Praia de Piratininga (1922), Artur Timóteo da Costa |
quinta-feira, 3 de maio de 2018
Bruxaria
O dicionário vai dizer de onde vem a palavra bruxo ou bruxa. Mas nenhum vai informar sobre o seu significado profundo.
Quem fez isso foram os antropólogos que, a partir de 1934, com a publicação do livro de E. E. Evans-Pritchard sobre os Azande (um povo do sul do Sudão) revelaram como a “bruxaria” é um idioma destinado a explicar infortúnios e acidentes, exibindo suas causas finais. O “porquê” do desastre foi ocorrer justamente com os nossos filhos e não com os dos nossos vizinhos ou desafetos.
A aceitação do acaso como um fenômeno não intencional é um problema no universo humano obcecado com equilíbrios, retribuições e motivos moralmente ancorados. Afinal, o tamanho do infortúnio deve ter alguma relação com a pessoa afetada. Se existe responsabilidade nas nossas vidas, por que não haveria também nos acidentes?
Se o pai é superior a ele, em contrapartida, tem mais deveres e muito mais culpa como doador de rumos e exemplos do que o filho. É o tal domínio do fato que a teoria dos papéis sociais desvenda em socioantropologia.
Diante do desastre somos levados ao doloroso processo de suspeitar o inocente da inocência; ou procurar o bruxo produtor da feitiçaria que coloca em dúvida a plausibilidade moral do mundo.
Nas sociedades tribais, as relações sociais são múltiplas porque todos são filhos, irmãos, primos, cunhados, tios e sobrinhos do chefe, do curador, do profeta ou do rei. Nelas, a bruxaria estaria ligada a essa multiplicidade de elos sociais que nem sempre funcionam em harmonia e conduzem aos conflitos de interesse que — pasmemos todos! — pela primeira vez, estamos tendo que lidar seriamente no mundo público nacional.
A bruxaria denuncia como o coração humano tem, parafraseando Pascal, razões que o próprio coração desconhece. E que Freud situou na dinâmica entre o coletivo (o superego ou o todo), o individualizado (o ego ou a parte) e o Id (o “isso”, o desejo) que a consciência se vê obrigada a reprimir e esconder. Seja o amor secreto pela irmã, o desejo pela exclusividade amorosa dos pais ou o êxito do cunhado.
Contradições entre motivos nos levam a buscar o feiticeiro ou o analista (significativamente chamado de “encolhedor de cabeça” nos EUA). Recolhidos ambos em seus consultórios e cobrando pelos segredos íntimos que lhes contamos, eles — como os confessores — têm em comum um relativo abandono do mundo. O poder oracular decorre do se olhar distanciado. Usando cartas (que não mentem), búzios, veneno e galinhas (como fazem os Azande), eles teriam a capacidade “objetiva” de dar intencionalidade ao acaso e ao malefício.
Os papéis sociais que nos envolvem são (para desengano dos tiranos) sempre limitados. O papel de presidente tem como complemento o de povo; o de rico tem no de pobre o seu chão. O de adulto é complementado pelo de criança, o de vivo tem no morto sua contraparte; e o de professor tem no aluno sua fonte de legitimidade. Note que os papéis de um pai bancando um filho produz doença ou anomia — essa bruxaria tão nossa conhecida. Nestes casos, um papel não existe sem o outro e eles são regidos por ética e não por lei. Aqui, invocação da lei é sinal de crise.
Mas tudo se transforma com a invenção do “estado” e da soberania centrada num território exclusivo. Agora os papéis sociais fundados na reciprocidade da casa e na aldeia, começam a competir com os “cargos” administrativos cujo centro não é mais o “sangue”, mas a coletividade e as ambições políticas. A passagem da casa para a rua — como tenho revelado na minha obra — é complicada.
