sábado, 3 de agosto de 2019

O que vê Bolsonaro?

Quando o meu filho Carlos tinha quatro ou cinco anos surpreendeu-me de boca aberta diante de um anúncio de perfume (creio que era um perfume), numa revista de moda, que mostrava uma modelo nua, estendida numa praia. “Uau!” — exclamou ele, num entusiasmo que me pareceu demasiado precoce. Então, prosseguiu: “que cinto tão bonito. É um cinto de cowboy.” Só então reparei que a modelo tinha um cinto. Eu só tinha visto a mulher. Ele só vira o cinto.

Ninguém, diante da mesma imagem, vê a mesma imagem. Ninguém lê o mesmo livro — lendo o mesmo livro. Vivemos vidas diferentes vivendo vidas comuns.

Além disso, o olhar de cada um de nós muda consoante a idade e as circunstâncias. Se Carlos, hoje com 22 anos, voltasse a ver agora aquela imagem, veria o mesmo que eu vi então. Se eu vir um cisne num parque vou reparar na beleza dele. Mas, se eu vir um cisne num parque depois de passar trinta dias a pão e água, é provável que, olhando para a magnífica ave, veja apenas a possibilidade de uma magnífica refeição. 

Não surpreende, portanto, que seja tão difícil viver em sociedade. Nunca vemos o mesmo, vendo o mesmo. Aquilo que parece evidente para uns pode ser completamente invisível para os restantes. Então discutimos, xingamos os outros e, no limite, partimos para uma guerra civil. Por isso me parece tão importante tentar olhar o mundo através do olhar daqueles que acreditamos serem os nossos adversários.


Penso em tudo isto pensando em Bolsonaro. Sempre que Jair Bolsonaro solta uma das suas barbaridades, ou seja, sempre que abre a boca, eu tento genuinamente compreender a perspetiva dele. Pode ser que Jair esteja vendo o cinto onde eu só vejo a mulher. Ou a mulher, onde o meu filho só via o cinto. Pode ser que ele só veja a praia, ou o mar, ou o azul do céu, e que, de repente, o azul do céu, naquela foto especifica, seja a chave para a compreensão do universo. Infelizmente, falho sempre.

Por muito que me esforce não consigo compreender, por exemplo, que vantagens terá o Brasil em ter como embaixador em Washington um sujeito que apresenta como primeira credencial para o cargo o ter fritado hambúrgueres no Maine; o futuro embaixador também acredita que fala inglês. Lembra-me o caso de um amigo que acreditava falar italiano fluentemente. Um dia deu uma entrevista a uma televisão italiana. Quando terminou de responder à primeira pergunta, a jornalista, perplexa, pediu-lhe para repetir tudo, mas dessa vez em italiano. Achou que ele estivesse falando português. Eu ouvi Eduardo Bolsonaro falar inglês e ainda não sei que idioma era aquele. Nem sequer parecia um idioma.

Também não consigo compreender o que leva um presidente da República, numa democracia, a exaltar torturadores, a troçar do sofrimento de quem foi torturado, ou, de forma mais ampla e repetida, a defender ideias totalitárias. Em que é que este tipo de declarações beneficia o Brasil e os brasileiros?

Suspeito que o presidente Jair Bolsonaro use lentes de contato espelhadas — com o espelho para dentro. Tentando olhar o mundo, ele não vê senão o desamparado abismo da sua própria alma.

O espelho não mente

Jair Bolsonaro e o PT desnudaram-se, quase simultaneamente, em fiéis autorretratos. No Brasil, o presidente asqueroso festejou uma ditadura do passado, comemorando o assassinato de Estado de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB. Horas antes, em Caracas, na reunião do Foro de São Paulo, representantes do partido de Lula festejaram uma ditadura do presente que já tem, em Fernando Albán e no capitão Rafael Acosta, seus próprios Santa Cruz. Tão diferentes, tão iguais: quando se olham no espelho, cada um vê, refletida, a imagem do outro.

O presidente da OAB declarou guerra à gestão Bolsonaro, protegendo criminosos contra o governo. Assim como os terroristas comunistas haviam declarado guerra aos governos militares. E não há guerra sem que haja efeitos colaterais. Na carta raivosade um bolsonarista, emergem os signos de uma lógica compartilhada: a política como guerra permanente, o impulso do extermínio físico do “inimigo”.

Troque as senhas ocas de um discurso ritual —“terroristas comunistas” por “agentes do imperialismo”, “governos militares” por “poder bolivariano”— e, mágica!, agora quem fala é Mônica Valente, a representante oficial petista no ato de solidariedade a Nicolás Maduro. Quando Bolsonaro ergue um brinde aos torturadores do DOI-Codi, como ignorar o brinde petista aos seviciadores do Sebin? Almas gêmeas: Bolsonaro inveja a tortura que, por um acidente da história, não infligiu; o PT inveja a tortura que, por um acaso da geografia, não aplicou.


A guerra pode ser interpretada como continuação da política (Clausewitz), mas o inverso só é verdadeiro nas ditaduras. Nas democracias, o pluralismo assenta-se na crença de que ninguém —nenhuma corrente política— possui o monopólio da verdade ou da virtude. Daí, as convicções democráticas de que a oposição cumpre papel positivo, apontando alternativas às ações do governo, e de que a crítica veiculada pela imprensa ajuda a limitar o exercício excessivo do poder pelas autoridades. Bolsonaro, como antes dele o PT, abomina o pluralismo —e o suprimiria, se pudesse.

Os populismos nascem no chão da democracia, pelo voto popular, mas desencadeiam insurreições autoritárias que almejam destruí-la. “Nós” contra “eles”: o “inimigo do povo”, na narrativa do PT, converte-se no “inimigo da pátria”, na versão de Bolsonaro. Quem não recordou, ao ouvir Bolsonaro sobre Glenn Greenwald, as palavras de Lula sobre Larry Rohter? De uma pulsão exterminista à outra, giramos em círculos sem sair do lugar.

