mas é necessário lembrar um ponto pelo menos. Ao retirar o fone para não ouvir a colega de profissão, Regina cobrou dos jornalistas por terem colocado um contraditório na entrevista que ela imaginou ser propriedade sua. “Pra quê desenterrar uma mensagem da Maitê? Quem é você?”, perguntou a secretária para Daniela Lima, estufada de autoridade e claramente irada porque a emissora apresentou o que antes ela disse adorar, o outro lado.

Ontem, menos de 24 horas depois de a entrevista ir ao ar, os robôs do bolsonarismo começaram a torpedear Maitê e a CNN nas redes sociais. A emissora que entrou no ar há menos de dois meses passou a ser atacada pelos mesmos energúmenos habituais. Aqueles que confundem jornalismo com propaganda, os que só querem ler, ver e ouvir boas histórias. As ofensas foram as de sempre, mudando apenas o seu objeto. “Imprensa canalha, jornalismo comunista, CNN Lixo”. Bem-vinda ao clube.

Os morlocks

Muita gente se fez essa pergunta às primeiras irrupções dos black blocs nas manifestações de rua de alguns anos atrás, embora sem aquele tom prazenteiro com que há mais tempo os turistas estrangeiros indagam aos cariocas onde é que aquelas mulatas esculturais das escolas de samba se escondem antes e depois do carnaval.

Muita gente agora repete a pergunta quando os militantes bolsominions saem às ruas, fantasiados de verde e amarelo, para mais uma marcha da insensatez e do orgulho nazi-fascista.

Os black blocs nada tinham ou têm a ver com os squadistri do duce brasiliense, esses belicosos gigolôs do patriotismo e do farisaísmo evangélico que nos fins de semana pressionam pelo fim da democracia e prometem deflagrar uma guerra civil, uns até já metidos em uniformes de campanha, como se viu num vídeo grotesco e criminoso veiculado nas redes sociais quarta-feira à noite.

Os black blocs – inesperados, incontroláveis e apenas visíveis no breve momento da baderna – vandalizavam símbolos materiais do capitalismo selvagem, atacavam vitrines de butiques, caixas eletrônicos, carros de luxo, jogavam pedras e outros objetos à mão; mas não agrediam pessoas física ou verbalmente; não faziam ameaças nem incitavam a intervenção de outras forças além das suas próprias, que nunca botaram para quebrar exigindo o fechamento do Congresso e do STJ, a reedição do AI-5 e o que mais pudesse resultar de um putsch militar.


De que trevas afinal vieram essas criaturas que se enrolam no pavilhão nacional e, destilando ódio e ostentando uma ferocidade homicida, agridem jornalistas e até enfermeiras, reverberando desejos trogloditas que ressentimentos incubaram, a ignorância exacerbou e o insano, narcisista e messiânico capitão-presidente não se cansa de insuflar?

Meu palpite é que saíram de lugar nada recomendável, onde, no mínimo, reina a escuridão. Como os Morlocks.

Taí um nome que lhes cai bem. Tem mais pedigree que os black blocs. Inventou-o o britânico H.G. Wells, no romance A Máquina do Tempo, a mais lida aventura sobre engenhocas que nos levam ao passado e ao futuro. Zumbis antropoides, que se homiziaram debaixo da Terra após uma guerra nuclear que quase destruiu o planeta, os morlocks viviam aterrorizando os Elois, os habitantes da superfície terrestre. As duas adaptações do livro ao cinema respeitaram sua configuração original: medonhas criaturas de aspecto simiesco (Darwin explica), inteiramente cegas (Platão explica) e canibalescas – os vilões da história.

Cinco décadas atrás, os quadrinhos dos X-Men os reciclaram como mutantes proscritos da sociedade por preconceitos físicos e raciais, que sobreviviam nos subterrâneos de Manhattan, em abandonados abrigos antiatômicos, grandes tubulações de ar refrigerado e esgotos ainda mais carregados de simbolismo. Ganharam outro status sociopolítico no auge da luta pelos Direitos Civis nos EUA, bem mais expressivo do que lhes dera Wells, ao paragoná-los, superficialmente, com a classe operária da Inglaterra vitoriana.

