sábado, 3 de agosto de 2019

O que vê Bolsonaro?

Quando o meu filho Carlos tinha quatro ou cinco anos surpreendeu-me de boca aberta diante de um anúncio de perfume (creio que era um perfume), numa revista de moda, que mostrava uma modelo nua, estendida numa praia. “Uau!” — exclamou ele, num entusiasmo que me pareceu demasiado precoce. Então, prosseguiu: “que cinto tão bonito. É um cinto de cowboy.” Só então reparei que a modelo tinha um cinto. Eu só tinha visto a mulher. Ele só vira o cinto.

Ninguém, diante da mesma imagem, vê a mesma imagem. Ninguém lê o mesmo livro — lendo o mesmo livro. Vivemos vidas diferentes vivendo vidas comuns.

Além disso, o olhar de cada um de nós muda consoante a idade e as circunstâncias. Se Carlos, hoje com 22 anos, voltasse a ver agora aquela imagem, veria o mesmo que eu vi então. Se eu vir um cisne num parque vou reparar na beleza dele. Mas, se eu vir um cisne num parque depois de passar trinta dias a pão e água, é provável que, olhando para a magnífica ave, veja apenas a possibilidade de uma magnífica refeição. 

Não surpreende, portanto, que seja tão difícil viver em sociedade. Nunca vemos o mesmo, vendo o mesmo. Aquilo que parece evidente para uns pode ser completamente invisível para os restantes. Então discutimos, xingamos os outros e, no limite, partimos para uma guerra civil. Por isso me parece tão importante tentar olhar o mundo através do olhar daqueles que acreditamos serem os nossos adversários.


Penso em tudo isto pensando em Bolsonaro. Sempre que Jair Bolsonaro solta uma das suas barbaridades, ou seja, sempre que abre a boca, eu tento genuinamente compreender a perspetiva dele. Pode ser que Jair esteja vendo o cinto onde eu só vejo a mulher. Ou a mulher, onde o meu filho só via o cinto. Pode ser que ele só veja a praia, ou o mar, ou o azul do céu, e que, de repente, o azul do céu, naquela foto especifica, seja a chave para a compreensão do universo. Infelizmente, falho sempre.

Por muito que me esforce não consigo compreender, por exemplo, que vantagens terá o Brasil em ter como embaixador em Washington um sujeito que apresenta como primeira credencial para o cargo o ter fritado hambúrgueres no Maine; o futuro embaixador também acredita que fala inglês. Lembra-me o caso de um amigo que acreditava falar italiano fluentemente. Um dia deu uma entrevista a uma televisão italiana. Quando terminou de responder à primeira pergunta, a jornalista, perplexa, pediu-lhe para repetir tudo, mas dessa vez em italiano. Achou que ele estivesse falando português. Eu ouvi Eduardo Bolsonaro falar inglês e ainda não sei que idioma era aquele. Nem sequer parecia um idioma.

Também não consigo compreender o que leva um presidente da República, numa democracia, a exaltar torturadores, a troçar do sofrimento de quem foi torturado, ou, de forma mais ampla e repetida, a defender ideias totalitárias. Em que é que este tipo de declarações beneficia o Brasil e os brasileiros?

Suspeito que o presidente Jair Bolsonaro use lentes de contato espelhadas — com o espelho para dentro. Tentando olhar o mundo, ele não vê senão o desamparado abismo da sua própria alma.

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