Se os reis da Espanha e Portugal fossem “terraplanistas” – como era a Igreja Católica na época –, não teriam financiado a viagem de Cristóvão Colombo que descobriu a América ao tentar atingir o Oriente, nem Cabral teria descoberto o Brasil.
Apesar disso, no Brasil está surgindo um número inquietante de negacionistas. Um deles é o próprio presidente da República, que – nas palavras insuspeitas do seu ex-ministro da Justiça, Sergio Moro – é um “negacionista” no que se refere à pandemia do coronavírus, descrevendo-a como uma “gripezinha”, mesmo diante da evidencia aterradora de mais de mil mortes por dia. Além disso, encontra pretextos para argumentar que os números de mortes são “exagerados” e manipulados pelos opositores políticos.
A realidade é bem outra, como se sabe: morrem no Brasil por ano cerca de 1,3 milhão de pessoas por todo tipo de doenças, como câncer, problemas cardíacos e outras, além de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios. Isso significa cerca de 3.500 mortes por dia. A covid-19 aumentou esse número para cerca de 5 mil óbitos por dia.
Há duas razões para que pessoas (ou agentes públicos) adotem posições “negacionistas”: ignorância pura e simples ou má-fé (interesse material ou político). A segunda hipótese é exemplificada pelo que acontece com a indústria do tabaco, que lutou (e ainda luta) desesperadamente para evitar a redução dos fumantes, usando argumentos anticientíficos para negar a evidência de que fumar é uma causa importante de câncer de pulmão.
O caso da covid-19 é mais complexo e mistura ignorância e má-fé. Há “negacionistas” de direita e de esquerda. Os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil populistas de direita recusaram-se a levar a sério o problema para agradar à sua base eleitoral, com resultados dramáticos em número de mortes. Em contraste, o primeiro-ministro da Hungria e o presidente da Turquia, ambos também de direita, adotaram confinamento severo e contiveram a propagação da doença nos seus países. O mesmo fez o presidente da Argentina, que é de esquerda. Já o presidente do México, igualmente de esquerda, não o fez, com resultados perversos para a população do seu país.
Sem a liderança do governo federal não é possível ter uma política eficaz de combate ao vírus. No Brasil, a responsabilidade de governadores e prefeitos é “concorrente” à do governo federal, o que não o exime de exercer a liderança, como, aliás, o ex-ministro Mandetta, da Saúde, conseguiu fazer até ser demitido.
Outro exemplo de “negacionismo” no atual governo é o tratamento da questão da Amazônia, que destruiu a imagem positiva que tínhamos no exterior e pode acabar por prejudicar seriamente as nossas exportações. Não reconhecer a realidade do desmatamento crescente da Amazônia nos últimos anos (documentada por órgãos do próprio governo, como o Inpe) é não só um absurdo, mas prejudicial ao País.
Já enfrentamos esse problema no passado, em duas ocasiões em que o desmatamento ilegal e predatório foi reduzido sem que fossem prejudicadas as atividades econômicas. O exemplo mais conhecido é o da redução dramática do desmatamento entre 2007 e 2012, mesmo com o aumento do volume e do preço da soja e da carne exportadas. Um exemplo anterior a esse se verificou entre 1988 e 1992, no final do governo Sarney e durante o governo Collor.
Nos dois casos, o que aconteceu foi a adoção de uma política clara na Presidência da República que motivou e até constrangeu os governos estaduais e municipais a participarem do esforço de redução do desmatamento. A integração das ações do Ibama com a Polícia Federal e polícias ambientais dos Estados, com o amplo apoio da imprensa e de muitas organizações não governamentais, deu resultados.
Foram essenciais nesse processo as ações de inteligência capazes de detectar com antecedência os atos predatórios, e não simplesmente correr “atrás do prejuízo” e enviar força policial ou militar quando o desmatamento já se consumou. O papel do Ibama mostrou-se essencial nos dois casos descritos acima.
O “negacionismo” do governo atual no caso do desmatamento – diferentemente do caso da covid-19 – não parece dever-se apenas à ignorância e ao populismo, mas tem base política em parte do setor agropecuário, que se mostrou insatisfeito com restrições à expansão da ocupação da Amazônia decorrentes do Código Florestal.
Essa visão não é unânime no setor agropecuário, que reconhece que melhores tecnologias permitiriam aumentar a produtividade de soja, milho e outros produtos sem avançar em áreas públicas ou “griladas”. No caso da pecuária, adensar a forma de criar os rebanhos também faz sentido técnica e economicamente, e isso poderia ser acelerado.
Desmatar a Amazônia não é um “problema cultural”, como argumentam alguns. É um problema de transgressões que devem ser coibidas.José Goldemberg