Pepe Mujica descobriu que o regime de Maduro é uma ditadura, nada além disso. O raio esclarecedor tocou-o, finalmente, com a publicação do relatório da ex-presidente chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para direitos humanos, que descreve as prisões arbitrárias, as torturas e os assassinatos extrajudiciais cometidos sistematicamente na Venezuela. Mas, para interditar a hipótese de repúdio diplomático uruguaio à tirania chavista, o líder da facção dos ex-tupamaros na aliança governista acrescentou que ela, a ditadura, “pertence a eles”, os venezuelanos.

À luz da democracia, o adendo tático de Mujica está errado. As ditaduras, inclusive as “estrangeiras” e as “do passado”, pertencem a todos nós. Isso é o que está escrito nas leis nacionais e nos tratados internacionais de direitos humanos. Os corpos mortos, mutilados, de Albán e do capitão Acosta, assim como o cadáver desaparecido de Fernando Santa Cruz e de tantos outros, são parte de nós, da aventura humana no mundo. Hoje, no Brasil, são algo mais: pertencem ao presente e demarcam uma encruzilhada civilizatória.

As celebrações paralelas do terror de Estado —a do PT, em Caracas; a de Bolsonaro, em Brasília— explicitam projetos políticos simétricos. Inimigos-irmãos, eles se merecem. Nós os merecemos?
Demétrio Magnoli

Pensamento do Dia


O desprezo do presidente pelo melhor da alma do Brasil

Entre as muitas barbaridades pronunciadas irresponsavelmente pelo presidente Jair Bolsonaro nos primeiros sete meses de seu Governo, que Eliane Brum qualifica neste mesmo jornal de perversas em seu magnifico artigo Doente de Brasil, há uma que, talvez por ser estrangeiro, ofendeu-me de modo especial. É quando ele afirma: “Temos uma profunda repulsa por quem não é brasileiro”.

A afirmação, no plural, daria a entender que não só ele, mas também todos os outros brasileiros, alimentam essa repulsa contra aqueles que não são, o que é uma injúria com milhões que sempre acolheram os estrangeiros com admirável gentileza, respeito e até carinho. Porque, além do mais, nas veias dos brasileiros pulsa o sangue de tantos povos vindos de todo o mundo. Basta pensar que só em São Paulo convivem em paz, sentindo-se brasileiros e sendo aceitos como tal, pessoas de 90 países diferentes.

Embora estejamos acostumados às palavras de desprezo do presidente de ultradireita por tudo que não sejam suas ordens autoritárias e seus horizontes mesquinhos de civilização, afirmar que sente repulsa por quem não é brasileiro é algo grave em quem deveria ser o defensor de todos e de cada um daqueles que habitam este grande continente, o quinto maior país do mundo. Todos, de algum modo, somos brasileiros. Aqui não há estrangeiros.

Segundo o dicionário Michaelis, repulsa é sinônimo de “repugnância, asco, aversão, revolta”. Se é isso que ele pensa daqueles que, como eu, escolheram livremente este país para viver e o sentem como seu, está fazendo uma tremenda injustiça que o define melhor do que todas as suas bravatas. Mais uma vez, com rejeição e repulsa em relação àqueles que não são brasileiros, o presidente revela que nele predominam os sentimentos negativos, suas pulsões de morte, sua atração por tudo que significa destruição e desqualificação do próximo.

Significa, acima de tudo, uma injúria e uma ofensa ao melhor deste país, que, apesar de todos os seus defeitos, tem uma virtude indiscutível, a acolhida aos estrangeiros. Estou aqui há 20 anos e posso dizer que me sinto mais querido do que em minha própria terra.

Bolsonaro despreza e até persegue o melhor dos brasileiros, a rica pluralidade de suas diferenças étnicas, culturais, humanas e religiosas. Quando eu ainda estava fora do Brasil, pude observar em minhas viagens pelo mundo que a palavra “Brasil” despertava principalmente simpatia e vontade de conhecer o país. Em um mundo no qual está sempre à espreita o perigo das guerras, o Brasil, apesar de sua carga de violência institucional e de suas grandes injustiças sociais, era visto como um povo que deseja viver em paz e que não lembra quando teve sua última guerra.

Agora, pela primeira vez em muito tempo, o Brasil vive sob um Governo que fala mais de guerra do que de paz, de matar do que de dar vida, que assassina a cultura e despreza as diferenças, o que significa renegar a alma deste país, que até ontem era visto pelos sociólogos europeus como um caldeirão de experiências positivas em sua convivência pacífica com os estrangeiros, aos quais poderia oferecer o sonho de um futuro com espaço e liberdade para todas as experiências em um clima de paz e desejo de felicidade.

Talvez seja este o maior pecado do novo presidente, o de estar criando um clima de guerra entre os brasileiros, incitando seus sentimentos de ódio e desprezo por tudo o que significa buscar caminhos novos de convivência e liberdade para experimentar novas formas de viver a existência sem que ninguém os ameace ou assuste.

Bolsonaro, que se apresenta como cristão, parece ter esquecido que os tempos do “olho por olho, dente por dente” morreram há mais de 2.000 anos e que foram os primeiros cristãos aqueles que pregaram: “Agora já não há judeu nem gentio, escravo nem livre, porque todos são um em Cristo”. Semear, como o presidente faz, sementes de morte e divisão, de desprezo e até de ameaças a todos aqueles que não se ajoelhem diante de sua visão autoritária e estreita do mundo, é ofender este país e segregá-lo do mundo moderno sem fronteiras, querendo impor novos muros que nos separem uns dos outros.

É precisamente essa a missão de satanás, dividir e semear ódios para impedir as pessoas de ser felizes, de ser como elas querem e não como pretende um Governo que parece apreciar mais as armas do que a paz, a discórdia do que a concórdia. Isso, na verdade, é assassinar o país em vez de abrir novos horizontes para ele em um mundo que está com dores de parto e tudo de que precisa é que o ajudem a criar uma nova vida, em vez de se deixar arrastar pelos demônios que tentam destruir seus sonhos.

