quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Policarpo Quaresma, patriota arrependido

Um dia após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subir a rampa do Palácio do Planalto, a ala radical dos apoiadores de seu antecessor, Jair Bolsonaro, que pedia intervenção militar para impedir a posse do petista, levantou o acampamento diante do quartel-general em Brasília. Muitos recolheram as armas após o choque de realidade dos últimos dias.

Na “live” de despedida, Bolsonaro jogou um balde de água fria sobre os bolsonaristas inconformados: condenou a “tentativa de ato terrorista” em Brasília, em alusão à bomba plantada para explodir no aeroporto, alertou que o mundo não vai “acabar no dia 1º ” e rechaçou a ideia de partirem para o “tudo ou nada”.

No dia seguinte, foi a vez do então presidente em exercício, Hamilton Mourão, em rede nacional de televisão, criticar as lideranças cujo silêncio contribuiu para o clima de “caos e desagregação”, em recado velado a Bolsonaro. Observou que a “alternância do poder em uma democracia é saudável” e fez um apelo à paz nacional: “tranquilizemo-nos, retornemos à normalidade da vida”.

As mensagens de Bolsonaro e Mourão estimularam os amotinados na frente dos quartéis a se renderem à democracia. É provável que alguns deles retornaram aos seus lares questionando os excessos de um patriotismo superficial, marcado pelo “slogan” “Deus, pátria e família”, que representa apenas uma parcela da sociedade.



A imagem de um grupo de apoiadores do ex-presidente em conflito com um patriotismo notadamente desvirtuado convida a uma viagem no tempo, ao ano de 1915, quando Lima Barreto publicou o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”. A obra foi considerada pelos críticos como a denúncia de um patriotismo “romântico e artificial” alimentado pelas elites e da frágil democracia no começo da República.

É oportuna a menção ao romance quando acabamos de celebrar o centenário de morte de Lima Barreto, ocorrido em novembro de 2022. O escritor vivenciou os anos da primeira República em que as promessas de igualdade e justiça social converteram-se em mais exclusão e rebeliões no país.

O final do século XIX era o cenário da jornada do Major Policarpo Quaresma, avesso a estrangeirismos, e obcecado pela busca da língua e dos costumes verdadeiramente nacionais. Essa obsessão o levava a situações insólitas, tal qual alguns bolsonaristas expostos ao frio e à chuva, em nome de uma causa ilegal e antidemocrática.

Se alguém estendia a mão para cumprimentá-lo, o Major a recolhia, desatava a chorar e a esgoelar. Alegava que o aperto de mãos é fruto de estrangeirismos e que o cumprimento brasileiro deveria ser como o dos tupinambás, que choravam ao rever os amigos.

Contrário ao “petit-pois”, ele substituía as ervilhas pelo “feijão guandu”. Acreditava que a língua portuguesa era um empréstimo dos portugueses. Por isso, enviou ofício suplicando ao Congresso que decretasse o tupi-guarani como língua oficial. Acabou internado em um hospício.

Após uma audiência com o Marechal Floriano Peixoto, alistou-se no Exército para lutar na Revolta da Armada contra os inimigos da República. Ao fim, desapontou-se com a guerra, foi acusado de traição e terminou os seus dias na cadeia, questionando o patriotismo que o inspirou e o guiou por toda a vida.

A historiadora e escritora Lilia Schwarcz, autora de “Lima Barreto - Triste Visionário”, ressaltou em conversa com a coluna que não é possível comparar o patriotismo do Major Policarpo com o lema “Deus, pátria, família” dos seguidores de Bolsonaro.

“Policarpo era um personagem que acreditava num outro Brasil”, explica a professora da USP. “Ele imaginou que a República traria liberdade, igualdade, mais valores brasileiros e encontrou um país estrangeirado, como Lima Barreto costumava dizer. Um país que viveu um estado de sítio”.

Para a historiadora, o patriotismo de Policarpo, que também era o de Lima Barreto, era “muito positivo”. Ela sublinha que não é contra o “patriotismo”, mas se opõe à “patriotada”, ou seja, “quando a pátria vira um slogan, que representa apenas um grupo da sociedade, que é o que aconteceu no Brasil de 2018 a 2022”.

Lima Barreto já nos anos de 1920 defendia um Brasil “mais amplo e mais plural”. Criticou a discriminação racial no período pós-abolição, era titular da coluna “não as matem”, em defesa das mulheres, e era crítico ao “jornalismo de Estado”. Cunhou o termo “patriotada” nos textos que assinou sobre o centenário da Independência em 1922. Afirmava que os brasileiros foram “contaminados pelo vírus da patriotada”, ao tecer críticas contumazes ao autoritarismo, à intolerância e ao fanatismo.

Questionada sobre o que Lima Barreto diria sobre os grupos de patriotas radicais que seguem Bolsonaro - e que não representam a totalidade dos apoiadores do ex-presidente -, a professora da USP afirma que o escritor seria “um crítico do militarismo do governo Bolsonaro”.

Lilia Schwarcz viajou a Brasília para a inauguração da exposição “Brasil Futuro: as Formas da Democracia”, no Museu Nacional da República, da qual é uma das curadoras. Concebida para dialogar com o governo de transição, a exposição reúne 180 obras de mais de uma centena de artistas, como Adriana Varejão e Ailton Krenak. A mostra propõe-se a apresentar os artistas que foram tão prejudicados “pelo desmonte da cultura e que sofreram com a censura” no atual governo.

Um dos símbolos da exposição o óleo sobre tela “Orixás”, da conceituada artista Djanira, que foi retirada do palácio na gestão Bolsonaro. Os curadores da exposição encontraram “um furo na tela”, provavelmente feito com uma caneta. “Isso mostra o desprezo que esse governo teve aos artistas”, criticou.

Os curadores querem, com a exposição, provocar a emoção e a reflexão sobre as várias faces da democracia. “Eu penso como Mário Pedrosa, nos momentos de crise, o melhor a se fazer é ficar perto dos artistas”. Pedrosa sustentava que a arte e a política são as duas formas mais elevadas da expressão humana. Lima Barreto conciliou ambas ao narrar a triste saga do patriota romântico Policarpo Quaresma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário