sexta-feira, 31 de agosto de 2018
Quem paga essa conta
A séria crise fiscal que ameaça a continuidade desses serviços seria aliviada no início do mandato do próximo presidente da República caso a correção da folha de salários da União tivesse sido adiada de 2019 para 2020, como se previa. Com a concordância de Temer em manter em 2019 os reajustes para o funcionalismo, como medida compensatória à concessão do aumento pedido por todos os integrantes do Supremo, a folha de pagamento do funcionalismo da União acumulará um crescimento real, isto é, descontada a inflação, de 13,7% entre 2017 e 2019. Para o Tesouro, isso representa gastos adicionais de R$ 38,1 bilhões só com a folha de vencimentos.
No caso dos ministros do STF, cujos vencimentos representam o teto da remuneração no setor público e hoje estão fixados em R$ 33.763,00, o limite pode chegar a R$ 39.293,32. O acordo entre o Executivo e o STF para a concessão desse aumento inclui a extinção do chamado auxílio-moradia, que eleva os vencimentos dos juízes em cerca de R$ 4,3 mil. O custo do acerto será de R$ 4,1 bilhões por ano para a União e para os Estados, de acordo com cálculos das consultorias da área de orçamento da Câmara e do Senado.
São números que retratam ganhos para uma parcela ínfima de brasileiros cuja situação contrasta de maneira dramática com a vivida por 27,6 milhões de cidadãos aos quais falta trabalho, e consequentemente renda. Eles compõem o contingente de pessoas subutilizadas aferido pela mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE. São pessoas que estão desempregadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas ou estão disponíveis para trabalhar, se houver oportunidade. São, por isso, as que mais dependem de serviços prestados pelo poder público.
Como mostrou reportagem do Estado, no ano passado, os funcionários públicos, que em média ganham bem mais do que os empregados do setor privado, tiveram aumento de 6,5% acima da inflação; neste ano, o ganho real é estimado em 2,3%. Já o rendimento médio dos trabalhadores ocupados no trimestre encerrado em julho aumentou apenas 0,8% em um ano, segundo a Pnad Contínua. A massa de salários cresceu 2,0%, puxada pelo aumento do número de pessoas trabalhando.
A lenta recuperação da atividade econômica resulta em crescimento modesto da arrecadação, razão pela qual o aumento do custo de pessoal decorrente da tibieza com que o governo Temer tratou da questão nos últimos dias exigirá cortes de outros itens. Sem o reajuste do funcionalismo, haveria uma folga de R$ 6,8 bilhões para equilibrar as contas no próximo exercício. Essa folga se desfez. O impacto exato dos gastos adicionais ainda será discutido hoje no Palácio do Planalto, em reunião na qual serão definidos os números finais do projeto de lei do Orçamento da União para 2019. O projeto tem de ser enviado hoje mesmo ao Congresso.
É muito provável que os cortes se concentrem nos investimentos, inclusive em obras incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento. No ano passado, o governo federal destinou R$ 45,7 bilhões para investimentos. No primeiro semestre deste ano, o montante alcançou R$ 21,2 bilhões. É possível que em 2019 os investimentos fiquem em cerca de R$ 35 bilhões. É pouco para um país em que o setor público é responsável por boa parte da infraestrutura, cuja oferta e cuja qualidade são insuficientes. Benefícios sociais também poderão se reduzidos.
Professor Unrat
A coluna Fatos, regularmente publicada nesta VEJA digital, também é cultura. Só de vez em quando, claro, e sempre em doses moderadas, pois artigos escritos por jornalistas raramente farão muito mal a alguém se ficarem nos limites da leitura ligeira.
É o que será tentado nas linhas abaixo, levando-se em conta que certas obras de primeira classe podem ajudar na compreensão do presente ─ no caso, uma cena particular da aflitiva disputa eleitoral pela Presidência da República que está aí.
Trata-se de comparar O Anjo Azul, um dos momentos mais festejados na história do cinema universal, e a inédita candidatura por default, como se diz no português de hoje, do professor Fernando Haddad.