A lepra nacional

Chaves, 23 de Setembro de 1966 - Só há uma lepra humana pior do que o despotismo: a cobardia. A cobardia individual ou  colectiva, a que recua diante da força ou diante dos factos. De maneira singular ou plural, aberta ou encobertamente,  a vida faz-nos sempre a mesma exigência:  exercício quotidiano da coragem e do risco. E quando o medo nos tolhe, e nos negamos a essa prática salutar, perdemos, como parcelas ou como soma, aquela mínima dignidade que distingue a pessoa da rês e o grupo da manada
Miguel Torga , Diário X

BolsoNero

O grande desafio político consistiu, a partir do último quartel do século 20, na superação das fragilidades da democracia representativa numa sociedade de massas inertes e manipuláveis, na qual a relação entre a sociedade civil e a política fica limitada ao processo eleitoral.

A crise da democracia representativa cresceu vertiginosamente com o compartilhamento em rede: pessoas que se juntam em torno de preconceitos e subjetividades, um rol imenso de desconhecidos que retroalimentam suas idiossincrasias, seus ressentimentos e crenças inabaláveis.

Mas há outro lado, o das forças atuantes da sociedade civil. Profissionais e voluntários vêm a constituir polos de produção de opiniões e sugestões, fruto da experiência e do estudo. São muitas manifestações (espontâneas ou programadas) por associações, órgãos de classe, organizações não governamentais, voltadas para influir no processo decisório, trazendo valiosa contribuição, própria de um consistente pluralismo social.

Reconhecendo-se a valia desse pluralismo, criaram-se ao longo do tempo muitos órgãos de cunho consultivo para assessorar a administração pública. Houve, sem dúvida, exageros, com focos de mera reivindicação leviana ou assembleísmo; certo é, porém, que a participação da sociedade oxigena, instrui e amplia a ação estatal, em suma, democratiza.

De fato, para a legitimidade da democracia de massas num mundo em rede é essencial a atuação e a presença efetiva da sociedade, fazendo mais pessoas participarem, racionalmente, da criação do destino coletivo.

Pois Bolsonaro fez exatamente o contrário no primeiro dia de governo, afirmando que governaria em ligação direta com o povo, sem nem mesmo partidos políticos, num neopopulismo virtual. Ilegalmente decretou o fim dos conselhos. Semana passada, suprimiu a participação de médicos no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).


Fui, em 1988, presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), antecessor do Conad, então órgão do Ministério da Justiça, com um quadro de médicos estupendo: Elisaldo Carlini, autoridade mundial em pesquisas de drogas, lente emérito da Unifesp; Miguel Roberto Jorge, professor associado de Psiquiatria da Unifesp, foi eleito presidente da Associação Médica Mundial; Sérgio de Paula Ramos, presidente da Associação Brasileira de Álcool e outras Drogas (Abead). Essa valiosa participação permitiu trabalho inovador na área de prevenção, em convênio com a ONU.

O desprezo de Bolsonaro pela inteligência manifesta-se no ataque ao Inpe, acusado de “estar a serviço de alguma ONG”, sendo seu presidente Ricardo Galvão, professor titular da USP, merecedor de prêmio do Centro Internacional de Física Teórica de Trieste, na Itália. A desfeita ao Inpe coincide com a outorga pela Organização Meteorológica Mundial (WMO), das Nações Unidas, de seu mais importante prêmio ao instituto, na pessoa do cientista Divino Moura.

Em sua trajetória de exterminador cultural, Bolsonaro entende ser de sua competência definir roteiros a serem patrocinados pela Ancine, no mesmo instante em que o cinema brasileiro, com as fitas Bacurau e Vida Invisível de Eurídice Gusmão, ganhou prêmios no Festival de Cannes.

Sob a orientação do ministro da Economia, Bolsonaro propôs emenda constitucional visando, na prática, à eliminação dos órgãos de classe: “artigo 174 – A lei não estabelecerá limites ao exercício de atividades profissional ou obrigação de inscrição em conselho profissional sem que a ausência de regulação caracterize risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social”.

Assim, para advogar não será mais necessário estar inscrito na OAB e esta, se perdurar, não poderá exigir dos milhares de bacharéis que se formam a cada ano prova mínima de suficiência para o exercício da profissão. Os profissionais em geral não estarão sujeitos a regras uniformes de ética, seja o médico, o economista, o contador. Com isto se banalizam as profissões, das quais se retira a respeitabilidade, num desfazimento do tecido de credibilidade da parcela pensante e crítica de nossa sociedade.

Seria anacronismo fazer paralelo entre Nero, imperador romano entre 54 e 68 de nossa era, e o Bolsonaro de hoje, mesmo porque Nero mostrou virtudes no início seu reinado graças a Sêneca, seu sábio preceptor, para quem cabia viver em harmonia com a natureza, com retidão compassada pela razão à espera serena da morte.

Mas há três dados que em Bolsonaro lembram a figura de Nero: o fascínio pela popularidade, com desprezo pelas classes médias e pelo Senado; o intenso envolvimento nas intrigas familiares; e o possível incêndio de Roma para refazê-la a seu feitio.

Discutem os cronistas se efetivamente Nero teria mandado pôr fogo em Roma (Croiselle, Néro n a-t-il Brulê Rome?, Histoire, n.º 234 – jul/agosto de 1999, pág. 26). Suetônio e Plínio, o Velho, afirmavam categoricamente, porém outros, como Tácito, tinham dúvidas. Todavia passou para a História ter Nero, alucinado, incendiado Roma.

Entre Nero e Bolsonaro remanesce a coincidência do vezo autoritário no exercício do poder com a volúpia por popularidade, que se casa com o desejo de reconstruir Roma a seu modo. Hoje Bolsonaro atua para tornar terra arrasada a democracia participativa, essencial ao nosso mundo plural, pretendendo impor modos de ser em face de múltiplos aspectos da vida como direito fruto da eleição. Incentiva antagonismos com o passado para perenizar o confronto e ditar comportamentos, com descaso pelo que não coincida com sua rasa compreensão e baixa sensibilidade, como a revelada ao falar sobre o desaparecido político pai do presidente da OAB.

