domingo, 5 de abril de 2020
O presidente perde poderes
Desde o início desta crise, Bolsonaro piorou. No episódio em que ele estimulou manifestações contra o Congresso, no domingo, 15 de março, o presidente foi aconselhado por várias pessoas do governo a não fazer isso, principalmente porque o surto do coronavírus estava entrando numa espiral. A uma das pessoas mais fiéis a ele no governo, e que sugeriu que ele desmobilizasse o ato, Bolsonaro deu uma resposta que revela bem o delírio persecutório em que vive mergulhado:
– Eu só tenho as ruas, a mídia quer me derrubar, o Rodrigo quer me derrubar, o Dória quer me derrubar. Eu não posso dizer para as ruas: vão pra casa. Eu preciso das ruas. Eu não estou estimulando, mas eles estão lá e eu abraço eles.
O Brasil estava entrando em período de grande padecimento e o que ocupava a cabeça do presidente era a ideia fixa de que todos são contra ele. E nem vê que as ruas estão se esvaziando. Ninguém é dono da rua, porque ela muda de lado.
Bolsonaro se perde em brigas laterais ou conflitos que ele mesmo inventa. Naquele primeiro pronunciamento em que disse que o Covid-19 era uma gripezinha, ele foi muito aconselhado dentro do Palácio a mudar o tom. Preferiu ouvir o grupo da milícia digital que tem sua sede dentro do próprio Palácio. Ele não apenas falou o que quis como continuou nas declarações rápidas demonstrando até a falta de empatia humana, ao tratar com desprezo as mortes ocorridas e por acontecer em decorrência da pandemia.
O pronunciamento da última terça-feira parecia uma mudança de rumo, mas o que houve de bom naquela fala foi enxertado pelos seus ministros. O objetivo de ir à TV que ele revelou à sua claque na porta do Palácio era disseminar a tese falsa de que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) defendia a volta ao trabalho. Corrigido no mesmo dia por Tedros Adhanon, e contido no conselho de governo, Bolsonaro mesmo assim usou indevidamente as declarações do secretário-geral da OMC.
Seu comportamento irresponsável diante da crise o deixa isolado e o torna periférico no seu próprio governo. Ele se consome de ciúmes dos subordinados que brilham. Mas até as decisões que toma para impor limites no seu ministério, como mudar o formato do briefing diário da saúde, está tendo efeito bumerangue. A cada dia se vê ministros indo lá e afirmando o oposto do que o presidente diz. O ministro Eduardo Ramos na sexta-feira agradeceu à imprensa e ao Congresso e disse que tem falado com os estados, o ministro Mandetta várias vezes reforçou a orientação dos governadores, a ministra da Agricultura desmentiu que houvesse risco de desabastecimento.
O Congresso, os economistas, a imprensa, os médicos, os infectologistas, os governadores e os prefeitos empurraram o executivo na direção certa do distanciamento social, da ampliação da rede de proteção social aos mais vulneráveis, do aumento dos gastos com saúde. E agora a sociedade cobra prazos de execução das medidas, principalmente no socorro a quem mais precisa. As ameaças do presidente de determinar a volta ao trabalho estão sendo contidas pelas alertas da Justiça. Se baixar a ordem de volta à atividade, o Supremo impedirá. E isso com base no direito à saúde consagrado na Constituição e no princípio de que saúde pública é atribuição compartilhada entre União, estados e municípios. O país vai se governando. Ao presidente, resta o teatro na porta do Alvorada para uma claque cada vez mais reduzida e os robôs controlados pelo filho 02.
O bonito da democracia é isso: ela encontra seu caminho, mesmo nas piores situações como a que vivemos.
'Aliens dentro do planeta'
O Estado (França) passou a ter de pensar em termos de rentabilidade, quando, na realidade, as suas despesas são gastos sociais, para o bem-estar de seu cidadão. Em uma economia como a brasileira hoje, só se pensa no lucro das empresas. O bem-estar dos trabalhadores e da grande maioria da população não interessa. Interessa é o conceito de rentabilidade aplicado às finanças públicas de uma nação, o que não pode funcionar.
Vamos ter de voltar a pensar em nossa produção de riqueza para o bem-estar da humanidade, e não para o lucro, a superficialidade e a acumulação de riquezas de um pequeno grupo. O Estado vai ter de começar a funcionar seriamente como Estado, voltado para o povo, para as questões mais essenciais
A pandemia junta-se à pobreza
A solidariedade além fronteiras, pregada com insistência pela Organização Mundial da Saúde (OMS), vem sendo exercida principalmente por meio do FMI, de forma quase imperceptível para a maioria dos governos e das pessoas. Já empenhado na tarefa de socorro, o Fundo tenta mobilizar dinheiro para manter em US$ 1 trilhão sua capacidade de empréstimo. O governo dos Estados Unidos já se comprometeu com esse esforço.
