terça-feira, 11 de abril de 2017

Montesquieu não chegou ao Brasil

O Brasil é um país estranho. Já completamos o primeiro trimestre e nada, de fato, ocorreu na política nacional. O país continua pacientemente aguardando a divulgação completa da lista dos políticos subornados pela Odebrecht, a publicização dos depoimentos dos delatores e uma nova ação da Lava-Jato. Em suma, tudo passa pelo Judiciário. É como se os outros dois poderes — Executivo e Legislativo — fossem apenas meros apêndices da estrutura de poder.

Nunca na história recente da democracia brasileira este desequilíbrio esteve tão evidente. Juízes, desembargadores e ministros ocupam o primeiro plano da cena política. São os atores principais. Abandonaram os autos dos processos. Ocupam os microfones com naturalidade. Discursam como políticos. Invadem competências de outros poderes, especialmente do Legislativo. No caso do Supremo Tribunal Federal, a situação é ainda mais grave. Aproveitando-se da inércia do Congresso Nacional, o STF legisla como se tivesse poder legal para tal, interpreta a Carta Magna de forma ampliada, chegando até a preencher supostas lacunas constitucionais. Assumiu informalmente poderes constituintes e sem precisar de nenhum voto popular. Simplesmente ocupou o espaço vazio.

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O projeto criminoso de poder petista ao longo de 13 anos destruiu a institucionalidade produzida pela Constituição de 1988. Cabe registrar que até então não tínhamos um pleno funcionamento das instituições. Contudo, havia um relativo equilíbrio entre os poderes e um respeito aos limites de cada um. Mas este processo acabou sendo interrompido pelo PT.

O petrolão foi apenas uma das faces deste projeto que apresou a estrutura de Estado. E que lá permanece. Depois de quase um ano da autorização para a abertura do processo do impeachment, pouco ou nada foi feito para despetizar a máquina governamental. Pedro Parente, quando assumiu a presidência da Petrobras, afirmou que havia uma quadrilha na empresa. Porém, o tempo passou e nada foi apresentado. O que sabemos sobre a ação do PT e de partidos asseclas na empresa deveu-se à ação da Justiça. Foram efetuadas investigações internas? Funcionários foram punidos? Os esquemas de corrupção foram eliminados? A empresa buscou ressarcimento do assalto que sofreu? Como explicar que bilhões foram desviados da Petrobras e seus gestores não foram sequer processados?

Se a nova direção da Petrobras foi omissa, o mesmo se aplica a um dos pilares do projeto criminoso de poder petista, o BNDES. Foi um assalto. Empréstimos danosos ao interesse público foram concedidos sem qualquer critério técnico. Bilhões foram saqueados e entregues a grupos empresariais sócios do PT. Porém, até o momento, Maria Silvia Bastos Marques não veio a público expor, ainda que sucintamente, a situação que encontrou ao assumir a presidência do banco. E os empréstimos a Cuba? E às republicas bolivarianas? E para as ditaduras da África negra?

Não é possível entender o silêncio das presidências da Petrobras e do BNDES. Por que não divulgam a herança maldita que receberam? Desinteresse? Medo? Não é politicamente conveniente? Por que os brasileiros só tomaram — e continuam tomando — conhecimento das mazelas da Petrobras e do BNDES através dos inquéritos e processos judiciais? Por que os presidentes, ex-diretores e demais responsáveis não foram processados pelos novos gestores?

Se o Executivo continua refém da velha ordem, o mesmo se aplica ao Legislativo. O Congresso Nacional se acostumou ao método petista de governar. Boa parte dos parlamentares foram sócios da corrupção. Receberam milhões de reais indiretamente do Estado. Venderam emendas constitucionais, medidas provisórias, leis e até relatórios conclusivos de comissões parlamentares de inquéritos. Tudo foi mercantilizado. E os congressistas participantes do bacanal da propina lá continuam. Desta forma, diversamente de outros momentos da nossa história (1961, 1964 e 1984-85), o Congresso não tem voz própria na maior crise que vivemos. Quais deputados e senadores poderão se transformar em atores à procura de uma solução política? Quem tem respeitabilidade? Quem fala em nome da nação?

Tanto no Executivo como no Legislativo a velha ordem se mantém com apenas pequenas alterações. Colaboradores ativos do petismo, sócios entusiasmados do maior saque estatal da nossa história, ocupam importantes postos nos dois poderes. Há casos, como o de Leonardo Picciani, que seriam incompreensíveis a algum analista estrangeiro que não conhecesse a hipocrisia da política brasileira. O deputado votou contra a abertura do processo do impeachment e, mesmo assim, foi premiado com o cargo de ministro do novo governo. Boa parte da base parlamentar que sustentou os governos criminosos do PT agora apoia Michel Temer, sem, em momento algum, ter efetuado alguma autocrítica.

É justamente devido às contradições dos outros dois poderes que o Judiciário acabou invadindo o espaço que constitucionalmente não é o seu. Isto não significa que opere sem divergências. Pelo contrário. Basta recordar os constantes atritos entre os responsáveis pela Lava-Jato e alguns ministros do STF, o que também não é recomendável.

O que é inquestionável é o desequilíbrio entre os poderes. Mais ainda, a supremacia do Judiciário. É um desserviço ao Estado democrático de Direito o enorme poder dos juízes, também porque, mas não apenas por isso, sequer receberam um voto popular. E continuam incólumes ao controle democrático. O que diria o Barão de Montesquieu de tudo isso?

Marco Antonio Villa

Paisagem brasileira

Paisagem com figura e casas, Guastavo Dall'Arra

Confusão previdenciária

Conseguiram confundir totalmente a discussão da reforma previdenciária: governos, economistas, políticos, jornalistas, trabalhadores e patrões. Será muito difícil trazer a um nível mínimo de entendimento para uma votação consciente no Congresso, onde proposta governamental requereu quinze páginas de emendas constitucionais, ou seja, uma mini-Constituinte! Será isso necessário?

