sexta-feira, 8 de julho de 2016

E não é que este parece ser o inverno de nosso contentamento?

Não é propriamente o modo ideal de homenagear o maior poeta de todos os tempos mas, ao contrário do inverno cruel enfrentado por Ricardo III, o nosso inverno, suave, macio, agradável, combina melhor com nossa tão decantada crise.

Ontem tivemos duas cerimônias de grande porte: a leitura da defesa seca de Dilma Rousseff e a renúncia lacrimosa de Eduardo Cunha.

Agora, sem Cunha, quem sabe a Câmara dos Deputados, livre do Maranhão, eleja um deputado que ame o Brasil? Há alguns, sei que há, o negócio é não permitir que outro aventureiro lance mão, novamente, da coroa de presidente da Casa.

Cunha, que jamais renunciaria, acabou por se dobrar diante dos fatos. Neste momento, é hora da Câmara mostrar do que é feito o material humano que ocupa seu plenário.



Quanto à defesa seca e arrogante de dona Dilma, as palavras lidas pelo advogado da presidente afastada, escolhidas para comover nossos corações, não tiveram esse efeito. Talvez se tivessem sido lidas pela autora acabassem levando o ouvinte a buscar um lenço. Ou, quem sabe, se trouxessem alguma novidade, tipo um mea culpa pelos erros cometidos, todos eles, desde os da juventude até os recentes consumados na ânsia de não largar o poder que tão mal conduziu.

Mas não é só de Brasília que vêm as más notícias. Cruzes, como votamos mal aqui neste paraíso! Parece até um Manual De Como Não Votar.

O Rio de Janeiro, que continua maravilhoso graças à natureza com a qual Deus nos abençoou, é um dos bons exemplos de como votamos mal...

Mas há um pecado do qual nós cariocas não somos culpados e fiquei indignada ao saber que não podemos cumprir inteiramente as penas decretadas pela exemplar Operação Lava-Jato: faltam tornozeleiras eletrônicas. Foi isso mesmo que você leu! O Estado do Rio deve ao fabricante R$2.800.000,00 e o fabricante, naturalmente, não quer continuar a nos fornecer as peças graciosamente.

Isso é um absurdo: o responsável pelo fornecimento das tornozeleiras deveria ser o Governo Federal que enviaria ao Estado que delas necessitasse o número de peças de acordo com as condenações. E o governo que cobrasse dos corruptos, já que dinheiro não deve faltar no cofre dessa gente!

De qualquer forma, contentes já podemos ficar. Veja bem do que nos livraremos em breve: dos bigodes do Waldir Maranhão e da bancada do Jardim de Infância que interpreta uma peça tragicômica na Comissão do Impeachment, já que o impedimento de dona Dilma está próximo.

São ou não são motivos especiais para um inverno delicioso?

Lula quer ser absolvido nas urnas

Como escudo contra as acusações de suposta corrupção que poderiam levá-lo aos tribunais, Lula pretende ser absolvido pelas urnas. Seria sua vingança pessoal.

Frei Betto, que conhece bem os segredos e as estratégias de Lula, quase seu confessor, fez duas afirmações importantes numa entrevista concedida a este jornal que desmontam dezenas de rumores e conjecturas.

O escritor jogou por terra a ideia de que Lula esteja triste ou deprimido. Ao contrário: estaria só à espera de que passe o tsunami da justiça para reaparecer.

Seus concorrentes não se esqueçam de que Lula é melhor no jogo rápido e inesperado do pôquer que no lento e reflexivo xadrez

“Agora que a Operação Lava Jato dá as cartas da política brasileira, convém para ele não sobressair muito”, disse, diplomático, Betto. Foi categórico também ao afirmar que o ex-presidente voltará a ser candidato nas eleições presidenciais de 2018, ao não ser que “esteja preso ou morto”. Acabou, assim, com as suposições. Lula está se preparando para voltar, desde que o imponderável não atravesse seu caminho. E ponto final.

O que não explicou o escritor e biógrafo de Fidel Castro é o motivo dessa necessidade peremptória de Lula de querer voltar a disputar a Presidência.
Será, talvez, por esse vício irresistível que atinge quase todos os políticos uma vez provado o fruto proibido do poder? Sim, mas não só isso. Existem outras razões que Betto poderia explicar melhor. Entre elas, que Lula é um político que sempre se sentiu acima de todos, insubstituível. Foi assim em 2014, quando Dilma, sua pupila, fechou-lhe então a passagem. O ex-presidente chegou a dizer, sem muito pudor, que hoje só ele pode colocar o país nos trilhos.

O reconhecimento foi dado a Lula pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, quando o apresentou como o político mais popular do mundo, exclamando: “Amo este homem”. Estava exaltando o mito americano do sujeito que sai do nada e consegue se superar.

O destino quis que o mito começasse a mostrar fissuras sob as acusações de suposta corrupção, esse vírus que está tomando conta da classe política do País – e parece não ter respeito nem mesmo por ele.

