quarta-feira, 4 de janeiro de 2023
Feliz Nova Década, Brasil
Neste momento, em que iniciamos um novo tempo, é esperançoso ouvir o novo presidente dizer que foi eleito para reduzir a desigualdade social; e vê-lo chorar no instante em que se refere aos que ficam nas esquinas pedindo ajuda para comer. Desejo que nesta década o país saia do mapa da fome para não voltar e enfrente o problema estrutural da desnutrição, ao lado da abundância e do desperdício.Para isto, desejo o Brasil entender que a mãe da desigualdade social está na desigualdade educacional.
Que, ao longo da próxima década, implantemos um sistema público de educação para nossas crianças, todas elas; nenhum talento desperdiçado por falta de escola com a máxima e mesma qualidade para cada uma delas, independente da renda e do endereço da família.
A população educada aumentará a riqueza nacional e fará a distribuição entre todos, não apenas para uma minoria privilegiada.
Para tanto, recuperemos e inspiremos confiança graças à responsabilidade como trataremos nossos recursos humanos, naturais e fiscais. Não usando mais do que é sustentável nas florestas, rios e finanças; e formando o maior de nossos recursos: o talento de cada brasileiro. Ao cuidarmos de nossos recursos, adquirirmos e passarmos confiança, teremos o futuro que desejamos e é possível, se tivermos uma década que aproveite a força e o equilíbrio da democracia.
Desejo que o Brasil não relaxe na prática da democracia e no respeito às nossas instituições. Para tanto, que a democracia não se suicide pela tentação autoritária, nem pelos devaneios corporativos, nem pela depredação de nossos recursos: nossas florestas derrubadas, nossas finanças desrespeitadas, nossos cérebros incinerados por falta de escola na hora certa. Neste primeiro ano depois do bicentenário,
desejo que a democracia não seja sequestrada por militares sem consciência de que as armas devem ser submissas às urnas; nem por civis sem patriotismo que submetem o país aos interesses de classes.
Desejo que o talento beneficie cada um conforme o esforço e a vocação, mas sem beneficiar-se por vantagens contrárias aos interesses nacionais, nem às necessidades das camadas mais pobres. Que o Estado não restrinja o talento, nem o esforço de cada um, nem o empreendedorismo que aumenta o produto social do país; nem que esta riqueza se mantenha a concentrada, beneficiando a poucos, como tem sido nas 52 décadas passadas de nossa história; e que nossas organizações estatais sejam eficientes, sem privilégios, nem mordomias para seus dirigentes. Que o futuro se recuse a manter privilégios injustos das elites dirigentes, e respeite os direitos e tradições dos povos originários.
Desejo que o governo que se inicia cumpra as esperanças com que foi eleito. E o país vença ao reacionarismo, ao negacionismo, aos preconceitos, ao anti-humanismo disfarçado de patriotismo, ao corporativismo disfarçado de democracia e ao populismo disfarçado de popular.
Feliz Nova Década, Brasil, e que, depois desta, estes desejos fiquem desnecessários, por terem sido atendidos.
Que, ao longo da próxima década, implantemos um sistema público de educação para nossas crianças, todas elas; nenhum talento desperdiçado por falta de escola com a máxima e mesma qualidade para cada uma delas, independente da renda e do endereço da família.
A população educada aumentará a riqueza nacional e fará a distribuição entre todos, não apenas para uma minoria privilegiada.
Para tanto, recuperemos e inspiremos confiança graças à responsabilidade como trataremos nossos recursos humanos, naturais e fiscais. Não usando mais do que é sustentável nas florestas, rios e finanças; e formando o maior de nossos recursos: o talento de cada brasileiro. Ao cuidarmos de nossos recursos, adquirirmos e passarmos confiança, teremos o futuro que desejamos e é possível, se tivermos uma década que aproveite a força e o equilíbrio da democracia.
Desejo que o Brasil não relaxe na prática da democracia e no respeito às nossas instituições. Para tanto, que a democracia não se suicide pela tentação autoritária, nem pelos devaneios corporativos, nem pela depredação de nossos recursos: nossas florestas derrubadas, nossas finanças desrespeitadas, nossos cérebros incinerados por falta de escola na hora certa. Neste primeiro ano depois do bicentenário,
desejo que a democracia não seja sequestrada por militares sem consciência de que as armas devem ser submissas às urnas; nem por civis sem patriotismo que submetem o país aos interesses de classes.
