quinta-feira, 28 de junho de 2018

Brasil te dá asas!


Furtar

Se furtar fosse uma virtude, nós, brasileiros, poderíamos nos gabar. Nem todos participamos dessa atividade, é certo, mas o empenho dos que a ela se dedicam em nosso país garante a cada um de nós, pela média, um número que causaria inveja aos mais célebres saqueadores antigos.

Ano após ano, furtar vem se mostrando uma arte, como o futebol, para a qual nascemos com inexcedível talento. Furtamos tão naturalmente quanto os italianos cantam e os holandeses cultivam tulipas.

Destacamo-nos tão maravilhosamente no furto que já há quem venha nos visitar não para ver os prodígios que Deus esparramou pelo Rio e Niemeyer concentrou em Brasília. Certos turistas acreditam que em contato com nosso ar possam absorver um pouco dessa nossa capacidade.


Nossa habilidade para sumir rapidamente com o dinheiro de um lugar e fazê-lo aparecer em outro, sob outro aspecto e sob outro dono, tem nos valido a primeira página de todos os jornais do planeta, se bem que esse assombro seja considerado entre nós (e aqui entra nossa conhecida modéstia) um exagero.

Há em nosso meio ladrões de todos os tipos e especialidades, a tal ponto que já há algum tempo o mundo reconhece nossa autossuficiência. Al Capone, se viesse hoje para cá com a intenção de se estabelecer, seria considerado um principiante.

Furtar vem aqui se expandindo tanto que ninguém estranhará se logo for baixada uma regulamentação (as existentes não bastam) para defender a sociedade.

Haverá de ser algo bem simples, com base em um princípio: furtemos todos; onde todos furtam, não se desenvolvem desentendimentos entre quem furta e quem é furtado.

E, para mostrar já a minha adesão ao sistema, nem lhes pedirei desculpas por ter furtado assim dois minutos daquilo que costuma chamar-se precioso tempo. Revidem!

Estado de exceção

Esqueça por um momento, se for possível, as ordens do STF que mais uma vez mandaram soltar José Dirceu, o príncipe do PT condenado a 30 anos e nove meses de cadeia por corrupção, além de outros dois colossos da vida pública nacional — um, do PSDB, é acusado de roubar merenda escolar e o outro é tesoureiro do PP. (Só isso: tesoureiro do PP. Não é preciso dizer mais nada.) Faz sentido um negócio desses? Claro que não. Não existe na história do Judiciário brasileiro nenhum réu condenado a mais de 30 anos de prisão por engano, ou só de sacanagem; dos outros dois nem vale a pena falar mais do que já se vem falando há anos. Mas a questão, à esta altura, já não é o que cada um deles fez ou é acusado de ter feito no mundo do crime — a questão é o que estão fazendo os ministros supremos que abriram a porta da cadeia para os três, e virtualmente para todo o sujeito que hoje em dia é condenado por roubar o erário neste país. Os ministros, pelo que escrevem nas suas sentenças, decidiram na prática que ninguém mais pode ser preso no Brasil por cometer crimes de corrupção. Tudo bem, mas há uma pergunta que terá de ser respondida uma hora qualquer: é possível existir democracia num país onde Gilmar Mendes, Antonio Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello, com a ajuda de algumas nulidades assustadas e capazes de tudo para remar a favor da corrente, decidem o que é permitido e o que é proibido para 200 milhões de pessoas?


