quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Brasil encerra ano sem saber se o pior já passou
Com um cenário político turbulento como pano de fundo, um presidente em constante conflito com outros poderes e incertezas sobre a chegada de uma vacina para a covid-19, os brasileiros chegam ao fim de 2020 sem saber se o pior da pandemia - e da crise econômica associada à ela - já passou no país, cada vez mais isolado internacionalmente.
"O ano de 2020 é surpreendente", avalia o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. "O mercado de trabalho foi para o inferno, mas olhando para a renda de todas as fontes, a gente foi para o céu."
Entre os países emergentes, nenhum gastou tanto com auxílios como o Brasil, lembra Neri. E com esse auxílio emergencial, que chegou a 67 milhões de brasileiros, um terço da população, "a taxa de pobreza foi para o menor nível da historia documentada, depois de todos os índices terem piorado muito entre 2014 e 2019, os anos de grande recessão dos pobres."
"Com isso, 15 milhões de pessoas saíram da pobreza, comparado com 2019. A pirâmide de distribuição de renda nunca foi tão boa quanto em setembro de 2020", afirma.
O governo, que se diz seguidor da Universidade de Chicago, foi mais para Cambridge e John Maynard Keynes, com sua política anticíclica. Só que o auxílio caiu pela metade, a partir de setembro, e com isso a pobreza aumentou 17% em um único mês. "Uma parte das pessoas que tinham saído da pobreza já voltaram", comenta o especialista.
Agora, frente à segunda onda da pandemia, os caixas do governo já estão vazios, deixando a situação fiscal do Brasil deteriorada, com uma dívida bruta de mais de 90%. E ainda não há nada anunciado para substituir o auxílio emergencial, que se encerra em dezembro.
"O Brasil de 2021 agora é uma verdadeira era das incertezas máximas", diz Neri. E o resumo de 2020? "Olhamos para 2020 como uma espécie de um realismo fantástico sul-americano, uma situação muito ruim no mercado de trabalho que deve ditar o que acontece em 2021."
Quanto mais as eleições de 2022 se aproximam, mais radical o presidente tende a ficar, acredita Nogueira. Para ele, o caso da vacina contra o coronavírus é emblemático. "Ele fala em união num dia, e grita contra a vacina no outro." Com isso, ele tenta dar sustento aos dois grupos que são importantes para seu plano de reeleição: a grande massa do povo, e os setores radicalizados do bolsonarismo.
E ainda haverá uma disputa dura sobre as duas presidências do Congresso, principalmente pela da Câmara, que definirá se o governo terá uma vida dura, se perder esta eleição, ou uma vida um pouco mais tranquila, caso consigo emplacar o próprio candidato.
Mas, mesmo assim, as tarefas para 2021 serão difíceis. "É um governo muito ruim, sem qualidade, sem capacidade de articulação, sem generosidade para com a sociedade", diz Nogueira. Isso, segundo ele, afeta todos os ministérios, mas, principalmente, os ministérios de Saúde e Educação e a área da cultura.
"Mas o desgoverno também é muito prejudicial para o Meio Ambiente e para o relacionamento externo do Brasil. Não por acaso, são dois dos ministérios mais frágeis e mais carregados de problemas, mais criadores de atritos do governo Bolsonaro", comenta.
Lembrando que, em 2021, Bolsonaro não terá mais Donald Trump como aliado ideológico na Casa Branca. Joe Biden, por sua vez, deve se juntar aos europeus para pressionar o Brasil a investir na preservação ambiental. O novo presidente estadunidense já deixou claro que até pode pensar em sanções contra quem não protege o meio ambiente.
O resumo que Nogueira faz de 2020 é duro: "O governo deixou de lado o governar, não governou e tentou compensar essa falta de governança com uma exacerbação do discurso ideológico. Não poderia dar certo isso, sobretudo num país com tantos problemas como o Brasil".
Para um ano de 2021 melhor que 2020, muito depende do sucesso da vacina no Brasil. Num ritmo de 600 mortes por dia, o Brasil se aproxima, atualmente, de 200 mil óbitos por covid-19. Mas até nesta área de vacinas, o Brasil está atrás.
