sábado, 21 de setembro de 2024

Rumo à falência


Causaremos a nossa própria falência na busca vã por segurança absoluta
Dwight D. Eisenhower

'A infância é nossa'

Na discussão da Lei Áurea, em 1888, houve quem defendesse a ideia de abolir a escravidão em cada município que desejasse replicar o feito da cidade hoje chamada de Redenção, no Ceará, em 1884 — e não de modo nacional. Se essa ideia tivesse prevalecido, a escravidão provavelmente teria sobrevivido por décadas. Felizmente, o Império tratou a questão com um olhar para todo o país, de modo equânime. Na educação, porém, a República trata o país como soma de municípios, cada um cuidando de suas crianças de acordo com a vontade de prefeitos e a disponibilidade de recursos. Essa divisão deixou nossa educação entre as piores do mundo e certamente a mais desigual.


Os políticos e muitos educadores recomendam que a má qualidade e a desigualdade na educação de base sejam enfrentadas copiando, nos municípios que desejarem e tiverem recursos, as boas e ainda modestas experiências locais. Em 135 anos de República, nenhum presidente assumiu responsabilidade com a educação de base, sempre deixada para cada família e cada alcaide, desiguais na renda e na vontade política local, sem estratégia de longo prazo nem recursos federais. Quando se trata de vacina, energia, aeroportos, estradas, universidades e formação profissional, o Brasil é a unidade e os municípios são as partes. Quando se trata do ensino fundamental, a unidade tem sido o município. O Ministério da Educação cuida apenas do ensino superior e de raríssimas escolas federais.

Para nossas escolas terem a qualidade das melhores do mundo, seria preciso rever a visão da infância partida pelas unidades municipais. O caminho: tratar a infância como patrimônio nacional e principal vetor do progresso, substituindo as escolas municipais por escolas com padrão federal em todo o território nacional.

Há quase 100 anos, a campanha O Petróleo É Nosso tratou o recurso energético como nacional. Nunca houve o lema “A infância é nossa” para cuidar das crianças onde elas vivem. É ideia recusada por políticos e educadores tanto quanto foi a abolição ao longo de mais de 350 anos, desde o início do tráfico de escravos.

Não se aceita debater a ideia de nacionalização da responsabilidade com nossas crianças nem a consequente federalização da educação, livrando-a dos limites de renda da família e dos constrangimentos municipais. Argumenta-se que o Brasil é grande e diverso, na mesma lógica dos abolicionistas municipalistas em 1888. Esses, até com mais razão, porque economicamente a escravidão era mais necessária em alguns do que em outros municípios, mas a deseducação de cada criança gera um prejuízo nacional, não importa a cidade onde viva.

“O caminho seria substituir as escolas municipais por escolas com padrão federal em todo o país”

Um estudo de 2011 feito pelo Senado estimou que as escolas federais — técnicas, colégios militares, institutos de aplicação, Colégio Pedro II — colocariam a educação do Brasil entre as quinze melhores do mundo. A federalização da educação não se faria por um ato ou lei, mas por uma estratégia pela qual o governo federal espalharia as escolas, assumindo paulatinamente a responsabilidade sobre os sistemas municipais, até construir-se um sistema escolar nacional, com descentralização gerencial e liberdade pedagógica, mas com um padrão federal de qualidade.

O primeiro passo dessa estratégia, reafirme-se com insistência, é o Brasil gritar “A infância é nossa” e tratar nossas crianças como há quase 100 anos tratamos o petróleo.

Brasil, sociedade de castas

Em 2021, o grande jurista Modesto Carvalhosa, com a intenção de estimular o debate público sobre reforma da Constituição, publicou um denso projeto, com o subtítulo “De um país de privilégios para uma nação de oportunidades”.

Como toda a (minúscula) parcela pensante de nossa sociedade, o nobre jurista antevê nossos já inaceitáveis índices de desigualdade social afundando-se de vez numa desabrida sociedade de castas. Termo de origem incerta, o Dicionário Aurélio define casta como uma “camada hereditária e endógama, cujos membros pertencem à mesma etnia, profissão ou religião”, podendo o termo também designar, num plano mais geral, “raça, linhagem ou classe”. Ouso fazer uma ressalva a essa definição, que me parece distar anos-luz do conceito que ora nos interessa. Sociedades de casta são obscenamente desiguais e excludentes. Antepõem todos os obstáculos concebíveis à mobilidade social ascendente, mantêm-se virtualmente petrificadas e submetem as camadas mais baixas a extremos de humilhação.


