segunda-feira, 22 de maio de 2023

Arquitetura moderna no Brasil

 


Anistia a partidos é ataque à democracia

Quando Bolsonaro foi eleito, surgiu por aqui uma fornada de livros sobre a decadência da democracia e a ascensão do autoritarismo em várias partes do mundo. “Como as democracias morrem”, “O povo contra a democracia”, os novos títulos se sucediam, e havia neles alguns pontos convergentes. A globalização deixou muita gente para trás, criando ressentimentos. A confiança nas elites políticas se esvaiu diante de líderes preocupados com seu próprio interesse, de costas para a sociedade.

Neste momento, no Brasil, a democracia está próxima de receber um ataque que a enfraquecerá ainda mais. Trata-se de um projeto que anistia as transgressões dos partidos não só quanto ao respeito às cotas minoritárias, mas também quanto à prestação de contas de milhões de reais gastos: compra de avião, toneladas de carne e outras despesas extravagantes.


Os partidos criam regras e as transgridem. O TSE decide puni-los, e eles criam mais uma lei de anistia para suas próprias transgressões. Eles se dotam, simultaneamente, do poder de regular e de perdoar, incluindo no perdão gastos com o fundo eleitoral. Só com as eleições, os partidos em 2022 consumiram R$ 4,9 bilhões. O fundo partidário distribuiu um pouco mais de R$ 1 bilhão.

Interessante observar que a manobra da anistia envolve quase todos os partidos, deixando de fora apenas a coligação Rede-PSOL e o Partido Novo. A mais importante consequência de uma medida como essa é o abismo que se forma entre política e opinião pública, deixando o caminho aberto para oportunistas que eventualmente queiram inventar uma nova política.

O caminho econômico, além de difícil, não é o único. Não há sinais de que as elites políticas brasileiras tenham entendido a mensagem de 2018 e ignorem que soluções autoritárias continuam sendo atraentes à medida que se aprofunda a desilusão com a democracia.

Bolsonaro fez isso em 2018. A “nova política” se desmoralizou com a introdução do orçamento secreto. Os bolsonaristas agrupados no PL apoiam a anistia, logo não teriam condições de se diferenciar num futuro próximo. Mas a existência do abismo é um convite à aventura, e ela não tem de ser vivida necessariamente pelos mesmos personagens.

Num livro recente chamado “A crise do capitalismo democrático”, o jornalista Martin Wolf analisa não somente a globalização e suas lacunas, mas, apesar de sua ênfase na economia, destaca também a questão política. Assim como todos os outros autores, Wolf está longe do otimismo com o futuro da democracia, ressaltado num célebre ensaio de Francis Fukuyama, “O fim da História”.

Ninguém mais acredita que a democracia é para sempre, e muitos duvidam de sua capacidade de encarar as reformas necessárias para sobreviver. O que vemos no mundo é o avanço de ditaduras plebiscitárias, como na Rússia ou na Hungria, e o crescimento irresistível do modelo autoritário chinês.

Como jornalista econômico, Wolf ressalta que está na própria economia a explicação para a fragilidade democrática. Mas não deixa de avançar noutros pontos essenciais:

— Nem a política nem a economia funcionarão sem um substancial nível de honestidade, confiança, autocontenção e lealdade às instituições. Na ausência desses fatores, um ciclo de descrédito corroerá as relações políticas, sociais e econômicas.

Concordo com a ideia de que nenhum sistema político consegue sobreviver sem a prevalência de normas fundamentais de comportamento. Essa ideia, aplicada ao Brasil, mostra que a luta pela democracia está perdida em alguns fundamentos. Melhorar a economia é essencial. Wolf reconhece que as pessoas querem estabilidade e prosperidade para si e para os filhos. Na ausência disso, tornam-se ressentidas.

Há poucos sinais de que as elites políticas tenham aprendido as lições de 2018, não aparece nelas um simples núcleo destinado a salvá-las de suas próprias tendências à autodestruição. Digo autodestruição num contexto democrático; os piores vão sempre se adaptar aos regimes autoritários. Por enquanto, estamos apenas esperando o ataque que virá na forma de anistia.

Marina Silva, espinho e incógnita no governo Lula

Lula está no Japão , enquanto estoura uma crise no Brasil, que é a que ele menos deseja por ter repercussão global. Trata-se de decisão do Ministério do Meio Ambiente, presidido pela emblemática e ambientalista Marina Silva, referente ao delicado problema da exploração de petróleo na Amazônia.

O Ministério do Meio Ambiente acaba de negar a licença para a exploração do chamado ouro negro na região amazônica do Amapá, na qual a brasileira Petrobras está de olho em empresas estrangeiras por ali embaralharem bilhões de dólares.

A decisão da ministra Marina Silva já fez a primeira vítima em seu próprio partido. O senador Randolfe Rodríguez, uma das peças-chave do partido Rede, fundado por ela e aliado do governo, já anunciou sua saída do partido.

Agora Lula terá que decidir salomonicamente sobre duas peças-chave de seu governo, Rondolfe e Marina, algo que vai agitar seus planos de presidir um governo unido e pela primeira vez com personagens do centro à direita.


A possível polêmica com a decisão da ministra Marina Silva de vetar a exploração de petróleo na Amazônia é mais emblemática por causa do precedente do primeiro governo Lula, que surpreendeu ao nomear Marina como ministro do Meio Ambiente na época. A famosa ambientalista acabou deixando o cargo por falta de apoio à época para suas demandas ambientais.