Esse grupo de cidadãos está no STF por indicação, basicamente, de um ex-presidente da República hoje na cadeia, condenado a 12 anos por corrupção e lavagem de dinheiro, e por uma ex-presidente deposta por quase três quartos dos votos do Congresso. Foram aprovados para seus cargos pelo Senado Federal do Brasil — um dos ajuntamentos mais corruptos que se pode encontrar entre os seres humanos vivos no momento sobre a face da Terra. Jamais receberam um voto. Não respondem a ninguém. Como os loucos, os pródigos e os silvícolas, estão fora do alcance da lei — não podem ser acusados de nada, e muito menos punidos por qualquer ato que venham a cometer. Têm o direito de ficar nos seus cargos pelo resto da vida. Com essa proteção toda, garantida pela Constituição suicida em vigor no Brasil, deram a si próprios o poder de anular provas. Podem ignorar qualquer lei em vigor, recusar-se a aplicar normas legais, não aceitar decisões do Congresso e suprimir procedimentos judiciais. Dizem, é claro, que todas as suas sentenças estão de acordo com as leis — mas são eles, e só eles, que decidem o que a lei quer dizer. Se resolverem que dois mais dois são sete, nenhum brasileiro terá o direito de dizer que são quatro.

Os grandes gênios da nossa criatividade política, com os seus imensos estoques de sabedoria acumulada, devem ter alguma resposta para a pergunta feita acima. Talvez eles saibam como seria possível manter, ao mesmo tempo, o regime democrático e uma corte suprema povoada por Toffolis, Gilmares e Lewandowskis e dedicada a manter a corrupção como uma atividade legal no Brasil. Para os mortais comuns, está difícil de entender. Não existe em lugar nenhum do mundo, e nunca existiu, uma democracia em que o tribunal mais alto do Poder Judiciário faz uso da lei para impedir a prestação de justiça. Se as atuais leis brasileiras, como garantem os ministros a cada vez que soltam um ladrão de dinheiro público, os obrigam a transformar o direito de defesa em impunidade, então todo o sistema de justiça está em colapso; nesse caso, o que existe é um Estado de exceção, onde as pessoas que mandam valem mais que todas as outras. Contra eles, no entendimento de parte do STF, nenhum fato existe; nenhuma prova é válida. Os Toffolis, etc., conseguiram montar no Brasil um novo fenômeno: ao contrário da fábula narrada por Kafka em “O Processo”, o simples fato de alguém ser acusado perante o tribunal é a prova indiscutível de sua inocência.

'O meio campo é o lugar dos craques'

Nestes dias de Copa do Mundo, dá uma preguiça danada de acompanhar os movimentos da política nacional. Vive-se no ritmo da Copa e na disritmia da Política; a mesmice de sempre com os atores de sempre. Um conflito muitas vezes sem sentido; esculhambações de adversários e tentativas de trapaça no interior dos partidos. Enquanto que nos gramados da Rússia há sempre uma emoção: a Espanha que não deslancha, desespero de Portugal, a surpresa belga; o drama argentino. O Prometeu Acorrentado brasileiro.

Indignados de plantão, no entanto, vociferam contra Copa e a Seleção Brasileira. Ainda há quem use expressões como “ópio do povo”; a amaldiçoam a CBF — que merece —, secam Neymar, reclamam dos “preferidos” de Tite. Mais ainda: detestam analogias futebolísticas aplicadas à política. Gente de mau humor. Alguém já disse que “todo militante é um chato”.

Mas, desde que o futebol no Brasil é jogado tem sido assim. Misturar alhos e bugalhos, separar o joio do trigo e ficar com o joio parece ser o verdadeiro esporte nacional.


A Seleção não é não a “pátria de chuteiras”. Foi expressão de ocasião do genial Nelson Rodrigues, mas não deveria ter sobrevivido a ele. Pois, não é bem assim. No Brasil, não há exatamente esse negócio de “pátria”. Dizia Sérgio Buarque que os brasileiros são “desterrados em sua própria terra”. Capiaus sonhando com a Europa. Também faz parte da cultura. Lembrou Eduardo Giannetti em seu “paradoxo do brasileiro” que o brasileiro é sempre o outro.