Estabelece-se o fascismo cultural, por via do qual é proibido pensar, mas permitido obedecer. Estamos, talvez, diante de um simplório plano de dominação, para o qual se deve estar bastante alerta.

Made in Brazil


Se você ainda

Se você acha Jair Bolsonaro um horror só porque ele detesta índios, gays, transexuais, nordestinos, crianças, professores, estudantes, cientistas, artistas, jornalistas, pacifistas, imigrantes, doentes mentais, dependentes químicos, presidiários, desaparecidos políticos, ambientalistas, veganos e até famintos; ou se você se assusta porque, em vez daqueles, ele prefere torturadores, milicianos, fabricantes de armas, chacinadores, devastadores do ambiente, mineradores, disseminadores de agrotóxicos, exploradores do trabalho infantil, criminosos do trânsito, censores e, de modo geral, as piores pessoas do país;

Se ele lhe provoca náuseas ao fazer declarações impiedosas sobre pessoas mortas, tanto as que morreram de fome, nos presídios, nas ruas ou mesmo em combate, e ao insultar suas famílias, que têm o direito de amá-las; ao demonstrar seu cavalar desconhecimento sobre artistas que elevaram o nome do Brasil no exterior, como João Gilberto; e, dizendo-se cristão, frequentar igrejas por motivos políticos tanto quanto estádios de futebol;

Se você se indigna porque ele despreza instituições que nos tornaram adultos e respeitados, como o Itamaraty, o Inpe, a Funai, o Ibama, a Fiocruz e a OAB, e, diariamente, agride uma Constituição que jurou respeitar e nunca leu; ou porque desmerece o trabalho de brasileiros que têm dedicado a vida a construir o Brasil, e não a parasitá-lo durante 28 anos num covil da Câmara dos Deputados;

Se você continua esperando que ele se explique sobre as histórias mal contadas que o cercam, envolvendo seus filhos, motoristas que “sabem fazer dinheiro”, vendedoras de açaí, ministros suspeitos, candidatos laranjas e mentiras puras e simples;

Enfim, se você ainda se surpreende ouvindo-o dizer coisas inenarráveis ao ser filmado cortando o cabelo numa cadeira de barbeiro, imagine o que ele não faz sozinho, sem testemunhas, sentado em outra espécie de trono.
Ruy Castro

Criminologia

A cada ano, os pesticidas químicos matam pelo menos três milhões de camponeses.

A cada dia, os acidentes de trabalho matam pelo menos dez mil trabalhadores.

A cada minuto, a miséria mata pelo menos dez crianças.

Esses crimes não aparecem nos noticiários. São, como as guerras, atos normais de canibalismo.

Os criminosos andam soltos. As prisões não foram feitas para os que estripam multidões. A construção de prisões é o plano de habitação que os pobres merecem.

Há mais de dois séculos, se perguntava Thomas Paine:

“Por que será que é tão raro que enforquem alguém que não seja pobre?”

Texas, século XXI: a última ceia delata a clientela do patíbulo. Ninguém pede lagosta ou filé mignon, embora esses pratos apareçam no menu de despedida. Os condenados preferem dizer adeus ao mundo comendo hambúrguer e batata frita, como de costume.
Eduardo Galeano

Cruzada contra o Inpe testa limites do mundo ficcional bolsonarista

Em seu desgraçadamente atual Origens do Totalitarismo, de 1951, a cientista política alemã Hannah Arendt mostra como os regimes nazista e stalinista construíram “cortinas de ferro para evitar que alguém perturbe, com a mais leve realidade, a horripilante quietude de um mundo completamente imaginário”. A maior ameaça ao totalitarismo, ponderou, era “cada fragmento de informação concreta” que se infiltrava através do muro de silêncio.

Nas últimas semanas, Jair Bolsonaro e seu antiministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fizeram uma tentativa ousada de baixar a cortina de ferro sobre os dados de desmatamento da Amazônia — ao vivo e diante dos olhos do mundo inteiro. O ato mais recente desse movimento foi o anúncio, nesta sexta-feira (02), da exoneração do físico Ricardo Galvão da direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A intenção indisfarçada do Governo é censurar o Inpe e criar um sistema de monitoramento afinado com o mundo ficcional bolsonarista (“sem viés ideológico”, na Novafala do regime). É muito difícil que tal tentativa triunfe, porém: há fragmentos demais de informação concreta infiltrados através desse muro. A coragem de Galvão e os avanços na tecnologia de sensoriamento remoto praticamente condenaram o esforço do presidente, impondo um choque de realidade à ficção presidencial.


O Inpe estava na mira de Bolsonaro desde a eleição. O Governo sempre soube que a implementação das promessas de campanha do presidente — destruir a fiscalização ambiental, acabar com as áreas protegidas e anular as demarcações de terra indígena — teria reflexos evidentes nas taxas de desmatamento. Desde novembro, quando Salles foi escolhido ministro, há um esforço latente para matar o mensageiro. Não por acaso, a primeira declaração pública de Salles ao ser nomeado foi para desacreditar o sistema Deter, que detecta as derrubadas em tempo real. Desde o começo do ano Salles fala em contratar um outro sistema de monitoramento.

O desmatamento ficou fora do radar de Bolsonaro no primeiro quadrimestre: entre janeiro e abril, a forte cobertura de nuvens impediu que o Deter visse a maior parte do desmatamento. A taxa no começo do Governo Bolsonaro, contrariando todas as previsões, foi de 20% a 30% menor do que no ano passado. Em maio, porém, o céu limpou e, previsivelmente, o número de alertas começou a explodir: 34% em maio, 88% em junho e impressionantes 212% em julho, em comparação com os mesmos meses do ano passado. O agregado do Deter no ano, até agora, é 40% maior do que o de 2018, com 6.300 quilômetros quadrados. Como o Deter é sempre uma subestimativa, a taxa real do desmatamento, que será dada no fim do ano pelo sistema Prodes, pode passar de 10.000 quilômetros quadrados. Se acontecer será a primeira vez desde 2008 que o número fica em cinco dígitos.