Na maior economia da América Latina, o Brasil, o governo tenta enfrentar a crise com políticas excepcionais, aumento do gasto e suspensão, até o fim do ano, das normas orçamentárias. Parte do arsenal depende da aprovação, ainda, de um projeto de emenda constitucional para criação de um orçamento “de guerra”. O projeto foi para o Senado.
No Brasil, o isolamento parece estar servindo para frear o contágio. Recomendado por autoridades sanitárias e pela maioria dos governadores, com apoio de prefeitos, esse cuidado foi aceito por milhões de famílias, contra a opinião do presidente da República. O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, também menosprezou inicialmente a pandemia, mas acabou recuando. Decretou estado de emergência sanitária e suspendeu certo número de atividades.
A quarentena foi imposta quase sem exceção nos demais países latino-americanos. Alguns governos, como os da Argentina, do Peru e da Colômbia, logo definiram penalidades, como prisão ou multa para os violadores do isolamento. De modo geral, os procedimentos aconselhados pela OMS vêm sendo seguidos.
Até o governo de Nicolás Maduro se mostra alinhado, mas a situação da Venezuela é uma das mais preocupantes, por causa da enorme escassez de bens essenciais e do enorme empobrecimento da maior parte da população. Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega continua negando a gravidade da pandemia. Até o campeonato nacional de futebol foi mantido. Essa ideia parece ter escapado ao presidente Jair Bolsonaro e a seus seguidores mais entusiasmados. Mas haveria na CBF alguém disposto a apoiar a manutenção dos jogos?
A pobreza, no entanto, pode limitar o alcance da política de isolamento seguida na maior parte dos Estados e nas cidades médias e grandes. Boa parte da população vive em habitações apertadas. Isso ocorre mesmo em grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo. No caso das famílias mais pobres, um só quarto pode abrigar até mais de cinco pessoas. As pessoas mais velhas ou mais vulneráveis podem até ficar em casa, mas outras continuam trabalhando ou saem de casa, de toda forma, em busca de alguma oportunidade ou de algum dinheiro. O risco de contágio é bem maior para essas famílias.
A vantagem de conhecer a experiência de outros países – e a importância do isolamento – é diminuída, portanto, pela desigualdade social e pela pobreza encontradas na maior parte da América Latina.
Em mais este aperto, latino-americanos, africanos, asiáticos e europeus (fora da União Europeia) já recorreram ao FMI. Os novos problemas vêm sendo tratados como ameaças muito sérias por entidades como o FMI, o Banco Mundial e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nenhum dirigente dessas entidades fala em “gripezinha” ou histeria. Todos esses dirigentes têm respeitáveis currículos nas áreas de gestão pública e todos falam corretamente mais de um idioma, a começar, é claro, pelo próprio.
Longe do centro do universo
Com a quebra do consumo, a produção de lixo plástico diminuiu, para alívio dos rios e mares que o recebem, com o que os peixes, aves e tartarugas ganharam uma chance. Com fábricas inativas e chaminés apagadas, a qualidade do ar também melhorou, inclusive para quem o empesteia. Sem a presença do homem, era inevitável que nossos companheiros de planeta se sentissem seguros para deixar suas tocas e vir dar uma olhada aqui fora. Mas tolos serão se acharem que isso durará para sempre. Tudo ficará sem efeito assim que a vida entrar de novo em ação, de mãos dadas com sua velha parceira —a morte.
O que estamos aprendendo hoje é que, com ou sem a Covid-19, o mundo não acabará, mesmo porque o coronavírus, por mais recém-chegado, faz parte dele. Quem pode acabar um dia é o homem, e, se isso acontecer, o planeta seguirá em frente, com um quorum mais do que suficiente de espécies para continuar vivo e pulsante.
Isso nos fere a vaidade e põe em xeque a antiga ideia-feita, herdada dos gregos e nunca bastante desmoralizada, que entroniza o homem no centro do universo. A atual crise demonstra que, longe de ser o centro, não somos nem periféricos.
O planeta pode passar sem a "Divina Comédia", "Hamlet", a "9ª Sinfonia", "O Pato Donald" e outras criações do espírito humano. Nós é que não podemos passar nem três minutos sem uma função que sempre demos de barato e o vírus está nos ensinando como é cara: respirar.Ruy Castro
Eles não ligam pra gente
Nestes tempos de coronavírus parece que tudo mundo está fazendo home office. Parece. Pois, na realidade, o home office aqui, na Alemanha, ganhou uma nova conotação. Se antes era visto como um instrumento para conciliar trabalho e família, hoje é considerado um refúgio dos privilegiados.
"Esses privilegiados à noite saem nas varandas para aplaudir a nova elite do país", escreveu o jornal semanal Die Zeit. A "nova elite" a que o jornal se refere são profissionais que, há até bem pouco tempo, eram pouco valorizados: o auxiliar de enfermagem que trabalha sem material de proteção. O agente funerário, que se depara com um luto nacional. Os profissionais de limpeza que desinfetam ruas e hospitais.