O filme, um símbolo pungente da Alemanha a caminho da catástrofe, lançado em 1930 e inspirado na obra de Heinrich Mann, narra a tragédia humana do professor Unrat ─ um impecável educador cuja vida entra em decadência e acaba em ruínas, na miséria, na sarjeta e na cadeia.
A desgraça de Unrat é o resultado de uma paixão alucinada por Lola-Lola, uma dançarina de cabaré, “O Anjo Azul”, que em dois anos de convívio destrói a sua reputação, suas finanças e o seu amor próprio.
Haddad, na sua atual aventura política, lembra o professor que liquida a sua honra a serviço de Lola-Lola.
Anulou a própria personalidade, e assumiu publicamente o papel de pano de estopa de um ex-presidente da República que está na cadeia ─ e se mostra disposto a qualquer extremo para escapar à punição dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro a que foi condenado.
Haddad é o candidato do PT na vida real, pois o seu líder está impedido pela Lei da Ficha Limpa de disputar a eleição. Mas não pode dizer que é candidato enquanto o chefe não mandar ─ coisa que, nos seus cálculos, deve demorar o máximo possível de tempo para lhe render o máximo possível de lucro na vida pessoal.
Ninguém está dizendo aqui que a comparação é entre o caráter do professor Unrat e o caráter de Haddad. Unrat, no fundo, não era um homem bom, e tinha uma inclinação fatal para a vida torta. Haddad, ao contrário, manteve até agora uma postura de integridade, respeito às leis e boa educação em sua vida pública e pessoal ─ justamente o oposto do que tem sido há anos a conduta exibida pelo grande líder.
Mas ao aceitar na frente de todo mundo o papel de objeto inanimado, sem vontade própria e disposto a tudo para servir aos interesses de um homem que pensa unicamente em si mesmo, Haddad está descendo ladeira abaixo, como no tango de Gardel. Tornou-se um cúmplice integral do grupo de arruaceiros que está no comando do partido.
É o instrumento-chave da tentativa de sabotar a eleição com a farsa do “duplo cenário”, da litigação judiciária de má fé, da “intervenção da ONU”, da foto do não-candidato na urna eletrônica e tudo o mais que possa fraudar o processo eleitoral com a produção de desordem.
Enfim, ao oferecer-se como voluntário para a posição de “poste”, está contribuindo diretamente para destruir o futuro de seu partido. Cuesta Abajoacaba mal, é claro, como a história do “Anjo Azul”.
No tango, o homem apaixonado fala do amor de sua vida ─ que era como un sol de primavera, mi esperanza, mi pasión …
Mas as ilusões terminam, e ahora, cuesta abajo en mi rodada, como diz, o amante lamenta ter acabado triste en la pendiente, solitário y ya vencido. O que lhe sobra é o sonho con el tiempo viejo que hoy lloro, y que nunca volvera. Está bom assim ou precisa mais, em matéria de tristeza? Está bom assim.
É o que será tentado nas linhas abaixo, levando-se em conta que certas obras de primeira classe podem ajudar na compreensão do presente ─ no caso, uma cena particular da aflitiva disputa eleitoral pela Presidência da República que está aí.
Trata-se de comparar O Anjo Azul, um dos momentos mais festejados na história do cinema universal, e a inédita candidatura por default, como se diz no português de hoje, do professor Fernando Haddad.
O filme, um símbolo pungente da Alemanha a caminho da catástrofe, lançado em 1930 e inspirado na obra de Heinrich Mann, narra a tragédia humana do professor Unrat ─ um impecável educador cuja vida entra em decadência e acaba em ruínas, na miséria, na sarjeta e na cadeia.
A desgraça de Unrat é o resultado de uma paixão alucinada por Lola-Lola, uma dançarina de cabaré, “O Anjo Azul”, que em dois anos de convívio destrói a sua reputação, suas finanças e o seu amor próprio.