Nossos morlocks assemelham-se aos que nos aterrorizaram no romance e na tela: cegas e desatinadas criaturas incapazes de ver a luz.

*
Durante a ditadura militar, sempre que morria um grande artista reprimido pelo regime, alguém espanava o bordão “assassinato cultural” e o devolvia à prateleira da retórica elegíaca. Às vezes era mais uma hipérbole do que uma acusação fundamentada, um desabafo inflamado pela dor da perda e a certeza de que o autoritarismo também destrói vidas por vias tortas.

Esta semana caiu na conta do governo Bolsonaro um binômio fadado a prosperar, “suicídio cultural”. Na carta em que justificou seu gesto extremo, o ator Flávio Migliaccio deixou claro que já não aguentava mais ser velho no Boçalnistão.

“Não deu mais”, desabafou. E prosseguiu: “A velhice neste país é o caos como tudo agora”. Migliaccio, que na juventude enfrentou com destemor, tenacidade e arte a ditadura cultuada pelos morlocks, no inverno do seu descontentamento, capitulou. “Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com este tipo de gente que acabei encontrando”, arrematou.

Como bem notou a jornalista Cynara Menezes, em sua página na internet, Migliaccio não escreveu uma carta de suicida, mas “um protesto, um apelo, uma súplica”. Mais: “um documento histórico dos tempos atuais”. Cynara foi quem melhor abordou, nas mídias sociais, a polêmica que se armou em torno da divulgação da carta, por alguns vista como uma invasão (ou evasão) de privacidade. Não confere: o ator a deixou na cabeceira da cama, para que todos a lessem.

Manifesto não se engaveta. O “caos” da velhice a que Migliaccio se refere é uma clara alusão à reforma da Previdência e ao contumaz desprezo dos atuais governantes pelos idosos, tidos como vítimas inevitavelmente preferenciais da covid-19 (uma doença que “só mata velho”) e pacientes a sempre serem preteridos por um jovem quando houver apenas um leito com respirador disponível.

Imagine-se na emergência de um hospital, com apenas um leito disponível e dois candidatos: Aldir Blanc, 73 anos, e um garotão qualquer, que não estuda, não trabalha, um inútil. A escolha esperada não é a de Sofia e merecia ser batizada com o nome do ministro da Saúde que a recomendou. Mas para que preservar a vida de um garotão, se ao que tudo indica, seu futuro é uma miragem dantesca?

Brasil bolsonarista


Encenações

O Centrão, todo mundo sabe, é do tipo que vende a mãe mas não entrega. O Diário Oficial cheio de indicações da temporada não garante que, depois de um prazo regulamentar de governismo, os partidos do grupo não venham, lá na frente, a votar favoravelmente a um impeachment de Jair Bolsonaro e ainda vão dizer que são amigos de Hamilton Mourão desde criancinha. No primeiro ato desse teatro, porém, o Centrão vem desempenhando um papel importantíssimo para todas as forças do espectro político. Muito além do Planalto, o verniz de governabilidade que seus integrantes estão dando a Bolsonaro serve a gregos e troianos do mundo político, dando-lhes a desculpa que precisavam para não levar a sério neste momento um processo de afastamento do presidente da República.


Na prática, nem as forças de centro e de direita que até ontem se aglutinavam em torno do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e nem as de esquerda que estão na oposição querem que Bolsonaro seja derrubado pelo ex-juiz Sergio Moro – algoz de muitos de seus integrantes na Lava Jato e, portanto, um adversário a ser varrido do cenário. Seu raciocínio - e seu maior temor - é de que, afastado o presidente por um processo de impeachment aberto com base nas acusações de interferência na PF do ex-ministro da Justiça, Moro pode recuperar a aura de herói e passar a ser personagem irremovível do palco de 2022.