Todavia, é inegável que a emoção do futebol pulsa, arde e aproxima — no mundo todo, não é só aqui. Talvez, seja das poucas formas de comunicação que abraça enorme quantidade de seres, em todo território. Talvez seja dos poucos assuntos que nivela barões e destituídos de toda sorte. A bola no pé, no Brasil, é meritocracia. O resto é sorte e desigualdade.

Não, a cultura brasileira não é só o Selecionado Nacional. Mas, ele faz parte dela. Junto com a música — que rádios e TVs deixaram de tocar — compõe nossas credenciais para o mundo. Nossa estética nascida do caldeirão de miscigenação étnica e cultural. No campo, somos negros, índios e brancos. Pelé, Garrincha, Zico, Taffarel; Neymar, Rivaldo, Romário, Ronaldos.

Sim, há questões mais importantes que o futebol, sem dúvida. O cotidiano, a sacanagem comezinha que precisa ser afastada, os problemas de relacionamento social; o desacerto das instituições, a inoperância do Estado, a ineficácia da política. Contudo, não se resolverá isto tudo purgando os demônios errados. Qual o problema com o futebol?

Certo que não se deve transformar o “craque” em herói nacional. O craque, hoje muito mais raro que no passado — pois o passado romantizava o talento natural ao mesmo tempo em que, hoje, a ciência do futebol, define a competitividade — é apenas um sujeito de notória habilidade específica, que raramente tem algo a dizer fora das quatro linhas. E o nosso problema fundamental está mesmo fora das quatro linhas.

Ainda assim, qual atividade permite xingar, urrar, exigir a perfeição quanto o futebol? Que explosão de energia é gritar “GOOOOLLLL” a plenos pulmões. Que alegria — momentânea, sim — é ser campeão. Campeões mundiais numa modalidade que não nos ofende, como a tantas em que despontamos como tristes recordistas planetários. Tristes recordistas.

Então, ao futebol o que for do futebol; à política o que for de seu. O país vive seu péssimo momento, mas está longe de ser o pior lugar do mundo. Há gente elegante e sincera também por aqui, que não pretende a tudo transformar numa questão de disputa política. No longo prazo, estaremos todos vivos se não sucumbirmos ao curto. “Bola na trave não altera o placar (…) o meio campo é o lugar dos craques”.
Carlos Melo 

Chega de debate

Claro que é preciso debater tudo com a sociedade, mas, caramba!, há quanto tempo estamos debatendo a reforma da previdência? Qual discussão é mais antiga, essa ou a reforma tributária? Francamente: nos dois casos, já está tudo dito, há números abundantes, todo mundo já deu suas opiniões. O que precisa agora, especialmente neste momento de eleições federais e estaduais, é definir propostas.


Em outras palavras, desconfie de todos os políticos que dizem: sim, a reforma da previdência é necessária, mas precisamos debater os termos com a sociedade. Mesmo admitindo que cabem mais algumas conversas, a obrigação das lideranças que buscam votos é iniciar o debate apresentando a sua proposta de solução.

Sem isso, estão subindo no muro, se esquivando e tentando passar a falsa impressão de que, no governo, vão buscar uma saída que satisfaça todo mundo. E que não existe.

Vale para a reforma tributária, outra veteraníssima. Tudo dito, façam suas opções, candidatos, e se comprometam perante o eleitor de modo explícito.

Vale também para a reforma trabalhista. Aqui, aliás, temos um caso mais claro de tentativa de embuste. O Congresso aprovou e o presidente sancionou uma reforma, justamente entendendo-se que o debate estava feito e decisões tinham de ser tomadas. Foram, mas sobram candidatos dizendo que a votação foi prematura e que é preciso rediscutir tudo de novo.

Por exemplo: seria preciso chamar as entidades de trabalhadores e de empregados para perguntar o que acham do imposto sindical obrigatório, que foi extinto. Ora, para que chamar essa turma? Eles vão dizer o quê? Que não querem o dinheiro fácil do imposto recolhido e distribuído pelo governo?

