sábado, 3 de agosto de 2019

Cruzada contra o Inpe testa limites do mundo ficcional bolsonarista

Em seu desgraçadamente atual Origens do Totalitarismo, de 1951, a cientista política alemã Hannah Arendt mostra como os regimes nazista e stalinista construíram “cortinas de ferro para evitar que alguém perturbe, com a mais leve realidade, a horripilante quietude de um mundo completamente imaginário”. A maior ameaça ao totalitarismo, ponderou, era “cada fragmento de informação concreta” que se infiltrava através do muro de silêncio.

Nas últimas semanas, Jair Bolsonaro e seu antiministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fizeram uma tentativa ousada de baixar a cortina de ferro sobre os dados de desmatamento da Amazônia — ao vivo e diante dos olhos do mundo inteiro. O ato mais recente desse movimento foi o anúncio, nesta sexta-feira (02), da exoneração do físico Ricardo Galvão da direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A intenção indisfarçada do Governo é censurar o Inpe e criar um sistema de monitoramento afinado com o mundo ficcional bolsonarista (“sem viés ideológico”, na Novafala do regime). É muito difícil que tal tentativa triunfe, porém: há fragmentos demais de informação concreta infiltrados através desse muro. A coragem de Galvão e os avanços na tecnologia de sensoriamento remoto praticamente condenaram o esforço do presidente, impondo um choque de realidade à ficção presidencial.


O Inpe estava na mira de Bolsonaro desde a eleição. O Governo sempre soube que a implementação das promessas de campanha do presidente — destruir a fiscalização ambiental, acabar com as áreas protegidas e anular as demarcações de terra indígena — teria reflexos evidentes nas taxas de desmatamento. Desde novembro, quando Salles foi escolhido ministro, há um esforço latente para matar o mensageiro. Não por acaso, a primeira declaração pública de Salles ao ser nomeado foi para desacreditar o sistema Deter, que detecta as derrubadas em tempo real. Desde o começo do ano Salles fala em contratar um outro sistema de monitoramento.

O desmatamento ficou fora do radar de Bolsonaro no primeiro quadrimestre: entre janeiro e abril, a forte cobertura de nuvens impediu que o Deter visse a maior parte do desmatamento. A taxa no começo do Governo Bolsonaro, contrariando todas as previsões, foi de 20% a 30% menor do que no ano passado. Em maio, porém, o céu limpou e, previsivelmente, o número de alertas começou a explodir: 34% em maio, 88% em junho e impressionantes 212% em julho, em comparação com os mesmos meses do ano passado. O agregado do Deter no ano, até agora, é 40% maior do que o de 2018, com 6.300 quilômetros quadrados. Como o Deter é sempre uma subestimativa, a taxa real do desmatamento, que será dada no fim do ano pelo sistema Prodes, pode passar de 10.000 quilômetros quadrados. Se acontecer será a primeira vez desde 2008 que o número fica em cinco dígitos.

Para azar do Governo, a alta do desmate encontrou uma imprensa pronta para reportá-la. Desde o fim do ano passado as informações do Deter estão disponíveis para qualquer cidadão na plataforma TerraBrasilis, do Inpe, com atualizações quase diárias. A tecnologia livrou a imprensa e as ONGs de depender das atualizações públicas do Deter, que eram mensais no Governo Lula e passaram a ser trimestrais nos anos Dilma. Vários jornalistas aprenderam a usar o site e filtrar os dados. O Inpe, ao contrário do que tem afirmado Bolsonaro, nunca divulgou ativamente esses números.

Quando as notícias da alta em junho começaram a ganhar manchetes no exterior, constrangendo Bolsonaro na reunião do G20, o presidente decidiu acelerar a campanha de difamação contra o Inpe e os planos de controlar o monitoramento. Mobilizaram-se os ministros Augusto Heleno (Segurança Institucional) e Tereza Cristina (Agricultura) para fazer coro com Salles no questionamento aos dados. Nesse momento, Ricardo Galvão já era um cabra marcado para morrer. A cruz na sua porta foi pintada no dia 19, quando, num café da manhã com correspondentes estrangeiros, o presidente chamou os dados de mentirosos e disse que o diretor do Inpe deveria estar “a serviço de alguma ONG”.

E aí um pedação de realidade foi atirado para dentro da cortina de ferro, de um modo que Bolsonaro não esperava.

Em vez de se dobrar e esperar a degola, Galvão, escolado pela fritura anterior de Joaquim Levy, respondeu à agressão do presidente no mesmo tom: em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, disse que Bolsonaro foi “pusilânime e covarde” e que tratava um assunto sério como se estivesse no botequim. O diretor já sabia que seria demitido, então resolveu comprar um seguro de vida para o Inpe. A imensa repercussão nacional e internacional de suas declarações botou todos os holofotes sobre a crise do desmatamento. Dali para a frente, qualquer ato de Bolsonaro e Salles contra o Inpe seria observado com lupa. E está sendo.