"O Brasil tinha tudo para ser, provavelmente, o primeiro país da América Latina a vacinar sua população inteira, pois tem um dos melhores programas de imunização do mundo, e nós sabemos fazer vacina e sabemos fazer campanha de vacinação", diz a microbiologista Natália Pasternak Taschner, da USP. "A grande surpresa foi ver que o atual governo realmente conseguiu atrapalhar até o que a gente tinha de melhor, por falta de planejamento, por falta de gestão e por interesse político."
Assim, o Brasil começa 2021, segundo Pasternak, com uma superestrutura para a vacinação, mas sem vacina. "Não foram feitos acordos internacionais em números suficientes para garantir o número de doses necessárias para vacinar uma população tão grande como a nossa", diz.
Neste momento, o governo brasileiro só fechou um contrato, com o laboratório AstraZeneca, cuja vacina vai atrasar. E o governo paulista tem um contrato com a chinesa Sinuvac, cuja vacina Coronavac ainda está cercada de dúvidas frente à sua eficácia. E que sofreu ataques fortes pelo governo de Jair Bolsonaro por ser a 'vacina chinesa".
"Provavelmente não vamos conseguir vacinas toda a população em 2021", avalia Pasternak. Mas ela espera que, pelo menos, será possível vacinar uma parte tão grande que "vamos poder retomar um pouco da nossa vida normal, da nossa economia, da nossa sociedade".
Podia ter sido melhor. "Não houve vontade política, e não houve - até este momento - uma conscientização da gravidade da situação. Nem pelo governo federal e nem por grande parte da população, como estamos vendo agora com as festas de final do ano", afirma. "As pessoas ainda não entenderam que elas tem um papel para cumprir na prevenção da doença. O comportamento delas pode definir como será o nosso ano de 2021."
Para o economista Neri, o Brasil ainda não chegou no fundo do poço "Talvez a gente estivesse com a cara surpreendentemente para fora do poço. Só que a gente vai voltar para o poço. Podemos até chegar a um lugar mais baixo no fundo do poço do que a gente estava antes da crise", diz. Mas o economista não é só pessimista. "Às vezes, o Brasil, quando está na beira do abismo, começa a fazer coisas para não cair."
"O ano de 2020 é surpreendente", avalia o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. "O mercado de trabalho foi para o inferno, mas olhando para a renda de todas as fontes, a gente foi para o céu."
Entre os países emergentes, nenhum gastou tanto com auxílios como o Brasil, lembra Neri. E com esse auxílio emergencial, que chegou a 67 milhões de brasileiros, um terço da população, "a taxa de pobreza foi para o menor nível da historia documentada, depois de todos os índices terem piorado muito entre 2014 e 2019, os anos de grande recessão dos pobres."
"Com isso, 15 milhões de pessoas saíram da pobreza, comparado com 2019. A pirâmide de distribuição de renda nunca foi tão boa quanto em setembro de 2020", afirma.
O governo, que se diz seguidor da Universidade de Chicago, foi mais para Cambridge e John Maynard Keynes, com sua política anticíclica. Só que o auxílio caiu pela metade, a partir de setembro, e com isso a pobreza aumentou 17% em um único mês. "Uma parte das pessoas que tinham saído da pobreza já voltaram", comenta o especialista.
Agora, frente à segunda onda da pandemia, os caixas do governo já estão vazios, deixando a situação fiscal do Brasil deteriorada, com uma dívida bruta de mais de 90%. E ainda não há nada anunciado para substituir o auxílio emergencial, que se encerra em dezembro.
"O Brasil de 2021 agora é uma verdadeira era das incertezas máximas", diz Neri. E o resumo de 2020? "Olhamos para 2020 como uma espécie de um realismo fantástico sul-americano, uma situação muito ruim no mercado de trabalho que deve ditar o que acontece em 2021."
"O Brasil está longe do fundo do poço", avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira. Para ele, o cenário político turbulento deve contribuir para a continuação da crise. "As guerras contra o Congresso e a Suprema Corte prosseguirão. Porque compõem um programa de trabalho do presidente, assim como os ataques à imprensa. Essa é a natureza do governo e da persona do presidente."