São os caminhoneiros, que garantem o abastecimento nos supermercados. Os caixas, que atendem os clientes sob o risco de serem contaminados. O trabalhador rural, que planta e colhe. O entregador de comida, o condutor de ônibus, o policial, os cuidadores, educadores, professores e, sobretudo, os profissionais da saúde.
Na Alemanha, todos esses profissionais são agora "essenciais". A epidemia mostrou que são eles que põem o país para funcionar. Será que, desta vez, com toda essa valorização, o salário desses profissionais "essenciais" finalmente vai aumentar?
Esse debate me lembra de uma música famosa do Michael Jackson: They don't care about us (Eles não ligam pra gente), sobre a discriminação da população pobre no mundo inteiro. O vídeo da música foi produzido em fevereiro de 1996 no Brasil. Uma parte foi filmada no Pelourinho, em Salvador, com o apoio do grupo Olodum. A outra parte foi gravada na favela Dona Marta, no Rio de Janeiro.
Nesse vídeo, os percussionistas do Olodum deram um show de ritmo, suingue, ginga e orgulho negro. Michael Jackson, pálido e magro, cantou e dançou no meio deles, e ficou bem claro: sem a participação brasileira, a música de Michael Jackson não anda, o clipe não tem força nem animação.
Me lembrei desse videoclipe, dirigido pelo famoso Spike Lee, agora no meio da crise do coronavírus. Michael Jackson quis valorizar a cultura negra no Brasil, quis mandar um sinal contra a discriminação e a pobreza. Ele saiu dando beijinhos nos becos da Dona Marta e no Pelourinho. Ele declarou seu amor pelo Brasil. Ele vestiu a camisa do Olodum e dançou no telhado dos barracos.
Depois de ter gravado cenas coloridas e impactantes, Michael viu as vendas do single dispararem. Na Europa, They don't care about us conquistou os primeiros lugares nos charts e recebeu disco de ouro. A fama de Michael Jackson cresceu, mas a pobreza na Dona Marta e nas ruas de Salvador da Bahia continuou.
O coronavírus deixou essas profundas rachaduras sociais novamente evidentes. A "nova elite" pode até ganhar palavras de elogio, mas continua ganhando uma miséria. Continua morando em favelas dominadas pelo tráfico, continua sem plano de saúde, sem previdência ou proteção trabalhista.
Corona tem classe, quarentena tem classe, na Alemanha como no Brasil. E músicos, políticos e pastores que criticam essa injustiça social e ao mesmo tempo tentam se promover em cima disso, infelizmente não contribuem para mudar esse quadro. É o sucesso da hipocrisia: criticar "a velha elite" e ao mesmo tempo pertencer à ela e defender os seus interesses.
"They don't care about us? They should care about us. The will care about us". Em vez de esperar um reconhecimento que nunca vem, é melhor que a "nova elite" brigue e conquiste seus direitos, que são mais do que merecidos.
O coronavírus ainda pode levar a mudanças imprevisíveis.
Astrid Prange de Oliveira
Francisco de todos
O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor; a redescobrir que a vida não serve, se não se serve.
(...)
Queridos amigos, olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida
Papa Francisco
O povo não é bobo
O melhor do Brasil é o brasileiro. A frase que virou título de série global é batida, lugar comum. Mas em tempos de pandemia é inevitável reincidir nela. E no plural: os brasileiros.
Por aqui, no auge do corte de recursos federais, pesquisadores conseguem sequenciar o genoma do novo coronavírus em tempo recorde, engenheiros desenvolvem respiradores de baixo custo, outros criam aplicativos que podem salvar vidas. Mais: na contramão das expectativas do presidente Jair Bolsonaro, a maioria dos brasileiros crê na ciência e não nas trevas.
Só perdeu. Para governadores, prefeitos, para o seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para os panelaços de todas as noites, desde meados de março.
Sua caneta Bic, da qual ele tanto se vangloria, passou a nada valer diante da credibilidade que seu ministro alcançou.
Médico conservador, enrolado em pendengas judiciais, antiabortista e bolsonarista de primeira hora, Mandetta ganhou popularidade por dar razão à ciência e não ao achismo. Para o chefe, tornou-se um inimigo.
Os governadores e prefeitos que optaram pela linha da razão também viram suas aprovações crescerem. Uma prova de que mais do que cicrano ou beltrano, o brasileiro tem dado crédito a quem decide com responsabilidade e critério científico.
Dias antes, outra consulta popular já atacara com força o fígado do presidente. Os brasileiros, a maioria deles, demonstraram o valor que conferem ao jornalismo profissional. Sobre o Covid-19, 61% creditam informações à TV, 56% aos jornais impressos e 50% às emissoras de rádio. Apenas 12% dão bola para as redes sociais, mídia predileta do presidente e dos seus.