Desejo que o talento beneficie cada um conforme o esforço e a vocação, mas sem beneficiar-se por vantagens contrárias aos interesses nacionais, nem às necessidades das camadas mais pobres. Que o Estado não restrinja o talento, nem o esforço de cada um, nem o empreendedorismo que aumenta o produto social do país; nem que esta riqueza se mantenha a concentrada, beneficiando a poucos, como tem sido nas 52 décadas passadas de nossa história; e que nossas organizações estatais sejam eficientes, sem privilégios, nem mordomias para seus dirigentes. Que o futuro se recuse a manter privilégios injustos das elites dirigentes, e respeite os direitos e tradições dos povos originários.
Desejo que o governo que se inicia cumpra as esperanças com que foi eleito. E o país vença ao reacionarismo, ao negacionismo, aos preconceitos, ao anti-humanismo disfarçado de patriotismo, ao corporativismo disfarçado de democracia e ao populismo disfarçado de popular.
Feliz Nova Década, Brasil, e que, depois desta, estes desejos fiquem desnecessários, por terem sido atendidos.
Compromisso com o erro derrotou Bolsonaro
A frase é do presidente Juscelino Kubistchek, o fundador de Brasília:
“Costumo voltar atrás, sim, não tenho compromisso com o erro!”.
Os versos são do compositor, cantor e músico Raul Seixas, um dos pioneiros do rock brasileiro:
“Eu prefiro ser essa Metamorfose Ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”.
Quando governou o Brasil pela primeira vez, Lula admitiu que era uma metamorfose ambulante. Seus adversários, então, o acusaram de querer dizer com isso que não tinha compromisso com as próprias ideias, ou que não tinha ideias. Erraram.
Lula quis apenas atualizar a frase de Juscelino. Por exemplo: ao dar-se conta do erro que foi o mensalão do PT, recuou e desculpou-se. Em seguida, demitiu José Dirceu de Oliveira, chefe da Casa Civil do governo, que mais tarde seria cassado pela Câmara.
No ano seguinte, demitiu Antonio Palocci, ministro da Fazenda, o queridinho da imprensa e do mercado financeiro, envolvido no escândalo da quebra do sigilo bancário de um caseiro que o vira numa mansão palco de tenebrosas transações e de farras épicas.
Em seguida, Lula reelegeu-se, elegeu Dilma e a reelegeu. Condenado, preso, solto, contrariou os que esperavam estar de volta um homem repleto de feridas, vingativo e com gosto de sangue na boca. Bolsonaro foi um dos que se enganaram:
“Se o cara voltar, José Dirceu irá para a Casa Civil, e Dilma para o Ministério da Defesa?”
Dirceu fez parte da turma sem convite para a posse do último domingo; para o Ministério da Defesa foi José Múcio Monteiro, líder do PTB de Roberto Jefferson à época do mensalão. Se Lula quiser e ela topar, Dilma será embaixadora do Brasil na Argentina.
Compromisso com o erro foi o que derrotou Bolsonaro do “morram os que tiverem de morrer”, das armas que foram parar nas mãos do crime organizado, do enfrentamento com a Justiça, dos atos hostis à democracia e do regime autoritário à vista.
Bolsonaro celebrou a chegada do Ano Novo comendo sanduíche de frango frito em uma rede de fast food do KFC, em Orlando, onde se refugiou com medo de ser preso. Lula, ontem, começou a despachar no Palácio do Planalto, previamente dedetizado.
Na galeria dos presidentes do palácio, a foto de Bolsonaro está em preto e branco. Colorida só a foto do presidente que ocupa o cargo.
“Costumo voltar atrás, sim, não tenho compromisso com o erro!”.
Os versos são do compositor, cantor e músico Raul Seixas, um dos pioneiros do rock brasileiro:
“Eu prefiro ser essa Metamorfose Ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”.
Quando governou o Brasil pela primeira vez, Lula admitiu que era uma metamorfose ambulante. Seus adversários, então, o acusaram de querer dizer com isso que não tinha compromisso com as próprias ideias, ou que não tinha ideias. Erraram.
Lula quis apenas atualizar a frase de Juscelino. Por exemplo: ao dar-se conta do erro que foi o mensalão do PT, recuou e desculpou-se. Em seguida, demitiu José Dirceu de Oliveira, chefe da Casa Civil do governo, que mais tarde seria cassado pela Câmara.
No ano seguinte, demitiu Antonio Palocci, ministro da Fazenda, o queridinho da imprensa e do mercado financeiro, envolvido no escândalo da quebra do sigilo bancário de um caseiro que o vira numa mansão palco de tenebrosas transações e de farras épicas.
Em seguida, Lula reelegeu-se, elegeu Dilma e a reelegeu. Condenado, preso, solto, contrariou os que esperavam estar de volta um homem repleto de feridas, vingativo e com gosto de sangue na boca. Bolsonaro foi um dos que se enganaram:
“Se o cara voltar, José Dirceu irá para a Casa Civil, e Dilma para o Ministério da Defesa?”
Dirceu fez parte da turma sem convite para a posse do último domingo; para o Ministério da Defesa foi José Múcio Monteiro, líder do PTB de Roberto Jefferson à época do mensalão. Se Lula quiser e ela topar, Dilma será embaixadora do Brasil na Argentina.
Compromisso com o erro foi o que derrotou Bolsonaro do “morram os que tiverem de morrer”, das armas que foram parar nas mãos do crime organizado, do enfrentamento com a Justiça, dos atos hostis à democracia e do regime autoritário à vista.
Bolsonaro celebrou a chegada do Ano Novo comendo sanduíche de frango frito em uma rede de fast food do KFC, em Orlando, onde se refugiou com medo de ser preso. Lula, ontem, começou a despachar no Palácio do Planalto, previamente dedetizado.
Na galeria dos presidentes do palácio, a foto de Bolsonaro está em preto e branco. Colorida só a foto do presidente que ocupa o cargo.
Matemos os pobres!
Fazia quinze dias que eu estava exilado no meu quarto, cercado de livros em voga na época, isto é, há dezesseis ou dezessete anos atrás. Refiro-me aos livros que tratam da arte de tornar os povos felizes, sábios e ricos, em vinte e quatro horas. Eu digerira, ou melhor, engolira todas as elucubrações de todos esses empresários da felicidade pública, que aconselham os pobres a se tornarem escravos, e de todos os que procuram convencê-los de que são reis destronados. Não será de admirar que eu estivesse, então, num estado de espírito que se aproximava da vertigem ou da estupidez.
Confinado no fundo do meu intelecto, apenas sentia o gérmen obscuro de uma ideia superior a todas as fórmulas de boa mulher, cujo dicionário eu acabara de percorrer. Mas, era simplesmente a ideia de uma ideia, alguma coisa de infinitamente vago.
Afinal, saí com uma grande sede. O gosto apaixonado das más leituras engendra uma necessidade proporcional do ar livre e dos refrescos.
Ao mesmo tempo, ouvi uma voz cochichar ao meu ouvido, uma voz que reconheci bem: era a voz de um Anjo bom, ou de um bom Demônio, que me acompanha por toda parte. Se Sócrates tinha o seu bom Demônio, porque não teria eu o meu Anjo bom, e porque não teria a honra, como Sócrates, de obter o meu título de loucura, assinado pelo sutil Lelut e pelo circunspecto Baillarger? Entre o Demônio de Sócrates e o meu, existe uma diferença: é que o de Sócrates só se manifestava para evitar, impedir, avisar, ao passo que o meu se digna aconselhar, sugerir, persuadir. O pobre Sócrates tinha apenas um demônio proibidor, e o meu é um grande afirmador, um Demônio de ação, ou de combate.
Mas, aquela voz murmurava-me o seguinte: — Só é igual de outrem quem o prova, e só é digno de liberdade quem sabe conquistá-la.
Imediatamente, saltei sobre o mendigo. Com um único soco, tapei-lhe um olho, que ficou, num segundo, grande como uma bola. Parti uma unha quebrando-lhe os dentes e, como não me sentisse bastante forte, por ter nascido franzino e ser pouco exercitado no box, para liquidar rapidamente o velhote, peguei-o com uma das mãos pela gola do casaco e, com a outra, apertei-lhe a garganta e pus-me a sacudir vigorosamente a cabeça contra um muro. Devo confessar que tomara a preocupação de inspecionar os arredores com um rápido olhar e que verificara que, naquele arrabalde deserto, estaria muito tempo fora do alcance de algum agente de polícia.
Depois, com um pontapé nas costas, bastante violento para quebrar-lhe as omoplatas, joguei por terra o enfraquecido sexagenário e, empunhando um grosso galho de árvore que estava no chão, bati-lhe com a energia dos cozinheiros, quando querem amolecer um bife.
De repente, — oh milagre! Oh satisfação do filósofo que verifica a excelência de sua teoria! — vi aquela velha carcaça voltar-se, endireitar-se com uma energia que eu jamais teria suspeitado numa máquina tão singularmente desarranjada. E, com um olhar de ódio que me pareceu de bom augúrio, o decrépito vagabundo atirou-se sobre mim, contundiu-me os dois olhos, quebrou-me quatro dentes e, com o mesmo galho de árvore, me bateu até mais não poder. Com minha enérgica medicação, eu lhe dera o orgulho e a vida.
Esforcei-me, então, por lhe fazer compreender que considerava a discussão acabada e, levantando-me com a satisfação de um sofista do Pórtico, disse-lhe o seguinte: — Cavalheiro, o sr. é meu igual! Queira dar-me a honra de partilhar comigo a minha bolsa. E, se é realmente filantropo, lembre-se de que é preciso aplicar a todos os seus confrades, quando lhe pedirem uma esmola, a teoria que eu tive o pesar de pôr à prova em suas costas.
Ele jurou que tinha compreendido minha teoria e que obedeceria ao meu conselho.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
Confinado no fundo do meu intelecto, apenas sentia o gérmen obscuro de uma ideia superior a todas as fórmulas de boa mulher, cujo dicionário eu acabara de percorrer. Mas, era simplesmente a ideia de uma ideia, alguma coisa de infinitamente vago.
Afinal, saí com uma grande sede. O gosto apaixonado das más leituras engendra uma necessidade proporcional do ar livre e dos refrescos.
Ao entrar num bar, um mendigo estendeu-me o chapéu, lançando-me um desses olhares inesquecíveis que seriam capazes de derrubar os tronos, se o espírito pudesse abalar a matéria e se os olhos de um magnetizador lograssem amadurecer as uvas.
Ao mesmo tempo, ouvi uma voz cochichar ao meu ouvido, uma voz que reconheci bem: era a voz de um Anjo bom, ou de um bom Demônio, que me acompanha por toda parte. Se Sócrates tinha o seu bom Demônio, porque não teria eu o meu Anjo bom, e porque não teria a honra, como Sócrates, de obter o meu título de loucura, assinado pelo sutil Lelut e pelo circunspecto Baillarger? Entre o Demônio de Sócrates e o meu, existe uma diferença: é que o de Sócrates só se manifestava para evitar, impedir, avisar, ao passo que o meu se digna aconselhar, sugerir, persuadir. O pobre Sócrates tinha apenas um demônio proibidor, e o meu é um grande afirmador, um Demônio de ação, ou de combate.
Mas, aquela voz murmurava-me o seguinte: — Só é igual de outrem quem o prova, e só é digno de liberdade quem sabe conquistá-la.
Imediatamente, saltei sobre o mendigo. Com um único soco, tapei-lhe um olho, que ficou, num segundo, grande como uma bola. Parti uma unha quebrando-lhe os dentes e, como não me sentisse bastante forte, por ter nascido franzino e ser pouco exercitado no box, para liquidar rapidamente o velhote, peguei-o com uma das mãos pela gola do casaco e, com a outra, apertei-lhe a garganta e pus-me a sacudir vigorosamente a cabeça contra um muro. Devo confessar que tomara a preocupação de inspecionar os arredores com um rápido olhar e que verificara que, naquele arrabalde deserto, estaria muito tempo fora do alcance de algum agente de polícia.
Depois, com um pontapé nas costas, bastante violento para quebrar-lhe as omoplatas, joguei por terra o enfraquecido sexagenário e, empunhando um grosso galho de árvore que estava no chão, bati-lhe com a energia dos cozinheiros, quando querem amolecer um bife.
De repente, — oh milagre! Oh satisfação do filósofo que verifica a excelência de sua teoria! — vi aquela velha carcaça voltar-se, endireitar-se com uma energia que eu jamais teria suspeitado numa máquina tão singularmente desarranjada. E, com um olhar de ódio que me pareceu de bom augúrio, o decrépito vagabundo atirou-se sobre mim, contundiu-me os dois olhos, quebrou-me quatro dentes e, com o mesmo galho de árvore, me bateu até mais não poder. Com minha enérgica medicação, eu lhe dera o orgulho e a vida.
Esforcei-me, então, por lhe fazer compreender que considerava a discussão acabada e, levantando-me com a satisfação de um sofista do Pórtico, disse-lhe o seguinte: — Cavalheiro, o sr. é meu igual! Queira dar-me a honra de partilhar comigo a minha bolsa. E, se é realmente filantropo, lembre-se de que é preciso aplicar a todos os seus confrades, quando lhe pedirem uma esmola, a teoria que eu tive o pesar de pôr à prova em suas costas.
Ele jurou que tinha compreendido minha teoria e que obedeceria ao meu conselho.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
Policarpo Quaresma, patriota arrependido
Um dia após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subir a rampa do Palácio do Planalto, a ala radical dos apoiadores de seu antecessor, Jair Bolsonaro, que pedia intervenção militar para impedir a posse do petista, levantou o acampamento diante do quartel-general em Brasília. Muitos recolheram as armas após o choque de realidade dos últimos dias.
Na “live” de despedida, Bolsonaro jogou um balde de água fria sobre os bolsonaristas inconformados: condenou a “tentativa de ato terrorista” em Brasília, em alusão à bomba plantada para explodir no aeroporto, alertou que o mundo não vai “acabar no dia 1º ” e rechaçou a ideia de partirem para o “tudo ou nada”.
No dia seguinte, foi a vez do então presidente em exercício, Hamilton Mourão, em rede nacional de televisão, criticar as lideranças cujo silêncio contribuiu para o clima de “caos e desagregação”, em recado velado a Bolsonaro. Observou que a “alternância do poder em uma democracia é saudável” e fez um apelo à paz nacional: “tranquilizemo-nos, retornemos à normalidade da vida”.
As mensagens de Bolsonaro e Mourão estimularam os amotinados na frente dos quartéis a se renderem à democracia. É provável que alguns deles retornaram aos seus lares questionando os excessos de um patriotismo superficial, marcado pelo “slogan” “Deus, pátria e família”, que representa apenas uma parcela da sociedade.
A imagem de um grupo de apoiadores do ex-presidente em conflito com um patriotismo notadamente desvirtuado convida a uma viagem no tempo, ao ano de 1915, quando Lima Barreto publicou o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”. A obra foi considerada pelos críticos como a denúncia de um patriotismo “romântico e artificial” alimentado pelas elites e da frágil democracia no começo da República.
É oportuna a menção ao romance quando acabamos de celebrar o centenário de morte de Lima Barreto, ocorrido em novembro de 2022. O escritor vivenciou os anos da primeira República em que as promessas de igualdade e justiça social converteram-se em mais exclusão e rebeliões no país.
O final do século XIX era o cenário da jornada do Major Policarpo Quaresma, avesso a estrangeirismos, e obcecado pela busca da língua e dos costumes verdadeiramente nacionais. Essa obsessão o levava a situações insólitas, tal qual alguns bolsonaristas expostos ao frio e à chuva, em nome de uma causa ilegal e antidemocrática.
Se alguém estendia a mão para cumprimentá-lo, o Major a recolhia, desatava a chorar e a esgoelar. Alegava que o aperto de mãos é fruto de estrangeirismos e que o cumprimento brasileiro deveria ser como o dos tupinambás, que choravam ao rever os amigos.
Contrário ao “petit-pois”, ele substituía as ervilhas pelo “feijão guandu”. Acreditava que a língua portuguesa era um empréstimo dos portugueses. Por isso, enviou ofício suplicando ao Congresso que decretasse o tupi-guarani como língua oficial. Acabou internado em um hospício.
Após uma audiência com o Marechal Floriano Peixoto, alistou-se no Exército para lutar na Revolta da Armada contra os inimigos da República. Ao fim, desapontou-se com a guerra, foi acusado de traição e terminou os seus dias na cadeia, questionando o patriotismo que o inspirou e o guiou por toda a vida.