Quanto mais as eleições de 2022 se aproximam, mais radical o presidente tende a ficar, acredita Nogueira. Para ele, o caso da vacina contra o coronavírus é emblemático. "Ele fala em união num dia, e grita contra a vacina no outro." Com isso, ele tenta dar sustento aos dois grupos que são importantes para seu plano de reeleição: a grande massa do povo, e os setores radicalizados do bolsonarismo.
E ainda haverá uma disputa dura sobre as duas presidências do Congresso, principalmente pela da Câmara, que definirá se o governo terá uma vida dura, se perder esta eleição, ou uma vida um pouco mais tranquila, caso consigo emplacar o próprio candidato.
Mas, mesmo assim, as tarefas para 2021 serão difíceis. "É um governo muito ruim, sem qualidade, sem capacidade de articulação, sem generosidade para com a sociedade", diz Nogueira. Isso, segundo ele, afeta todos os ministérios, mas, principalmente, os ministérios de Saúde e Educação e a área da cultura.
"Mas o desgoverno também é muito prejudicial para o Meio Ambiente e para o relacionamento externo do Brasil. Não por acaso, são dois dos ministérios mais frágeis e mais carregados de problemas, mais criadores de atritos do governo Bolsonaro", comenta.
Lembrando que, em 2021, Bolsonaro não terá mais Donald Trump como aliado ideológico na Casa Branca. Joe Biden, por sua vez, deve se juntar aos europeus para pressionar o Brasil a investir na preservação ambiental. O novo presidente estadunidense já deixou claro que até pode pensar em sanções contra quem não protege o meio ambiente.
O resumo que Nogueira faz de 2020 é duro: "O governo deixou de lado o governar, não governou e tentou compensar essa falta de governança com uma exacerbação do discurso ideológico. Não poderia dar certo isso, sobretudo num país com tantos problemas como o Brasil".
Para um ano de 2021 melhor que 2020, muito depende do sucesso da vacina no Brasil. Num ritmo de 600 mortes por dia, o Brasil se aproxima, atualmente, de 200 mil óbitos por covid-19. Mas até nesta área de vacinas, o Brasil está atrás.
"O Brasil tinha tudo para ser, provavelmente, o primeiro país da América Latina a vacinar sua população inteira, pois tem um dos melhores programas de imunização do mundo, e nós sabemos fazer vacina e sabemos fazer campanha de vacinação", diz a microbiologista Natália Pasternak Taschner, da USP. "A grande surpresa foi ver que o atual governo realmente conseguiu atrapalhar até o que a gente tinha de melhor, por falta de planejamento, por falta de gestão e por interesse político."
Assim, o Brasil começa 2021, segundo Pasternak, com uma superestrutura para a vacinação, mas sem vacina. "Não foram feitos acordos internacionais em números suficientes para garantir o número de doses necessárias para vacinar uma população tão grande como a nossa", diz.
Neste momento, o governo brasileiro só fechou um contrato, com o laboratório AstraZeneca, cuja vacina vai atrasar. E o governo paulista tem um contrato com a chinesa Sinuvac, cuja vacina Coronavac ainda está cercada de dúvidas frente à sua eficácia. E que sofreu ataques fortes pelo governo de Jair Bolsonaro por ser a 'vacina chinesa".
"Provavelmente não vamos conseguir vacinas toda a população em 2021", avalia Pasternak. Mas ela espera que, pelo menos, será possível vacinar uma parte tão grande que "vamos poder retomar um pouco da nossa vida normal, da nossa economia, da nossa sociedade".
Podia ter sido melhor. "Não houve vontade política, e não houve - até este momento - uma conscientização da gravidade da situação. Nem pelo governo federal e nem por grande parte da população, como estamos vendo agora com as festas de final do ano", afirma. "As pessoas ainda não entenderam que elas tem um papel para cumprir na prevenção da doença. O comportamento delas pode definir como será o nosso ano de 2021."
Para o economista Neri, o Brasil ainda não chegou no fundo do poço "Talvez a gente estivesse com a cara surpreendentemente para fora do poço. Só que a gente vai voltar para o poço. Podemos até chegar a um lugar mais baixo no fundo do poço do que a gente estava antes da crise", diz. Mas o economista não é só pessimista. "Às vezes, o Brasil, quando está na beira do abismo, começa a fazer coisas para não cair."
