Em um momento em que as sociedades democráticas enfrentam tantos desafios, sejam eles ambientais, econômicos ou tecnológicos, a França, a Europa e a América Latina têm uma oportunidade histórica de se reunirem em torno de um mesmo ideal, de uma mesma concepção do universalismo e da dignidade humana, de uma mesma vontade de agir para o bem comum.
Nós travamos essa luta no passado. Dessa história nós não nos esquecemos. Ela nos inspira. Ela nos lembra que os Libertadores, movidos pelo sopro da Revolução Francesa e por um vento de liberdade, lutaram com bravura pela independência de todo um continente.
No ano passado, minhas duas viagens à América Latina me mostraram, a cada encontro, o quanto essa história continuava a ser escrita todos os dias. E 60 anos após a viagem histórica do general Charles De Gaulle, devemos continuar a defender essa visão combativa e humanista do nosso destino comum diante das grandes mudanças de nosso tempo.
Entre tantos desafios, nós também nos questionamos, da mesma forma que vocês, sobre o lugar que os espaços digitais ocupam em nossas vidas [bem] reais, o impacto da inteligência artificial sobre elas e, de forma mais ampla, a conciliação entre o desenvolvimento tecnológico e os nossos valores. Esse assunto estará no centro da Cúpula global de Ação sobre IA, que será realizada em Paris nos dias 10 e 11 de fevereiro e reunirá todos os agentes que atuam nessa área.
Nós também queremos construir com vocês um mundo que enfrente com determinação a mudança climática, que nos permita implementar as medidas de adaptação necessárias e que garanta a preservação de nossas florestas e oceanos. Um mundo que nos ofereça maior segurança diante do crime organizado transnacional e que estabeleça regras comerciais justas para as nossas empresas. Um mundo mais justo, que reconheça a interdependência entre preservação do meio ambiente e prosperidade e permita que os dois andem sempre juntos.
Nós começamos a nos empenhar nessa via paralela promovendo assuntos essenciais como a proteção e o uso sustentável do oceano —especialmente por meio da organização, ao lado da Costa Rica, da Conferência das Nações Unidas sobre o Oceano, que será realizada em Nice (França) no próximo mês de junho, bem como do apoio à candidatura de Valparaíso (Chile) para sediar a secretaria do tratado sobre a biodiversidade em alto-mar—, defendendo a igualdade de gênero ao lado do México, intensificando nossa mobilização em prol do clima no âmbito da preparação da COP30, em Belém, e protegendo as florestas ao lado dos países amazônicos.
Nós construímos essa agenda internacional mais justa ao lado de vocês, por meio do Pacto de Paris para os Povos e o Planeta, que hoje conta com o apoio de 70 países.
Por meio dessas muitas iniciativas, sempre impulsionadas pelo mesmo universalismo, nós nos recusamos a ceder à ideia de fragmentação do mundo em blocos: Norte e Sul, Ocidente e o resto do mundo. O princípio de dois pesos e duas medidas não pode ser aplicado com base em critérios geográficos ou afinidades: toda vida conta, seja na Ucrânia ou no Oriente Médio, seja no Haiti ou na Venezuela. A França, país latino-americano graças aos seus territórios ultramarinos, e membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, sempre cumprirá com o seu papel na manutenção da paz e da estabilidade no continente.
No início deste novo ano, quero mais do que nunca reiterar firmemente nosso compromisso de levar adiante essa ambiciosa agenda com vocês, incluindo a criação de novas oportunidades de intercâmbio entre nossas universidades, instituições culturais e centros de pesquisa, bem como o lançamento de novos projetos para as nossas empresas no sentido de proporcionar uma maior autonomia estratégica aos nossos dois continentes.
Não há dúvidas quanto a isso. O futuro da França e da Europa será escrito junto com a América Latina e o Caribe. Portanto, lutemos juntos por um mundo novo.
O fanatismo embrutece
ou a estupidez fanatiza?
A burrice não me enternece
e o fanático barbariza.
O fanático tem certezas,
onde certezas não existem:
estão repletas de bichezas
que são nocivas e persistem.