A necessidade de atribuir intenções, sem as quais não há moralidade ou sociabilidade, continua, só que ela se complica com o “estado”. Agora o bruxo não é mais o egoísta frustrado e fechado em si mesmo e na sua sovinice, como o Scrooge de Dickens, mas o ocupante de um cargo público obtido por competição livre, cujo alvo é o bem estar nacional. Há uma severa e – como mostra a crise da crise brasileira – uma perversa divisão. De um lado, o bruxo prestes a virar “político” pensa na sua tribo e casa mas; de outro, ele é forçado a honrar novas e amplas lealdades com o seu partido e eleitores. Essas lealdades podem, numa democracia, ser usadas umas contra as outras.
As antigas lealdades de aldeia produziam bruxarias, as novas lealdades políticas nacionais e internacionais produzem contradições. O bruxo vira o político e a bruxaria se transforma num conjunto de opiniões legais paradoxais que só o bom senso (e haja bom senso!) pode resolver. Nesse caso, bruxaria é propina — esse laço entre o tribal e o nacional que fez com que o Brasil fosse vendido e comprado.
Quem fez isso foram os antropólogos que, a partir de 1934, com a publicação do livro de E. E. Evans-Pritchard sobre os Azande (um povo do sul do Sudão) revelaram como a “bruxaria” é um idioma destinado a explicar infortúnios e acidentes, exibindo suas causas finais. O “porquê” do desastre foi ocorrer justamente com os nossos filhos e não com os dos nossos vizinhos ou desafetos.
A aceitação do acaso como um fenômeno não intencional é um problema no universo humano obcecado com equilíbrios, retribuições e motivos moralmente ancorados. Afinal, o tamanho do infortúnio deve ter alguma relação com a pessoa afetada. Se existe responsabilidade nas nossas vidas, por que não haveria também nos acidentes?
Se o pai é superior a ele, em contrapartida, tem mais deveres e muito mais culpa como doador de rumos e exemplos do que o filho. É o tal domínio do fato que a teoria dos papéis sociais desvenda em socioantropologia.
Diante do desastre somos levados ao doloroso processo de suspeitar o inocente da inocência; ou procurar o bruxo produtor da feitiçaria que coloca em dúvida a plausibilidade moral do mundo.
Nas sociedades tribais, as relações sociais são múltiplas porque todos são filhos, irmãos, primos, cunhados, tios e sobrinhos do chefe, do curador, do profeta ou do rei. Nelas, a bruxaria estaria ligada a essa multiplicidade de elos sociais que nem sempre funcionam em harmonia e conduzem aos conflitos de interesse que — pasmemos todos! — pela primeira vez, estamos tendo que lidar seriamente no mundo público nacional.
A bruxaria denuncia como o coração humano tem, parafraseando Pascal, razões que o próprio coração desconhece. E que Freud situou na dinâmica entre o coletivo (o superego ou o todo), o individualizado (o ego ou a parte) e o Id (o “isso”, o desejo) que a consciência se vê obrigada a reprimir e esconder. Seja o amor secreto pela irmã, o desejo pela exclusividade amorosa dos pais ou o êxito do cunhado.
Contradições entre motivos nos levam a buscar o feiticeiro ou o analista (significativamente chamado de “encolhedor de cabeça” nos EUA). Recolhidos ambos em seus consultórios e cobrando pelos segredos íntimos que lhes contamos, eles — como os confessores — têm em comum um relativo abandono do mundo. O poder oracular decorre do se olhar distanciado. Usando cartas (que não mentem), búzios, veneno e galinhas (como fazem os Azande), eles teriam a capacidade “objetiva” de dar intencionalidade ao acaso e ao malefício.
Os papéis sociais que nos envolvem são (para desengano dos tiranos) sempre limitados. O papel de presidente tem como complemento o de povo; o de rico tem no de pobre o seu chão. O de adulto é complementado pelo de criança, o de vivo tem no morto sua contraparte; e o de professor tem no aluno sua fonte de legitimidade. Note que os papéis de um pai bancando um filho produz doença ou anomia — essa bruxaria tão nossa conhecida. Nestes casos, um papel não existe sem o outro e eles são regidos por ética e não por lei. Aqui, invocação da lei é sinal de crise.