Negar a ciência acentua a demência de Bolsonaro. Ele incentiva a ignorância embora saiba perfeitamente as consequências de seus desatinos. Pouco importa, desde que consiga se eximir da responsabilidade pelo colapso do sistema de saúde, pelas mortes que virão, pela recessão sem precedentes que o país deverá experimentar. Age para tirar seu corpo fora e jogar o fardo em outros ... nos seus ministros da Saúde, da Economia, da Justiça, nos governadores e prefeitos, no Congresso e no Judiciário.
Todos serão culpados, menos ele.
Para além das terríveis consequências da pandemia – morte de milhares, famílias imersas na tristeza, desemprego, empobrecimento, fome, recessão -, há um recado que já pode ser captado: o brasileiro não é tolo. Ainda que nos extremos existam rebanhos fiéis, a maioria não é gado e não topa ser tratado como tal. É valente, faz sacrifícios, é solidário. Mas exige informação, respeito, tratamento digno. Sabe que a Covid-19 não é coisa de Satanás e quer muito mais do que um jejum religioso para que o país “fique livre desse mal”.
Por aqui, no auge do corte de recursos federais, pesquisadores conseguem sequenciar o genoma do novo coronavírus em tempo recorde, engenheiros desenvolvem respiradores de baixo custo, outros criam aplicativos que podem salvar vidas. Mais: na contramão das expectativas do presidente Jair Bolsonaro, a maioria dos brasileiros crê na ciência e não nas trevas.
Antes da pandemia, Bolsonaro, que já iniciara o ano em baixa ao entregar um PIB de apenas 1,1%, amplificou a sua já conhecida paranoia. Só enxergava inimigos, mesmo entre aqueles que juravam fidelidade. Aprontou com os ministros Sérgio Moro e Paulo Guedes, colidiu com o Congresso e o Supremo.
O Covid-19 multiplicou tanto sua síndrome de perseguição crônica que Bolsonaro não conseguiu enxergar outra doença à sua frente, quanto mais a gravidade do surto. Insistiu em um discurso alienígena, desconectado da OMS e do conhecimento científico. Tentou plagiar Donald Trump e não soube dar o cavalo de pau habilmente praticado pelo presidente dos Estados Unidos.
Só perdeu. Para governadores, prefeitos, para o seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para os panelaços de todas as noites, desde meados de março.
Pesquisa Datafolha, publicada sexta-feira, apontou Mandetta com 76% de aprovação popular. Mais do que o dobro dos 33% de Bolsonaro, que também viu sua rejeição avançar 6 pontos percentuais. A fervura de inveja e ódio que no dia anterior levou Bolsonaro a humilhar o ministro em entrevista à rádio Jovem Pan deve ter borbulhado entre o desejo de demiti-lo sumariamente e as amarras de não poder fazê-lo.
Sua caneta Bic, da qual ele tanto se vangloria, passou a nada valer diante da credibilidade que seu ministro alcançou.
Médico conservador, enrolado em pendengas judiciais, antiabortista e bolsonarista de primeira hora, Mandetta ganhou popularidade por dar razão à ciência e não ao achismo. Para o chefe, tornou-se um inimigo.
Os governadores e prefeitos que optaram pela linha da razão também viram suas aprovações crescerem. Uma prova de que mais do que cicrano ou beltrano, o brasileiro tem dado crédito a quem decide com responsabilidade e critério científico.
Isso já ficara claro em outra pesquisa, no dia 24, também do Datafolha, quando 73% se disseram a favor de os governos proibirem a circulação das pessoas. Entenderam que ficar em casa era a melhor forma de protegerem a si a aos outros. Apenas 24% foram contra.
Dias antes, outra consulta popular já atacara com força o fígado do presidente. Os brasileiros, a maioria deles, demonstraram o valor que conferem ao jornalismo profissional. Sobre o Covid-19, 61% creditam informações à TV, 56% aos jornais impressos e 50% às emissoras de rádio. Apenas 12% dão bola para as redes sociais, mídia predileta do presidente e dos seus.
Negar a ciência acentua a demência de Bolsonaro. Ele incentiva a ignorância embora saiba perfeitamente as consequências de seus desatinos. Pouco importa, desde que consiga se eximir da responsabilidade pelo colapso do sistema de saúde, pelas mortes que virão, pela recessão sem precedentes que o país deverá experimentar. Age para tirar seu corpo fora e jogar o fardo em outros ... nos seus ministros da Saúde, da Economia, da Justiça, nos governadores e prefeitos, no Congresso e no Judiciário.
Todos serão culpados, menos ele.
Para além das terríveis consequências da pandemia – morte de milhares, famílias imersas na tristeza, desemprego, empobrecimento, fome, recessão -, há um recado que já pode ser captado: o brasileiro não é tolo. Ainda que nos extremos existam rebanhos fiéis, a maioria não é gado e não topa ser tratado como tal. É valente, faz sacrifícios, é solidário. Mas exige informação, respeito, tratamento digno. Sabe que a Covid-19 não é coisa de Satanás e quer muito mais do que um jejum religioso para que o país “fique livre desse mal”.