Do mesmo modo, de que adianta perguntar às pessoas se preferem se aposentar na faixa dos 50 anos ou só depois dos 65?

Argumentam marqueteiros: mas o candidato não se elege se disser que vai aumentar a idade de aposentadoria. Bom, então diga que não precisa de reforma da previdência e que vai pagar essa despesa com mais impostos, por exemplo. O embuste é dizer: vamos debater com a sociedade.

Vamos mal. Decisões cruciais demoram séculos e, quanto são tomadas … melhor rediscutir. Não acaba nunca.

Privilégios

Dia desses, o Superior Tribunal Eleitoral lançou edital para comprar equipamentos de “reabilitação fisioterápica”. Ou seja, uma academia, que ficaria à disposição dos funcionários. Isso, lógico, exigirá a contratação de fisioterapeutas.

Questionada, a direção do STE disse que outros tribunais superiores já tinham esse serviço e que se tratava de igualar benefícios.

De fato, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm essas academias, com fisioterapeutas de carreira, ganhando pouco mais de R$ 16 mil mensais.

Está bom?

Uma consulta às empresas de recursos humanos mostra que, no setor privado, os fisioterapeutas mais bem pagos estão em São Paulo: salário médio de R$ 3.700, teto de R$ 10 mil. No Brasil, média de R$ 2.200.

Não é uma questão de quem merece ou não. A questão é: pode o setor público pagar sete vezes mais para oferecer reabilitação gratuita a seus funcionários, que estão também entre os mais bem pagos?

Dirão: é coisa pequena, não é daí que vem o déficit das contas públicas.

Mas é daí, sim, especialmente nos governos estaduais e prefeituras. Nestes dois níveis de administração, a despesa com pessoal subiu sistematicamente desde os anos 90, até o ano passado, inclusive. Em 2017, esse gasto chegou a 9,1% do PIB. Muito, mas muito mais do que os investimentos. E todo dia saem notícias mostrando que esses níveis de governo estão quebrados, ou quase e, ainda assim, concedem aumentos salariais diversos.

Resumindo: todo mundo sabe que é preciso conter os gastos com o funcionalismo – uma questão econômica – e eliminar os privilégios – questão moral e política.

Não apenas aqui no Brasil, mas no mundo todo se sabe como funciona uma boa administração pública. É só copiar, em vez de propor um enganador debate sobre “soluções brasileiras”.

Tudo considerado, o setor público está quebrado. No governo federal, o principal gasto está na previdência (INSS e aposentadoria dos servidores e militares). Nos níveis estaduais e municipais, a despesa que mais cresce é com salários do pessoal.

Fato.

Desconfie do candidato que propor debates.

Xeque-mate na impunidade

Lula foi condenado à pena de 12 anos e 1 mês de reclusão em regime fechado por corrupção e lavagem de dinheiro, como o Brasil já sabe. O imóvel objeto do crime – o triplex do Guarujá – já foi leiloado e o condenado está cumprindo pena em Curitiba, nas dependências da Polícia Federal. Responde a outros seis processos criminais.

Entretanto, antes mesmo do desfecho do julgamento do habeas corpus pelo STF, que acabou por levá-lo à prisão, a presidente de seu partido anunciou que para prendê-lo seria necessário morrer gente. Não foi. Que se fosse preso haveria graves convulsões sociais por todo o País. Não houve.


Houve, sim, tentativas reiteradas de parlamentares ligados ao partido do condenado de ir visitá-lo na prisão em dia em que não há visitas aos presos, pretendendo-se instituir tratamento privilegiado no cumprimento da pena em detrimento dos demais presos, o que é lamentável neste momento histórico em que a Nação deseja, com todas as forças, extinguir o foro privilegiado – símbolo maiúsculo dessa cultura.