Mas tudo se transforma com a invenção do “estado” e da soberania centrada num território exclusivo. Agora os papéis sociais fundados na reciprocidade da casa e na aldeia, começam a competir com os “cargos” administrativos cujo centro não é mais o “sangue”, mas a coletividade e as ambições políticas. A passagem da casa para a rua — como tenho revelado na minha obra — é complicada.
A necessidade de atribuir intenções, sem as quais não há moralidade ou sociabilidade, continua, só que ela se complica com o “estado”. Agora o bruxo não é mais o egoísta frustrado e fechado em si mesmo e na sua sovinice, como o Scrooge de Dickens, mas o ocupante de um cargo público obtido por competição livre, cujo alvo é o bem estar nacional. Há uma severa e – como mostra a crise da crise brasileira – uma perversa divisão. De um lado, o bruxo prestes a virar “político” pensa na sua tribo e casa mas; de outro, ele é forçado a honrar novas e amplas lealdades com o seu partido e eleitores. Essas lealdades podem, numa democracia, ser usadas umas contra as outras.
As antigas lealdades de aldeia produziam bruxarias, as novas lealdades políticas nacionais e internacionais produzem contradições. O bruxo vira o político e a bruxaria se transforma num conjunto de opiniões legais paradoxais que só o bom senso (e haja bom senso!) pode resolver. Nesse caso, bruxaria é propina — esse laço entre o tribal e o nacional que fez com que o Brasil fosse vendido e comprado.
Síntese do Brasil
O prédio que pegou fogo e desabou em São Paulo sintetiza o Brasil: somos um país caindo aos pedaços, com um monte de gente pobre manipulada pela esquerda e convenientemente invisível aos olhos de quem ocupa regularmente o governoO Antagonista
A banalização do mal
A tragédia acabou politizada. O esforço maior foi apontar o dedo para os adversários e encontrar culpados do que compreender a dinâmica social que leva milhares de pessoas a viver em locais como aquele. Culpou-se administrações atuais e anteriores, movimentos sociais sem-teto e urbanistas. Sem provas ou maiores elementos, houve ex autoridade que afirmou que o local servia de abrigo ao PCC — mas não disse o que fez a respeito.
Como se vê, não faltou quem desse bom dia a cavalos; houve até quem se culpasse os próprios pobres por não ter moradia (sic). Ora, ora… Mas, o fato é que, na política, somente notícias boas encontram padrinho. Não faltam oportunistas para assumir a paternidade de uma obra bacana, de um bom plano, da distribuição de recursos. Já no momento ruim ninguém se apresenta. Infelizmente, isso é normal.
Mas, o que não se discute — ou se prefere esquecer — é que o Estado, no Brasil, entrou em colapso. Seja porque não consegue estimular a economia, criar emprego e distribuir riqueza. Seja porque é incapaz de abrigar o povo pobre, sem-teto, miseráveis em situação de rua. Seja porque não consegue evitar ocupações em prédios vazios ou, diante do déficit de moradias inibir a especulação com imóveis ociosos.
Não se implementa políticas públicas inovadoras que estimulem a ocupação legal desses imóveis, que sejam capazes de incluir a população pobre. Por melhor elaborados e mais bem-intencionados que sejam, planos diretores acabam relegados à condição de letra morta da lei, em virtude da falta de recursos e ou de interesse.
Simplesmente, o Estado não existe. Não é porque seja pequeno e insuficiente, nem porque seja mastodôntico e perdulário. Na realidade cheia de paradoxos que é o Brasil, o Estado consegue ser ao mesmo tempo isso tudo: pequeno e insuficiente para o que é necessário e inescapável; mastodôntico e perdulário na má alocação de recursos, na sua apropriação por grupos corporativos, superprotegidos.