Saindo dos trilhos
Dias atrás, um engenheiro da malha ferroviária do porto de Los Angeles, na Califórnia, pirou. Eduardo Moreno, de 44 anos, convencera-se de que a missão oficial do navio-hospital USNS Mercy,enviado pela Marinha para aliviar a profusão de infectados na Costa Leste, era mera operação de fachada. A embarcação seria, na verdade, parte de um golpe de Estado em curso. Por isso, ele resolveu agir: manteve um trem não tripulado da zona portuária em velocidade máxima, para muito além do final dos trilhos, e causou um estrondoso estrago monumental — a composição destruiu primeiro uma barreira de concreto, atropelou uma proteção de aço, e prosseguiu por vasta área de cascalho até parar. À polícia o autor justificou assim o rompante que pode lhe valer uma pena de até 20 anos: “Era a chance que eu tinha para chamar a atenção das pessoas sobre o que está realmente acontecendo aqui”.
Não se pode atribuir a insanidade do engenheiro ao coronavírus. Mas, à medida em que a humanidade sai dos trilhos pré-Covid 19, é de se prever que o planeta se torne mais propício a insânias individuais e coletivas.
Não se pode atribuir a insanidade do engenheiro ao coronavírus. Mas, à medida em que a humanidade sai dos trilhos pré-Covid 19, é de se prever que o planeta se torne mais propício a insânias individuais e coletivas.
Daí a importância de se manter sob rédea curta governantes inseguros no poder, destemperados por índole e/ou despreparados para apontar o rumo em tempos de perigo e medo global. As limitações e inclinações inerentes a cada dirigente tendem a se acentuar à medida que a espiral da calamidade for adquirindo forma mais cruel. Por enquanto, em países onde essa espiral está apenas começando, a real capilaridade do vírus e seu potencial de destruição apontam em uma única direção: dias piores virão.
Nas Filipinas do presidente Rodrigo Duterte, que sofre de várias insuficiências democráticas e comanda com poder quase absoluto o país de mais de 100 milhões de habitantes, a solução para o complexo problema atual é simples: as forças policiais e militares têm ordem de atirar para matar quem descumprir a quarentena imposta. Ponto. Não tem ministro da Saúde, governadores nem imprensa em condições de lhe fazer frente.
Já Estados Unidos e Brasil têm mais sorte: por força da necessidade e do gigantismo da crise, Donald Trump e Jair Bolsonaro optaram por terceirizar o problema, que acabou em mãos de quem não comunga das crenças e disparates dos dois presidentes. Trump e Bolsonaro acreditaram poder desresponsabilizar-se da marcha da pandemia içando a primeiro plano dois personagens que não poderiam ser mais diferentes entre si — o nova-iorquino Anthony Fauci, a maior autoridade americana em infectologia, e, aqui, o deputado formado em Ortopedia Luiz Henrique Mandetta, atual ministro da Saúde. Ambos conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista do combate ao coronavírus. Ambos, também, começam a pagar por isso.
Esta semana o franzino e bem-humorado Dr. Fauci , que já serviu a vários ocupantes da Casa Branca e chegou aos 79 anos de idade com biografia estelar, passou a precisar de proteção extra de agentes de segurança. Tem recebido ameaças de morte em demasia por parte de seguidores de Donald Trump. Em Brasília, Mandetta cometeu o pecado capital de seu Ministério da Saúde ter ultrapassado o presidente em aprovação na condução do combate ao vírus. Não só ultrapassou, esmagou: 76% a 33%, segundo o último Datafolha.
Sobreviver nessa dislexia nacional não tem sido fácil nos dois países. Em Washington, Donald Trump consegue embaralhar uma frase que começa com “Isto não é uma crise financeira, é apenas um momento temporário no tempo” com o anúncio da injeção de US$ 1 trilhão na economia do país. Em Brasília o comportamento de Jair Bolsonaro é ainda mais errático, sempre que tem um microfone pela frente. Para não concluir de forma sorumbática, vale recorrer às memórias de um generoso humanista do século 20, o escritor Paul Goodman. “Esperança é o contrapeso para o nosso enorme sentido de vulnerabilidade”, escreveu em suas memórias. “É a nossa permanente negociação entre otimismo e desesperança, a contínua negação do cinismo, ingenuidade. Temos esperança justamente por termos consciência de que eventos tenebrosos são sempre possíveis e não raro prováveis. Mas as escolhas que fazemos podem impactar o seu desenlace”.
Dorrit Harazim
Dorrit Harazim
Depois da tempestade, virá a bonança?
No texto bíblico está dito: “Depois da tempestade vem a bonança”. Mas não é sequência automática. Depende de como cada um vivencia os momentos de sofrimento, do aprendizado que cada um faz e da mudança de atitude posterior aos tempos de angústia.