A tempestade perfeita que poderá custar o mandato de Bolsonaro
Se for o que resta para mostrar a que ponto chegou Bolsonaro, compare-se o seu comportamento com relação à vacinação em massa contra o vírus com o comportamento dos governantes mais autoritários do mundo, todos, como ele, de extrema-direita.
O prefeito Alexandre Kalil, de Belo Horizonte, reeleito com uma votação recorde, estoca há meses seringas de sobra para vacinar os habitantes de sua cidade e de cidades próximas. O que impediu o governo federal de fazer a mesma coisa?
O ditador da República da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, anunciou que não se vacinará porque a Covid-19 já o pegou faz algum tempo – como se não pudesse pegá-lo outra vez. Mas a imunização no seu país começou uma semana antes do previsto.
Até abril serão vacinadas 1,2 milhão de pessoas. Numa segunda etapa, mais 5,5 milhões. Na Hungria do primeiro-ministro Viktor Orbán, um dos poucos chefes de Estado a comparecer à posse de Bolsonaro, a vacinação começou no último sábado.
A Polônia tem um governo nacionalista conservador admirado pelo presidente brasileiro. Pois bem: ali, ontem, os dois líderes dos partidos rivais Plataforma Cívica (liberal) e Lei e Justiça (conservador) foram filmados vacinando-se juntos.
Ontem também, os países da Comunidade Econômica Europeia compraram mais 100 milhões de doses da vacina da Pfizer. Em colapso desde a explosão do seu porto em Beirute, o Líbano comprou à Pfizer duas milhões de doses de vacina.
Aqui, onde nas últimas 24 horas o vírus matou 1.075 pessoas e infectou mais de 57 mil, a Pfizer indicou em nota que no momento não irá pedir autorização de uso emergencial do seu imunizante porque as exigências do governo demandam tempo.
Como uma das muitas vacinas que já foram aprovadas em outros países e que estão sendo aplicadas por toda parte não pode estar rapidamente disponível para os brasileiros? É a pergunta que Bolsonaro e seus cúmplices se recusam a responder.
Na melhor das hipóteses, segundo o Ministério da Saúde, a vacinação contra o vírus está prevista para começar em 20 de janeiro, e na pior até o final da primeira quinzena de fevereiro. Quantas vezes você não leu previsões furadas?
Por outra parte, por que o espanto com a incompetência do governo Bolsonaro em dar início à vacinação? Quando foi que o governo dele revelou-se competente para tentar resolver um só grande problema do país nos últimos 2 anos?
O prefeito Alexandre Kalil, de Belo Horizonte, reeleito com uma votação recorde, estoca há meses seringas de sobra para vacinar os habitantes de sua cidade e de cidades próximas. O que impediu o governo federal de fazer a mesma coisa?
Fracassou o pregão eletrônico realizado ontem pelo Ministério da Saúde para a compra de seringas e agulhas. De um total de 331 milhões unidades previstas para serem adquiridas, o ministério conseguiu fornecedor para apenas 7,9 milhões. Uma titica.
Não se brinca impunemente com vidas alheias, mas Bolsonaro insiste em brincar. Gosta de viver em perigo. Por que não brinca com a própria vida, quando nada para relembrar os antigos e bons tempos de paraquedista do Exército?
Só a vacinação em massa já, e bem-sucedida, salvará o sonho de Bolsonaro de se reeleger daqui a dois anos, e mesmo assim não será tão fácil como parecia. O contrário disso será com toda certeza a abertura de um processo de impeachment.
Crime de responsabilidade é razão para a abertura de um processo de impeachment do presidente. Falhar gravemente em garantir a vida das pessoas é o maior crime de responsabilidade que um presidente pode cometer. E daí?
Daí que é por isso que Bolsonaro precisa tanto eleger Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara dos Deputados. A abertura de um processo de impeachment depende exclusivamente do presidente da Câmara. Por lá, mais de 50 pedidos repousam numa gaveta.