Na quarta-feira passada, Salles foi a Campinas reunir-se por três horas com o agrônomo Evaristo de Miranda, o guru ambiental bolsonarista. Pesquisador da Embrapa, Miranda é conhecido pelo uso criativo de estatísticas para favorecer o agronegócio: já tentou demonstrar que a proteção de florestas inviabiliza a produção agropecuária, que o Brasil é o país que mais preserva no mundo e que as queimadas de cana não impactavam a qualidade ambiental no interior paulista. Miranda chefiou a equipe de transição do Meio Ambiente e era o nome favorito de Bolsonaro para ser ministro. No sábado, três dias após a reunião de Salles com Miranda, Bolsonaro prometeu a jornalistas uma “surpresa” na semana seguinte em relação aos dados de desmatamento.

A tal surpresa veio na quarta-feira (31), quando Salles chamou uma entrevista coletiva após uma reunião com técnicos do Inpe para criticar o dado que mostrava 88% de aumento no desmatamento em junho. A crítica foi baseada numa análise, à qual nem o Inpe, nem ninguém mais teve acesso, que supostamente mostrava problemas em 50% dos alertas do Deter naquele mês. Segundo o ministro, havia polígonos desmatados detectados em duplicidade e desmatamentos de períodos anteriores vistos apenas em junho. Afiançava as alegações de Salles o fato de a tal análise ter sido feita com dados da empresa americana Planet, que fornece imagens de satélite em altíssima resolução.

Ocorre que os supostos problemas temporais encontrados pelo ministro no Deter são normais na metodologia do Deter: o sistema funciona desde 2004 e o número de falsos positivos é marginal. O que importa é menos a data exata em que o ilícito foi cometido do que o fato de o número de ilícitos estar crescendo — e muito depressa — no Governo Bolsonaro. O mesmo vale para os supostos desmatamentos detectados em duplicidade: o Deter flagra várias classes de agressão à floresta, desde exploração de madeira até categorias diferentes de desmatamento. Um ponto que aparece na análise do ministro como dupla contagem pode ser simplesmente degradação que virou desmatamento. Sem acesso à metodologia do estudo, é impossível saber.

Ao usar uma metodologia diferente para “auditar” o Deter e pegar-se num mês específico (e não na tendência de alta), o ministro usa o mesmo tipo de estratégia diversionista em que se especializou como advogado e que gosta de aplicar a jornalistas incautos em suas entrevistas: transformar o detalhe num cavalo de batalha para desviar a atenção do quadro inteiro. E o quadro inteiro é uma tragédia. É virtualmente impossível que a explosão nos alertas do Deter não se reflita na explosão do desmatamento no Prodes. A julgar pelos relatos da imprensa no dia da coletiva e no dia seguinte, quando o estudo foi apresentado no Palácio do Planalto na presença de Bolsonaro, ninguém se deixou levar por Salles desta vez.

E aqui entra o segundo e principal pedaço de realidade na cortina de ferro governista: a tecnologia.

O Deter é apenas um dos quatro sistemas que monitoram a Amazônia em tempo real hoje. O Imazon, a Universidade de Maryland e o Exército têm sistemas próprios. Todos eles trabalham com metodologias diferentes e dão números distintos mês a mês. Mas todos apontam a mesma tendência. O monitoramento de florestas tropicais deixou de ser uma atividade altamente complexa e especializada, como era quando o Prodes foi lançado, em 1988, e tornou-se barato e acessível. No total, há 11 sistemas de sensoriamento remoto de vegetação no Brasil.

Os avanços tecnológicos foram tão imensos, em especial neste século, que hoje já é possível fazer monitoramento automático do desmatamento com a mesma qualidade do Prodes. O MapBiomas, uma rede de ONGs, universidades e empresas capitaneada pelo Observatório do Clima, já produziu mapas completos de todas as mudanças na vegetação do Brasil desde 1985. Há dez anos, isso seria considerado um delírio.

Os alertas de desmatamento do Imazon, de Maryland e do Inpe são, hoje, validados com imagens Planet pelo MapBiomas Alerta, uma espécie de “sistema dos sistemas” de alerta que visa facilitar o trabalho do Ibama e do Ministério Público. Qualquer ruído nos dados introduzido pelo tal sistema de monitoramento que Salles quer comprar será imediatamente desmentido pelos outros sistemas e pelo MapBiomas.

A única opção para o Governo é assumir o autoritarismo e censurar o Deter, como quer o general Heleno. O único efeito disso será fazer com que todos os interessados no destino das florestas brasileiras, que incluem a imprensa internacional, os compradores de commodities e os investidores, passem a olhar os outros sistemas para acompanhar o desmatamento. E a tratar as informações que vêm do Governo brasileiro com a mesma confiança com que tratam as estatísticas da ditadura venezuelana.

Ao mobilizar a tropa para fazer guerra total aos dados de desmatamento em plena era dos satélites, Bolsonaro cometeu um erro estratégico crasso. Botou a si mesmo em xeque-mate e deixou claro para o mundo inteiro que realmente é o vilão ambiental da vez no planeta (Donald Trump agradece). Teria sido muito mais simples e menos constrangedor se ele e seu antiministro do Meio Ambiente tivessem apenas agido em cima dos alertas do Deter e botado o Ibama na selva para combater os criminosos.
Claudio Angelo

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