O mundo inteiro está mergulhado em um momento desafiador. A presente crise promove a combinação perversa entre a violenta pandemia e o fantasma de uma crise econômica inédita e devastadora.
O vírus, além de seu efeito voraz sobre vidas humanas, produz uma lição de humildade aos governantes. O quão ilusório é o poder? Seu alcance pretensamente ilimitado esbarra, às vezes, quase na impotência. Até os mais autoritários líderes mundiais dobraram o joelho. Recomendo o filme “Flu”, na Netflix: uma reflexão, no ambiente de uma epidemia, sobre como, em situações limites e radicais, decisões políticas dramáticas podem salvar ou sacrificar vidas.
Quem sabe as crises, e não a violência, sejam as parteiras da história? Em linguagem corrente: “como fazer do limão a limonada?”. A meu juízo, tudo vai depender do aprendizado pessoal, familiar e social que construirmos.
Será que perceberemos que, mais do que nunca, estamos integrados em uma “aldeia global”? Que as fronteiras são realidades históricas, políticas, institucionais, mas que não resistem a um vírus agressivo e indisciplinado que nasce na China, invade a Europa, assusta os EUA e se dissemina pelo Hemisfério Sul? Será idealismo ou aprendizado necessário reencontrar com a nossa natureza universal de seres humanos e imaginar um mundo mais fraterno e pacífico?
Será que perceberemos que, diante de uma pandemia quase indomável, as barreiras entre ricos e pobres desmoronam? É evidente que os pobres têm uma situação muito mais vulnerável. Mas o vírus não seleciona por faixa de renda ou patrimônio. Afinal, o epicentro da epidemia na Itália não foi a Lombardia, sua região mais rica? Quem sabe fica o aprendizado e o compromisso coletivo com o combate aos privilégios e às desigualdades?
Será que a crise da Covid-19 deixará um legado de humildade, diálogo, entendimento e convivência respeitosa entre as lideranças políticas brasileiras? Será que descobriremos a quase inutilidade dessa guerra ideológica polarizada e de má qualidade, quando a política na democracia é exatamente a construção de consensos progressivos em ambiente plural de divergências, tendo o diálogo, aberto e franco, como ferramenta? Até aqueles que, se achando plenipotenciários, enfrentaram as evidências e a ciência, se dobraram à realidade. Será que aprenderemos que ninguém é dono da verdade? Até agora, ninguém têm a verdade absoluta sobre o vírus, apesar de todo o empenho da comunidade científica. Não temos vacina, remédios com eficácia comprovada, explicações exatas sobre a dinâmica da propagação.
Será que depois da crise valorizaremos e daremos mais atenção ao sistema de saúde e aos seus profissionais, sobretudo ao SUS? Cansei de enfrentar situações no Congresso onde a repercussão da voz da bancada da saúde era diminuta, sempre abafada por outras bancadas temáticas ou setoriais. Será que enfrentaremos de vez o crônico subfinanciamento do SUS e seus gargalos?
Transformar a tempestade em bonança depende de nós, essencialmente do nosso aprendizado.
O mundo inteiro está mergulhado em um momento desafiador. A presente crise promove a combinação perversa entre a violenta pandemia e o fantasma de uma crise econômica inédita e devastadora.
O vírus, além de seu efeito voraz sobre vidas humanas, produz uma lição de humildade aos governantes. O quão ilusório é o poder? Seu alcance pretensamente ilimitado esbarra, às vezes, quase na impotência. Até os mais autoritários líderes mundiais dobraram o joelho. Recomendo o filme “Flu”, na Netflix: uma reflexão, no ambiente de uma epidemia, sobre como, em situações limites e radicais, decisões políticas dramáticas podem salvar ou sacrificar vidas.
Quem sabe as crises, e não a violência, sejam as parteiras da história? Em linguagem corrente: “como fazer do limão a limonada?”. A meu juízo, tudo vai depender do aprendizado pessoal, familiar e social que construirmos.
Será que perceberemos que, mais do que nunca, estamos integrados em uma “aldeia global”? Que as fronteiras são realidades históricas, políticas, institucionais, mas que não resistem a um vírus agressivo e indisciplinado que nasce na China, invade a Europa, assusta os EUA e se dissemina pelo Hemisfério Sul? Será idealismo ou aprendizado necessário reencontrar com a nossa natureza universal de seres humanos e imaginar um mundo mais fraterno e pacífico?
Será que perceberemos que, diante de uma pandemia quase indomável, as barreiras entre ricos e pobres desmoronam? É evidente que os pobres têm uma situação muito mais vulnerável. Mas o vírus não seleciona por faixa de renda ou patrimônio. Afinal, o epicentro da epidemia na Itália não foi a Lombardia, sua região mais rica? Quem sabe fica o aprendizado e o compromisso coletivo com o combate aos privilégios e às desigualdades?