De homem respeitado e temido, ele se transforma num palhaço, serviçal de Lola e sua trupe de companheiros suspeitos, e desliza progressivamente para a humilhação, a loucura e a delinquência.
Haddad, na sua atual aventura política, lembra o professor que liquida a sua honra a serviço de Lola-Lola.
Anulou a própria personalidade, e assumiu publicamente o papel de pano de estopa de um ex-presidente da República que está na cadeia ─ e se mostra disposto a qualquer extremo para escapar à punição dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro a que foi condenado.
Haddad é o candidato do PT na vida real, pois o seu líder está impedido pela Lei da Ficha Limpa de disputar a eleição. Mas não pode dizer que é candidato enquanto o chefe não mandar ─ coisa que, nos seus cálculos, deve demorar o máximo possível de tempo para lhe render o máximo possível de lucro na vida pessoal.
Ninguém está dizendo aqui que a comparação é entre o caráter do professor Unrat e o caráter de Haddad. Unrat, no fundo, não era um homem bom, e tinha uma inclinação fatal para a vida torta. Haddad, ao contrário, manteve até agora uma postura de integridade, respeito às leis e boa educação em sua vida pública e pessoal ─ justamente o oposto do que tem sido há anos a conduta exibida pelo grande líder.
Mas ao aceitar na frente de todo mundo o papel de objeto inanimado, sem vontade própria e disposto a tudo para servir aos interesses de um homem que pensa unicamente em si mesmo, Haddad está descendo ladeira abaixo, como no tango de Gardel. Tornou-se um cúmplice integral do grupo de arruaceiros que está no comando do partido.
É o instrumento-chave da tentativa de sabotar a eleição com a farsa do “duplo cenário”, da litigação judiciária de má fé, da “intervenção da ONU”, da foto do não-candidato na urna eletrônica e tudo o mais que possa fraudar o processo eleitoral com a produção de desordem.
Enfim, ao oferecer-se como voluntário para a posição de “poste”, está contribuindo diretamente para destruir o futuro de seu partido. Cuesta Abajoacaba mal, é claro, como a história do “Anjo Azul”.
No tango, o homem apaixonado fala do amor de sua vida ─ que era como un sol de primavera, mi esperanza, mi pasión …
Mas as ilusões terminam, e ahora, cuesta abajo en mi rodada, como diz, o amante lamenta ter acabado triste en la pendiente, solitário y ya vencido. O que lhe sobra é o sonho con el tiempo viejo que hoy lloro, y que nunca volvera. Está bom assim ou precisa mais, em matéria de tristeza? Está bom assim.
A era da mentira
Para começar, vamos combinar que fake news é só uma versão gourmet da boa e velha mentira. Afinal, o que mais uma notícia deliberadamente falsa poderia ser?
O governo Trump não inventou a mentira nem as fake news, mas fez delas sua linguagem e prática política. Sua secretária de Imprensa, confrontada com fatos irrefutáveis, manteve a sua versão oficial como “verdade alternativa”. O que virá depois?
Antigamente, as mentiras tinham pernas curtas, eram logo descobertas, mas hoje elas podem ser repetidas e amplificadas até se tornarem verdade, como sonhava Goebbels comandando a máquina de propaganda nazista. Mas Goebbels era modesto, falava em mentira mil vezes repetida, jamais ousaria imaginar milhões de repetições até a fake news virar verdade. Imaginem Goebbels com internet.
Pesquisa recente da London University demonstrou que o ato de mentir provoca uma forte atividade na região do cérebro associada à emoção. Quando rouba ou mente em seu próprio benefício, você se sente mal. Mas quando continua mentindo, esse sentimento desaparece, e você está mais disposto a mentir novamente. “A mentira é como uma bola de neve; quanto mais rola, mais cresce”, dizia Martinho Lutero.
Ou, como disse Lula, com autoridade, “a desgraça da mentira é que quem conta uma mentira passa a vida inteira mentindo para justificar a primeira mentira”. Quem há de desmenti-lo?