Culpa de quem? Provavelmente, culpa de todos. Inclusive, da sociedade que se omite.
O Brasil é um país acostumado a conviver com a miséria, com pessoas dormindo sob marquises, com crianças nos faróis; com pessoas comendo do lixo que recolhem. É também habituado à criminalidade e à violência e nada mais parece escandalizar, tudo se fez banal. Sem açúcar, sem sal, sem indignação. Apenas normal. Banaliza-se o mal.
Pois parece normal que seres humanos, famílias inteiras, tenham que ocupar pardieiros sem luz, sem água, sem sol, sem segurança, sem perspectiva e sem ar. Assim, como parece natural que surjam pessoas que se aproveitam disso. Parece normal que a prefeitura diga que o problema é federal; que o governo, em Brasília, esteja distante, que o presidente da República seja vaiado. Que governantes e ex governantes, depois de décadas de poder, assistam a tudo com ar blasé.
Nas redes sociais, no conforto de seus sofás, na modorra do feriado, os tais internautas se manifestaram informando estarem bem (sic). Marcaram-se como seguros, distantes de um lugar por onde, todos sabem, jamais passariam. Seria cinismo, desaviso ou melancolia por não estrem em Nova York, lugar de atentados terroristas? O terror, no Brasil, se manifesta a seu próprio modo.
Outros tantos, como sempre, preferiram, mais uma vez, demonizar inimigos. Surgiram milhares — talvez milhões — de especialistas, prontos a atirar pedra, capazes de discorrer sobre a questão urbana, o problema da moradia, das drogas, da segurança, da especulação imobiliária; do direito de propriedade, da banditização dos movimentos sociais.
Vem à minha cabeça Max Weber, num trecho de sua ''A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo'' — não, não se trata de um comunista. Diz ele que ''…neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão ser chamados de ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado’”. Esquecem que mesmo feio, todo o filho sempre terá seu pai. E, nesse caso, somos nós.
Carlos Melo
Dizer de mim
A minha vida não serve de exemplo para ninguém, a não ser para mim próprio.Um homem é o que para os outros foi ou é, e, também, aquilo que o não deixaram ser. A minha vida permitiu-me acumular experiências, e tive a sorte de trabalhar, em dois diários, com grandes, extraordinários, profissionais. Os jornais, esses, acabaram e de forma triste e desamparada. Aos jornalistas, a esses, recordo-os sempre com estima e afeição. Sou um produto deles, e eles sempre olharam por mim com o cuidado suscitado pela amizade. Não exagero: o pulsar do meu coração não falha, quando leio ou assisto, pelas televisões, nos jornais, a reportagens que marcam o sobressalto daquilo que sinto. Esses sentimentos prolongo-os até hoje, numa memória constante que, amiúde, se confunde com o meu próprio destino.
Às vezes, apetece-me dizer estas coisas. Inspirações momentâneas, surgidas do que observo ou leio. Mas também desejo encorajar todos aqueles que, nos jornais ou nas televisões, têm sentido a frustração dos dias, a estranha paragem do tempo, a dor secreta da velhice. Nunca me queixei, nunca levei para casa a dor profunda e secreta do que me faziam. Fui fazendo. Algumas vezes disfarçando, nas frases, o sofrimento que ocultava com um riso só feliz na aparência. Tenho andado a remoer e a mastigar, com o esquecimento forçado e o sorriso aberto, as dores com as quais fui envelhecendo.
Tenho a cabeça e os sentimentos que nela se ocultam, sem se apagar, numerosos factos e histórias, afinal comuns a quem fez da vida um caudal de palavras e de frases. O culpado sou só eu. Mas só escrevo aquelas que não podem magoar ninguém. Sei que se chama a isto ter carácter. Salvei- -me do recurso à canalhice, e tudo concorria para que assim não fosse. A minha vida não serve de exemplo para ninguém, a não ser para mim próprio, e só a escrevo em minúsculos episódios, como este, agora, e devo-o não só a mim, mas, sobretudo, àqueles que de mim gostam. Até já.