Nas coxias, governadores como João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) e outros pré-candidatos que se preparam para entrar em cena não querem disputar os votos do campo conservador com Moro. Não vão fazer força por esse impeachment, pois preferem brigar com um Bolsonaro desgastado pelo conjunto da obra das crises políticas de seu governo e pelo impacto da pandemia da Covid-19. Caso muito semelhante ao do PT de Lula e Fernando Haddad e de outras forças da oposição. Preferem ver Bolsonaro sangrar, mas ficar no cargo achando que pode se candidatar à reeleição e, com isso, dividir as forças de direita.

O establishment político sabe que as incertezas da pandemia do coronavírus - que nos levam a imaginar até se chegaremos vivos a - podem mudar fortemente esse enredo. Seus integrantes acreditam até que, em meio à forte recessão e aos atos insensatos quase diários que comete, Bolsonaro pode não conseguir mesmo concluir o mandato. Admitem, portanto, um impeachment no segundo ato dessa peça, lá para meados de 2021. Nesse cálculo, não seria, porém, um evento tão consagrador assim para Moro – que, além de tudo, vai estar desgastado por uma batalha perdida contra o Planalto se as investigações ora em curso não resultarem no afastamento, como parece.

Políticos – e juízes também – costumam ser excelentes atores. Dão a impressão de querer uma coisa quando às vezes o que querem é exatamente o oposto. Por isso, é bom ter olho vivo nessa função. Da euforia governista do Centrão aos indignados pedidos de CPI para investigar Bolsonaro com base nas revelações de Moro, é preciso dar o devido desconto ao que vem sendo dito e feito nessa encenação.

O fim do espetáculo ainda não foi escrito, e só teremos noção do desfecho a partir do comportamento da plateia – que, ao fim e ao cabo, é quem compra os ingressos e determina o sucesso ou não de uma montagem. Se ela continuar cochilando, meio apática, Bolsonaro fica no palco desempenhando seu papel canastrão. Mas se o pessoal, irritado e esfomeado, começar a vaiar, jogar ovos e tomates, porém, o The End promete ficar eletrizante.
Helena Chagas

Notas do anoitecer da crise

(...) Que poderia escrever um cronista, em dia assim? Todas as ordens foram traídas. Todas as promessas foram desfeitas. Já começo a sentir algum desgosto de ser brasileiro... e ter que continuar sendo, por todos os séculos, por todos os remorsos, por todas as insônias, pela minha pobreza, pelo meu amor. Haverá outro dia esperança? Quando?

Então, leitor, contente-se, por hoje, com estas notas escritas, sob um céu castanho. Feitas de uma melancólica preguiça de ser. Sim. De ser. Partilhe comigo desse perdoável desgosto pelas coisas paradas, pelos homens parados, por um deus parado. Há um desânimo geral, que nem a poesia salvará. A poesia, apenas, nos ensinaria a morrer. Assim seja. 

O amor mascarado

Pedro levou meia hora a vestir-se e a equipar-se para sair de casa. Ajustou ao rosto a sofisticada máscara que um amigo lhe trouxera de Singapura, com a garantia de o proteger de qualquer tipo de vírus, além da poluição (poderia continuar a usá-la, explicou-lhe o amigo, quando o vírus desaparecesse e a bendita poluição retornasse). Colocou o capuz e os óculos escuros. Finalmente, calçou as luvas. Estudou a sua figura no amplo espelho do corredor. Parecia um viajante vindo de um futuro apocalíptico, pensou, e no mesmo instante lhe ocorreu que esse futuro já chegara.