“Não existe alma viva mais honesta do que eu”, reagiu Lula, indignado, às acusações. Betto também aposta por sua honradez ética. O ex-presidente sabe, no entanto, que não é o que pensam alguns juízes que estão revirando sua vida e até mesmo tentam provar que ele foi o chefe da quadrilha. Mas quem conhece Lula sabe que é um político que não se rende. Quando parece mais abatido é quando mais levanta a cabeça. É mais perigoso, dizem, na sobra que ao sol.

Sabe que, para sair do atoleiro aonde foi empurrado por um destino que nunca esperou, não tem outra saída a não ser arriscar-se a desafiar tudo e voltar, pela sexta vez, a disputar eleições presidenciais para vencê-las pela terceira vez. Terá então 73 anos.

Há, no entanto, um último motivo, talvez o mais importante, por trás da volta de Lula ao poder: buscar sua absolvição nas urnas. Seria seu desafio e sua vingança em relação aos juízes. Que os brasileiros o absolvam com seu voto. Uma vez eleito presidente, Lula nem sequer poderia ser julgado pelos supostos crimescometidos fora de seu mandato.

Tudo isso pode parecer um quebra-cabeça, mas para Lula é só um jogo político. “Nunca antes neste país” foi seu slogan quando era presidente.

Hoje também? É o que terão de responder agora os eleitores nas urnas. Ele tentará a jogada.

Que seus concorrentes não se esqueçam de que Lula é melhor no jogo rápido e inesperado do pôquer que no lento e reflexivo xadrez, como afirmam seus velhos amigos do sindicato.

Lula, na selva política, é mais leopardo que elefante.

Não será que espera, na sombra da noite, a hora de mostrar as garras pela última vez?

O tempo dirá.

Está faltando apenas um voto para destruir a Lava Jato

O Brasil vive um momento muito especial e delicado. Os três Poderes da República haviam caído no descrédito, estavam inteiramente desmoralizados. De repente, surgiu um fio de esperança, parecia haver possibilidade de recuperação do país através do Judiciário, em função do impressionante desempenho da força-tarefa da Lava Jato. A operação começou numa investigação aparentemente despretensiosa, lançada em Brasília pelo jovem delegado federal Márcio Ancelmo, que puxou o fio da meada e acabou desvendando a teia do maior esquema institucional de corrupção já registrado na História Universal, iniciado na Petrobras e com ramificações em outras estatais e diferentes órgãos públicos, incluindo bancos oficiais.

O inquérito inicial caiu na 13ª Vara Criminal de Curitiba, conduzida pelo jovem juiz Sérgio Moro, com experiência específica adquirida no espantoso processo da corrupção do Banestado, que até hoje não transitou em julgado, graças à leniência das instâncias superiores.

Desta vez, o juiz Moro sabia exatamente como devia agir para conduzir essa operação gigantesca e prender os criminosos ainda na primeira instância, sem possibilidade de reversão nas instâncias superiores, algo jamais visto na Justiça brasileira, realmente um trabalho judicial surpreendente e extraordinário.

Era surpreendente, nem dava para acreditar que os maiores empresários da construção civil estavam presos, sem privilégios, ao lado de autoridades, parlamentares federais e dirigentes de estatais, como se o mensalão tivesse revivido e agora prosseguisse em muito maior proporção e velocidade.


Com isso, a opinião voltou a acreditar no Judiciário, que é a mola propulsora da moralização do poder público. Todos sabem que, se a Justiça for implacável, todo o resto funciona. No entanto, se houver leniência e impunidade, a corrupção logo volta a se alastrar.

O juiz Moro, evidentemente, foi se transformando no maior ídolo nacional, uma celebridade do bem e da ordem. Se o Supremo seguisse na balada dele, poderia ser revertida a sensação de impunidade que tanto prejudica o país.

Mas o que se vê é exatamente o contrário. Há ministros do Supremo que tentam de todas as formas boicotar o trabalho do juiz. O decano Celso de Mello mandou libertar um réu condenado por homicídio qualificado, com ocultação de cadáver; o ministro Dias Tofolli determinou a soltura de seu amigo pessoal Paulo Bernardo, chefe da quadrilha do empréstimo consignado; e o ministro Marco Aurélio Mello também luta indomitamente para cancelar as prisões sem julgamento em segunda instância, o que significa libertar todos os réus da Java Jato.
Os ministros do STF que querem destruir a Lava Jato já têm cinco votos, contando com os de Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. Portanto, falta apenas um voto para conseguirem o abominável objetivo. A situação é gravíssima, esses ministros do Supremo estão pouco se incomodando com a crise moral do país, vivem como se estivessem em outro mundo.

Os outros ministros são: Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Teori Zavascki. Como disse o Almirante Francisco Barroso, antes da histórica Batalha do Riachuelo, “o Brasil espera que cada um cumpra o seu dever”.

Barroso era português, mas seu amor ao Brasil não tinha limites. Os seis ministros do STF que podem manter a integridade da Lava Jato são brasileiros natos. Logo saberemos se eles realmente têm algum amor ao país. Se aceitarem libertar os réus da Lava Jato, ninguém sabe o que poderá acontecer, e não vale a pena arriscar
.

Da série corrupção dos valores: A moralidade

O Brasil sempre mostrou para o mundo seus melhores predicados naturais e culturais, sobretudo esportivos, artísticos e de convivência social, principalmente quando estamos na função de anfitriões dos gringos. Mas, exatamente agora, a um mês de sermos anfitriões de um dos maiores eventos mundiais, as Olimpíadas, o que estamos a mostrar para a atenção de toda a mídia internacional voltada ao país? Seguramente o que há de pior em nossas tradições: a cultura da moralidade privada não se traduz em moralidade pública ou política. No rastro da Lava Jato, escancaramos uma cultura política corrupta e degradante da dignidade humana, além dos mais degradados costumes morais arraigados e permitidos no cotidiano da sociedade. E tudo sem trégua: a par de belas imagens de heroicos competidores medalhados de ouro e prata, emoldurados pelos mais belos panoramas da Cidade Maravilhosa, as câmaras da mídia internacional não deixarão de captar cenas de camburão da bandidagem do morro e do asfalto, das favelas ao Planalto. Ou as cenas de total desleixo para com espaços públicos, seja do lixo mais esdrúxulo boiando entre o esgoto lançado na Baía de Guanabara e nas lagoas, seja de malas recheadas de dinheiro desviado de obras públicas, muitas delas empreitadas para a própria Olimpíada.

Neste contexto, esteve no Brasil na semana passada o presidente da Transparência Internacional, o peruano José Carlos Ugaz, para tomar pé da situação brasileira com “os escândalos em série” que não param de enlamear a imagem internacional do país. Em sucessivas reuniões em Curitiba e Brasília, com representantes das instituições públicas de combate à corrupção e membros de entidades da sociedade civil atuantes na área, o senhor Ugaz discorreu sobre o que motivou a visita a nossa terra: informar sobre a abertura de uma representação da Transparência Internacional no Brasil; apresentar uma proposta estruturada de combate à corrupção para o país – a criação de um Sistema Nacional Anticorrupção (SNAc); e discutir a internacionalização da Lava Jato, por meio da atuação conjunta de instituições brasileiras, como o Ministério Público, a Justiça, a Polícia Federal e demais órgãos de controle interno e externo, com órgãos de fiscalização, controle e transparência de diferentes países, para investigar e processar também os crimes cometidos no exterior pelas empresas do cartel da Petrobras e outros.

Em reuniões com o juiz Sergio Moro e integrantes da força-tarefa da Lava Jato, em Curitiba, com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, com parlamentares da Frente Parlamentar Mista de combate à Corrupção, em Brasília, com a Frente pelo Controle e Combate à Corrupção – uma iniciativa de 130 organizações da sociedade civil em conjunto com servidores da Controladoria-Geral da União (CGU) – ficou difícil explicar o descompasso entre as demandas das recentes manifestações de milhões de cidadãos e as tentativas de minar a Operação Lava Jato por parte de nossas lideranças políticas no governo. Pois prevalece nossa atração irresistível pela torção barroca de transformar o verso em reverso, a tragédia em farsa, a lei em jeitinho, o dito pelo não dito. Ao mesmo tempo que mais de 2,5 milhões de cidadãos assinam o projeto de iniciativa popular em prol da consolidação de uma cultura anticorrupão, como as 10 Medidas contra a Corrupção, de iniciativa do Ministério Público Federal, e liderado pelo promotor Deltan Dallagnol, o presidente Temer resolve extinguir nossa maior instituição de controle interno de contas, a CGU, sob a alegação de integrá-la a um novo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, que os humoristas correram a apelidar de Trafico, e os servidores técnicos de auditoria financeira da CGU a questionar sua autonomia institucional e investigativa diante de demais ministérios do mesmo patamar hierárquico.

E toma essa decisão quando a razão de eficiência de um órgão de controladoria, como primeiro produtor de indícios e provas de desvio de recursos públicos para as posteriores investigações do Ministério Público e da Polícia Federal, está justamente no reconhecimento de sua superioridade hierárquica diante de demais ministérios e órgãos de governo, quando a CGU, até então, respondia diretamente à Presidência da República. Nada mais torcido, retorcido e distorcido. Nada mais barroco como a curva de Moebius, aquela figura que une o verso ao reverso, o direito ao avesso. Nossa instituição de controle da corrupção é distorcida, pois passa a ser rebaixada ao nível dos órgãos que terá de controlar. Ou seja, a função de controle sem o efetivo poder de controle é apenas de fachada, a própria corrupção de seu valor intrínseco que é a moralidade pública. Uma vez que a moralidade pública sem aplicação política é apenas o retorcer e distorcer da prática (mores, conduta) para a teoria (teorein, ver). “Para inglês ver”.


E este foi declarado como um dos objetivos primordiais da Transparência Internacional no Brasil: “Avaliar se o novo MTFC [Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle] preservará efetivamente as realizações bem-sucedidas da CGU, e se avançará naquilo que o órgão não pôde alcançar, contando com autonomia, dotação orçamentária e apoio político do presidente interino para liderar a luta contra a corrupção com a seriedade e a ambição que os brasileiros e a comunidade internacional esperam”, disse a organização em documento enviado aos participantes da OGP no Brasil (Parceria para Governo Aberto), da qual o Brasil foi um dos primeiros signatários em 2011.

Simultaneamente à visita, e com mais de 2 milhões de assinaturas, o projeto das 10 Medidas contra a Corrupção aguarda o parecer da comissão especial da Câmara dos Deputados para ser encaminhado e votado pelo Plenário da casa, sem previsão de prazo. O colegiado foi criado no último dia 14 de junho, mas até agora apenas 16 dos 30 integrantes foram indicados pelos líderes partidários. Ainda faltam indicações de PMDB (4), PT (3), PP (2), PTN (1) e PSC (1), uma vez que, somente com a composição completa, começa a contar o prazo de 40 sessões para que a comissão conclua os trabalhos. Será que as raposas vão mesmo cuidar do galinheiro?

Em caminho oposto ao projeto das 10 Medidas que não tramita, o projeto de lei contra o abuso de autoridade ressuscitado pelo senador Renan Calheiros, um dos investigados pela Lava Jato, que pode ser ardilosamente usado para cercear as iniciativas da operação, está previsto para ser votado a toque de caixa, provavelmente até o dia 13 de julho próximo. Veja o alerta feito pela Agente de Cidadania Lenice Moura aqui.

Relator do projeto das 10 Medidas, o deputado Mendes Thame, do PV-SP, está otimista que ainda nesta semana o PMDB faça a indicação de seus membros à comissão, constrangendo à ação os demais partidos, mas essa não é a posição do senador Romero Jucá, do próprio PMDB e também investigado pela Lava Jato, que assegura que a prioridade do governo é a pauta econômica e não o projeto das 10 Medidas. Ou seja: o governo não quer entender que sua indefinição quanto às medidas anticorrupção pode influenciar a própria efetividade da pauta econômica, em dissonância com a expectativa da sociedade e dos próprios agentes econômicos, que anseiam pela segurança jurídica do pleno funcionamento das instituições públicas para voltar a investir no Brasil. E, assim, seguimos embarcados nesta Nau dos insensatos, pintada pelo magistral artista holandês Hieronymus Bosch exatamente no ano da descoberta do Brasil. Nau tripulada pelos cristãos novos portugueses, desgarrados da “Nau da Salvação” da Igreja Católica que não lhes dava outra alternativa, a não ser o mar imperscrutável e a crença amoral de que o homem teria o poder de escolher seu destino. Se esee foi mesmo nosso vaticínio, aceitá-lo é o início de nos livrarmos de tamanho estigma.

Jorge Maranhão

Mandar de volta a Carta de Caminha

Não dá para calcular quando a corrupção começou no Brasil. Há quem suponha tenha sido com a carta de Pero Vaz de Caminha, que tentou descolar a nomeação do seu genro. Tanto faz, pois a verdade é que as vigarices começaram cedo. Houve, porém, um divisor de águas marcando a progressão. Foi a Nova República. Com a tragédia de Tancredo Neves, começaram a se desfazer a esperanças de ficarmos apenas naqueles percentuais tidos como naturais em quaisquer países ou regimes.

Melhor não fulanizar, mas ressalta-se os dois anos e meio em que Itamar Franco foi presidente e sua intransigente luta contra os corruptos. Depois, e ate agora, a roubalheira só fez aumentar. Espraiou-se por todas as atividades nacionais, atingiu setores públicos e privados, contaminou todas as instituições, tornou-se exemplo para as sucessivas gerações que foram assumindo responsabilidades de comando. Com as exceções de sempre, é claro, mas atingindo o Congresso, o Executivo e o Judiciário. O empresariado, quase sem faltar categorias, as direções sindicais, as organizações religiosas, os grupos filantrópicos e tudo o mais que se pensa.

Bem que o poder público se esforça para investigar, julgar e punir quantos se dedicam a essa prática tão disseminada na sociedade quanto cômoda, mas pelo jeito não adianta.

Fica em aberto a conclusão: qual a saída para reduzir ao mínimo esse deletério comportamento que nivela a nação pelo que tem de pior? Polícia Federal, Ministério Público, Receita Federal? Quando não se contaminam, acabam sufocados pela avalancha de corruptos postados ao seu redor.

Até mesmo fica insuficiente recomendar cadeia para quantos aderem à corrupção. A maioria escapa e ainda se vangloria. Aumentar as penas para os forem bissextamente condenados? Um palito de fósforo diante da cratera de um vulcão. Dar de ombros e julgar a corrupção inerente à Humanidade equivaleria apenas a estimular bandidos e vigaristas. Quem quiser que opine, porque solução não há. Talvez apenas devolver a carta de Caminha aos portugueses...

Covarde e mentirosa

Está preso em Curitiba o marqueteiro João Santana, na adolescência conhecido como Patinhas e nos autos da Operação Lava Jato como Feira, referência a Feira de Santana, cidade da Bahia, próxima daquela onde nasceu, Tucano. Ele responde por ter auferido propinas milionárias de empresas que forneceram equipamentos ou executaram obras para a Petrobrás. Não por ter definido como Coração Valente sua patroa, Dilma Rousseff, em cujas campanhas eleitorais – a eleição em 2010 e a reeleição em 2014 – ele produziu e executou o marketing. Essa marca foi uma obra-prima de sua imaginação fértil.

Nada há de valentia, mas somente covardia, na decisão que a personagem dele tomou de não comparecer à comissão do impeachment do Senado, pela qual está sendo julgada, com prazo de encerramento marcado para novembro, por crime de responsabilidade na administração resultante das vitórias nas urnas. A carta que mandou seu ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União José Eduardo Martins Cardozo ler, ao contrário, é patética, extremamente arrogante, covarde e mentirosa de cabo a rabo. O ato de não comparecer, não tendo nada mais importante a fazer, já é pusilânime em si, pois a única explicação para o que fez é o medo de se comprometer ainda mais diante do questionamento da advogada de acusação Janaína Paschoal e de senadoras e senadores que não simpatizam com sua causa: voltar ao poder.

Despertar piedade sem sequer pedir perdão, arvorar-se em injustiçada sem apresentar evidências e fingir-se de vítima sem definir a atrocidade assacada contra ela foram suas táticas explicitadas sem subterfúgios desde a abertura. “Já sofri a dor indizível da tortura”, começou. É uma óbvia apelação, que se tornou seu mantra desde que surgiu na vida pública pelas mãos do ex-chefe Lula. Foi torturada? E daí? Dilma repete exaustivamente que o foi mesmo. Em entrevista a Luiz Maklouf de Carvalho, à época na Folha, contou que, durante 22 dias no DOI-Codi de São Paulo, teve até dentes quebrados pelo “capitão Maurício”, o hoje tenente-coronel Maurício Lopes Lima. Outro repórter de responsa, Luiz Cláudio Cunha, atesta que ela disse a verdade, não o oficial, que, ao ser interrogado a respeito, disse que a interrogou, mas nunca a molestou.

Apesar de conhecer sua propensão à mentira, neste caso tudo indica que ela contou, sim, um fato. Sobra, contudo, uma cobrança que Cunha fez e eu repito: o milico, um cínico de marca, contou que lamenta não lhe ter pedido um cartão de visitas por não ter previsto que ela seria presidente, tão bem que a tratou. Na Presidência da República Dilma não enquadrou o indivíduo nem os comandantes das Forças Armadas, inclusive o comandante do Exército, general Enzo Petri, que, em resposta a solicitação oficial da Comissão da Verdade, instituída por Dilma, garantiram não ter havido sevícias nas repartições militares durante a ditadura. Nem o tíbio ministro da Defesa de então, Celso Amorim. Com isso, a presidente inutilizou o trabalho da comissão.

A presidente afastada foi torturada, sim. E daí? Desde quando vítima de tortura tem direito a indulgência plena? Trata-se de uma tolice da doença infantil do esquerdismo, que o velho Lenin execrou. Por falar em doença, voltemos à carta. “Já passei pela dor aflitiva da doença”, alguém escreveu por ela e Cardozo leu aos senadores. Quem não terá passado, principalmente depois dos 60, casos dela e meu? E qual é a conclusão? Quem já adoeceu merece perdão prévio por pecados, erros ou delitos que cometer – como índices de inflação e desemprego de dois dígitos, quebradeira e roubalheira desenfreadas sob sua égide – só porque sobreviveu? Menas, querida, menas, diria seu chefinho.

“E hoje sofro a dor inominável da injustiça. O que mais dói é perceber que estou sendo vítima de uma farsa política e jurídica”. Qual? Ela foi afastada da Presidência da República, para a qual foi eleita e reeleita, num processo de impeachment instaurado na Câmara a pedido de um ex-fundador de seu partido, o promotor Hélio Bicudo, um ex-ministro da Justiça, o adversário tucano Miguel Reale Júnior, e a professora de Direito da USP Janaína Paschoal. Todos investidos na condição legal de cidadãos brasileiros. E o crime de responsabilidade é grave, porque atinge toda a cidadania, e não apenas cidadãos isoladamente, esclarece o jurista Modesto Carvalhosa.


O Tribunal de Contas da União (TCU) indicou 50 peritos para saber se ela cometeu tal crime ao assinar decretos não autorizados pelo Legislativo e usar saldos de bancos públicos sem devolvê-los imediatamente, as tais “pedaladas fiscais”. Os peritos a incriminaram. O procurador do TCU Júlio Marcelo de Oliveira testemunhou contra ela no processo. Eduardo Cunha, seu antigo aliado e cúmplice, abriu o processo, usando prerrogativa legal de presidente da Câmara. Em plenário, 367 dos513 deputados federais autorizaram o Senado a julgá-la. Na comissão do impeachment do Senado, 16 senadores contra 5, dos 21, encaminharam a votação para o plenário, que a afastou do cargo por 54 votos dos 81 possíveis. Em todos os casos, há mais de dois terços de reprovação ou, no mínimo, dúvida sobre sua conduta. O que justificaria tanta injustiça, a ponto de ela classificar o processo de “farsa jurídica e política” e até de “golpe”, segundo sua carta, de um novo tipo, o desalmado desarmado?

Defendida da “farsa” pela simpatia solidária do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), por seus cinco aliados da “bancada do chororô”, simpatizantes e admiradores ela conseguiu a oitiva de 40 (não podia ser um total que não repetisse Ali Babá, céus?) testemunhas de defesa, que nunca viram nada e, por isso, de nada sabiam. E peritos do Senado reconheceram a prática de crime em três dos quatro decretos ilegais e nas “pedaladas fiscais”, nos quais não encontraram suas impressões digitais. “Crime de responsabilidade também é praticado por omissão”, esclareceram-me pessoalmente juristas ilustres, como Ives Gandra da Silva Martins, Carlos Ari Sunfeld e Régis de Oliveira, Se houve ou não, julgam os julgadores. Não é assunto para peritos. Parece óbvio até para analfabetos jurídicos, como o autor destas linhas.

Na carta, Dilma também insistiu na hipótese absurda de o principal beneficiário de seu afastamento, Michel Temer, não ser legítimo por, ao contrário dela, não ter votos. Acontece que se Temer a elegeu “presidenta”, em 2010 e 2014, ela também o elegeu eventual substituto. Os 54 milhões de votos que derrotaram Aécio em 2014 foram dados aos dois e em sua obtenção o PMDB liderado pelo vice teve participação decisiva. Ela não teria sequer chegado ao segundo turno se não se tivesse aliado a ele. Por isso mesmo, a dupla Dilma-Temer responde agora mesmo a processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no qual a chapa de ambos pode ser cassada por práticas ilegais, também na eleição. Parece pouco? Olhe que as mentiras que ela contou sobre a situação do País no mesmo pleito não são consideradas criminosas. Embora tenham ajudado a elegê-los.

Por falar nisso, ela escreveu e o garboso Cardozo leu que o governo Temer “É” a crise. Ora, a grave crise data de 2014, como qualquer criança de 2 anos sabe, e o vice assumiu em maio último. O argumento, então, é construído com o mesmo critério antigregoriano dos decretos assinados em julho e legalizados cinco meses depois, em dezembro. A lógica dessa patacoada só se imporá no dia em que efeito causar causa. Mas quem se arrisca a explicar isso pra madama?

É apenas qualquer coisa

É evidente que você vende candidatos políticos da mesma forma que sabão ou cera ou o que for, porque, no fundo, essa é a única forma que qualquer coisa é vendida
Sid Bernstein

História e sociologia na nova base curricular: Ideologia e confusão

Responda rápido: se você não quiser resolver muita coisa, mas fazer uma boa discussão, por onde deve começar? Há muitas respostas para essa pergunta. A minha favorita é: fazendo um mau diagnóstico. Ok, a resposta é meio óbvia, mas é exatamente disso que se trata o debate travado no país em torno da nova “base nacional comum curricular”.

Para quem não está familiarizado com o tema, trata-se de implantar um currículo obrigatório comum para todas as escolas brasileiras, estatais ou privadas, de ensino médio e fundamental. Na prática, uma lista de conteúdos para disciplinar o ensino básico. Orientar os autores de livros didáticos, o trabalho dos professores, em sala de aula, e as provas do Enem.

Meu argumento: a proposta de uma base curricular comum parte de um diagnóstico errado. Ela diz que que há um problema com nossa educação básica e que a implantação de um currículo nacional é fundamental para reduzir nossas “desigualdades educacionais”. Isso está lá, na primeira frase do site do “Movimento pela base nacional comum”.


Os dados são conhecidos: o Brasil possui 190 mil escolas voltadas ao ensino básico. Perto de 80% têm gestão governamental. No ensino médio, alcançam 3,4, em média, no Ideb. A rede privada, por sua vez, tem um Ideb de 5,4. A discrepância se repete no Pisa: alunos de escolas privada alcançam uma média pouco acima de 500; alunos de escolas públicas ficam perto do último lugar, com média de 387.

Observando esses dados, alguém poderia desconfiar que há um problema com a educação estatal, no Brasil. Desconfiar que há um problema com o alto absenteísmo de professores na rede pública (estudo mostrou que 12 mil professores faltam à aula todos os dias na rede estadual paulista); com a burocracia da gestão governamental, as amarras da lei das licitações, a estabilidade no emprego dos professores, a precariedade das instalações, a falta de continuidade administrativa, a pressão sindical contra qualquer inovação e meritocracia, as greves em série, et etc.

Alguém podia ter pensado nessas coisas, mas ninguém pensou. No cânone do debate educacional brasileiro, pode-se chegar a qualquer conclusão, menos que exista algum problema como o modelo de gestão estatal de nossas escolas. Questionar o “modelo” gera, como me disse certa vez a dirigente de uma ONG voltada à educação, um “problema político”. E ninguém quer encarar um problema politico, não é mesmo?

Uma vez decidido não enfrentar o cânone, produziu-se um singular diagnóstico: o que está faltando na nossa educação é uma lista de conteúdos que as escolas devem ensinar. Tenho curiosidade de saber que tipo de evidência empírica se usou para se chegar a essa conclusão. Suspeito que nenhuma. Talvez apenas a velha ideia de que é preciso “centralizar” quando alguma coisa não está funcionando.

Pois bem, feito o diagnóstico, o governo brasileiro partiu para a elaboração da lista. O MEC formou uma comissão de 116 professores e pôs mãos à obra. Depois de algumas revisões, publicou uma última versão da lista de conteúdos no mês de maio.

Relutei, confesso, em analisar seu conteúdo, pelas razões expostas acima. Mas fui em frente. Me concentrei nas áreas de história e sociologia. Li e reli a lista de conteúdos, e confesso que me surpreendi. Ela é muito pior, mais confusa e mais pesadamente carregada de viés ideológico do que havia imaginado.

O viés ideológico da base comum surge com nitidez na área de sociologia. Nos 28 conteúdos sugeridos, o arco conceitual é feito de palavras-chaves como “classes sociais”, “dominação”, “divisão social do trabalho”, “relações sociais de produção”, “movimentos sociais”. Não há, em toda lista, uma única menção a conceitos como liberdade, ética, indivíduo, direitos individuais, mercado, tecnologia ou inovação. Nada sobre a sociedade pós-industrial, de Daniel Bell; sobre a sociedade de rede, de Manuel Castells; ou a sociedade aberta, de Karl Popper. Alguém diria que esses são temas “difíceis”? Não acho. Não é a dificuldade que separa a boa sociologia do proselitismo.

A lista consagra uma visão binária de sociedade, baseada em polarizações de “classe” e movimentos sociais. Linha já adotada em nossos livros didáticos de sociologia. A novidade é que agora ela ameaça se tornar visão “oficial” do Estado brasileiro. No primeiro ano do ensino médio, os alunos aprenderão sobre “localização social, como classes sociais”; No segundo ano, refletirão sobre “movimentos sociais baseados em classes sociais e, no terceiro, “problematizarão a divisão de classes no modo de produção capitalista”. No quarto, fariam uma revolução, imagino. Brincadeira. A expectativa realista é que passem a integrar algum “movimento social”.

Para deixar claro: é razoável que esse tipo de conteúdo seja apresentado como uma dentre outras linhas de interpretação sociológica no mundo moderno. Nada razoável, no entanto, é que ele seja apresentado como “a” sociologia como tal. Como pensamento único, travestido de realidade e pronto a fazer a cabeça dos nossos alunos.

O que temos aqui é um clássico problema de ação coletiva: quem exatamente é capaz de expressar o “pensamento comum” ou a reflexão sociológica “adequada” para as 190 mil escolas brasileiras? Uma comissão de 116 especialistas escolhida pelo Ministério da Educação? Uma espécie de ágora digital com todo mundo dando palpite na internet? O Conselho Nacional de Educação? O Congresso? O resultado da base curricular, na área da sociologia, ao menos até agora, mostrou apenas o perfeitamente previsível: que a definição dos conteúdos foi “capturada” por um grupo de opinião ideológica muito particular. E ameaça se tornar “opinião oficial” do governo brasileiro.

O vezo ideológico se repete na área de história, apenas de maneira mais confusa. Depois de ler e reler os 56 itens sugeridos para os três anos do ensino médio, confesso que tudo me pareceu uma bricolagem de conteúdos “multiculturais”. Tentativa de compor algo como uma “história étnica”, livre de linhas de tempo, feita de distintas “temporalidades” africanas, ameríndias, europeias ou asiáticas.

A ideia, aparentemente, é retirar da civilização “ocidental” ou “europeia” qualquer “primazia” no estudo da história. O estudo do império brasileiro teria o mesmo status que tem o estudo do reino do Congo, por exemplo. É o que está lá, no item nove do 1º ano do ensino médio, indicando o estudo dos “reinos, impérios, confederações e civilizações nas Áfricas e nas Américas”.

Para o 1º ano do ensino médio, há 16 conteúdos. Todos fazem referência a alguma “matriz cultural” e parecem organizados em uma espécie de “ranking étnico”. Quinze itens mencionam temas africanos (afro-américa, temporalidades africanas, pan-africanismo, afro-atlântico, movimentos sociais negros, quilombolas etc.), nove itens mencionam temas “ameríndios” e seis itens mencionam temas “europeus”. Alguma referência ao período colonial brasileiro? Ao processo de Independência? À Inconfidência Mineira? Nada. Isso não passa de uma “temporalidade dominante excludente a outros saberes”. Sacou?

Sobre esse tema, há uma saborosa nota, publicada nas redes sociais, de autoria do ex-ministro Renato Janine Ribeiro. Janine conta que reclamou com a comissão da base comum: “Não havia sequência histórica”, escreve. Apenas uma visão “brasilcêntrica” do mundo. O mais curioso é quando conta ter “solicitado expressamente que incluíssem a Inconfidência Mineira”. Pelo visto, não teve jeito. Nem mesmo o ex-ministro foi atendido.