Assim é a 'sopa de plástico' que asfixia o mundo
“Os oceanos cobrem 71% da superfície da Terra, e existe a crença errônea de que só há ilhas de plástico flutuando por aí (…), quando o certo é que ele está por toda parte: em terra, mar e ar. Sua acumulação e fragmentação são tamanhas que os danos derivados do plástico superam seus benefícios”, afirma Roscam Abbing. Especialista em meio ambiente e membro da Fundação Sopa de Plástico (Amsterdã), ele cita um exemplo visual para ilustrar uma luta que é de todos – produtores, Governos e consumidores. É a famosa imagem do cavalo-marinho com a cauda enroscada em um cotonete, que delata a responsabilidade mal compartilhada. Foi feita pelo fotógrafo Justin Hoffman, morador do Canadá, enquanto mergulhava na Indonésia, e aparece entre as ilustrações do Atlas. “Poderia ter sido evitado”, diz o escritor. “Os cotonetes plásticos vão para a privada e então diretamente para as águas superficiais e as praias. Sendo que o fabricante poderia fazê-los de cartolina ou madeira. Mas são mais caros.”
No texto, mostra-se que numa praia qualquer do Reino Unido há em média 24 cotonetes a cada 100 metros. Outros dados: nos Estados Unidos, são jogadas no lixo 2,5 milhões de garrafas de plástico por hora; a cada minuto, usa-se no mundo um milhão de sacolas desse material. E, o pior de tudo, na sua opinião: as embalagens pequenas, fabricadas com diversos tipos de plástico, e usadas uma só vez. “Nos países em desenvolvimento a publicidade do xampu costuma ser assim, porque as pessoas têm uma poder aquisitivo diferente. Acumulam-se em grandes quantidades, e poderia ser incentivado outro tipo de fabricação e um consumo mais responsável, por parte da própria empresa, com embalagens reutilizáveis”. Quanto ao pão, “perdeu-se o costume de levar as tradicionais sacolas de tecido, e são colocados em bolsas de plástico, destinadas ao lixo”, acrescenta.
Uma boa ideia para reduzir a fabricação e uso dos plásticos é a tatuagem a laser na casca de frutas e verduras. “É seguro e sustentável, mantém a etiquetagem obrigatória e foi aprovada pela União Europeia. A Espanha é pioneira nessa tecnologia (Laserfood, de Valência) e economiza pacotes porque a informação essencial é impressa na casca.” Com fotos dessa poluição em lavouras, no fundo dos mares, em redes pluviais e qualquer outro meio ou superfície imaginável, o Atlas recorda que todos os plásticos se degradam. Suas partículas, impossíveis de recolher, são ingeridas por humanos e animais. “Um perigo enorme: entram em organismos vivos e ignoramos seus efeitos”. De qualquer forma, embora a produção responsável, o manejo sustentável de terras e águas e a reciclagem e a cooperação entre o setor público e privado sejam essenciais, a sopa de plástico supera as barreiras nacionais. E há uma lacuna jurídica. “Nada menos que a falta de um tratado internacional no âmbito das Nações Unidas dedicado a conter a própria sopa”, é o conselho que fecha o Atlas.
Preso, Lula virou candidato por correspondência
Neste 1º de Maio, Gleisi Hoffmann leu mais uma carta de Lula. Deu-se no encerramento do ato que reuniu em Curitiba as principais centrais sindicais do país. O missivista do cárcere declarou-se triste, porque “nossa democracia está incompleta”. Comparou os tempos bicudos da era Michel Temer —“O desemprego cresce e humilha”— à pujança de sua época —“Vocês se lembram da prosperidade do Brasil naqueles tempos…”
Embora faltassem a Gleisi a rouquidão e a desenvoltura de palco, o timbre eleitoreiro saltou, indisfarçável, do texto ditado para os advogados. “Sabemos que esse Brasil é possível. Mais do que isso, já vivemos nesse Brasil há muito pouco tempo atrás”.