As ruas de Lisboa, agora desertas, limpas e desafogadas, pareciam mais largas. A cidade inteira resplandecia, lavada e escovada, sob um doce sol de primavera. À porta da padaria encontrou uma fila de umas dez pessoas, a rigorosos dois metros de distância umas das outras, todas equipadas com máscaras e luvas. À frente dele postava-se uma mulher elegante. Pedro costumava vê-la ali. A máscara dela fora confecionada a partir de um tecido florido. Era como se tivesse o rosto afundado num ramalhete de flores. Cumprimentaram-se com um aceno alegre. Nunca haviam trocado mais do que duas palavras de circunstância. Porém, Pedro simpatizava com a mulher e ela parecia retribuir tal sentimento. Naquela manhã isso ficou evidente quando, saindo da padaria, ao cruzar-se com o homem, a desconhecida lhe passou para as mãos um papelinho rabiscado à pressa. Era um número de telefone. Mal chegou a casa, Pedro ligou para o número:
– Olá! Sou o tipo da fila da padaria. Chamo-me…
– Não preciso de saber o teu nome…
– E o teu, posso saber?
– Não. Tu também não precisas de saber o meu. Podes chamar-me, eu sei lá, Alfonsina. Tu vais ser Mário…


Pedro teve uma sensação de reconhecimento, como quando um perfume súbito a pastéis de massa tenra, a terra molhada, a goiabas maduras nos faz regressar aos lugares da nossa infância. Aquela voz acordava nele sentimentos atordoados e contraditórios.
– Posso saber o que fazes, quero dizer, profissionalmente? – perguntou, tropeçando nas palavras.
A mulher riu-se:
– Não. Prefiro inventar. O jogo é esse. A partir de agora só vale a ficção.
Disse-lhe que era cantora. Costumava cantar numa casa de fados. Cantou para ele. Cantava bem. Pedro, ou Mário, contou que era arquiteto. Tinha um atelier em Berlim. Fazia muitos projetos para países do Médio Oriente. Quando se despediram, três horas mais tarde, já se desconheciam muitíssimo bem. As conversas continuaram nos dias seguintes. Pedro foi-se tornando mais Mário a cada conversa. Nos intervalos sentia a falta de Alfonsina. Sozinho em casa, irritava-se com a presença de Pedro, que passava quase todo o tempo ocupado com as suas traduções. Sim, Pedro era tradutor. Sempre trabalhara em casa. O confinamento pouco alterara uma rotina invariável, acordar, lavar os dentes, comer um iogurte e uma fruta, e sentar-se depois a traduzir até à uma da tarde. Almoçava sempre na mesma tasca, na esquina, fazia uma sesta breve e voltava ao trabalho por volta das duas e meia.

Pela primeira vez em muitos anos, custava-lhe sentar-se para trabalhar. A cada frase se distraía. Deixava de ser Pedro, o tradutor, para ser Mário, o arquiteto. Deu por si a desenhar projetos de grandes edifícios de apartamentos enquanto pensava em Alfonsina. Ela não lhe dissera em que casa de fados costumava cantar. Procurou no Google, mas não encontrou uma única referência a uma fadista chamada Alfonsina. Lembrou-se então de que Alfonsina não era real, e isso doeu-lhe, como o fim de um grande amor. Logo a seguir, porém, ela ligou, e cantou para ele, e contou-lhe episódios divertidos da sua vida nas noites alfacinhas, e voltou a ser mais verdadeira do que qualquer mulher que ele alguma vez conhecera.

Pedro só costumava ir à padaria duas vezes por semana. Dois pães grandes davam-lhe para a semana toda. Depois que se começou a transformar em Mário, passou a ir todas as manhãs, na secreta esperança de encontrar Alfonsina. Como ela não aparecia à hora habitual, tentou outras. Chegava a ir à padaria três vezes no mesmo dia. O pão multiplicava-se. Guardou o excedente no congelador. Quando o congelador ficou cheio, passou a armazená-lo em caixas de sapatos, na despensa, na cozinha e até debaixo da cama.