Nossa tortura cotidiana
O Brasil perde um pouco de sua humanidade a cada vez que Jair Bolsonaro abre a bocaLuís Inácio Lula da Silva, ex-presidente
Decrépito torturador de almas, Bolsonaro não cabe no cargo que ocupa, nem cabe no Brasil
A esta altura de 2020, qualquer pessoa que acompanhe minimamente o noticiário sabe que não há o que se surpreender com as atrocidades perversas que saem da boca do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Ao zombar da tortura da ex-presidenta Dilma Rousseff ele só mostra sua verve de torturador que sempre soubemos que ele tinha. Não há diferença entre a frase dita nesta segunda, 28, ―“Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo”― e o “Quem procura osso é cachorro”, dita em maio de 2009, quando ele humilhava parentes de desaparecidos na ditadura ―assassinados por militares que pensam como Bolsonaro― que faziam pressão por localizar os restos mortais de seus familiares.
Bater covardemente em alguém, ainda mais uma mulher, ex-presidenta, só é típico dos bárbaros, dos mesquinhos, dos pequenos que têm inveja, dos futriqueiros venenosos, dos picaretas. Debater o porquê dele ter sido eleito e o que isso diz dos seus eleitores é algo que já se estendeu até demais nestes últimos dois anos. Já sabemos que Bolsonaro não é o mal puro, mas a síntese da maldade coletiva de um Brasil perverso, deformado. Não se trata somente da deformação dos que identificam e celebram sua crueldade, mas a distorção dos que não tiveram a chance de aprender e alcançar o que uma frase tão delinquente quanto a que ele pronunciou sobre Dilma faz mal à saúde do Brasil e à nossa democracia. A frase não é só sobre o passado. Ela tem uma correia de transmissão com a tortura que acontece nas delegacias e nas periferias do país todos os dias.
Custa chamar Bolsonaro de presidente da República. Ele não cabe nesse posto. Não representa o povo brasileiro, nem uma aspiração coletiva, nem um exemplo a ser seguido. Seus dois anos já demonstram que ele seria incapaz de fazer história com grandes realizações e contribuições para o Brasil. Não tem bondade, não tem empatia, não tem honra, nem respeito. Tem atitudes de um covarde, um sabotador nacional, com auxílio de muitos que o ajudaram a chegar lá e agora se descolam, como o ex-ministro Sergio Moro. O ex-juiz sabia exatamente o tamanho da própria credibilidade naquele momento e recebeu todos os alertas de quem era e agora vira e mexe o critica. Mas a última vez que Moro o criticou, no último dia 28, foi em função do atraso na campanha da vacinação. Não para condená-lo por Bolsonaro ter exortado a tortura a que foi submetida a ex-presidenta Dilma.
Bolsonaro sobrevive e, sim, uma tempestade perfeita pode reconduzi-lo ao poder em 2022. Ele tem a sorte de se deparar com uma época de lideranças fracas no Brasil, de gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção. É o constrangimento de ver o Supremo Tribunal Federal e procuradores de São Paulo envolvidos em pedido de prioridade na vacinação. É o marketing de gestor do governador João Doria cortando verbas de Ciência em São Paulo ―afora uma viagem desastrada quando os números da covid-19 estavam subindo. É deputado se gabando de ter ganhado fuzil de presente. Justiça seja feita, Bolsonaro tem um papel fundamental para a história brasileira ao mostrar aos que defendem a democracia o tamanho da nossa arrogância e ignorância sobre o Brasil real. Nos contentamos com pouco achando que o pouco era muito porque era somente para nós.
Pois bem. Os anestesiados pelo pavor da miséria no poder com a ultradireita estão ganhando anticorpos e, se o presidente ainda goza de prestígio num grupo de eleitores, esse mesmo grupo vai cobrar a fatura quando os erros de Bolsonaro trouxerem a colheita. Ele, que apontava o confinamento vertical no início da pandemia como um antídoto para proteger a economia ―e não ficar para trás num mundo competitivo―, teve a incompetência de deixar o Brasil a esmo para montar uma campanha de vacinação nacional e isso cobrará seu preço no tempo da nossa recuperação. Mais valeram as picuinhas e as artimanhas grotescas do que focar num plano que finalmente o poderia colocar à altura de um estadista.