A historiadora e escritora Lilia Schwarcz, autora de “Lima Barreto - Triste Visionário”, ressaltou em conversa com a coluna que não é possível comparar o patriotismo do Major Policarpo com o lema “Deus, pátria, família” dos seguidores de Bolsonaro.
“Policarpo era um personagem que acreditava num outro Brasil”, explica a professora da USP. “Ele imaginou que a República traria liberdade, igualdade, mais valores brasileiros e encontrou um país estrangeirado, como Lima Barreto costumava dizer. Um país que viveu um estado de sítio”.
Para a historiadora, o patriotismo de Policarpo, que também era o de Lima Barreto, era “muito positivo”. Ela sublinha que não é contra o “patriotismo”, mas se opõe à “patriotada”, ou seja, “quando a pátria vira um slogan, que representa apenas um grupo da sociedade, que é o que aconteceu no Brasil de 2018 a 2022”.
Lima Barreto já nos anos de 1920 defendia um Brasil “mais amplo e mais plural”. Criticou a discriminação racial no período pós-abolição, era titular da coluna “não as matem”, em defesa das mulheres, e era crítico ao “jornalismo de Estado”. Cunhou o termo “patriotada” nos textos que assinou sobre o centenário da Independência em 1922. Afirmava que os brasileiros foram “contaminados pelo vírus da patriotada”, ao tecer críticas contumazes ao autoritarismo, à intolerância e ao fanatismo.
Questionada sobre o que Lima Barreto diria sobre os grupos de patriotas radicais que seguem Bolsonaro - e que não representam a totalidade dos apoiadores do ex-presidente -, a professora da USP afirma que o escritor seria “um crítico do militarismo do governo Bolsonaro”.
Lilia Schwarcz viajou a Brasília para a inauguração da exposição “Brasil Futuro: as Formas da Democracia”, no Museu Nacional da República, da qual é uma das curadoras. Concebida para dialogar com o governo de transição, a exposição reúne 180 obras de mais de uma centena de artistas, como Adriana Varejão e Ailton Krenak. A mostra propõe-se a apresentar os artistas que foram tão prejudicados “pelo desmonte da cultura e que sofreram com a censura” no atual governo.
Um dos símbolos da exposição o óleo sobre tela “Orixás”, da conceituada artista Djanira, que foi retirada do palácio na gestão Bolsonaro. Os curadores da exposição encontraram “um furo na tela”, provavelmente feito com uma caneta. “Isso mostra o desprezo que esse governo teve aos artistas”, criticou.
Os curadores querem, com a exposição, provocar a emoção e a reflexão sobre as várias faces da democracia. “Eu penso como Mário Pedrosa, nos momentos de crise, o melhor a se fazer é ficar perto dos artistas”. Pedrosa sustentava que a arte e a política são as duas formas mais elevadas da expressão humana. Lima Barreto conciliou ambas ao narrar a triste saga do patriota romântico Policarpo Quaresma.
Na “live” de despedida, Bolsonaro jogou um balde de água fria sobre os bolsonaristas inconformados: condenou a “tentativa de ato terrorista” em Brasília, em alusão à bomba plantada para explodir no aeroporto, alertou que o mundo não vai “acabar no dia 1º ” e rechaçou a ideia de partirem para o “tudo ou nada”.
No dia seguinte, foi a vez do então presidente em exercício, Hamilton Mourão, em rede nacional de televisão, criticar as lideranças cujo silêncio contribuiu para o clima de “caos e desagregação”, em recado velado a Bolsonaro. Observou que a “alternância do poder em uma democracia é saudável” e fez um apelo à paz nacional: “tranquilizemo-nos, retornemos à normalidade da vida”.
As mensagens de Bolsonaro e Mourão estimularam os amotinados na frente dos quartéis a se renderem à democracia. É provável que alguns deles retornaram aos seus lares questionando os excessos de um patriotismo superficial, marcado pelo “slogan” “Deus, pátria e família”, que representa apenas uma parcela da sociedade.
É oportuna a menção ao romance quando acabamos de celebrar o centenário de morte de Lima Barreto, ocorrido em novembro de 2022. O escritor vivenciou os anos da primeira República em que as promessas de igualdade e justiça social converteram-se em mais exclusão e rebeliões no país.