Do lado de fora do cárcere, vivemos uma gravíssima crise de representatividade política. O Brasil não confia na classe política que está aí e o desejo legítimo de fazer renovação democrática nas eleições foi barrado no debate da reforma política, mantendo-se em vigor um sistema que privilegia totalmente os detentores de mandatos.

O que apareceu na reforma foi a proposta de doações anônimas para campanha – que legitimaria doações do PCC e da Máfia – e a famosa emenda Lula, que pretendia proibir a prisão de políticos oito meses antes das eleições. O distritão de Vanuatu e do Afeganistão. E o fundão de 1,7 bi. Este, claro, foi aprovado.

Os coronéis, verdadeiros donos dos partidos políticos, decidem o destino das verbas do fundão eleitoral sem prestar contas de forma clara e rápida à sociedade. Candidatos ricos que se autofinanciam praticamente compram sua vaga na disputa, num aparente retorno à aristocracia grega. São recebidos de braços abertos porque isso permite que sobre muito mais dinheiro para os apadrinhados postulantes à reeleição que beijam a mão do chefão.

Mas, além de destinarem as verbas, os partidos também decidem quem poderá pretender ter o nome nas cédulas eleitorais, concedendo legenda, já que o STF decidiu ser inviável nestas eleições sequer pensar na possibilidade de candidaturas independentes, que foram objeto de cogitações variadas, fundadas no Pacto de San José da Costa Rica.

Em 2014, os rumorosos casos de José Riva, em Mato Grosso, José Roberto Arruda, no Distrito Federal, e Neudo Campos, em Roraima, ficaram famosos. Os três candidatos a governador (que estão presos por corrupção) eram ficha-imunda e mesmo assim, ao arrepio da lei, seus partidos lhes concederam legenda para disputarem as eleições.

A conta que os partidos fazem é tão simples quanto maquiavélica. A resposta final da Justiça Eleitoral a respeito do registro das candidaturas é dada 20 dias antes das eleições. A legenda sabe desde o início que o candidato é ficha-suja e o que se pretende é manter a candidatura, por sua popularidade, até o último instante possível, legalmente.

Quando a substituição tiver de ser feita, coloca-se alguém a quem se possa tentar transferir os votos, pela ligação com o candidato; e no susto e desinformado, o eleitor acaba votando. Nos três casos ficou evidente o ardil porque o caminho foi o mesmo: o nome em substituição foi o da esposa. Em Roraima a jogada funcionou e Suely Campos foi eleita.

Tenta-se o mesmo com Lula. Sabe-se que ele é ficha-suja, que a lei veda sua candidatura e que é tão certo como a luz do sol que seu nome não estará na cédula eleitoral em 7 de outubro. Mesmo assim, tenta-se transmitir a sensação de que o partido acredita ser possível reverter a condenação. Puro engodo. O partido sabe que é irreversível. Assim como os demais fichas-sujas. Nenhum deles poderá ser candidato nestas eleições.

Há até uma “vaquinha” pré-eleitoral em que pessoas estão fazendo depósitos para financiar pré-campanhas. Serve para dar aparência de viabilidade, mas os recursos não serão revertidos para a campanha dessas pessoas, uma vez que os registros serão indeferidos.

Penso também ser totalmente desaconselhável incluir qualquer nome de ficha-suja em enquete eleitoral, porque isso pode contribuir gravemente para a desinformação dos eleitores. Não existe discernimento suficiente aqui para separar o joio do trigo e a inclusão desses nomes pode modificar artificialmente as intenções de voto nos fichas-limpas. E pode-se danificar o jogo democrático.

A última novidade foi o surgimento de Lula como comentarista esportivo num programa do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, analisando a Copa por cartas deppois de assistir aos jogos pela TV que tem dentro da cela na cadeia.

Não há, obviamente, censura no Brasil, mas o fato é que o “comentarista” em questão é um presidiário e o que parece é que se pretende manter viva sua imagem e produz a percepção de estar ele próximo do povo, falando sobre o futebol, a paixão nacional, para criar um fato político.