“Previdência Social” é o nome de um “seguro-velhice” instituído e organizado pelos Estados modernos visando amparar o cidadão trabalhador nos seus últimos anos de vida a partir de uma poupança “forçada”, capitalizada nos seus anos de trabalho ativo e baseado no princípio questionável de que este cidadão é, por natureza, imprevidente, e, portanto, se deixá-lo livre em suas decisões, ele preferirá consumir sua renda no presente em detrimento de uma segurança no futuro.

Em Teoria de Finanças Públicas é uma “transferência”, não é “imposto”, com implicações macroeconômicas completamente diferentes, inclusive sendo autofinanciável.
A ideia correta de capitalização foi desvirtuada para um “regime de caixa”. Isso porque os mercados financeiros não tinham confiabilidade suficiente para receber esta função até há pouco tempo – as primeiras tentativas de previdência complementar privada nos anos de 1980 resultaram em quebradeira geral, para desespero dos aplicadores. Ainda recente, as previdências fechadas de empresas estatais foram objetos de assalto por parte do partido no poder.

Para melhor entendimento dos atuais problemas, vamos dividir a Previdência em dois grandes blocos: 1- privada, ou Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e; 2- pública, ou Regime Público da Previdência Social (RPPS), sendo esta última nos níveis federal, estaduais e municipais. A previdência privada é administrada pelo INSS e, complementarmente, pelas chamadas entidades “fechadas” de previdência privada, constituídas por empregados de empresas públicas ou privadas e, supostamente, sem visar lucro.

A primeira grande discussão é sobre déficit ou superávit das previdências e sua sustentação no longo prazo, de onde começaremos. Para isso, há que se definir o que é déficit ou superávit nessas contas. No Brasil, a previdência social é parte da chamada seguridade social, divisão orçamentária onde entram todos os gastos sociais: saúde, educação, todos os tipos de amparo social e até, previdência. Alguns tributos como Cofins e CSLL estão direta, mas não inteiramente, vinculados a esses gastos.

Nesse aspecto, déficit ou superávit ficam extremamente elásticos, basta que se escolha que tipo de receitas e de gastos contemplar. Vamos usar aqui somente as “receitas próprias” da Previdência, aquelas descontadas dos salários, e os gastos com aposentadoria e pensões.
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 A reforma da Previdência é necessária porque ela é cara, mal administrada e uma trava para a geração de empregos

Nesse particular, a previdência pública da União é altamente deficitária – entre 2012-2015 foram, respectivamente, R$ 55 bilhões, R$ 57 bilhões, R$ 65 bilhões e R$ 72 bilhões, déficit bancado por tributação geral: o trabalhador ao comprar alimentos e recolher Cofins está financiando o déficit da aposentadoria do marajá federal do Legislativo, Executivo e Judiciário, um acinte em termos de princípios sociais de tributação.

A relação inativo/ativo é de 0,80 ou seja, no regime de caixa seria preciso retirar 80% do salário do servidor ativo para bancar o inativo, com autofinanciamento. Primeira conclusão: há um enorme déficit previdenciário na União, bancado por quem não tem nada a ver com isso: o povão.

Nos Estados a situação é pouco melhor, exceto RJ, RS e SP, que concentraram 60% do déficit total de R$ 49 bilhões em 2015. Os demais têm contas relativamente administráveis. As prefeituras estão, na maior parte, equilibradas, exceto a do Rio de Janeiro, de novo. Segunda conclusão: fora alguns poucos Estados, a previdência estadual e municipal não é, ainda, um grande problema.

No Regime Geral da Previdência Social dos trabalhadores privados, quando se compara “receitas próprias” com gastos de aposentadoria e pensões, houve superávit nominais entre 2010-2014 de R$ 29 bilhões, R$ 46 bilhões, R$ 50 bilhões, R$ 56 bilhões e R$ 61 bilhões, caindo para R$ 4 bilhões em 2015, pela crise (fonte: Anuários Estatísticos da Previdência Social, não disponível 2016). Terceira conclusão: não há déficit na previdência privada, mas superávit. Embolar outros gastos na mesma contabilidade é sofismar.

 Conclui-se então, que não há necessidade de reforma da Previdência? Não. A questão é que ela é muito cara, 28-31% da folha de pagamentos (de fora o “Simples”) onerando justamente o emprego, empurrando os trabalhadores para a informalidade e as empresas para as penalidades.

Uma conta simples de matemática financeira, muito rodada na internet com maiores ou menores precisões, mostra que, se o trabalhador aplicasse 8% de seu salário durante 40 anos a 5% ao ano (média nas previdências fechadas) poderia descapitalizar durante mais 20 anos com o mesmo salário.

Ou seja, aposentadoria integral em 40 anos é possível, sim, e com custos mais baixos do que os atuais 28-31%, com sobrevida de 20 anos. É o tal sentimento que todo aposentado do INSS tem: “Sinto que recebo menos do que contribuí na minha vida ativa”! Estão certos.
Se em vez de capitalização fosse mantido o atual e descabido regime de caixa, onde o trabalhador ativo mantém o inativo, a conclusão por cálculo atuarial seria semelhante, desde que todos se aposentassem aos 65 anos.

Portanto, tem havido excesso de arrecadação na Previdência, mas alguém tem metido a mão nessa grana. Onde foi parar todo esse dinheiro? Nos bolsos daqueles privilegiados que se aposentaram precocemente e no caixa da União, que os gastou em outras rubricas. Por isso é necessária uma reforma da Previdência. Por que ela é cara, mal administrada e uma trava para a geração de empregos.

Guerra ou violência urbana?