Bolsonaro não cabe no cargo de presidente e sua monstruosidade se destaca a cada dia no mundo em que vivemos. No momento em que a Argentina avança no debate sobre aborto, jovens vão às ruas no Peru, chilenos reescrevem sua Constituição, mexicanos e costa-riquenhos lideram a vacinação na América Latina, o presidente brasileiro vai se tornando um corpo estranho. É o presidente que mente ao mundo culpando indígenas pelos incêndios no Pantanal, o machista arcaico num mundo cada vez mais feminista, o torturador de Dilma no dia do seu impeachment.
Pode ser que faltem dois ou até seis anos para que o peso de suas palavras o derrubem por si só. Para que seja o pária nacional, o antiexemplo, a dor na alma, a vergonha do Brasil. Tal qual quando na ditadura havia uma vergonha popular de dizer que se apoiou os crimes covardes do governo militar. Bolsonaro é o representante dos militares que iam botar bomba no atentado do Riocentro, dos militares que esconderam o rosto da fotografia enquanto Dilma era interrogada então com 22 anos. Dilma pode não ter sido tão popular enquanto presidente e isso é uma verdade que não se pode apagar. Mas seu tamanho e sua trajetória estarão altivas nos livros de história. Os de Bolsonaro, não.
Populismo e democracia na pandemia
A edição brasileira de novembro do Journal of Democracy publica o artigo A cartilha populista brasileira, de Amy Erica Smith. Ao analisar os efeitos da pandemia e a reação do governo Bolsonaro sobre o funcionamento das instituições democráticas, a professora de ciência política da Universidade Estadual de Iowa apresenta reflexões pertinentes. A resposta do presidente Jair Bolsonaro à crise sanitária deixou muito a desejar, mas suas evidentes deficiências parecem ter contribuído para uma maior resistência de outras lideranças e para uma reação da sociedade civil.
“Apesar das consequências humanas trágicas e incomensuráveis da covid-19 no Brasil, a doença está provocando um impacto mais ambíguo na saúde da democracia do País”, diz Amy Erica Smith. “Ao evidenciar as fraquezas de Bolsonaro, a pandemia parece ter favorecido um movimento de resistência por parte de outros representantes eleitos.”
Segundo o artigo, “não é simplesmente que a incapacidade de Bolsonaro de conter o coronavírus fortalece o sistema de freios e contrapesos. Os acontecimentos dos últimos meses parecem ter revelado que algumas das ameaças de Bolsonaro eram vazias. (...) À luz desses não acontecimentos, o golpismo de Bolsonaro – ou seja, seu apoio ideológico aberto à intervenção militar – parece cada vez mais ser apenas jogo de cena, uma ameaça que ele faz como aceno a parte de sua base e intimidação da oposição”.
A respeito do comportamento de Bolsonaro na pandemia, a professora de Iowa diz: “Em vez de repressão autoritária, Bolsonaro escolheu uma estratégia mediada que acentua a polarização política e a ‘guerra cultural’ nas redes sociais. Seus objetivos são controlar a informação e promover uma narrativa alternativa da pandemia”.
Como exemplo, Amy Erica Smith cita a defesa que Jair Bolsonaro fez da hidroxicloroquina. “O objetivo de sua gestão ao promover o remédio não parece ser melhorar a saúde pública, mas encorajar os cidadãos a associar suas lealdades afetivas e identidades políticas ao processamento de informações, transformando o julgamento de fatos em questão de intuições e desejos subjetivos.”
Em vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o presidente Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões. Até mesmo a competência constitucional relativa à saúde pública, compartilhada entre os entes da Federação, foi transformada por Jair Bolsonaro em embate de forças políticas. “Bolsonaro tratou a pandemia menos como uma crise de saúde pública e mais como um desafio de relações públicas”, diz o artigo.
Ao comentar a hostilidade presidencial às medidas de prevenção, que levou a um “tipo peculiar de crise de governança”, a professora de Iowa recorre ao conceito “carências do Executivo”, de David Pozen e Kim Lane Scheppele, em contraste com os “excessos do Executivo”, quando o presidente excede os limites legais às atribuições de seu cargo. Segundo o artigo, “no longo prazo, essa tendência poderá não prejudicar as eleições democráticas, mas afetará a capacidade dos cidadãos de monitorar e responsabilizar seus representantes eleitos”.