Para azar do Governo, a alta do desmate encontrou uma imprensa pronta para reportá-la. Desde o fim do ano passado as informações do Deter estão disponíveis para qualquer cidadão na plataforma TerraBrasilis, do Inpe, com atualizações quase diárias. A tecnologia livrou a imprensa e as ONGs de depender das atualizações públicas do Deter, que eram mensais no Governo Lula e passaram a ser trimestrais nos anos Dilma. Vários jornalistas aprenderam a usar o site e filtrar os dados. O Inpe, ao contrário do que tem afirmado Bolsonaro, nunca divulgou ativamente esses números.

Quando as notícias da alta em junho começaram a ganhar manchetes no exterior, constrangendo Bolsonaro na reunião do G20, o presidente decidiu acelerar a campanha de difamação contra o Inpe e os planos de controlar o monitoramento. Mobilizaram-se os ministros Augusto Heleno (Segurança Institucional) e Tereza Cristina (Agricultura) para fazer coro com Salles no questionamento aos dados. Nesse momento, Ricardo Galvão já era um cabra marcado para morrer. A cruz na sua porta foi pintada no dia 19, quando, num café da manhã com correspondentes estrangeiros, o presidente chamou os dados de mentirosos e disse que o diretor do Inpe deveria estar “a serviço de alguma ONG”.

E aí um pedação de realidade foi atirado para dentro da cortina de ferro, de um modo que Bolsonaro não esperava.

Em vez de se dobrar e esperar a degola, Galvão, escolado pela fritura anterior de Joaquim Levy, respondeu à agressão do presidente no mesmo tom: em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, disse que Bolsonaro foi “pusilânime e covarde” e que tratava um assunto sério como se estivesse no botequim. O diretor já sabia que seria demitido, então resolveu comprar um seguro de vida para o Inpe. A imensa repercussão nacional e internacional de suas declarações botou todos os holofotes sobre a crise do desmatamento. Dali para a frente, qualquer ato de Bolsonaro e Salles contra o Inpe seria observado com lupa. E está sendo.

Na quarta-feira passada, Salles foi a Campinas reunir-se por três horas com o agrônomo Evaristo de Miranda, o guru ambiental bolsonarista. Pesquisador da Embrapa, Miranda é conhecido pelo uso criativo de estatísticas para favorecer o agronegócio: já tentou demonstrar que a proteção de florestas inviabiliza a produção agropecuária, que o Brasil é o país que mais preserva no mundo e que as queimadas de cana não impactavam a qualidade ambiental no interior paulista. Miranda chefiou a equipe de transição do Meio Ambiente e era o nome favorito de Bolsonaro para ser ministro. No sábado, três dias após a reunião de Salles com Miranda, Bolsonaro prometeu a jornalistas uma “surpresa” na semana seguinte em relação aos dados de desmatamento.

A tal surpresa veio na quarta-feira (31), quando Salles chamou uma entrevista coletiva após uma reunião com técnicos do Inpe para criticar o dado que mostrava 88% de aumento no desmatamento em junho. A crítica foi baseada numa análise, à qual nem o Inpe, nem ninguém mais teve acesso, que supostamente mostrava problemas em 50% dos alertas do Deter naquele mês. Segundo o ministro, havia polígonos desmatados detectados em duplicidade e desmatamentos de períodos anteriores vistos apenas em junho. Afiançava as alegações de Salles o fato de a tal análise ter sido feita com dados da empresa americana Planet, que fornece imagens de satélite em altíssima resolução.

Ocorre que os supostos problemas temporais encontrados pelo ministro no Deter são normais na metodologia do Deter: o sistema funciona desde 2004 e o número de falsos positivos é marginal. O que importa é menos a data exata em que o ilícito foi cometido do que o fato de o número de ilícitos estar crescendo — e muito depressa — no Governo Bolsonaro. O mesmo vale para os supostos desmatamentos detectados em duplicidade: o Deter flagra várias classes de agressão à floresta, desde exploração de madeira até categorias diferentes de desmatamento. Um ponto que aparece na análise do ministro como dupla contagem pode ser simplesmente degradação que virou desmatamento. Sem acesso à metodologia do estudo, é impossível saber.

Ao usar uma metodologia diferente para “auditar” o Deter e pegar-se num mês específico (e não na tendência de alta), o ministro usa o mesmo tipo de estratégia diversionista em que se especializou como advogado e que gosta de aplicar a jornalistas incautos em suas entrevistas: transformar o detalhe num cavalo de batalha para desviar a atenção do quadro inteiro. E o quadro inteiro é uma tragédia. É virtualmente impossível que a explosão nos alertas do Deter não se reflita na explosão do desmatamento no Prodes. A julgar pelos relatos da imprensa no dia da coletiva e no dia seguinte, quando o estudo foi apresentado no Palácio do Planalto na presença de Bolsonaro, ninguém se deixou levar por Salles desta vez.

E aqui entra o segundo e principal pedaço de realidade na cortina de ferro governista: a tecnologia.

O Deter é apenas um dos quatro sistemas que monitoram a Amazônia em tempo real hoje. O Imazon, a Universidade de Maryland e o Exército têm sistemas próprios. Todos eles trabalham com metodologias diferentes e dão números distintos mês a mês. Mas todos apontam a mesma tendência. O monitoramento de florestas tropicais deixou de ser uma atividade altamente complexa e especializada, como era quando o Prodes foi lançado, em 1988, e tornou-se barato e acessível. No total, há 11 sistemas de sensoriamento remoto de vegetação no Brasil.

Os avanços tecnológicos foram tão imensos, em especial neste século, que hoje já é possível fazer monitoramento automático do desmatamento com a mesma qualidade do Prodes. O MapBiomas, uma rede de ONGs, universidades e empresas capitaneada pelo Observatório do Clima, já produziu mapas completos de todas as mudanças na vegetação do Brasil desde 1985. Há dez anos, isso seria considerado um delírio.