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A guerra só é um jogo bélico para quem a faz e para a história. Para quem a vive no cotidiano é uma imposição, que estabelece a insegurança, oblitera o futuro, e só se suporta na certeza de que um dia há de acabar
Mariana Colassanti,"Minha guerra alheia"

Em nome da democracia

Dez reais por habitante. Esse é o valor de uma espécie de tributo extraordinário que a Câmara dos Deputados planeja criar para o ano que vem, segundo o mais recente projeto de “Reforma Política”, relatado pelo deputado Vicente Cândido (PT-SP).

A derrama somaria R$ 2 bilhões. O dinheiro sairia do orçamento da União, sob o codinome de Fundo de Financiamento da Democracia, e irrigaria os cofres dos partidos políticos nas eleições gerais de 2018.

Não é pouco dinheiro num país com as contas públicas em vermelho-vivo, cujas cidades abrigam 13,5 milhões de desempregados e que passou a ter na morte uma rotina nas portas dos 4.870 hospitais que servem a um Sistema Único de Saúde em colapso.

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Vai ser difícil a candidatos como o deputado Cândido explicar nas praças públicas paulistanas por que sua campanha eleitoral é financiada com o dinheiro público cortado nos hospitais e postos de saúde da cidade. Detalhe: nessa conta não entra o custo dos 594 parlamentares em Brasília, que ano passado consumiram R$ 9,2 bilhões na Câmara (R$ 5,3 bilhões) e no Senado (R$ 3,9 bilhões), informa a ONG Contas Abertas.

Os R$ 2 bilhões para “financiamento da democracia” equivalem a uma semana de gastos na rede pública de saúde. Desde 2011, ano em que Cândido chegou à Câmara, as despesas do SUS têm sido sucessivamente cortadas, segundo o Tribunal de Contas da União, cujas auditorias retrataram o legado Lula-Dilma, agravado no governo Michel Temer: “A cobertura de assistência de saúde às famílias só chega à menor parcela da população, que reside em metade dos municípios de porte médio, com mais de cem mil habitantes. Nas grandes cidades, o serviço está limitado a apenas nove das 27 capitais.”

Com olhos voltados para um terceiro mandato, o deputado Cândido garante que todos devem ficar tranquilos, porque seu dinheiro terá “total transparência do uso".

Existem 35 partidos, dos quais 28 têm bancadas no Congresso. Muitos, talvez, não devessem estar registrados na Justiça Eleitoral, mas na Junta Comercial. Prova disso está na sala do prédio do TSE com mais de 1.000 volumes de processos à espera de julgamento. Correspondem à prestação de contas dos partidos sobre gastos de R$ 3,5 bilhões em dinheiro público nos últimos cinco anos, em nome da democracia.

Auditores do TSE já recomendaram a rejeição das contas de 26 partidos, entre eles PT, PMDB e PSDB. Entre os motivos, está o recorrente aluguel de jatos para dirigentes com custo final até 150 vezes acima do valor da viagem em avião de carreira.

Há casos como o do antigo PTN (atual Podemos), da família Abreu, de São Paulo, que se tornou recordista: 92% de suas contas foram rejeitadas. O PPS (antigo Partido Comunista Brasileiro) teve 60% dos gastos vetados.

São frequentes os relatos de dirigentes usando dinheiro público, o fundo partidário, no pagamento de despesas privadas até em cassinos. Tempos atrás, um deles se casou no cassino de Punta del Leste, onde era freguês. O romance acabou depois de uma noitada, embalada pelo romântico Julio Iglesias, quando o então deputado do PR chegou à suíte e confessou à mulher que perdera US$ 500 mil (R$ 1,5 milhão) na mesa de pôquer do Conrad.

José Casado

Governo Temer adota a tática do balão de festa

Depois de ceder além do que gostaria na proposta de reforma da Previdência, o governo submete seus aliados no Congresso à tática do balão de festa. Consiste basicamente em alertar deputados e senadores para o fato de que não é possível adotar em relação à Previdência um comportamento de criança que, em festa infantil, fica enchendo o balão para testar o ponto de ruptura. O governo sustenta que, no caso da Previdência, um sopro a mais no balão fará com que o déficit previdenciário estoure na cara do país. Nessa teoria, a lamentação depois do fato não impedirá as dores de uma reforma feita tardiamente, após o estouro do balão.

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Com o mandato questionado na Justiça Eleitoral e sem apoio popular, Temer costuma apresentar a maioria sólida que seu governo ostenta no Congresso como o grande capital político do seu governo. É esse diferencial, diz o presidente, que vem permitindo ao governo avançar em reformas que trarão de volta o crescimento econômico. Pois bem, a reforma da Previdência põe em risco esse único pilar de sustentação do governo Temer.

Antes do futuro do país, o que está em jogo na reforma da Previdência é o futuro do governo Temer. A rejeição dessa reforma —ou a aprovação de uma reforma pífia— fariam de Temer um presidente irrelevante. Daí a dramatização do discurso. Pelas contas oficiais, se a reforma não sair, em dez anos os gastos com a Previdência e a folha salarial consumirão 95% do dinheiro disponível para cobrir as despesas da União. De olho nas urnas de 2018, muitos congressistas acham que ainda é possível soprar o balão. O governo alerta que a Previdência não resiste a mais um hálito. E o brasileiro assiste ao embate com a sensação de que os dois lados já encheram o bastante e que alguma coisa vai estourar na sua cara a qualquer momento.

Encontro de ases

A questão democrática em perspectiva

Para tempos de crise, neurocientistas de ponta coincidem com a sabedoria milenar do budismo: “A solução não se dá ao nível do problema”. Quer dizer que o breakthrough, o ponto de ruptura de impasses, não será localizado nos termos em que o problema é posto. Nada de misticismo. Apenas a ideia de que a solução impõe uma mudança de perspectiva e, portanto, de foco.

Essa reflexão foi suscitada por uma varredura da literatura jornalística especializada a que me obrigo para tomar o pulso de uma crise. Os fatos, diz Garton Ash, são subversivos. Mas numa democracia de massa a percepção dos fatos varia em função dos interesses afetados, do tempo de decantação por diferentes atores sociais e dos filtros institucionais à disposição da sociedade para absorvê-los. Em tempos de “fatos alternativos” à maneira de Trump (há outras) e de redes sociais, a qualidade subversiva dos “fatos” adquire contornos novos.

democracia:
Será que aquela prescrição se aplica também às conjunturas críticas que estão na esfera das instituições e da ação coletiva, da política, pois, e não na esfera individual? Para situações como a nossa, em que a sucessão de fatos subversivos se assemelha à de um longo seriado, desdobra-se em crises que se entrelaçam, gerando uma tempestade perfeita? São tempos de recessão e desemprego; de Lava Jato; de incerteza quanto ao futuro do governo Temer; de Operação Carne Fraca, que atinge um dos (poucos) casos de sucesso do capitalismo de Estado à brasileira.

Ao analista político cabe só analisar criticamente em que termos o problema está sendo posto – e explicar-se caso acredite ser necessária uma mudança de foco. É o caso aqui, por três razões: 1) As características distintivas da nossa conjuntura, da óptica do eleitor; 2) de que forma a economia entra na equação política do eleitorado; 3) a responsabilidade do jornalismo.

As características da conjuntura atual obrigam a reintroduzir a perspectiva do eleitorado, não apenas por ser o ator que em última instância legitima o acesso ao poder. A teoria política reserva-lhe lugar central ao fundamentar a superioridade do regime democrático em termos de sua capacidade de autocorreção: um regime dotado de mecanismos que garantem a redefinição de rumos, em bases periódicas, as eleições, às quais se somam as instituições que garantem prestação de contas periodicamente e também em condições excepcionais.

Sabemos que há várias crises que se sobredeterminam e que o diagnóstico e a solução para cada uma delas tem forte dimensão técnica. Mas na percepção correta do eleitorado as crises econômica, política e a corrupção sistêmica se imbricam e se reforçam mutuamente. Daí o desalento e o ceticismo que tende a desaguar no voto de protesto e antiestablishment. Visto como uma emoção reativa (não como filosofia), o ceticismo reflete um sentimento de impotência, de falta de controle sobre os acontecimentos – como indica a composição dos eleitorados de Trump e do Brexit. Dessa óptica, é só um sinal a ser decifrado pelo analista. Como desafio, porém, deve ser bem equacionado pelos políticos expostos à concorrência eleitoral, sob pena de derrota e de revisão estratégica dos rumos do país, como atestam as lideranças do Partido Democrata nos EUA e do Partido Trabalhista no Reino Unido. Mas a analogia acaba aí, por motivos que tornam mais incerta a nossa travessia. Uma delas é que a relação com a lei é diversa. Sob o impacto da Lava Jato e de transformações anteriores no ordenamento jurídico, o cálculo político de curto prazo, eleitoral, tem novos contornos. Prevalece o critério de autopreservação.

É a partir desse contexto que adquire sentido o impulso conservador de projetos de reforma em curso no Legislativo, especialmente o de reforma política coroada pela regra de lista fechada. Não estão pautados por cálculo estratégico, como no caso de Trump: por um projeto alternativo (embora reacionário) de país, ancorado em identidades partidárias nítidas e numa coalizão social nacionalista-protecionista-confessional arraigada desde 1994 e redimensionada desde a crise de 2008.

As circunstâncias de quase total desconexão entre representante e representado impõem uma mudança de foco. Os critérios de desempenho a ser adotados para avaliar as propostas de reforma político-eleitoral e de abuso de autoridade são dois: se tornam o voto e a prestação de contas mais inteligíveis para o eleitor e se contribuem para reforçar os mecanismos de autocorreção de nossa democracia.

Nesse quadro é pertinente ressaltar uma diferença essencial, mas subestudada, entre o impacto da Lava Jato e o da Mãos Limpas. Neste último caso, as lideranças da esquerda organizada, sob a égide de um Partido Comunista engajado no aperfeiçoamento da democracia representativa, saiu-se comparativamente ilesa. Essa diferença ilustra bem o fato de que vivemos uma crise de legitimação política que se sobrepõe à crise estrutural de representação. Significa que nossa travessia está mais exposta a acidentes de percurso.

Diante da falta de inteligibilidade político-ideológica do voto, é a economia que fornece ao eleitor, bem ancorado em seus interesses, as condições mínimas de inteligibilidade. O desempenho da economia converte-se em principal critério de legitimação política, por ser o único que faz sentido.

Por isso, as projeções eleitorais para 2018 são prematuras. Sob o impacto da Lava Jato e do desempenho da economia, o impulso para ruptura dos impasses depende, sim, da qualidade da reforma político-eleitoral, mas também de duas outras condições. De como o governo e os meios de comunicação responderão ao desafio típico das democracias de massa: como reduzir o hiato entre o caráter instantâneo da informação e a capacidade da população para elaborá-la? Um hiato tanto maior em sociedades desiguais onde a educação é valor subalterno – o que aumenta a responsabilidade social e política do governo, do jornalismo e do sistema de Justiça.

Vaticínio


Enquanto a Nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos
Joaquim Nabuco (1849-1910)

Quem perdeu?

A geração de políticos formada na Segunda República (1945-1964) foi derrotada pela radicalização que a Guerra Fria fomentou numa sucessão de crises antecedentes ao golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart. As principais ocorreram em 1954 (suicídio de Getúlio Vargas), 1956 (posse de Juscelino Kubitschek) e 1961(renúncia de Jânio Quadros). Sucumbiram no processo quase todos os protagonistas, com exceção de Leonel Brizola, o incendiário, que após a anistia elegeu-se governador do Rio de Janeiro, em 1982, e Tancredo Neves, o bombeiro, que elegeu-se presidente em 1985, mas não chegou a tomar posse. José Sarney, o vice que assumiu a Presidência da República, e Ulysses Guimarães, o grande líder da oposição que presidiu a Constituinte eleita em 1986, eram políticos coadjuvantes no pré-64.

Do legado da geração de políticos que emergiu do regime militar, quase tudo foi volatilizado pela crise atual. Individualmente, é difícil reconhecer o próprio fracasso, mas, diante das revelações da Operação Lava-Jato e do buraco em que nos metemos, fica evidente o fracasso de uma geração. O governo e a oposição, o Congresso e os partidos políticos, talvez boa parte dos governos estaduais, caíram no descrédito popular. Como negar esse fracasso a 13 milhões de desempregados, outros tantos que vivem da economia informal, aos milhões de jovens sem perspectiva de emprego futuro — boa parte já fora da escola. Pela primeira vez na história, uma geração entregará o país em condições piores do que o recebeu.


Não é à toa a situação de esgarçamento social existente, que favorece a radicalização política. A Guerra Fria já não existe, mas o clima é de guerra quente por causa da crise na Síria. O país perdeu o consenso em torno de algumas ideias que balizaram a transição à democracia. Durante a Constituinte, havia grandes consensos em relação à política externa, ao modelo industrial, ao acesso universal à saúde e à educação, à legislação trabalhista, ao regime tributário, ao sistema partidário, ao sistema eleitoral, às questões agrária e indígena etc.

As posições extremas em relação a tudo isso estavam isoladas.Trinta anos depois, não há mais consenso sobre nada. O nosso Estado de direito democrático sustenta-se no que está escrito na Constituição de 1988 e não no amplo entendimento sobre a realidade social, para onde e como o país deve caminhar. Os indicadores de violência são um fator perturbador de que a convivência social é muito frágil, basta tirar a polícia da rua — ou dos estádios — para emergir a barbárie.

Quando se ouve a voz da maioria dos políticos, a sensação é de que estão repetindo os mesmos discursos há 30 anos. O que predomina no debate político são visões ideológicas, incapazes de abrir caminhos para o enfrentamento da crise atual, porque refletem de forma distorcida as reais contradições da sociedade. Ou, simplesmente, são carapaças políticas nas quais se escondem, sem acreditar nas próprias palavras. É impossível construir novos consensos quando não há diálogo e abertura para dar vazão ao novo.

O que fazer?
Um dos efeitos colaterais da reeleição de presidentes, governadores e prefeitos foi empurrar a fila para trás. Quando se compara nossas lideranças com as de outras nações — basta assistir aos telejornais —, é flagrante a diferença de gerações. Não se formou ainda uma nova geração de líderes. Nossos principais políticos são os mesmos desde a Constituinte, com raras exceções. E não foram capaze até agora de construir novos consensos em torno de ideias básicas que promovam o crescimento, combatam os privilégios, reduzam as desigualdades, enfrentem seculares iniquidades sociais, como o analfabetismo, a falta de moradia e a discriminação racial.

Essa dificuldade é maior porque muitas das ideias da nossa elite política estão sendo atropeladas pela revolução tecnológica e a economia do conhecimento. O mais dramático nesse aspecto é que a nova geração de políticos está numa gestação de risco, muitos dos quais já condenados às ideias anacrônicas. Assim como ficamos de fora das três revoluções industriais, fomos excluídos da quarta. O lugar cativo do Brasil na nova divisão internacional do trabalho é exportar alimentos in natura e granulados de minério. Se quisermos realmente ser mais do que isso, utilizando o potencial que temos, o país terá que se reinventar sob vários aspectos, a começar pelo Estado. É aí que está instalado o maior conflito.

O Estado no Brasil é anterior à nação. Foi o guardião da escravatura até 1888. A partir de 1930, transformou-se na alavanca da industrialização. A forma mais rápida e lucrativa de reprodução e concentração de capital no Brasil é a transferência de renda do Estado para o setor privado, desde sempre. Sua reforma pressupõe a reinvenção do capitalismo no país. Esse talvez seja o grande busílis do novo consenso a ser construído. Já existe uma opinião pública majoritariamente engajada na ideia de que os grandes interesses privados precisam ser apartados dos mecanismos de decisão do Estado, mas como traduzir isso na política? Sem os políticos e o Congresso, é impossível.

Gente fora do mapa

Diana Arbus

Delirante, Temer ameaça a base aliada para aprovar reforma da Previdência

O presidente Michel Temer caiu na própria armadilha que preparou. Fez uma releitura equivocada de Nicolau Maquiavel e resolveu adotar uma estratégia verdadeiramente suicida. Em sua obra mais conhecida, “O Príncipe”, o genial historiador, poeta, diplomata e músico florentino recomendou que o governante fizesse o mal de uma vez só, mas bem, aos pouquinhos. Mas de 500 anos depois, Temer resolveu fazer exatamente o contrário. Anunciou a reforma da Previdência como um imutável saco de maldades, a ser concretizado aos poucos. É claro que não poderia dar certo.


Às vésperas da derrota, até os garçons da Câmara sabem que a reforma não passará, Temer entra em desespero e resolve assumir pessoalmente as negociações diretas com os deputados, mais um erro absurdo que o Príncipe jamais cometeria, porque vulgariza a indispensável majestade do cargo.

Segundo a mais recente pesquisa do Estadão, o placar está em 272 contrários (mais do que maioria absoluta) e apenas 99 favoráveis, entre os quais praticamente não há que aceite a proposta original do governo, que já está sendo mitigada.

No afã de reverter a tendência da votação, Temer convocou uma reunião nesta terça-feira (dia 11), com os deputados tidos como governistas e que integram a Comissão Especial que discute o tema, na esperança de convencê-los a apoiar a reforma.

O mais curioso é que Planalto adota essas estratégias equivocadas e se encarrega de vazá-las em off à imprensa. A própria Assessoria de Imprensa espalhou informações de que os principais pedidos dos aliados já foram atendidos e, a partir de agora, críticas à reforma da Previdência serão vistas como gestos de oposição ao governo.
Em tradução simultânea, Temer está ameaçando os parlamentares, o que significa entrar novamente em rota de colisão com as teorias de Maquiavel, porque esse tipo de “negociação” não pode ser divulgado.

Os deputados precisam de votos. Sabem que apoiar maldades contra o trabalhador pode lhes ser fatal. Já aprovaram equivocadamente a terceirização irrestrita e estão arrependidos, porque vai reduzir salários e afetar ainda mais a receita do INSS.

Perguntar não ofende, diria Agildo Ribeiro. O ministro Celso de Mello, do Supremo, deu prazo de dez dias para a Câmara e o Governo exibirem os cálculos atuariais que justificariam a reforma. Já se passaram 40 dias e não saiu nada na imprensa. Será que apresentaram os dados na encolha, como se dizia antigamente? A verdade é que esses dados não existem, o governo quer aprovar a reforma no peito, com um mínimo de debate, e o ministro Celso de Mello exigiu, mas não cobrou, e vai deixar passar em brancas nuvens.

Assim é... e nos parece

Senado vai às compras

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O Senado Federal renovou o estoque de acessórios para garantir aquele cafézinho durante os trabalhos. O órgão separou R$ 5,9 mil para a aquisição de 370 garrafas térmicas, garantindo o café quentinho de cada dia.

As garrafas são para mesa, uso e transporte vertical, com alça integrada de grande resistência e conservação térmica de líquidos quentes e frios. Os “equipamentos” também possuem tampa de vedação rosqueada, sistema que permite servir sem abrir a garrafa. Internamente confeccionada com ampola de vidro espelhado, com região de vácuo, própria para evitar transferência de calor por radiação ou condução térmica, capacidade de 1 litros.

O Senado ainda vai destinar R$ 2,5 mil para 90 bandejas de inox redondas com borda e sem alças, acabamento em polimento em alto brilho, sem conter manchas, decoração ou deformações. As bandejas podem ser lavadas, diariamente, na máquina de lavar louças preservando a beleza, a higiene e a durabilidade do material.

Porta-copos

Outros R$ 6 mil foram empenhados pelo Senado para a aquisição de 1.570 porta-copos confeccionados 100% em aço inoxidável, com “resalto” no fundo para evitar aderência quando se pega o copo. Sem nenhuma deformação, as peças deverão apresentar o acabamento do aço inox em alto brilho.

Guardanapos

O Senado Federal vai destinar R$ 8 mil para a compra de 7,4 mil pacotes de guardanapos de papel. Os guardanapos possuem folhas simples, na cor branca sem nenhum desenho, composto de fibras 100 naturais, em formato 220 x 240 mm (tolerância +/- 10 mm. Os itens devem apresentar boa capacidade de absorção, não devem conter furos materiais estranhos ou sujidades, embalados em pacotes plásticos contendo 50 unidades.

Lanches

O Tribunal Superior Eleitoral, por sua vez, reservou R$ 15,3 mil para o fornecimento parcelado de gêneros alimentícios para produção de lanches.

Taxa

Já a Câmara dos Deputados reservou R$ 3,6 mil para o pagamento de taxa extraordinária de condomínio de salas localizadas no edifício Palácio do Comércio, de propriedade da Casa. A taxa servirá para custear obra de modernização dos elevadores. O pedido foi realizado pelo Demap.

Piscina protegida

A Câmara ainda reservou R$ 2,3 mil para o fornecimento de 77 m² de capa para piscina localizada na residência oficial da Casa, ocupada pelo presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Democracia se faz assim

No dia 21 de setembro de 1980, uma delegação dos quatro partidos da oposição no Brasil (Ulysses Guimarães, MDB, José Aparecido de Oliveira, PP, Jacob Bittar, PT e Sebastião Nery, PDT) foi recebida em Bonn, na Alemanha, pelo chanceler alemão Helmut Schmidt, para uma visita de duas semana a convite do SPD, o partido da Social Democracia Alemã, no governo.

Viajamos muito, conversamos muito, aprendemos muito. O SPD mostrou aos amigos brasileiros como ligava suas bases, seus comitês executivos e eleitorais, nacionalmente, antes e depois das eleições, constituindo o dinâmico partido que enfrentava a poderosa Democracia Cristã Alemã por ele tantas vezes derrotada, como nas últimas eleições.

O SPD tinha no Brasil um braço internacional para ação social e política, o ILDES, Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento Econômico e Social, ligado a fundação alemã Friedrich Ebert. Nesta época o ILDES criou no Brasil um conselho político de quatro membros: dois senadores, Fernando Henrique Cardoso e Roberto Saturnino Braga, e dois deputados federais, Fernando Lyra e Hélio Duque.


 A primeira ação do conselho foi uma viagem a Berlim para um encontro com o então prefeito e herói da democracia alemã Willy Brandt.

A principal lição naqueles dias na Alemanhã, foi como os alemães saíram da tragédia do nazismo e da Segunda Guerra Mundial para construírem a sólida democracia que têm hoje.

Sem uma reforma verdadeira, torna-se impossível mudar a qualidade da vida política brasileira. Infelizmente, os fariseus grudados nos poderes da República não têm nenhum interesse real na implantação de uma verdadeira reforma. Ela teria de atacar de frente a não existência de autênticos partidos no Brasil, mas unicamente legendas partidárias. Deveria enfrentar as oligarquias patrimonialistas que se sustentam na ignorância popular, mãe da corrupção. Não poderia ficar dependente do sistema eleitoral e apenas ser garantia do financiamento público de campanhas com manutenção do injustificável Fundo Partidário e outras “pajelanças” privilegiadoras dos que se consideram donos do poder.