Sim, todo mundo mente; uns mais, outros menos; uns bem, outros mal; o problema é quando você começa a mentir para si mesmo — e acreditar. No caso, os psicanalistas dizem que é inútil qualquer psicanálise.
As eleições são o apogeu da era da mentira no país que nacionalizou a máxima de Descartes para “minto, logo existo”. Ainda ouviremos um candidato dizer, parafraseando Tim Maia, “não roubo, não levo propina e nem caixa 2, mas às vezes minto um pouquinho”.
Quando lhe diziam que os fatos contrariavam a sua versão, Nelson Rodrigues mandava na lata: então pior para os fatos.
O governo Trump não inventou a mentira nem as fake news, mas fez delas sua linguagem e prática política. Sua secretária de Imprensa, confrontada com fatos irrefutáveis, manteve a sua versão oficial como “verdade alternativa”. O que virá depois?
Antigamente, as mentiras tinham pernas curtas, eram logo descobertas, mas hoje elas podem ser repetidas e amplificadas até se tornarem verdade, como sonhava Goebbels comandando a máquina de propaganda nazista. Mas Goebbels era modesto, falava em mentira mil vezes repetida, jamais ousaria imaginar milhões de repetições até a fake news virar verdade. Imaginem Goebbels com internet.
Pesquisa recente da London University demonstrou que o ato de mentir provoca uma forte atividade na região do cérebro associada à emoção. Quando rouba ou mente em seu próprio benefício, você se sente mal. Mas quando continua mentindo, esse sentimento desaparece, e você está mais disposto a mentir novamente. “A mentira é como uma bola de neve; quanto mais rola, mais cresce”, dizia Martinho Lutero.
Ou, como disse Lula, com autoridade, “a desgraça da mentira é que quem conta uma mentira passa a vida inteira mentindo para justificar a primeira mentira”. Quem há de desmenti-lo?
Sim, todo mundo mente; uns mais, outros menos; uns bem, outros mal; o problema é quando você começa a mentir para si mesmo — e acreditar. No caso, os psicanalistas dizem que é inútil qualquer psicanálise.
As eleições são o apogeu da era da mentira no país que nacionalizou a máxima de Descartes para “minto, logo existo”. Ainda ouviremos um candidato dizer, parafraseando Tim Maia, “não roubo, não levo propina e nem caixa 2, mas às vezes minto um pouquinho”.
Quando lhe diziam que os fatos contrariavam a sua versão, Nelson Rodrigues mandava na lata: então pior para os fatos.
Por que a queda do desemprego pode esconder uma má notícia
Em outro ponto da cidade, Gustavo Dias da Costa, de 19 anos, cadastrou o currículo em um site, olhou os classificados do jornal e saiu às ruas "onde tem bastante comércio", de novo, à procura de placas de "estamos contratando" para funções como vendedor.
Dados divulgados hoje pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o batalhão de trabalhadores desocupados - os que estão, como eles, nessa peregrinação - caiu no país, e o contingente dos que estão ocupados aumentou.
O movimento foi registrado entre maio e julho, após três anos seguidos de alta do desemprego nesse mesmo período.
Entre fevereiro e abril deste ano - o intervalo que oferece o panorama mais atual da situação esmiuçada por estado, faixas de escolaridade e grupos de idade da população - o recuo no índice já era percebido. Mas, apesar dos números positivos, outros dados mostram que o cenário está longe de uma melhora.
Se o momento atual do mercado de trabalho brasileiro fosse resumido em uma palavra, o coordenador de emprego e renda do IBGE, Cimar Azeredo, escolheria "crítico". E diria também que "não está bom para ninguém".
Os dados do IBGE divulgados nesta quinta, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, a Pnad Contínua, mostram 12,9 milhões de brasileiros como desocupados ou desempregados - grupo definido como o que segue em busca de emprego.
Essa multidão, identificada entre maio e julho, é 4,1% menor que a existente no período que engloba os três meses anteriores e 3,4% inferior à registrada em igual trimestre do ano passado. Mas isso pode não refletir algo tão positivo.