Os alertas de desmatamento do Imazon, de Maryland e do Inpe são, hoje, validados com imagens Planet pelo MapBiomas Alerta, uma espécie de “sistema dos sistemas” de alerta que visa facilitar o trabalho do Ibama e do Ministério Público. Qualquer ruído nos dados introduzido pelo tal sistema de monitoramento que Salles quer comprar será imediatamente desmentido pelos outros sistemas e pelo MapBiomas.

A única opção para o Governo é assumir o autoritarismo e censurar o Deter, como quer o general Heleno. O único efeito disso será fazer com que todos os interessados no destino das florestas brasileiras, que incluem a imprensa internacional, os compradores de commodities e os investidores, passem a olhar os outros sistemas para acompanhar o desmatamento. E a tratar as informações que vêm do Governo brasileiro com a mesma confiança com que tratam as estatísticas da ditadura venezuelana.

Ao mobilizar a tropa para fazer guerra total aos dados de desmatamento em plena era dos satélites, Bolsonaro cometeu um erro estratégico crasso. Botou a si mesmo em xeque-mate e deixou claro para o mundo inteiro que realmente é o vilão ambiental da vez no planeta (Donald Trump agradece). Teria sido muito mais simples e menos constrangedor se ele e seu antiministro do Meio Ambiente tivessem apenas agido em cima dos alertas do Deter e botado o Ibama na selva para combater os criminosos.
Claudio Angelo

Agora, falando sério

A pergunta recorrente entre nós, espectadores do espetáculo produzido, dirigido e encenado por Jair Bolsonaro, é até quando o Brasil aguenta conviver com um presidente tão obviamente despreparado para o cargo. A questão de fundo, porém, talvez não seja essa, uma vez que o país já passou por muitas e péssimas, sobreviveu a todas e pode perfeitamente sobreviver a mais esta.

A dúvida é se, e até quando, Bolsonaro se aguenta sem perder a relevância e tornar-se um coadjuvante da cena política que, em tese e para todos os efeitos, deveria liderar. Da posição de autoridade primeira ele pode transitar para a condição de mero provocador diletante a quem não se dá maior importância devido à inconveniência e à exorbitância de suas palavras, gestos e decisões.

Isso se chama perda de substância, que é justamente para onde caminha o presidente cuja convicção é de que está certo. Ele disse recentemente ao jornal O Globo que nasceu assim, não vai mudar e não está minimamente preocupado “com 2022”, pois, se estivesse, “não daria essas declarações”. Ou seja, sabe da impropriedade daquilo que fala e, no entanto, persiste no erro.

A esse tipo de conduta dá-se o nome de ­burrice, embora ao presidente e a seu contingente de acólitos possa soar como autenticidade.

O presidente quer fazer tudo do seu jeito, mas do jeito dele não dá certo.

Pode-se ser um autêntico estadista ou um autêntico cabeçudo. Questão de vocação, formação e personalidade. No caso de Bolsonaro, há um completo desconhecimento sobre desempenho de função pública. Qualquer uma, conforme atesta sua atuação parlamentar. Investido do figurino de “homem comum”, quer fazer tudo do seu jeito, mas do jeito dele não dá certo. Aliás, pode dar muito errado a depender dos prejuízos que o presidente ainda seja capaz de causar a si, à sociedade, à estabilidade institucional, ao estado de plenos direitos legais e aos preceitos da civilidade.

Por enquanto ninguém pensa em impeachment, embora o país possa vir a pensar, tantos são os flancos abertos pelo presidente. No momento seria um embate inútil por ausência de força política em condições objetivas e subjetivas de ocupar o lugar. Além disso, seria o tipo de caso que Bolsonaro adoraria enfrentar. Um ótimo motivo para distribuir sopapos verbais, excelente opor­tunidade para unir a tropa e uma chance para recuperar o apoio dos arrependidos "ma non troppo".

Produzir conflitos no lugar de resultados de governo não enseja impedimento para exercer o cargo de chefe da nação, mas provoca isolamento, o equivalente ao degredo na política. As pessoas se afastam, os aliados se calam, os subordinados se retraem, os adversários se reúnem, as propostas do governo não prosperam no Congresso, as derrotas se avolumam no Judiciário, o ambiente na percepção externa se deteriora, as relações internacionais são dificultadas, tudo desanda e sai do eixo.

O primeiro sinal de que a conta chegou (ou não) será dado agora, com a volta do Congresso ao centro da cena que Bolsonaro ocupou da pior maneira possível no recesso.

Paisagem brasileira

Cachoeira do Prata, Carolina (MA)

Cota zero

Outro dia mesmo, o crescimento da população era motivo de orgulho. Quando o Rio chegou a um milhão de habitantes, foi uma festa. Deu até manchete. Era aqui a capital da República. O projeto de uma capital lá no fundo do sertão era letra morta, mais uma, no cemitério da Constituição. São Paulo botava banca de metrópole cosmopolita. O maior parque industrial da América Latina.

A gente ia aí encontrar o Mário de Andrade, tomava chope no Franciscano, batia um papo na rua Lopes Chaves e pulsava no nosso peito aquela exaltação. Pátria, latejo em ti! Perto de Belo Horizonte, ainda quase Curral del Rei, perto das velhas cidades mineiras, Ouro Preto, São João del Rey, São Paulo já trazia, impaciente, a vibração da arrancada gigantesca. A frase do maior parque vinha escrita nos bondes amarelos, ou vermelhos? Eram vermelhos. Amarelos eram os de Belo Horizonte.

E verdes eram os do Rio. Verde, amarelo, vermelho, fossem estas ou outras cores, já se vislumbrava, ou se via, ofuscante, o arco-íris do futuro. Não era miragem, só dois pássaros voando. Era um pássaro na mão, ansioso pelo horizonte que, promissor, sim, também era real. A ditadura do Estado Novo aqui dentro não passava de uma bota apertada, prestes a ser descalçada. Tolhia, mas deixava andar pra frente. Lá fora, o horror da guerra. O mundo em cólicas de parto, para inaugurar o dia de amanhã. Já se entreviam os dedos róseos da aurora.