Além de garantir a manutenção dessas iniquidades, os propositores da falsificada reforma política, em tramitação no Congresso Nacional, desejam introduzir o voto em lista para assegurar, casuisticamente, os seus mandatos.

Os oportunistas demonstram que a soberania popular é apenas um detalhe na vida política nacional. Extinção dos partidos de aluguel, aprovando a cláusula de barreira, eliminando as coligações partidárias nas eleições proporcionais, por exemplo, não consta da pauta dos falsos reformistas. Querem uma reforma política para garantir longa vida aos patriarcas partidários envolvidos nos recentes escândalos do caixa 2 e “propinas” na escala de bilhões.

A verdadeira reforma política deveria começar pela eliminação do voto obrigatório. O voto é um direito da cidadania, não é um dever como exige a ultrapassada legislação eleitoral brasileira. Aqui o voto é uma exigência legal, punindo o eleitor ausente que deve justificar-se na Justiça Eleitoral, para não ter interditado os seus direitos políticos. A punição é severa, não podendo participar de concurso público, nem matricular-se em universidades federais. Fica proibido de tirar carteira de identidade, passaporte ou obter empréstimo em banco público. O voto obrigatório é uma clara tutela ao cidadão.

Não há graça na intolerância e no preconceito

São incontáveis os abusos que temos vivido nestes tempos estranhos, difíceis, que vivemos. Abusos que atingem a todos. Abusos individuais. Abusos renitentes e coletivos, como a insegurança que, há décadas, castiga brasileiros.

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Ano após ano, governo após governo, cidadãos-contribuintes, atônitos, padecem de insegurança e desproteção, corriqueira na vida dos mais pobres, mais vulneráveis, crescente entre remediados e ricos. Todos sujeitos a tudo.

E no tudo cabe assassinato, torturas, surras, costumeiros estupros – coletivos, inclusive.

Em grandes e pequenas cidades, em toda e qualquer rua, assaltos à mão armada são parte do cotidiano brasileiro. Não merecem planos de reformas, nem nada além de mimimi e blablabla da autoridade, mandantes ou paus mandados.

O século 21, previsto para ser marcado pelo conhecimento e pela tecnologia, neste primeiro terço, explode em abusos – grandes e pequenos. Não há Deus que nos acuda.

No macro e no micro, o abuso corre solto. É norma de conduta.

Abusados, milhares navegam à deriva de compaixão em barcos e botes precários, superlotados. É gente. Embora nem pareça. São humanos desesperados, arriscando o que lhes sobra de dignidade para fugir das guerras. E, talvez, sobreviver aos campos, onde são confinados, até que o poder da autoridade lhes conceda abrigo em algum canto ainda não desgraçado por armas, terror e ódios.

Lá e aqui, longe e perto, somos diariamente bombardeados, não só com armas químicas ou misseis, mas também com palavras e obras.

- Eu tenho 5 filhos. Foram 4 homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher.

- Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem pra procriador ele serve mais.

Tudo dito, desavergonhadamente, por inominável figura pública – parlamentar federal, celerado, que, em plenário, ao vivo, em transmissão nacional, homenageou um torturador – monstro cuspido e escarrado dos tempos da ditadura.

Abusador abusado, lamenta publicamente que seus colegas gorilas, na ditadura, não tenham “terminado o serviço”. Caso chegue ao poder, terminará o serviço. Promete “matar uns 30 mil que sobraram”.

Pois, em tempo de abusos, esse indigitado vem merecendo aplausos. Recebe homenagens à sua alardeada boçalidade até de impensáveis plateias, como a do clube Hebraica, no Rio de Janeiro. A Hebraica! Que reúne associados descendentes de vítimas do Holocausto – marca registrada de abuso, crueldade e desumanidade.

Setenta anos depois, aqueles sócios da Hebraica limaram a lembrança de 11 milhões de mortos – 6 milhões de judeus, cinco milhões de “outros”, como ciganos, gays, comunistas, socialistas, anarquistas, portadores de deficiências, adversários. Gente que o desilustrado palestrante da Hebraica carioca definiria como cocô, “galinha que nunca vai dar ovo”.

Aquela plateia de filhos, netos, bisnetos de vítimas do nazi-fascismo não se lembra mais dos clubes macabros onde seus ancestrais foram reunidos, não como gente, nem como bichos, mas como escravos em quem toda a degradação foi testada. Esqueceram Auschuitz, Bergen-Belsen, Dachau, Sobidor, Teblink e seus muitos congêneres.

Sem constrangimentos, aplaudiram a intolerância. Rindo, debocharam do terror e da tragédia de seus avós, pais, primos, parentes, amigos e dos que hoje atuam para não deixar esquecer aquela barbárie e suas vítimas. Em tacada única, autorizam a repetição, legitimaram os abusos. Impuseram abuso sobre o abuso.

Como a plateia da Hebraica, dezenas de pequenos abusadores impõem – e justificam - pequenos e cotidianos abusos aos vulneráveis, aos subalternos. É o juiz que abusa da autoridade decidindo fora da lei, ou constrangendo uma das partes - a mais fraca, sempre - com ameaças veladas, particularmente em causas corriqueiras, como pensão alimentícia: “A senhora sabe que eu posso, inclusive, reduzir a pensão de seus filhos? ” Ela sabe sim que sim. Ali, ele pode tudo. Inclusive ser injusto. E abusa disso.

É o delegado – às vezes, delegada – que insiste em desencorajar a abusada de registrar o abuso. “Isso pode prejudicar muito seus filhos...” Sem dize, diz: Siga abusada!