– Preciso ver-te – implorou Mário, numa noite em que haviam conversado mais tempo do que o habitual, e ele terminara a última garrafa de bom vinho que guardava em casa. – Só quero ver o teu rosto.

Surpreendentemente, Alfonsina concordou. Prometeu que faria uma selfie, ao acordar, com a luz generosa do amanhecer, e que a enviaria para ele. Mário dormiu mal. Sonhou com uma mulher cujo rosto mudava ao longo do dia: de manhã era jovem e resplandecente; contudo, ia perdendo o brilho e a frescura à medida que o sol percorria o céu e depois declinava, até se transformar, finalmente, num ser opaco e murcho. Acordou por volta das sete da manhã, com o tilintar do telefone. Alfonsina cumprira a promessa: ali estava ela, desmascarada, posando diante de um vaso branco com orquídeas.

Pedro deixou cair o telefone. Sentou-se no soalho, encostado à parede, com o coração aos saltos: era Helena, a namorada de quem fugira, quinze anos antes, após vinte meses de uma relação tumultuosa. Vira-a pela última vez no casamento de uma irmã dela. A mulher quebrara-lhe uma jarra com orquídeas contra a cabeça, e ele tivera de ser levado para o hospital, coberto de sangue e de vergonha. Estava então no terceiro ano de arquitetura. Abandonara a faculdade, trocara de telefone e de cidade e recomeçara a vida como tradutor.

Olhou de novo o telefone. Era Helena, sem dúvida. E sorria.

Um governo deteriorado

À medida que os fatos políticos vão ocorrendo sem que as barreiras institucionais sejam eficazes para conter o ímpeto corrosivo do presidente Bolsonaro, preocupa que militares antes considerados capazes de incutir bom-senso ao governo estejam avalizando uma visão paranóica da situação política.

O General Vilas Boas, ex-comandante do Exército e figura icônica entre seus pares, encontrou palavras para elogiar a entrevista à CNN da ainda secretária de cultura Regina Duarte onde ela, em vez da “sensibilidade” que o general vislumbrou, demonstrou uma absurda indiferença diante das mortes pela Covid-19, das torturas e mortes na ditadura militar.

A mesma insensibilidade que o presidente Bolsonaro explicitou ao ir de supetão ao Supremo Tribunal Federal (STF) pressionar pelo fim da quarentena, num momento em que o país claramente entra na fase aguda da pandemia e tem o número de mortes diário aumentando dramaticamente.

A presença de seus ministros de origem militar na comitiva mórbida indica que eles pensam igual a Bolsonaro, ou se submeteram a seu desprezo pelo sofrimento alheio, numa visão utilitarista da vida em sociedade. 


Ainda ontem, quando novo salto levou os óbitos à casa dos 700 diários, caminhando para a trágica marca de 10 mil mortes devido à Covid-19, Bolsonaro fez troça sobre uma churrascada que pretende realizar hoje no Palácio da Alvorada.

O estilo provocador do presidente já é conhecido de todos. Ele pretende constranger aqueles que lhe impõem limites, mesmo instituições como o Supremo, que tem o papel de indicar ao presidente quando ele saiu do que a Constituição determina.

Foi assim que assessores como o General Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) ou o chefe do Gabinete Civil General Braga Neto, ou o Chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, transformaram-se em meros cumpridores de ordens, perdendo a qualidade de formadores de políticas governamentais.

Os três estão arrolados como testemunhas no inquérito do Supremo sobre a tentativa de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, e em conjunto sentiram-se afrontados pelos termos usados pelo ministro Celso de Mello ao convoca-los.

O que é uma formalidade burocrática, afirmar que os que não comparecerem na data marcada terão que fazê-lo “coercitivamente, ou debaixo de vara”, foi considerado uma afronta aos militares, que se consideram acima de qualquer suspeita.