O penumbrismo, a tristura decadentista, isto era coisa do passado até nas artes e nas letras, de súbito despertadas em 1922. "Ah, como dói viver quando falta a esperança!" – o suspiro tísico do Manuel Bandeira de 1912 era tão antigo e fora de moda quanto o gramofone de 1910 do Murilo Mendes. Tudo de repente andava depressa. E na própria velocidade residia uma deusa que cumpria cultuar. Até Noel Rosa tinha cantado o progresso – e o progresso é natural. Bom dia, avenida Central!

Nuns poucos decênios, armamos o cenário para o banditismo, a violência, a criminalidade. O açodado bota-abaixo abria espaço à cidade de perfil americano. A cidade sem rosto. Os orgulhosos arranha-céus. Todo passado é remorso. Adeus, português suave dos sobrados. Chalezinhos suíços, morada ingênua, adeus. Jardim, quintal, vade retro

Lá vamos nós, Brasil das megalópoles, de parelha com Nova York, Londres, Paris. Tóquio que se apresse. Stop. Foi o futuro que chegou, ou o Brasil que parou?

Então pra que Justiça?

É a Justiça, lamentavelmente, se metendo em tudo
Jair Bolsonaro

República sob nova direção

Dado os padrões do governo Bolsonaro, nada demais que o novo presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos seja processado sob a acusação de ter vazado para sua mulher e a cunhada um edital de concurso público. Ora, ele só queria favorecê-las. Família acima de tudo e Deus acima de todos!

O catarinense Marcos Vinicius Pereira de Carvalho, até ontem assessor da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, substituirá no cargo a procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, demitida por Bolsonaro que a considera de esquerda e, portanto, adversária do seu governo.

Filiado ao PSL de Bolsonaro, Pereira de Carvalho é presidente do partido em Taió, município do Vale do Itajaí. Ali é processado porque pediu e obteve com antecedência o edital da prefeitura para concurso que admitiria 40 novos funcionários. Ele passou o edital para a mulher, Fabiana Koch de Carvalho, e uma irmã dela.

Fez mais: ainda pediu ao presidente da comissão do concurso na época para alterar termos do edital de modo a facilitar a aprovação da sua mulher. Não conseguiu. A ministra Damares disse não ver nenhum problema nisso porque Pereira de Carvalho ainda não foi condenado. Assim, segue o baile.

O julgamento que inocentou Bolsonaro

Nos corredores do estúdio onde seria gravada a entrevista para o "Jornal Nacional", durante a campanha presidencial, o então candidato do PSL contou ter encontrado, num aeroporto, Cássia Maria Rodrigues. A jornalista escrevera a reportagem da "Veja" sobre os planos do capitão Jair Bolsonaro de explodir bombas na adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento do Rio de Janeiro, na Academia Militar das Agulhas Negras e em vários quartéis. "Deputado, sou a Cassia, aquela repórter de 'Veja' que denunciou o senhor'. Eu disse para ela: 'Que denunciou que nada! Você me catapultou para a política!'"

Semanas antes do encontro com a jornalista, Bolsonaro ficara 15 dias em prisão disciplinar por ter assinado artigo, também na "Veja", sob o título "O salário está baixo". Como fora insuficiente para arrancar do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, e do presidente José Sarney um reajuste mais robusto, o capitão radicalizou a estratégia e decidiu e revelá-la à repórter. A conversa tivera o compromisso de sigilo da fonte, mas ante a gravidade dos planos anunciados, a publicação resolvera dar à reportagem o tom de denúncia.


A história, contada no livro de Luiz Maklouf Carvalho, "O Cadete e o Capitão" (Todavia, 2019), revela engrenagens, até então desconhecidas, do julgamento no Superior Tribunal Militar que inocentou Bolsonaro por nove votos a quatro. Passaram-se 31 anos, mas a reconstituição feita pelo jornalista dos liames entre caserna, toga, imprensa e política é de assustadora contemporaneidade com o Brasil da #Vazajato.

A começar pelas manipulações do julgamento. O eixo do veredito foi um suposto empate entre quatro laudos periciais sobre croquis feitos por Bolsonaro para mostrar à repórter como seriam detonadas as bombas na adutora. Em caso de dúvida, beneficia-se o réu, diz o preceito jurídico, mas o livro revela que, na verdade, não houve empate.

A dois laudos inconclusivos do Exército, somou-se um outro da Polícia Federal, taxativo, sobre a autoria dos desenhos. Depois deste terceiro laudo, foi pedida uma complementação da segunda perícia do Exército, que concluiu pela autoria de Bolsonaro. Havia, portanto, três laudos, dois dos quais associavam o capitão aos croquis.

Quem conduziu a tese de que se tratava de quatro laudos foi o réu, que fez, de próprio punho, sua defesa no Superior Tribunal Militar, instância à qual o processo fora enviado depois que o Conselho de Justificação do Exército, por três votos a zero, o condenara. A autodefesa rememora episódios de heroísmo como aquele em que salvara um sargento negro de afogamento durante uma instrução militar e deixa claro que nascia ali uma carreira política.

Na instância anterior se fizera representar por dois escritórios de advocacia. No tribunal, mudou, além da tese, a roupagem da defesa: "Além de oneroso para minhas condições financeiras, entende desnecessário comprovar-me juridicamente honrado. Sou, de fato, honrado, por todos os atos que pratiquei, como soldado e cidadão. Para enunciá-los, ninguém melhor do que eu próprio".

O germe da política, na verdade, já se mostrara desde o artigo que precedeu o planejamento das bombas. O capitão antecipou ali o slogan que, mais de três décadas depois, embalaria sua vitória na disputa pelo Palácio do Planalto. "Brasil acima de tudo", concluía o texto.