Por outro lado, há quem tem tenha tido a sensação de que está ele trucando a Justiça, porque um encarcerado não leva a vida como qualquer outra pessoa. Não está sendo alvo de vingança social, mas deve cumprir sua pena privativa de liberdade. Não está livre e não é razoável permitir a iniciativa, até porque já há quem fale em admitir-se a absurda ideia de fazer campanha política de dentro da cela.

A prisão de Lula, assim como a de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Eduardo Azeredo, Marcelo Odebrecht, foi um momento histórico de supremacia do bem comum. Precisamos dar xeque-mate na impunidade.

Imagem do Dia

Granada (Espanha), George Owen 

Auto de resistência

Tem algumas histórias que o cinema conta melhor. A dos autos de resistência no Rio é uma delas. Em 20 anos, 16 mil pessoas, na maioria jovens negros, pobres e moradores de favelas, morreram atingidas por tiros disparados por policiais da PM do Rio, que alegaram legítima defesa. Esse drama cotidiano da Região Metropolitana da cidade, que em janeiro passado tirou a vida de cinco pessoas a cada dia, é o tema de um excelente documentário que estreia hoje. Trata-se de “Auto de Resistência”, dirigido por Natasha Neri e Lula Carvalho.

Os inúmeros casos relatados no filme já foram contados pela imprensa, de maneira mais detalhada pelos jornais, e de forma mais impactante pelas TVs. Embora tenham sido produzidas reportagens extensas e intensas sobre esta epidemia de auto de resistência no Rio, é muito difícil concorrer quando o assunto é esmiuçado em um documentário com uma hora e quarenta minutos de duração. E mais do que isso. Além do tempo, que permite ao espectador mergulhar na questão, o documentário conta as histórias pela ótica das vítimas e de seus familiares.

E a visão das vítimas é de dor e inconformismo. Se você ainda não se deu conta da enormidade deste drama, se convencerá rapidamente de como ele é repugnante ao assistir ao filme. Os casos se somam numa profusão tão intensa de imagens chocantes, lágrimas e desespero, que é impossível sair do cinema sem um embrulho no estômago e a sensação de que estamos diante de uma batalha que dificilmente será vencida. A violência da polícia com estes jovens e fracos moradores de favelas é revoltante. E o pior é que se trata da mesma polícia que morre como mosca no confronto com criminosos de verdade.

Auto de resistência, como você sabe, é a morte de um civil por um policial que dispara reagindo a uma agressão, a um tiro dado antes pela vítima. O filme de Natasha e Lula mostra com clareza assombrosa casos de homicídios por descuido, despreparo, arrogância ou simples instinto assassino de policiais que acabam de maneira fraudulenta recebendo o selo de auto de resistência. E, ao que tudo indica, esses são maioria.

Um grupo de mães que perderam seus filhos em casos fajutos de auto de resistência percorre todo o documentário buscando justiça, fazendo vigílias, participando de atos e indo a audiências públicas em tribunais sempre cobrando resultados. E este é outro drama de que o filme trata: 98% das mortes cadastradas pelos Boletins de Ocorrência policiais como autos de resistência que chegam a virar inquéritos são arquivados sem esclarecimento.

Três casos relatados na crônica policial, a chacina de Costa Barros; o assassinato do menino Alan e o tiro em seu amigo Chauan, em Honório Gurgel; e a fraude documentada de um auto de resistência no Morro da Providência são emblemáticos. Em Costa Barros, cinco jovens desarmados, de 16 a 25 anos, foram assassinados dentro de um carro com 111 tiros de fuzil. Alan morreu com uma rajada de tiros enquanto brincava em frente à sua casa. Ele filmou com seu celular a sua morte violenta.

