segunda-feira, 20 de julho de 2020

‘Negacionismo’ e políticas públicas

“Negacionistas” são pessoas que se recusam a aceitar a realidade, adotando posições que não têm validação ou experiência histórica. A História está, de fato, cheia de exemplos de “negacionistas”.

Se os reis da Espanha e Portugal fossem “terraplanistas” – como era a Igreja Católica na época –, não teriam financiado a viagem de Cristóvão Colombo que descobriu a América ao tentar atingir o Oriente, nem Cabral teria descoberto o Brasil.

Apesar disso, no Brasil está surgindo um número inquietante de negacionistas. Um deles é o próprio presidente da República, que – nas palavras insuspeitas do seu ex-ministro da Justiça, Sergio Moro – é um “negacionista” no que se refere à pandemia do coronavírus, descrevendo-a como uma “gripezinha”, mesmo diante da evidencia aterradora de mais de mil mortes por dia. Além disso, encontra pretextos para argumentar que os números de mortes são “exagerados” e manipulados pelos opositores políticos.


A realidade é bem outra, como se sabe: morrem no Brasil por ano cerca de 1,3 milhão de pessoas por todo tipo de doenças, como câncer, problemas cardíacos e outras, além de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios. Isso significa cerca de 3.500 mortes por dia. A covid-19 aumentou esse número para cerca de 5 mil óbitos por dia.

Há duas razões para que pessoas (ou agentes públicos) adotem posições “negacionistas”: ignorância pura e simples ou má-fé (interesse material ou político). A segunda hipótese é exemplificada pelo que acontece com a indústria do tabaco, que lutou (e ainda luta) desesperadamente para evitar a redução dos fumantes, usando argumentos anticientíficos para negar a evidência de que fumar é uma causa importante de câncer de pulmão.

O caso da covid-19 é mais complexo e mistura ignorância e má-fé. Há “negacionistas” de direita e de esquerda. Os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil populistas de direita recusaram-se a levar a sério o problema para agradar à sua base eleitoral, com resultados dramáticos em número de mortes. Em contraste, o primeiro-ministro da Hungria e o presidente da Turquia, ambos também de direita, adotaram confinamento severo e contiveram a propagação da doença nos seus países. O mesmo fez o presidente da Argentina, que é de esquerda. Já o presidente do México, igualmente de esquerda, não o fez, com resultados perversos para a população do seu país.

Sem a liderança do governo federal não é possível ter uma política eficaz de combate ao vírus. No Brasil, a responsabilidade de governadores e prefeitos é “concorrente” à do governo federal, o que não o exime de exercer a liderança, como, aliás, o ex-ministro Mandetta, da Saúde, conseguiu fazer até ser demitido.

Outro exemplo de “negacionismo” no atual governo é o tratamento da questão da Amazônia, que destruiu a imagem positiva que tínhamos no exterior e pode acabar por prejudicar seriamente as nossas exportações. Não reconhecer a realidade do desmatamento crescente da Amazônia nos últimos anos (documentada por órgãos do próprio governo, como o Inpe) é não só um absurdo, mas prejudicial ao País.

Já enfrentamos esse problema no passado, em duas ocasiões em que o desmatamento ilegal e predatório foi reduzido sem que fossem prejudicadas as atividades econômicas. O exemplo mais conhecido é o da redução dramática do desmatamento entre 2007 e 2012, mesmo com o aumento do volume e do preço da soja e da carne exportadas. Um exemplo anterior a esse se verificou entre 1988 e 1992, no final do governo Sarney e durante o governo Collor.

Nos dois casos, o que aconteceu foi a adoção de uma política clara na Presidência da República que motivou e até constrangeu os governos estaduais e municipais a participarem do esforço de redução do desmatamento. A integração das ações do Ibama com a Polícia Federal e polícias ambientais dos Estados, com o amplo apoio da imprensa e de muitas organizações não governamentais, deu resultados.

Foram essenciais nesse processo as ações de inteligência capazes de detectar com antecedência os atos predatórios, e não simplesmente correr “atrás do prejuízo” e enviar força policial ou militar quando o desmatamento já se consumou. O papel do Ibama mostrou-se essencial nos dois casos descritos acima.