Nas 26 páginas de sua defesa, entregue ao STM, o capitão, que depois ficaria conhecido no Brasil inteiro pela frequência com a qual recita o versículo bíblico "conheceis a verdade e a verdade vos libertará" (8:32), admitiu encontros com a repórter antes negados, relativizou a mudança de versão e se fixou na tese de empate dos laudos: "Mesmo admitindo que houvesse mentira, como tenta insinuar o libelo acusatório, o fato de 'faltar a verdade' não incapacita ninguém para o oficialato".

A jornalista que o candidato acabaria por admitir ter-lhe propiciado notoriedade para a política seria tratada por um dos ministros do tribunal como "perigosa". Foi o mesmo adjetivo utilizado para enquadrar alvos de deportação na portaria 666, editada pelo ministro Sérgio Moro em meio à revelação, pelo jornalista americano Glenn Greenwald, de mensagens entre o então juiz da Lava-Jato e o procurador Deltan Dellagnol.

Dos 15 ministros do tribunal que julgou Bolsonaro, 13 compareceram, oito militares e cinco civis. Entre aqueles que participaram do julgamento, oito haviam sido nomeados durante a ditadura. Ante o voto de um dos civis indicados por Sarney, José Luiz Clerot, o almirante de esquadra Roberto Cavalcanti completaria a frase anunciada na defesa de Bolsonaro e que três décadas depois lhe inspiraria a campanha presidencial: "Deus salve o Brasil".

Em seu voto, Clerot, que servira como oficial de gabinete do presidente deposto João Goulart, desmascarou a tese dos quatro laudos, defendeu a imprensa e denunciou a indisciplina militar do capitão: "Nunca, nem antes de 1964, se não me falha a memória, um capitão teve a coragem de afrontar um chefe militar como se afrontou".

Antes de planejar explodir uma adutora na segunda maior cidade do país, o capitão havia acumulado em sua carreira no Exército afrontas à hierarquia militar nem sempre punidas. Maklouf cita passagem do livro do filho mais velho do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro ("Mito ou Verdade", Altadena, 2017), em que o então cadete teria enfrentado um major que queria impedi-lo de fazer o curso de paraquedismo.

Um coronel dentista sugeriu sua reprovação por causa de uma cárie. O cadete teria feito uma obturação de emergência para nova avaliação médica e, na hora da escolha, o major responsável disse que ele ficara de fora por ter sido reprovado no exame odontológico. Ante uma acareação com o coronel dentista que confirmou a reprovação, e diante do major e do coronel responsável pelo Corpo de Cadetes, Bolsonaro, segundo seu filho, teria dito: "O senhor está mentindo coronel".

A afronta pública a um superior hierárquico não apenas não foi punida como não o impediu de ser incorporado ao curso de paraquedismo da Aman. O cadete tampouco foi punido quando, internado em função de um acidente de paraquedas, foi colocado, segundo Flávio, numa ala de aidéticos, o que afugentava as visitas. Um major amigo que foi visitá-lo atendeu suas súplicas e o teria tirado dali nas costas. A evasão do hospital, transgressão ao Regulamento Disciplinar do Exército, gravíssima, segundo Maklouf, tampouco foi punida. Bolsonaro voltaria ao hospital para ser operado.

A decisão de incorporar os relatos, mais que autorizados, à biografia, lançada no início da campanha de Flávio ao Senado, mostra de que maneira a família valora a representação de injustiçados, ainda que em afronta às instituições, como parte de seu ethos político. Ao contrário do que acontece com a maioria de seus eleitores, o Bolsonaro da biografia oficial não apenas não é punido como ainda é recompensado por suas transgressões.

Além da indisciplina, seus superiores hierárquicos também fizeram vista grossa a bicos que o capitão fez ao longo de sua permanência para complementar o soldo militar. As idas repetidas ao comércio de Ciudad del Este, na época em que serviu em Nioaque (MT), ficaram restritas a relatório do SNI, mas foi sua incursão, em férias, pelo garimpo, na Bahia, que chegou mais perto de ser repreendida.

Seu superior hierárquico anotou na sua ficha "excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente". A anotação, único tom dissonante em sua ficha de serviços até a detenção pelo artigo em "Veja", acabaria por contribuir para os 3 x 0 desfavoráveis ao capitão no Conselho de Justificação, mas foi desconsiderada pelo STM.

O presidente da República hoje dá sinais de que pretende descumprir a tradição, adotada a partir de 2003, de pinçar um dos nomes da lista tríplice do Ministério Público para a Procuradoria-Geral da República. A disposição é alimentada pelo processo que envolve as mesadas no gabinete de Flávio Bolsonaro, acusado de herdar a ambição financeira do pai. A desconfiança, porém, vem de longe.

Na peça de acusação, o representante do Ministério Público Militar não chegou a entrar na querela que envolvia a perícia dos laudos. Milton Menezes da Costa Filho foi implacável, porém, ao advogar pela perda do posto e da patente do capitão: "Como se apresentar um oficial perante seus subordinados, arrastando um passado com um episódio tornado público, tão comprometedor?" A sustentação oral do procurador, que não era obrigatória no regimento da época, foi negada pelos ministros do STM.

A de Bolsonaro lhe seria franqueada, mas o capitão, que inicialmente alegara insuficiência de recursos para sua contratação, a delegaria à advogada Elizabeth Souto. O capitão que, três décadas depois, na condição de presidente da República, gozaria do filho órfão de um militante morto pela ditadura, foi representado num julgamento que o catapultou para a política por uma advogada que defendia presos políticos.

Depois de percorrer toda a documentação do julgamento, Maklouf conclui que seu resultado decorreu de jogo combinado para inocentá-lo desde que ele apressasse sua saída do Exército, o que acabaria ocorrendo seis meses depois, quando elegeu-se vereador no Rio. A tese poderia ter sido reforçada se alguns personagens-chave da história não tivessem se recusado a falar com o autor - dos Bolsonaro aos três oficiais que, no Conselho de Justificação, votaram por sua punição.

O ápice da carreira de Bolsonaro, no entanto, acabaria por se tornar o principal pilar da tese de que um cadete insubordinado não vira comandante em chefe sem a complacência de seus superiores.