Entre os efeitos da pandemia, Amy Erica Smith destaca a reação da sociedade civil. “Sem apoio governamental efetivo, grupos locais em comunidades pobres tiveram que desenvolver redes de auxílio mútuo e regras informais sobre máscaras e isolamento social. A imprensa registrou um florescimento desse tipo de atividade entre associações de bairro, movimentos sociais, igrejas e até mesmo gangues”, diz. Mesmo rejeitando a ideia de uma idealização das instituições comunitárias, a professora de Iowa reconhece que “tais movimentos podem servir de apoio a uma forma de democracia local, participativa e não oficial”.
Na pandemia, Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir suscitou a reação da sociedade. Melhor seria que o governo cumprisse seu papel, mas isso não impede de reconhecer que a sociedade reagiu. E essa reação, mesmo com todas as limitações, é sempre um óbice aos populismos e autoritarismos.
“Apesar das consequências humanas trágicas e incomensuráveis da covid-19 no Brasil, a doença está provocando um impacto mais ambíguo na saúde da democracia do País”, diz Amy Erica Smith. “Ao evidenciar as fraquezas de Bolsonaro, a pandemia parece ter favorecido um movimento de resistência por parte de outros representantes eleitos.”
Segundo o artigo, “não é simplesmente que a incapacidade de Bolsonaro de conter o coronavírus fortalece o sistema de freios e contrapesos. Os acontecimentos dos últimos meses parecem ter revelado que algumas das ameaças de Bolsonaro eram vazias. (...) À luz desses não acontecimentos, o golpismo de Bolsonaro – ou seja, seu apoio ideológico aberto à intervenção militar – parece cada vez mais ser apenas jogo de cena, uma ameaça que ele faz como aceno a parte de sua base e intimidação da oposição”.
A respeito do comportamento de Bolsonaro na pandemia, a professora de Iowa diz: “Em vez de repressão autoritária, Bolsonaro escolheu uma estratégia mediada que acentua a polarização política e a ‘guerra cultural’ nas redes sociais. Seus objetivos são controlar a informação e promover uma narrativa alternativa da pandemia”.
Como exemplo, Amy Erica Smith cita a defesa que Jair Bolsonaro fez da hidroxicloroquina. “O objetivo de sua gestão ao promover o remédio não parece ser melhorar a saúde pública, mas encorajar os cidadãos a associar suas lealdades afetivas e identidades políticas ao processamento de informações, transformando o julgamento de fatos em questão de intuições e desejos subjetivos.”
Em vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o presidente Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões. Até mesmo a competência constitucional relativa à saúde pública, compartilhada entre os entes da Federação, foi transformada por Jair Bolsonaro em embate de forças políticas. “Bolsonaro tratou a pandemia menos como uma crise de saúde pública e mais como um desafio de relações públicas”, diz o artigo.
Ao comentar a hostilidade presidencial às medidas de prevenção, que levou a um “tipo peculiar de crise de governança”, a professora de Iowa recorre ao conceito “carências do Executivo”, de David Pozen e Kim Lane Scheppele, em contraste com os “excessos do Executivo”, quando o presidente excede os limites legais às atribuições de seu cargo. Segundo o artigo, “no longo prazo, essa tendência poderá não prejudicar as eleições democráticas, mas afetará a capacidade dos cidadãos de monitorar e responsabilizar seus representantes eleitos”.
Entre os efeitos da pandemia, Amy Erica Smith destaca a reação da sociedade civil. “Sem apoio governamental efetivo, grupos locais em comunidades pobres tiveram que desenvolver redes de auxílio mútuo e regras informais sobre máscaras e isolamento social. A imprensa registrou um florescimento desse tipo de atividade entre associações de bairro, movimentos sociais, igrejas e até mesmo gangues”, diz. Mesmo rejeitando a ideia de uma idealização das instituições comunitárias, a professora de Iowa reconhece que “tais movimentos podem servir de apoio a uma forma de democracia local, participativa e não oficial”.
Na pandemia, Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir suscitou a reação da sociedade. Melhor seria que o governo cumprisse seu papel, mas isso não impede de reconhecer que a sociedade reagiu. E essa reação, mesmo com todas as limitações, é sempre um óbice aos populismos e autoritarismos.
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