"Há uma desestrutura muito forte, ou seja, uma entrada de informalidade bastante agressiva", disse Azeredo, em entrevista à BBC News Brasil ontem, quando analisou informações que já haviam sido publicadas neste mês pelo órgão indicando números parecidos.
Na pesquisa mais recente, com dados apenas nacionais, 458 mil pessoas que estavam na fila do desemprego saíram dessa estatística, em comparação com 2017, mas fizeram isso não porque foram gerados novos empregos na economia, mas principalmente porque, de tanto esperar que isso acontecesse e de procurar vaga sem encontrar, desistiram - entrando numa outra estatística da pesquisa, a do desalento.
Outro grupo, por sua vez, acabou se vendo sem alternativas ou quis empreender, mas migrarando sobretudo para atividades informais, como empregadas sem carteira assinada ou com negócios por conta própria que não oferecem direitos como aposentadoria, auxílio-doença ou seguro-desemprego.
"Eu acho que a situação é bastante critica em função principalmente da quantidade de postos de trabalho com carteira assinada que o Brasil perdeu. Haja vista a importância que tem a carteira de trabalho para o o trabalhador brasileiro, principalmente o de baixa renda, essa queda na carteira vem de forma constante, sem nenhuma recuperação desde o início da crise, em 2014. Isso é grave", analisa o coordenador.
"O desemprego em queda é, na verdade, o aumento do desalento", acrescenta. "O Brasil nunca teve tanto desalento quanto agora."
Quanto às carteiras assinadas, foram quase 3,7 milhões de perdas, numa comparação entre o terceiro trimestre e igual período de 2014, ano em que a economia ainda crescia, complementa o professor emérito do instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Saboia.
"Com a crise econômica, (o mercado de trabalho) piorou bastante a partir de 2015. Desde então, tem tido grandes dificuldades para mostrar alguma recuperação, pois a economia está praticamente estagnada", observa Saboia, "ressaltando que o desemprego permanece elevado e a informalidade também nunca esteve tão alta".
Outros dados que os especialistas apontam como alarmantes são os dos chamados trabalhadores sub-ocupados, ou subutilizados - aqueles que estão trabalhando menos de 40 horas e querem trabalhar mais. "Essa medida subiu, ou seja, o desemprego caiu, mas a quantidade de pessoas subutilizadas no Brasil também aumentou", analisou Azeredo em entrevista nesta semana.
Boatos, rumores e 'fake news'
A notícia tinha um fundo de verdade – houve mesmo um assassino do gás –, mas suas ações foram restritas a alguns casos, que não saíram em jornal algum, mesmo porque a imprensa soviética não publicava notícias policiais. Esse silêncio da imprensa não impediu que o terror se multiplicasse, boca a boca, por gerações de mães e crianças, tornando-se o que se chamava de lenda urbana, antecessora das fake news disseminadas pela internet.
Há quem acredite que a ampliação do boato da MosGaz se devesse a condições específicas da União Soviética. Como não se publicavam notícias policiais, não seria possível desmenti-las sem mencioná-las. Ficou assim demonstrado, pelo menos, que ignorar o assunto não é uma boa medida. Sem desmentidos, o boato se reproduz como uma célula cancerosa. Por essa razão não há quem duvide da utilidade dos serviços que se multiplicam atualmente para verificar a eventual veracidade das notícias.
A questão, no entanto, é complexa e os próprios desmentidos apresentam riscos. O primeiro dos quais é serem ineficazes. Um dos boatos mais vigorosos e incontroláveis surgiu na mesma época na cidade francesa de Orléans. Em certas lojas de moda, o assoalho das cabines de provas apresentava um alçapão destinado a capturar mocinhas. Quando o alçapão se abria, elas caíam num quarto secreto onde eram drogadas para acordarem mais tarde algemadas no porão de um navio com destino a um bordel de Buenos Aires.