A fé não é conhecimento,
pelo menos, até mais ver.
Transforma o mundo em turbulento
e estupora o bom viver.
Crê quem desiste de entender,
por isso o crente é perigoso:
quando não sabe convencer,
vira tirano afanoso.
O fanático não tolera
aquilo que não compreende:
torna-se logo uma fera,
filha bastarda de duende!Eugénio Lisboa
Basta olhar o fuzuê que está rolando mundo afora nas últimas semanas, em torno da mudança de governo nos EUA. Toda espécie de seres incomuns saiu de suas tocas ao mesmo tempo para proclamar, cada um a seu modo, uma nova era do capitalismo. Do jeito que a coisa vai, “aqui na face da Terra só bicho escroto é que vai ter”.
Há quase 40 anos os Titãs viralizaram com seu disco Cabeça de Dinossauro. De uma vez só cutucaram instituições tradicionais como a religião, a política, cultura, sociedade e família. Acontece que, quatro décadas depois, a música “Bichos Escrotos” ainda parece fazer sentido.
Contudo, não nos enganemos, há uma inteligência sofisticada no comando de toda essa encenação aparentemente folclórica que emoldura as festividades da posse norte americana. Um esforço coordenado para banalizar e naturalizar as mais diferentes expressões de retrocesso político e desconstrução cultural. É desse modo que, como diriam os Titãs, os ratos entram nos sapatos do cidadão civilizado.
Está nascendo ali um laboratório de Estado ultracapitalista de última geração, movido por IA e computação quântica. Não confundir com o anarcocapitalismo de Javier Milei nem com o neoliberalismo de Tatcher, que no contexto atual mais parecem com teses colegiais. Trump e seus ministros digitais propõem uma espécie de monarquia sem rei, um vale-tudo onde o núcleo central é pilotado diretamente por neobilionários e influencers que parecem ter saído direto do filme “O Lobo de Wall Street” para ocuparem Washington D.C.
O próprio Trump ressurge em ritmo de elefante em loja de louça, bagunçando em instantes um projeto de mercado e um equilíbrio geopolítico que o próprio Tio Sam vinha construindo nos últimos 250 anos, ao custo de sangue, suor e lágrimas (dos outros, é bem verdade). Por exemplo, ao sair do Acordo de Paris e da OMS, enquanto amedronta imigrantes latinos e ameaça países vizinhos, o verdadeiro recado está dado: vamos passar a boiada e acelerar a concentração de riqueza nas mãos de pouquíssimos.
Ao mesmo tempo, as saudações nazistas e o grito de liberou-geral de Musk, Zuckerberg, Bezos e Bannon dão o tom e o clima da nova era (aos amigos tudo, aos inimigos a lei). Mas servem também como gestual ritualista dos novos líderes e seus seguidores. Um conjunto estético pouco sutil e de gosto duvidoso, típico do marketing político dos anos 1930, dessa vez turbinado pelas redes digitais. É o que o italiano Paolo Demuru aponta em seu livro “Políticas do Encanto” (2024).
O modelo se reproduz mundo afora, inclusive no Brasil, fazendo mais sucesso entre a direita, escolhendo seus inimigos nacionais, sejam os palestinos, os comunistas, os imigrantes, os não-brancos, a bandidagem, os ucranianos ou quaisquer outros que sirvam como distração racial enquanto segue o baile da desigualdade social e da mudança climática.
No fim das contas, o esgarçamento da ordem mundial globalizada que predominou especialmente durante a Guerra Fria, dá a vez a um cenário caótico de transição para um arranjo geopolítico e econômico ainda indefinido, que – na ausência de um novo modelo amadurecido – deixa espaço para essas iniciativas passionais de lideranças e elites inconsequentes. Esquecem-se que, em se tratando de aquecimento global e pobreza, não há quem cuspa pra cima que não lhe caia na cara.
Enquanto isso, resta aos mais atentos seguirem o exemplo dos Titãs e exigirem que as baratas nos deixem ver suas patas, antes que os bichos escrotos venham enfeitar nosso lar.