O final do século XIX era o cenário da jornada do Major Policarpo Quaresma, avesso a estrangeirismos, e obcecado pela busca da língua e dos costumes verdadeiramente nacionais. Essa obsessão o levava a situações insólitas, tal qual alguns bolsonaristas expostos ao frio e à chuva, em nome de uma causa ilegal e antidemocrática.
Se alguém estendia a mão para cumprimentá-lo, o Major a recolhia, desatava a chorar e a esgoelar. Alegava que o aperto de mãos é fruto de estrangeirismos e que o cumprimento brasileiro deveria ser como o dos tupinambás, que choravam ao rever os amigos.
Contrário ao “petit-pois”, ele substituía as ervilhas pelo “feijão guandu”. Acreditava que a língua portuguesa era um empréstimo dos portugueses. Por isso, enviou ofício suplicando ao Congresso que decretasse o tupi-guarani como língua oficial. Acabou internado em um hospício.
Após uma audiência com o Marechal Floriano Peixoto, alistou-se no Exército para lutar na Revolta da Armada contra os inimigos da República. Ao fim, desapontou-se com a guerra, foi acusado de traição e terminou os seus dias na cadeia, questionando o patriotismo que o inspirou e o guiou por toda a vida.
A historiadora e escritora Lilia Schwarcz, autora de “Lima Barreto - Triste Visionário”, ressaltou em conversa com a coluna que não é possível comparar o patriotismo do Major Policarpo com o lema “Deus, pátria, família” dos seguidores de Bolsonaro.
“Policarpo era um personagem que acreditava num outro Brasil”, explica a professora da USP. “Ele imaginou que a República traria liberdade, igualdade, mais valores brasileiros e encontrou um país estrangeirado, como Lima Barreto costumava dizer. Um país que viveu um estado de sítio”.
Para a historiadora, o patriotismo de Policarpo, que também era o de Lima Barreto, era “muito positivo”. Ela sublinha que não é contra o “patriotismo”, mas se opõe à “patriotada”, ou seja, “quando a pátria vira um slogan, que representa apenas um grupo da sociedade, que é o que aconteceu no Brasil de 2018 a 2022”.
Lima Barreto já nos anos de 1920 defendia um Brasil “mais amplo e mais plural”. Criticou a discriminação racial no período pós-abolição, era titular da coluna “não as matem”, em defesa das mulheres, e era crítico ao “jornalismo de Estado”. Cunhou o termo “patriotada” nos textos que assinou sobre o centenário da Independência em 1922. Afirmava que os brasileiros foram “contaminados pelo vírus da patriotada”, ao tecer críticas contumazes ao autoritarismo, à intolerância e ao fanatismo.
Questionada sobre o que Lima Barreto diria sobre os grupos de patriotas radicais que seguem Bolsonaro - e que não representam a totalidade dos apoiadores do ex-presidente -, a professora da USP afirma que o escritor seria “um crítico do militarismo do governo Bolsonaro”.
Lilia Schwarcz viajou a Brasília para a inauguração da exposição “Brasil Futuro: as Formas da Democracia”, no Museu Nacional da República, da qual é uma das curadoras. Concebida para dialogar com o governo de transição, a exposição reúne 180 obras de mais de uma centena de artistas, como Adriana Varejão e Ailton Krenak. A mostra propõe-se a apresentar os artistas que foram tão prejudicados “pelo desmonte da cultura e que sofreram com a censura” no atual governo.
Um dos símbolos da exposição o óleo sobre tela “Orixás”, da conceituada artista Djanira, que foi retirada do palácio na gestão Bolsonaro. Os curadores da exposição encontraram “um furo na tela”, provavelmente feito com uma caneta. “Isso mostra o desprezo que esse governo teve aos artistas”, criticou.
Os curadores querem, com a exposição, provocar a emoção e a reflexão sobre as várias faces da democracia. “Eu penso como Mário Pedrosa, nos momentos de crise, o melhor a se fazer é ficar perto dos artistas”. Pedrosa sustentava que a arte e a política são as duas formas mais elevadas da expressão humana. Lima Barreto conciliou ambas ao narrar a triste saga do patriota romântico Policarpo Quaresma.
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