Quem negasse a relação entre as lojas e o tráfico de brancas, como fizeram de imediato policiais e jornalistas, era imediatamente acusado de se deixar subornar pela máfia dos lojistas. Um livro escrito por Edgar Morin chamava a atenção para o fato de o boato atribuir as misteriosas lojas a comerciantes judeus, o que não é de estranhar, pois como se sabe desde a Idade Média judeus são vítimas dos piores rumores, como, por exemplo, de roubar recém-nascidos para sacrificar em suas missas negras.
É óbvio que os judeus não são as únicas vítimas dos rumores. Um dos mais curiosos e persistentes teve início também na França, na mesma época, com um sujeito acometido por uma dor de dentes. O dentista que o atendeu revelou que o problema era causado por um ossinho de rato que ficara preso entre dois dentes. “É o quarto caso neste mês”, comentara o dentista. Todos frequentavam restaurantes chineses.
No Brasil tivemos um caso especialmente lamentável. Em março de 1994, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, donos da Escola Base, destinada à educação infantil, foram acusados de pedofilia num concerto de mentiras que envolveu policiais, membros do Ministério Público e vários jornais. Antes que o casal fosse inteiramente inocentado, a Escola Base já havia sido depredada por vândalos.
Um dos boatos recorrentes na periferia das grandes cidades brasileiras dá conta de uma Kombi pilotada por um palhaço, que atrai crianças para roubar seus rins. Dias mais tarde os cadáveres são encontrados em terrenos baldios com um corte por onde foram retirados os órgãos. A impossibilidade médica de iniciar um transplante com um doador escolhido ao acaso por um palhaço no interior de uma Kombi não impede a persistência da história de terror.
Os exemplos apontados acima bastam para que se note a dificuldade da tarefa da grande imprensa na sua luta contra as fake news. Para desfazer uma fake news é preciso mencioná-la e se a correção não for feita com muita habilidade corre-se o risco de tentar apagar o fogo com gasolina. Leitores de fake news costumam sacar palavras isoladas, à procura de qualquer coisa que venha confirmar opiniões preconcebidas. Se algo parece contrariá-los, buscam desconsiderar a argumentação afirmando que “não há fumaça sem fogo” ou que o desmentido foi escrito por alguém vendido a grupos interessados.
Esse contra-argumento tem sido muito usado em anúncios de drogas miraculosas à base de plantas capazes de fazer qualquer pessoa perder oito quilos em duas semanas, sem dieta. Afirmam que a fórmula permanece em segredo pela pressão dos médicos, temerosos da concorrência. De maneira análoga, quem desmente o boato de que vacina tríplice provoca aumento do número de casos de autismo se vê acusado de cúmplice dos laboratórios multinacionais. Há casos extremos em que um desmentido mal-intencionado serve para criar um boato do nada. Conta-se que um jornalista de um tabloide de escândalos inglês telefonou para a esposa de um político influente para perguntar se seu marido era homossexual. Ante a negativa veemente, publicou a manchete: Fulana de tal, indignada: ‘Meu marido não é homossexual!’.
Na impossibilidade de desmentir individualmente todas as fake news, procura-se alertar o público para checar a verossimilhança e a origem das notícias.
Um passeio pela internet revela, por exemplo, que os australianos não existem realmente: são robôs. A descoberta foi divulgada por uma conferência organizada em Londres pela International Flat Earth Society, fundada em 1956, que como o nome indica reúne pessoas que acreditam que a Terra é plana.
Casos como esses são fáceis de descartar, mas há também notícias com todas as características de fake news que se revelam verdadeiras. As primeiras histórias sobre famílias judias, homens, mulheres e crianças, levadas para câmaras de gás em campos de extermínio foram recebidas por muitas pessoas cultas e bem-intencionada através do mundo com o descrédito merecido pela propaganda de guerra. Na vanguarda das artes e das ciências, a Alemanha de Goethe nunca poderia permitir bestialidades dessa ordem. No entanto, era tudo verdade.
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