Na Providência, uma moradora gravou em vídeo um PM colocando uma arma na mão de um menino morto e fazendo o disparo. A armação é evidente. No documentário, o policial que fez a fraude alega numa audiência no tribunal que a munição estava mal colocada na pistola e poderia disparar num movimento brusco ou com uma queda, então ele a colocou na mão da vítima “para não ferir ninguém, já que o garoto estava morto mesmo”. E o pior é que a mentira absurda colou.

Outra cena de guerra retratada no documentário é a ação de oito policiais da Core disparando de dentro de um helicóptero contra alvos no chão. Numa área urbanizada na entrada da Favela do Rola, em Santa Cruz, policiais disparam rajadas contra pessoas que correm nas ruas do bairro. Recarregam seus fuzis e disparam novamente. Qualquer um poderia ser atingido, bandido ou inocente, dada a distância entre os atiradores e os alvos. Visto no filme, parece um jogo de videogame, mas os corpos recolhidos depois não deixam dúvida sobre a cruel realidade. Seis pessoas morreram, os oito PMs foram inocentados.

O filme mostra, finalmente, um outro lado pouco conhecido da história, o papel dos advogados dos PMs. A advogada Fabíola Santoro, que aparece diversas vezes no filme, numa delas festejando a libertação dos PMs da Chacina de Costa Barros, faz piada durante uma audiência: “os moradores sempre dizem que o seu lugar é pacificado, dá até para pensar que é um resort”. Não é um resort, claro que não. A juíza Viviane Farias esclarece. “Isso jamais teria acontecido na Lagoa Rodrigo de Freitas”.
Ascânio Seleme

Dito popular


De cabeças do STF e de bundinha de neném, ninguém sabe o que vai sair

Cega, Justiça premia a culpa e pune a inocência

A única coisa que Heberson Lima de Oliveira tem em comum com José Dirceu de Oliveira e Silva é o sobrenome Oliveira. No mais, eles são bem diferentes. No mesmo dia em que o condenado Dirceu saiu da cadeia por ordem do STF, o STJ reconheceu o direito dos filhos de Heberson a uma indenização pela prisão indevida do pai. Dirceu pegou 30 anos e 9 meses por ter mordido propinas de R$ 15 milhões. Herberson, acusado injustamente de estupro, pede R$ 170 mil por ter ficado 2 anos e 7 meses em cana até o reconhecimento de sua inocência.


Diz a Constituição que todos os brasileiros são iguais perante a lei. Mas a Justiça se encarrega de acentuar as diferenças. Dirceu é tratado como inocente mesmo com prova em contrário. Heberson é do tipo que vai em cana como prova em contrário. Dirceu, condenado em segunda instância, contesta o tamanho do castigo e recebe o alvará de soltura. Heberson, inocentado, recebe do Estado um segundo castigo.

Na prisão, em 2003, Heberson foi estuprado por seis dezenas de detentos. Contraiu o vírus HIV. Passados 15 anos, luta contra a doença, a pobreza e o Estado do Amazonas, que guerreia na Justiça para não pagar a indenização. A cifra caiu na segunda instância de R$ 170 mil para R$ 135 mil. Mas o Estado recorreu aos tribunais de Brasília. O STJ mandou pagar. Os filhos de Heberson não receberão nenhum centavo. Falta ouvir o STF. Quando? Não há previsão. O Supremo tem mais o que fazer. No momento, alguns de seus ministros molham a toga soltando corruptos.

Problema no olho

Hoje ele lê com dificuldade. Está vendo a Copa do Mundo chegando perto da televisão. De longe, só enxerga metade do campo e, pior que isso, não vê o principal: a bola

Estava vendo mal e marcou uma consulta. Sempre havia enxergado bem, e, na sua família, a garantia de uma “boa vista” era reafirmada por seus pais e tios que haviam desaparecido com a casa no Ingá, em Niterói, fazia já algum tempo. Mas se a casa tinha virado edifício, o olhar continuava firme embora coberto por óculos que mudavam regularmente.

