Tem algumas histórias que o cinema conta melhor. A dos autos de resistência no Rio é uma delas. Em 20 anos, 16 mil pessoas, na maioria jovens negros, pobres e moradores de favelas, morreram atingidas por tiros disparados por policiais da PM do Rio, que alegaram legítima defesa. Esse drama cotidiano da Região Metropolitana da cidade, que em janeiro passado tirou a vida de cinco pessoas a cada dia, é o tema de um excelente documentário que estreia hoje. Trata-se de “Auto de Resistência”, dirigido por Natasha Neri e Lula Carvalho.
Os inúmeros casos relatados no filme já foram contados pela imprensa, de maneira mais detalhada pelos jornais, e de forma mais impactante pelas TVs. Embora tenham sido produzidas reportagens extensas e intensas sobre esta epidemia de auto de resistência no Rio, é muito difícil concorrer quando o assunto é esmiuçado em um documentário com uma hora e quarenta minutos de duração. E mais do que isso. Além do tempo, que permite ao espectador mergulhar na questão, o documentário conta as histórias pela ótica das vítimas e de seus familiares.
E a visão das vítimas é de dor e inconformismo. Se você ainda não se deu conta da enormidade deste drama, se convencerá rapidamente de como ele é repugnante ao assistir ao filme. Os casos se somam numa profusão tão intensa de imagens chocantes, lágrimas e desespero, que é impossível sair do cinema sem um embrulho no estômago e a sensação de que estamos diante de uma batalha que dificilmente será vencida. A violência da polícia com estes jovens e fracos moradores de favelas é revoltante. E o pior é que se trata da mesma polícia que morre como mosca no confronto com criminosos de verdade.
Auto de resistência, como você sabe, é a morte de um civil por um policial que dispara reagindo a uma agressão, a um tiro dado antes pela vítima. O filme de Natasha e Lula mostra com clareza assombrosa casos de homicídios por descuido, despreparo, arrogância ou simples instinto assassino de policiais que acabam de maneira fraudulenta recebendo o selo de auto de resistência. E, ao que tudo indica, esses são maioria.
Um grupo de mães que perderam seus filhos em casos fajutos de auto de resistência percorre todo o documentário buscando justiça, fazendo vigílias, participando de atos e indo a audiências públicas em tribunais sempre cobrando resultados. E este é outro drama de que o filme trata: 98% das mortes cadastradas pelos Boletins de Ocorrência policiais como autos de resistência que chegam a virar inquéritos são arquivados sem esclarecimento.
Três casos relatados na crônica policial, a chacina de Costa Barros; o assassinato do menino Alan e o tiro em seu amigo Chauan, em Honório Gurgel; e a fraude documentada de um auto de resistência no Morro da Providência são emblemáticos. Em Costa Barros, cinco jovens desarmados, de 16 a 25 anos, foram assassinados dentro de um carro com 111 tiros de fuzil. Alan morreu com uma rajada de tiros enquanto brincava em frente à sua casa. Ele filmou com seu celular a sua morte violenta.
Na Providência, uma moradora gravou em vídeo um PM colocando uma arma na mão de um menino morto e fazendo o disparo. A armação é evidente. No documentário, o policial que fez a fraude alega numa audiência no tribunal que a munição estava mal colocada na pistola e poderia disparar num movimento brusco ou com uma queda, então ele a colocou na mão da vítima “para não ferir ninguém, já que o garoto estava morto mesmo”. E o pior é que a mentira absurda colou.
Outra cena de guerra retratada no documentário é a ação de oito policiais da Core disparando de dentro de um helicóptero contra alvos no chão. Numa área urbanizada na entrada da Favela do Rola, em Santa Cruz, policiais disparam rajadas contra pessoas que correm nas ruas do bairro. Recarregam seus fuzis e disparam novamente. Qualquer um poderia ser atingido, bandido ou inocente, dada a distância entre os atiradores e os alvos. Visto no filme, parece um jogo de videogame, mas os corpos recolhidos depois não deixam dúvida sobre a cruel realidade. Seis pessoas morreram, os oito PMs foram inocentados.
O filme mostra, finalmente, um outro lado pouco conhecido da história, o papel dos advogados dos PMs. A advogada Fabíola Santoro, que aparece diversas vezes no filme, numa delas festejando a libertação dos PMs da Chacina de Costa Barros, faz piada durante uma audiência: “os moradores sempre dizem que o seu lugar é pacificado, dá até para pensar que é um resort”. Não é um resort, claro que não. A juíza Viviane Farias esclarece. “Isso jamais teria acontecido na Lagoa Rodrigo de Freitas”.
Ascânio Seleme
Nenhum comentário:
Postar um comentário