Será que a crise da Covid-19 deixará um legado de humildade, diálogo, entendimento e convivência respeitosa entre as lideranças políticas brasileiras? Será que descobriremos a quase inutilidade dessa guerra ideológica polarizada e de má qualidade, quando a política na democracia é exatamente a construção de consensos progressivos em ambiente plural de divergências, tendo o diálogo, aberto e franco, como ferramenta? Até aqueles que, se achando plenipotenciários, enfrentaram as evidências e a ciência, se dobraram à realidade. Será que aprenderemos que ninguém é dono da verdade? Até agora, ninguém têm a verdade absoluta sobre o vírus, apesar de todo o empenho da comunidade científica. Não temos vacina, remédios com eficácia comprovada, explicações exatas sobre a dinâmica da propagação.
Será que depois da crise valorizaremos e daremos mais atenção ao sistema de saúde e aos seus profissionais, sobretudo ao SUS? Cansei de enfrentar situações no Congresso onde a repercussão da voz da bancada da saúde era diminuta, sempre abafada por outras bancadas temáticas ou setoriais. Será que enfrentaremos de vez o crônico subfinanciamento do SUS e seus gargalos?
Transformar a tempestade em bonança depende de nós, essencialmente do nosso aprendizado.
Modelo de civilização no fim
Esta crise sanitária é sinal de uma crise civilizatória. Vivemos o fim de um paradigma, e isso ficou ainda mais evidente agora, com a presença da morte a nos rondar.
Há cerca de 15 anos, analiso a saturação desse modelo progressista, que é o grande modelo da civilização moderna. Para mim, ele está acabando agora. A epidemia atual tem uma expressão simbólica nesse sentidoMichel Maffesoli, sociólogo autor de livros como “Apocalipse” e “A palavra do silêncio”, e membro do Instituto Universitário Francês
Aproveite esse recesso forçado e avalie o que você está fazendo para melhorar o mundo
Aliás, antes de saber da existência dessa corrente de pensamento, já tinha me passado pela cabeça a possibilidade de a Terra ser parte de um organismo vivo que está sendo estragado pela insanidade humana.
Com toda certeza, diante da imensidão do Universo, somos tão insignificantes quanto um reles protozoário, que se alimenta de seres vivos.
Há relatos que desde o século XVIII cientistas alemães e britânicos estudavam essa hipótese, que também atraiu pesquisadores russos no século XIX. Mas a popularidade da teoria é recente, surgiu a partir de 1972, com a publicação dos estudos do cientista britânico James Lovelock, após participar de uma equipe da NASA que pesquisou a possibilidade de vida em Marte.
A pesquisa de Lovelock foi fortalecida pela colaboração expressiva da microbióloga norte-americana Lynn Margulis. Os dois estudaram a surpreendente composição da atmosfera terrestre, muito diferente da esperada para um planeta entre Vênus e Marte (a zona habitável do Sistema Solar).
Por conter grandes quantidades de gases como oxigênio, óxido nitroso (protóxido de nitrogênio, também conhecido como gás hilariante) e metano, a composição da atmosfera terrestre derivaria da interferência dos organismos vivos sobre o ambiente inorgânico.
Lovelock e Margulis então partiram do princípio de que, sendo a Terra um planeta deserto como os outros, o fenômeno da vida, após surgir, foi se adaptando até controlar o ambiente inorgânico.
E assim o ambiente foi se modificando, para que a vida pudesse se perpetuar, formando-se um sistema complexo e autorregulante que até confirmaria a Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin, embora os darwinistas não aceitem a hipótese de Gaia, como passou a ser chamada a teoria de Lovelock e Margulis, em homenagem à deusa que representa a Terra na mitologia mitologia grega, responsável pela criação do mar (Ponto), do céu (Urano) e das montanhas (Ourea)..
Diante de uma ameaça como a covid-19, que é superável, devemos entender que passa a ser mais concreta a hipótese de que, caso a Terra continue a ser agredida pela destruição do ambiente e pela poluição, possa surgir uma pandemia ainda mais resistente, que chegue a colocar em risco o futuro da humanidade, que já está mais do que ameaçado por um conflito nuclear.
Nesse recesso a que estamos sendo forçados, não custa pensar um pouco sobre o milagre da vida e também sobre a destruição predatória do meio ambiente pelos seres humanos, que conseguiram criar uma sociedade totalmente injusta aqui no Brasil, onde os detentores da riqueza total ainda acreditam ser possível conviver harmonicamente com a miséria absoluta.
Mas isso “non ecziste”, como diria Padre Quevedo, que certamente estaria decepcionado pelos insatisfatórios resultados da chamada evolução humana.
Não há boas notícias falsas
Sou cético por natureza e treinamento. Contudo, fui um dos muitos trouxas que acreditou na falsa notícia, largamente difundida pelas redes sociais, segundo a qual os canais de Veneza estariam hoje tão limpos que os golfinhos haviam regressado, juntamente com bandos de cisnes e brilhantes cardumes de peixes.