No mais, é triste ver uma base curricular repleta de malandragem ideológica. Quando tratarem dos movimentos totalitários do século XX, nossos alunos estudarão o fascismo, o nazismo e o “stalinismo”. Nossos 116 especialistas decidiram tirar a palavra “comunismo” do rol dos movimentos totalitários. Por lógica, deveria constar no texto o “mussolinismo”, em vez do fascismo, e quem sabe o “hitlerismo”, em vez do nazismo.

Quando estudarem as “lutas democráticas” e as “ditaduras nas Américas”, nossos alunos aprenderão sobre os horrores da ditadura argentina e chilena, de Pinochet (curiosamente o único ser humano citado em toda a base de história). Alguma referência à mais longa ditadura latino-americana, em Cuba? À saga dos balseiros? À luta democrática na Ilha? Um prêmio para quem acertar a resposta.

Uma das mais saborosas recomendações é dada para o 1º ano do ensino fundamental: “problematizar as razões da seleção, escolhas e definição das datas comemorativas”. Fiquei imaginando a professora, diante da turminha de 6 ou 7 anos de idade, perguntando: “Vocês sabem o que está por trás da escolha do 7 de setembro? Vocês acham que o Brasil é um país realmente independente?

Há conteúdos que parecem simplesmente mal elaborados. Como a sugestão de “relacionar e problematizar as juventudes” nos “diversos espaços do Brasil e nos mundos europeus e asiáticos nos séculos XX e XXI”. Fiquei pensando o que um professor faria, em sala de aula, a partir de uma recomendação como essa. Analisar a música pop no japão? Os protestos de jovens chineses na Praça da Paz Celestial? O maio de 1968? A Jovem Guarda? E por que a juventude “asiática” e não a “norte-americana”?

Outro exemplo: a sugestão de “analisar os efeitos da mundialização/globalização entre os séculos XIX e XXI na Europa e na Ásia relacionando-os à formação de fronteiras étnicas, nacionais, culturais, religiosas e econômicas”. Uma frase como essa não faz rigorosamente nenhum sentido. São dois séculos de história e um recorte espacial aleatório. Por que “Europa e Ásia?”, o que significa uma “fronteira religiosa” e que sentido a globalização econômica gera “fronteiras econômicas”? Na verdade, tudo parece não passar, por vezes, de uma sequência de frases soltas, incapazes de oferecer nenhuma orientação objetiva para o professor ou para quem se aventurar a escrever um livro didático de história.

Por fim, há o mistério da completa ausência do estudo de história antiga e medieval. Ausência de uma “história do mundo”, na observação correta de Renato Janine Ribeiro. Nada minimamente sistemático sobre a Grécia e a criação da democracia ocidental; sobre as grandes civilizações antigas, sobre Roma e sobre o que andou acontecendo no milênio que separa o fim do Império e o renascimento. Nossos alunos pouco ou nada saberão da tradição medieval, da reforma, da cultura renascentista, da formação do pensamento político moderno, ou ainda sobre a revolução na Inglaterra e na França. Tudo porque resolvemos abolir, de uma hora para outra, toda a temporalidade histórica. Diria mais: toda a rica tradição historiográfica amplamente reconhecida no ocidente.

É possível, em tese, imaginar que uma base curricular comum possa ajudar a melhorar a nossa educação. Isso se for bem feita, a partir de um diagnóstico adequado e siga o que há de melhor na experiência internacional. E fique longe de qualquer tipo de proselitismo ideológico. Não é uma tarefa simples.

A boa educação, em qualquer lugar do mundo, é obtida quando se põe em execução um bom modelo de gestão, em amplo sentido: da gestão administrativa, passando pela contratação e avaliação de professores, até a política pedagógica e a medição sistemática de resultados. O bom setor privado brasileiro há muito sabe fazer isso e o faz, em regra, pelo mesmo valor que os governos gastam para oferecer aos mais pobres uma má educação. Nosso problema, no fundo, é ficar insistindo em obrigar o governo a fazer o que ele já provou, de todas as maneiras possíveis, que não sabe fazer.

Os erros cometidos no debate da nova base curricular nacional são mais uma oportunidade de discutirmos sobre isso. E de andar para a frente. Não vamos perder essa oportunidade.

Os animais e a peste


Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, mais apreensivo, consultou um macaco de barbas brancas.

– Esta peste é um castigo do céu – respondeu o macaco – e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.

– Qual? – perguntou o leão.

– O mais carregado de crimes.

O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa, disse aos súditos reunidos em redor:

– Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o acrifício necessário ao bem comum.

A raposa adiantou-se e disse:

– Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. São coisas que até que honram o nosso virtuosíssimo rei Leão.

Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.

Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se de mil crimes, mas a raposa mostra que também ele era um anjo de inocência.

E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.

Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:

– A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve da horta do senhor vigário.

Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra:

– Eis amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.

Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimamente eleito para o sacrifício.

Moral da Estória: Aos poderosos, tudo se desculpa… Aos miseráveis, nada se perdoa.

Monteiro Lobato