É o chefe – às vezes, a chefe – capaz de receber subalterna, que volta da licença maternidade, indagando: “Não foi tempo demais para descansar, não? Você já não cansou de tanto descansar? ” Ele/a apoiaria a redução da licença maternidade.

A cadeia de abusos vem – e vai - do micro ao macro. Tantos e, às vezes, tão costumeiros e sutis, que quase imperceptíveis. Mas são abusos e vêm marcando o século 21. Até quando? E até onde? Quanto? São limites que só nossa indignação – e compaixão - pode demarcar.

Adeus

Caros leitores, meus semelhantes e irmãos, vou abandoná-los. Isso. Correndo o risco de “lugares-comuns” ou lamentos narcisistas, vou dizer por quê. Foram 26 anos escrevendo sem parar para vários jornais do país.

E aqui já vai meu primeiro lugar-comum: “Como o tempo voa... Foi outro dia mesmo” que estreei na “Folha de S.Paulo”, onde fiquei por dez anos.

Depois, fui para outros jornais, incluindo o “Estadão” e O TEMPO, de Belo Horizonte. Fiz as contas e, entre o espanto e o orgulho (outra obviedade), verifiquei que, nessas duas décadas e meia, escrevi cerca de 1.500 artigos para jornais. Mil e quinhentos? É. Logo depois, me meti na TV e no rádio, onde também estou há 20 anos mais ou menos. Rádio e TV juntos somam cerca de 3.000 comentários sobre a vida do país até hoje. Como ousei? Com que cara me meti nisso, deitando regra sobre tudo? Bem, foi por fome, e não por vaidade.

Eu fiz cinema por 30 anos e, como todo cineasta, sofria de duas angústias básicas: ansiedade e frustração. Fiz nove filmes e, mesmo assim, passava necessidade para sustentar minhas filhas. Um dia falei: “Enchi. Chega de sofrer”. Encontrei Fernando Gabeira num avião e pedi que ele me recomendasse à “Folha”, para o qual ele escrevia. Pois não é que o bom Gabeira me indicou ao Otavinho Frias, que me empregou? Sou grato a Gabeira por isso e pelo importante trabalho desse grande brasileiro.

Assim, por acaso (mais um chavão), se muda a vida de um homem. E “não pude me conter de alegria” (mais um...) quando, no dia seguinte ao primeiro artigo, o jornal estava na porta com meu nome e minhas ideias. Para um sujeito que esperava três anos para dizer o que pensava num filme, era um surto de felicidade (mais clichê). Mas foi mesmo. Comecei a ter um sentimento novo: a sensação de utilidade pública. Digo isso porque o cineasta no Brasil se sente trancado do lado de fora da vida social, que, mesmo assim, tem de descrever, analisar, criticar. Durante muitos anos me senti como um cara que quisesse ser astronauta no Piauí. Não posso reclamar, pois alguns filmes deram certo em crítica e público, mas nada se compara ao prazer de esculachar o cabelo implantado do Renan, o bigode e jaquetão do Sarney ou a cachoeira de rugas e valas que escorrem da cara do Lobão.

E fico orgulhoso porque nunca o jornalismo teve tanta importância como em nossos tempos de claros e escuros.

E afirmo também que nunca escrevi para “soprar minha própria corneta”, (outro lugar-comum, norte-americano), mas pela emoção de contribuir para o entendimento de mim mesmo e da nossa terra. Botei minha cabeça na encruzilhada como um despacho entre mim e o país em volta. Ficou minha cabeça ali, recebendo os detritos da vida nacional. Muita gente despreza jornalismo como literatura, pois, no dia seguinte, a obra embrulha o linguado. Pois bem, eu adoro embrulhar linguados e robalos, porque acho que um banho de efêmero só faz bem à literatura. Vejam Rubem Fonseca e Nelson Rodrigues. Resolvi ser repórter e prova do crime. Odeio os comentários “de fora,” do comentarista intocado, isento, como se morasse num tapete mágico ou num helicóptero existencial. Ninguém está fora do jogo. Ser digno não basta; é preciso se incluir entre os loucos – aqueles que acreditam na razão –, uma espécie em extinção.


O tempo está cada vez mais ininteligível e temos de cavar fundo, em busca dos erros nacionais dissimulados, assim como os porcos farejam as preciosas trufas brancas.

Nunca no Brasil estivemos tão próximos do entendimento como hoje. A Lava Jato foi um buraco no tempo. Diante dessa época, corremos a chance ou de um grande avanço, ou de se por acaso prevalecer a “anestesia sem cirurgia” (apud Simonsen), permanecermos no atraso tão desejado por nossos canalhas. Meu contínuo terror é a citada frase de Lévi-Straus: “O Brasil vai sair da barbárie para a decadência, sem conhecer a civilização”. Tomara que Lévi-Strauss, quando disse isso, estivesse gagá.
Chega de análises; agora é tempo de ação – se é que a ação ainda é possível nesta época de mentiras em que um psicopata é comandante em chefe do maior Exército do mundo.

Resolvi parar porque vou fazer mais um filme (meus inimigos dirão: mais um?) e estou louco para trabalhar só com a ideia de beleza, que, como me disseram que Freud disse, seria a única razão para se viver.

Vou continuar escrevendo, mas sem ritmos semanais, somente “gratia artis”, talvez até tentando alguma coisa mais alentada, como o romance definitivo de minha geração (rs rs rs).

Espero que eu tenha alguns méritos que possam constar de meu necrológio (que espero seja longínquo).

Espero merecer um brinde, pois trabalhei e continuarei trabalhando, com a fé igual à daqueles besourinhos que se esfalfam empurrando bolinhas de merda morro acima.

Aqui fico. Desculpem qualquer coisa.