Também acreditei na alegre pitonisa espanhola, que, em dezembro do ano passado, teria previsto a pandemia em curso. Uma rápida investigação logo confirmou que também esta é uma notícia falsa. O fato é que nenhum astrólogo foi capaz de adivinhar a tragédia em que o mundo está mergulhado. Os melhores profetas foram, afinal, os cientistas, que há vários anos vinham advertindo para a possibilidade de um evento desta natureza.
Confinados à inquietação do presente, queremos notícias que nos confortem — ainda que falsas. Os autores dessas notícias são como aquelas mães que iludem os filhos durante os bombardeamentos: “É só fogo de artifício, filhinho. Você pode dormir descansado.”
Também acreditei na alegre pitonisa espanhola, que, em dezembro do ano passado, teria previsto a pandemia em curso. Uma rápida investigação logo confirmou que também esta é uma notícia falsa. O fato é que nenhum astrólogo foi capaz de adivinhar a tragédia em que o mundo está mergulhado. Os melhores profetas foram, afinal, os cientistas, que há vários anos vinham advertindo para a possibilidade de um evento desta natureza.
Anseio por boas notícias, como um menino, fechado em casa, anseia pelo sol lá fora. Tento ver o lado bom de tudo o que é mau. Gosto de pensar, inclusive, que há em todas as pessoas ruins uma parte que se esforça por ser boa. Infelizmente, isso nem sempre acontece. Existem acontecimentos absolutamente maus, da mesma forma que existem pessoas integralmente perversas, os famosos canalhas esféricos: por qualquer ângulo que os olhemos são de uma maldade honesta e consistente. Jair Bolsonaro é uma dessas pessoas — um homem fiel a cada um dos seus defeitos.
Lúcifer, como o próprio nome denuncia, tem contra si um passado de luz: desgraçadamente já foi um anjo, já foi bom. Aquele santo passado arruína-lhe a má reputação, duramente construída ao longo dos vastos milênios, nas profundezas do Inferno. Jair Bolsonaro, pelo contrário, foi sempre mau, nunca ninguém lhe ouviu uma palavra inteligente, o brilho de uma frase decentemente construída, um elogio sincero a um homem bom, um arrependimento genuíno por uma falha qualquer. Nenhuma qualidade — uma única! — mancha o íntegro negrume daquela sólida alma de atleta do mal. Lúcifer morre de inveja dele.
Confinados à inquietação do presente, queremos notícias que nos confortem — ainda que falsas. Os autores dessas notícias são como aquelas mães que iludem os filhos durante os bombardeamentos: “É só fogo de artifício, filhinho. Você pode dormir descansado.”
Ou talvez não.
O que move estes falsários de um apocalipse feliz? Será que, como os vulgares escritores, os cineastas, os dramaturgos, desejam apenas contar uma história tão boa que, embora inacreditável, as pessoas acreditem nela?
Não me parece. O mais provável é que quem cria estas notícias supostamente positivas, sejam exatamente os mesmos grupos responsáveis por todas as restantes notícias falsas que inundam as redes sociais. Não há boas notícias falsas. O que há é desinformação, ou, dito de uma outra forma, terrorismo informativo. O que estes grupos pretendem é implodir a realidade, para depois surgirem, em meio ao caos, como cavaleiros da ordem e do progresso.
A imprensa tradicional ocupa a linha da frente no combate contra esta nova forma de terrorismo. Ler jornais, comprar jornais, transformou-se numa urgente forma de resistência contra a estupidez e o totalitarismo. Não, não gosto que me mintam.
José Eduardo Agualusa
José Eduardo Agualusa
A peste e o monstro
Vejo notícias de antílopes, javalis, cervos, vacas, bodes e cabras da montanha ocupando cidades e praias hoje vazias de gente. Enquanto nos sentimos roubados, eles talvez se sintam restituídos. O fato de as crianças em geral serem poupadas da varredura letal dessa pandemia talvez seja a terra agindo, em cumplicidade com os bichos, por um mundo novo, agora sem sutilezas.
Então revejo o papa na praça São Pedro falando sobre o tempo do nosso juízo, sobre o que conta e o que passa, sobre a gente comum e anônima que sempre teceu a continuidade das nossas vidas. O papa sendo ouvido por milhões desde uma praça inóspita, o santo no centro do silêncio da escuta, as almas em roda ali para ouvi-lo onde só vemos o azulado vazio que brilha num fim de tarde sob uma chuva fina.
Quando minha filha adormece, invariavelmente longe da cama, eu a tomo nos braços com uma força que já nem é minha, e por um minuto assume a nossa forma a imagem de um socorro milenar, que, para se desenhar, não nos consulta se cremos ou não cremos. Tudo o que me importaria salvar tem rosto e respira. Dorme, meu amor, que essa peste há de passar um dia. Dorme sem medo, que, a essa hora, até o monstro já está sonhando com seu fim.
Mariana Ianelli
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