O mesmo tratamento foi dado aos deputados que estão convocados e demais servidores públicos, sem que os termos fossem contestados. Esse sentimento de estar acima dos procedimentos normais em casos como esse desbordou em uma nota oficial do Clube Militar, que acusa o ministro decano do Supremo de ter ódio do governo federal, e considera “falta de habilidade, educação, compostura e bom-senso” o tratamento recebido pelos militares.

Esse sentimento alimenta as convocações para manifestações este fim de semana, contra o Supremo e o Congresso, e a favor da intervenção militar. Essa é uma demonstração de que os militares não deveriam participar da vida política do país, pois vestem ternos civis, mas se consideram uma casta diferenciada.

O recente balão de ensaio, que não prosperou diante da reação negativa, de colocar o General Luiz Eduardo Ramos no comando do Exército em lugar do General Edson Leal Pujol, faz parte dessa paranoia de Bolsonaro de só ter em seu entorno pessoas que digam amém sem contestar.

O General Pujol tem uma postura mais contida na relação com a política, e teria irritado o presidente ao dar o cotovelo para cumprimentá-lo em uma solenidade, deixando-o com a mão no ar. Uma demonstração de que segue as normas internacionais e nacionais de afastamento social, interpretada por Bolsonaro como uma atitude afrontosa. O que denota um governo deteriorado por uma visão autoritária do poder.

O que estamos esperando?

Leio tudo que posso sobre política, sigo todo o noticiário, acompanho as entrevistas, não perco os artigos de nossos ótimos jornalistas, mas não encontro nem um fio de explicação sobre os motivos que levam Rodrigo Maia a ignorar os pedidos de impeachment que dormem em sua gaveta.

Hoje, indignada com o que via, concluí: será que Rodrigo Maia está esperando que Bolsonaro invada o Congresso, ocupe a mesa diretora, sente na cadeira da presidência da Câmara e tripudie sobre o Legislativo assim como tripudiou sobre o STF?

Seria um escândalo? Seria, mas isso não incomoda o Bolsonaro. Ele até gosta pois sem gastar um tostão furado, seu nome continua a ser repetido pela Imprensa diariamente, contribuindo para que ele mantenha os índices de popularidade que o convencem que vai ser reeleito em 2022.


Hoje, creio que talvez recordando o comentário esperto de seu filho Bananinha, no meio de uma reunião com empresários, Bolsonaro pensou: ‘dispenso o cabo e o tanque, vou só com nossos empresários’. E assim fez. O grupo animado saiu a pé do Planalto para o STF. Ele ocupou a mesa principal, abriu a reunião, deu voz ao seu ministro da Economia e só depois de ouvir aquilo que queria ouvir, passou a palavra ao presidente do STF que estava ali apenas como espectador interessado.

Um dos empresários fez o seguinte comentário:

(...)"durante reunião com o presidente, fomos convidados por ele a ir ao Supremo e não houve nenhum estresse. Foi importante termos ido ao STF. Se o Congresso estivesse funcionando, também teríamos ido até lá relatar os nossos problemas. Não teve constrangimento e o ministro Toffoli foi receptivo e sugeriu criar um comitê de avaliação. Achamos importante ter ido até lá mostrar o mundo real”.

Quer dizer, além de tratarem o STF como se fosse a Casa da Mãe Joana, ainda ofendem seus membros ao dizer que a invasão foi importante por mostrar aos juízes togados como é o mundo real, espaço que eles acreditam é ignorado pelo Supremo.

O que o presidente Rodrigo Maia achou disso tudo? Pelo menos nada que o faça abrir a santa gaveta onde guarda os pedidos de impeachment de Bolsonaro, que já são muitos.
Agora é esperar a próxima aglomeração no cercadinho do Alvorada e torcer para que a Imprensa saiba manter sua dignidade, não faça perguntas, só fotografe, sem permitir que Bolsonare a mande calar a boca. Deixem que ele fale sozinho. Afinal, o que ele tem a dizer, não se escreve.Maria Helena RR de Sousa