Comecemos pelas etnias. No caso brasileiro, a referência imperativa é evidentemente a escravidão. O Brasil foi colonizado dentro do modelo econômico da monocultura de exportação, o que teria sido impossível sem a mão de obra escrava. Dada a escravidão, não se requer nenhuma argúcia para entender que os pretos estariam condenados a permanecer ao rés do chão durante séculos: menos escolarizados, sem condições adequadas de saúde e saneamento, e como alvos de um permanente preconceito. Vítimas preferenciais da violência policial e majoritários atrás das grades.

Mas vamos devagar com o andor. O Brasil é um país miscigenado. O maior grupo populacional são os “pardos” (terminologia do Censo), também designados como mulatos ou morenos. Nas duas pontas, os brancos e os pretos propriamente ditos. O que os define é a cor da pele, não o sinistro conceito do “pingo de sangue”, que leva os norte-americanos a considerar negros quem quer que tenha um minúsculo traço de “negritude”. Para eles, a candidata presidencial Kamala Harris, que para nós é manifestamente morena, é preta. E, felizmente, não adotamos a hipocrisia “politicamente correta” de os denominar “afro-americans”. Para nós, preto é preto, moreno é moreno, branco é branco. E nunca é demais lembrar que foi só em 1957, no episódio de Little Rock (Arkansas), que a segregação racial no transporte escolar foi proibida, por ordem da Suprema Corte.

Muito pior que a herança escravista, no Brasil, o que mais espanta é vermos a própria máquina do Estado, em vez de exercer uma influência igualitária, configurar-se cada vez mais como um obstáculo à mobilidade, vale dizer, um agravante da petrificação e das desigualdades. No passado, o segmento que mais se destacava nesse nefando papel era a advocacia. Hoje, com a “proletarização” dos bacharéis, as posições de poder mais influentes são as dos especialistas em economia e dos militares. Nessas duas áreas, podemos afirmar sem temor de errar que os filhos, com um regular preparo educacional, “herdarão” a condição de casta dos pais.

Analisar a participação do Judiciário nesse processo seria trabalho para meses. Com o beneplácito dos leitores, vou, pois, me limitar à contribuição prestada por Ricardo Lewandowski, um exímio conhecedor de certas áreas turvas da “Constituição Cidadã”. Qualquer primeiranista de Direito sabe que a Constituição permite aos juízes acumular os proventos precípuos da função judicante com aulas, ou seja, com atividades de ensino, em estabelecimentos para tal credenciados, seguindo o currículo vigente e procedendo à chamada nominal dos estudantes. Aulas, permitam-me sublinhar. Mas a Constituição absolutamente não permite acumular os proventos da função com palestras, que são exposições regiamente remuneradas, geralmente contratadas por grandes empresas, com o objetivo de esclarecer alguma matéria importante para suas atividades lucrativas. Pois bem: anos atrás, ocupando a presidência do Conselho Nacional de Justiça, o douto ministro Lewandowski decidiu que aula e palestra são a mesma coisa. Aberta, assim, a porteira, numerosos juízes passaram a atender a convites para palestras. Consta que muitos chegaram mesmo a constituir empresas para melhor organizar a gestão desse ramo de negócios. Em vez dos R$ 3 mil ou R$ 4 mil a que tinham (têm) direito como professores, passaram a auferir R$ 50 mil ou mais por hora, palestreando para públicos empresariais. Há quem afirme que algumas dessas palestras nem chegam a ser proferidas, servindo apenas como biombos para outros objetivos, entre os quais não descabe cogitar que se incluam lavagens de dinheiro.

Concluo com o óbvio. A máquina do Estado, em geral, e o Judiciário, em particular, parecem estar se transformando em engrenagens do nosso nascente sistema de castas. Sobre a base da pirâmide, quero dizer, as castas mais baixas, não há o que acrescentar. Sabemos todos que sobrevivem na mais cruel degradação, sem saber hoje se terão o que comer amanhã.