Tomado pelos termos da carta, Lula deve ter sido picado na cela especial de Curitiba pelo mosquito que transmite uma febre causadora de amnésia. O sumiço da memória apagou da carta do presidiário petista a companheira Dilma Rousseff.
A gestão de Temer revela-se perversa. Mas a ruína econômica que espalhou desemprego e desesperança é consequência direta do desastre gerencial produzido por Dilma —um poste que Lula elegeu e que teve Gleisi como uma cultuada chefe da Casa Civil.
A correspondência do cárcere ataca Temer da boca para fora. No íntimo, o missivista agradece aos “golpistas”. Depois de fazer a sucessora duas vezes, Lula estava sendo desfeito por ela. Sem o impeachment, não haveria um Michel Temer para chutar.
Com Dilma em casa, o missivista do cárcere pode exercitar livremente sua mania de confundir memória com consciência limpa. Os devotos não se incomodam. O importante é manter em pé a hipotética candidatura. ''Se alguém falar em Plano B para vocês, não acreditem'', disse a ré Gleisi para a plateia.
Triste primeiro de maio
Vale recordar que a chamada reforma trabalhista entrou em vigor em 11 de novembro de 2017. Seus promotores anunciavam que seus efeitos “benéficos” sobre o mercado de trabalho começariam a ser sentidos a partir do primeiro trimestre de 2018. Henrique Meirelles chegou a dizer que seriam gerados mais de 6 milhões de novos postos de trabalho. Como se vê, isso não aconteceu. Mesmo que novas vagas tivessem surgido, a partir das novas modalidades de contratações precárias, era de se presumir que a renda do brasileiro não aumentaria, fato que agora se confirma. Aliás, tivemos até, como assinalei acima, um pequeno retrocesso na nossa capacidade de consumo. Isso sem considerarmos os nefastos impactos sobre o FGTS e a Previdência Social que os novos tipos de ajustes laborais provocam, com o rebaixamento da base de cálculo das contribuições. Apenas para ilustrar, segundo a Receita Federal, a arrecadação do INSS em março de 2018 foi 0,53% menor que a do mesmo mês no ano passado.
O tema me é muito caro. A ele me dediquei na universidade e no início do primeiro governo Lula. Gostaria de destacar que a precarização das relações laborais se dá – ao lado da terceirização e do trabalho intermitente – de uma forma bastante peculiar, que consiste na chamada “pejotização” do trabalhador. O Simples virou “simplérrimo” ou “empreendedor de si mesmo”: quem só tem a sua força de trabalho e a vende de maneira não-eventual a quem determina o quê, como, quando e onde deve fazer algo jamais pode ser considerado um empresário que exerce a livre iniciativa. Trata-se de fraude grotesca da relação de emprego, cujo único objetivo é reduzir as contribuições sociais e tributárias, tão necessárias à implementação de políticas públicas em prol do próprio trabalhador, de sua família e da sociedade como um todo.
O mais triste é ver que, apeado do governo, o PT que denuncia Temer não se dá conta do quanto as suas gestões também contribuíram para que chegássemos a esse estado de coisas. Da terceirização selvagem nas estatais federais Lula e Dilma nunca reclamaram. E quando o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.441/2011, que legitimou a “pejotização” de trabalhadores mais qualificados, as bancadas do PT na Câmara e do Senado não fizeram objeção alguma e a presidente Dilma Rousseff a sancionou sem nenhum drama de consciência. Os petistas insistem na velha conduta que não comporta autocrítica: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
Sandra Starling
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