Lula teve a boa ideia de convocar Marina Silva novamente como ministra. O meio ambiente é um tema que 20 anos após seu primeiro governo se tornou uma das maiores preocupações da política mundial. E Marina foi emblemática, apostando desta vez na luta contra a destruição da Amazônia. Foi um abraço grávido de simbolismo.

Com os olhos do mundo voltados para o Brasil, onde seu maior tesouro, mais que o petróleo, é a riqueza da Amazônia, a possível nova crise com Marina, nem sempre bem-vista no PT devido ao seu radicalismo, será duplamente dramática.

Lula vai precisar de toda a sua grande habilidade negocial para impedir que Marina o cargo pela segunda vez. É que ela, com um histórico parecido com o de Lula que subiu do nada ao poder, não é uma ministra qualquer.

Marina é referência mundial na luta contra a destruição do planeta. Com a vantagem, perante boa parte dos políticos, de ter sua integridade moral reconhecida por todos. Nunca envolveu-se em escândalos de corrupção e sempre levou uma vida austera.

Lembro que em 2003, recém-nomeada ministra de Lula, eu a entrevistei em Brasília para este jornal. Fiquei chocado com o apartamento simples de classe média baixa em que morava e com sua austeridade.

Quando lhe perguntei se não se importava de ser acusada de ser excessivamente ingênua em seus ideais de defesa do meio ambiente, ela me lembrou da Bíblia onde se diz que o profeta Abraão plantou uma árvore aos 100 anos. Quando lhe lembraram que ele, devido à sua idade, não colheria mais seus frutos, ele respondeu que não o havia plantado para si, mas para aqueles que o precederiam.

Não, Marina, mais uma vez, você não será uma ministra fácil. Nem para o estrategista Lula.

O custo da vingança

Os desacertos de Luiz Inácio Lula da Silva – cujo cérebro tem sido irrigado por bílis – depois de quatro anos de desgoverno de Jair Bolsonaro, que agora se posta como ingênuo injustiçado, podem até servir ao interesse eleitoral de ambos. Mas Bolsonaro já foi. Cabe a Lula dar o tom e o ritmo, fazer valer o amplo apoio que conseguiu arrebanhar e que vem diminuindo aceleradamente. Antes de tudo, o presidente deveria compreender que o modo vingativo empaca seu governo, tendo como consequências a cruel eternização do subdesenvolvimento e o aprofundamento da desigualdade.


No país que exibe a extraordinária plataforma de quase 245 milhões de smartphones, quase metade da população não se conecta ao esgoto – 100 milhões dos 207,8 milhões de acordo com dados parciais do Censo 2022 -, 35 milhões nem mesmo têm água potável. Condena 62 milhões à pobreza, 30 milhões à absoluta miséria. Um quadro que se agravou ao longo dos anos, e que não se resolve com medidas emergenciais de complementação de renda. Muito menos com políticas arcaicas que já se provaram ineficazes e têm chance zero de dar certo, a exemplo dos decretos de Lula contra o Marco do Saneamento.

Não há tempo para discutir políticas industriais baseadas em subsídios ou, pior, com prioridade à indústria automotiva, acariciada pelos governantes brasileiros desde os tempos de JK. Em vez de um novo carro popular movido a combustível fóssil, já apelidado de “fusca do Lula”, o país deveria premiar iniciativas inovadoras. Investir, ainda que um tico, no século 21, que, alô alô, governo Lula!, já avança pela segunda década.

Na educação, área em que Bolsonaro brincou com ensino domiciliar em aceno às correntes evangélicas, e com colégios militares rígidos, garbosos e elitizados como os dos anos dourados, o arraso é total. E não apenas por culpa da pandemia, que só piorou a indecente qualidade do ensino, praticamente estagnado desde o governo Fernando Henrique Cardoso, quando se deu a universalização do nível básico.

O quadro hoje é alarmante. Quatro em 10 crianças do 4º ano do ciclo fundamental não sabem ler e apenas 13% das que participaram das avaliações para o Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS) de 2021 dominam integralmente essa habilidade. Não há, portanto, espaço para firulas. É preciso agir rápido.

A saúde, sem qualquer dúvida a pior área dos tempos de Bolsonaro, deveria servir de parâmetro para Lula. O Ministério retomou as campanhas de vacinação, os atendimentos em especialidades e as cirurgias seletivas. Voltou a investir na invejável estrutura do SUS, elogiado em vários cantos do mundo. Aqui, tem-se uma vitrine extraordinária que se faz por mérito, sem sangue nos olhos, sem necessidade de xingar os Pazzuelos ou contrabandistas de vacinas do governo anterior.

Em vez de alimentar o ódio e o ranço, de apostar na chacota como a que fez no episódio da cassação do deputado Deltan Dallagnol, com a produção oficial de powerpoint remetendo à perseguição do ex-promotor a Lula, o governo deveria pular algumas casas. Nem seria preciso muito esforço. Depois dos anos de trevas de Bolsonaro, bastaria fazer a lição de casa direitinho e correr para o abraço.

O país pode vencer o atraso, mas não com revanches e soluções do século passado. Elas só condenam os brasileiros ao maldito círculo da subvida.