Zepelim entrando na Baía de Guanabara visto de Niterói
No consultório do Dr. Flávio Murakana, ele foi recebido com o carinho de sempre. O oculista sabia como o seu cliente prezava a glória de ver-para-ler e considerava o enxergar uma interpretação — aquele “second look” que nos faz rir ou chorar no cinema. Foi assim que o médico o conduziu à cadeira especial dos oftalmologistas.

Poltrona mágica que obriga a sair de si mesmo, por oposição à dos dentistas que invadem nossas almas pela boca. Já letras do oculista, pensou, são um modo primitivo de leitura. Se você nada enxerga, você é analfabeto! Afora isso, o conjunto é numa sequência horizontal e sem sentido, por contraste com a vida que tudo confunde e mistura. Aquilo que você pensava que era grande — por exemplo, o cara que você elegeu e achava grandioso, está na cadeia; os netinhos que ele pegou no colo transformaram-se em jovens admiráveis. Do mesmo modo, o amor de sua juventude pegou uma doença maior do que seu corpo, fazendo o seu coração bater numa mistura de letras, como aquelas sopas que sua mãe lhe administrava nos tempos de brincar no quintal e matar passarinho...

Sentado na boa poltrona ele estava tranquilo até perceber que o F era T; o U era V; e o R era B. Decepcionado, ele via embaçado o que antes era claro como as águas da Praia das Flechas, onde aprendeu a tomar banho de mar na Niterói de sua infância.

O oculista o conduziu a um gabinete semissecreto no qual jazia no centro uma espécie de binóculo preso a uma mesa, “Vamos ver o fundo do olho”, disse o médico.

Ele pensou, mas não disse: (vamos ver é o caralho! Você vai ver; eu vou enxergar e pensar no pior). E, de fato, ele olhou para um túnel negro e viu um pedaço dele mesmo que nada dizia, exceto a má noticia com a qual foi brindado pelo Dr. Murakana:

— Professor, o seu problema não é de óculos, é do olho.

— Como assim, do olho? De que olho?

— Dos olhos, professor, dos olhos... dos dois olhos! Respondeu o oculista.

— Então é sério?

Um mês depois, ele fica diante de um outro binóculo ainda mais sofisticado para ver uma enorme mancha vermelha que o remete ao planeta Marte, pois, do lado oposto da mesa e controlando tudo, há uma médica que, cheia de neutralidade espacial, manipula um computador, deixando ver dentro do túnel uma linha que oscila de cima para baixo e da esquerda para a direita. Enquanto isso ocorre, uma enfermeira segura firme sua testa de encontro a um anteparo, enquanto a doutora da Nasa determina que ele pisque ou abra bem o olho...

Em plena viagem sideral, intrometem-se lembranças infantis. Ele se recorda dos exames de vista que fazia na sua prima Lelilinha quando ia de um olho para o outro...

Um mês depois, o Dr. Flávio Murakana lhe diz solenemente:

— Professor, seu exame revela drusas na mácula. Felizmente são secas...

— Como vamos curá-las?

— Não têm cura! Eu sinto muito professor. É uma degenerescência devido à idade.

— Vai de mal a pior?

— Sim, mas a gente tenta segurar com doses de luteína e lentes prismáticas.

Hoje ele lê com dificuldade. Está vendo a Copa do Mundo chegando perto da televisão. De longe, só enxerga metade do campo e, pior que isso, não vê o principal: a bola, cuja leviana disposição de acompanhar todo mundo ele despreza.

O adolescente dentro dele que ainda pensa em conhecer o Frank e o Mann — sim, o Frank Sinatra e o Thomas Mann — está desapontado. Mas, velho que o contem com os olhos molhados, dá um riso discreto...

Essa crônica é para Zé Paulo Cavalcanti, que a inspirou e, otimista, acha que eu vejo o mundo quando, na realidade, eu só enxergo mesmo Niterói.
Roberto DaMatta