O “negacionismo” do governo atual no caso do desmatamento – diferentemente do caso da covid-19 – não parece dever-se apenas à ignorância e ao populismo, mas tem base política em parte do setor agropecuário, que se mostrou insatisfeito com restrições à expansão da ocupação da Amazônia decorrentes do Código Florestal.

Essa visão não é unânime no setor agropecuário, que reconhece que melhores tecnologias permitiriam aumentar a produtividade de soja, milho e outros produtos sem avançar em áreas públicas ou “griladas”. No caso da pecuária, adensar a forma de criar os rebanhos também faz sentido técnica e economicamente, e isso poderia ser acelerado.

Desmatar a Amazônia não é um “problema cultural”, como argumentam alguns. É um problema de transgressões que devem ser coibidas.
José Goldemberg

Brasil mais verde...oliva


E daí?

Prefeito do Recife, ouvi grandes conselheiros: os Professores Vasconcelos Sobrinho e Clóvis Cavalcanti que me ensinaram o significado da Ecologia para a Humanidade. Faz mais de quarenta anos. O professor, hoje, é saudade e Clóvis é referência viva da sabedoria a quem recorro.

O Professor tinha algo de transcendental nas feições e na delicadeza dos gestos. Certa vez, a Professora Liana Mesquita narrou que na pesquisa sobre a desertificação no município de Parnamirim/PE, encolhido em seixos e areia grossa, um escorpião ensaiou o bote em direção a um membro da equipe que, instintivamente, reagiu em legítima defesa. O Professor ponderou: “Não mate. Se proteja. O escorpião é o único sinal de vida que encontramos. Será que aqui a vida não é possível”?


Na minha infância, os brinquedos eram simples e rústicos. Um deles, o perigoso bodoque ou estilingue, apropriado para caçar passarinhos e matar lagartixas. Eu e meu irmão éramos artesãos e usuários e, no quintal de casa, Romeu acertou um beija-flor. A voz do meu pai, em tom ameno, advertiu: “Meu filho, um pássaro lindo e indefeso”. Nos entreolhamos, dividindo a culpa. Arrependimento imediato. Traumatismo permanente. Depusemos as armas e passamos a refletir sobre o valor vida.

Sob os rigores da pandemia, lembrar simples gestos ganhou enorme valor: aperto de mão, abraço, selinho e beijo sem pressa. Em contrapartida, as pessoas passaram a ser classificadas pelo grau de periculosidade ou vulnerabilidade. Profissionais da saúde deixam, quando podem, a casa dos pais; os idosos recolhem-se à solitária das quarentenas e os curados são discriminados.

Infelizmente, as incertezas do horizonte sombrio põem fogo no Brasil fragmentado em ódios tribais e dilemas dramáticos. Neste sentido, a radicalização política colocou, de um lado, o articulista da Folha Hélio Schwartzman que “torce pela morte do presidente” com base no polêmico princípio consequencialista (espécie de ética transformada em aritmética: a morte de um legitima salvar vidas de duas ou mais pessoas); de outro, o Presidente negacionista, minimizando a gripe, trata a morte como fato inevitável.

Com efeito, os sobreviventes de uma tragédia em escala global têm uma indagação mais profunda do que os polemistas, quando o Bolsonaro, diante de mais de 50 mil óbitos, respondeu com uma pergunta de quatro letras “e daí?

Mais adequada seria a corajosa lição humanitária, carregada de dores, sofrimentos e dúvidas, revelada no livro “A Bailarina de Auschwitz”, e escrita pela personagem Edith Eger, diante da devastação: “Nossas vidas seguem em frente”.

Farsa e tragédia

Os fatos e personagens da história mundial que ocorrem, por assim dizer, duas vezes, na segunda não ocorrem mais como farsa. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue
Herbert Marcuse

'A vida não é útil'

Esse é o título do próximo livro do líder indígena Ailton Krenak. Conversamos longamente. Eu no Rio de Janeiro, ele na aldeia do Rio Doce, terra da nação Krenak, em Minas. Confinado coletivamente com 130 famílias para que o vírus não entre ali. Ailton sugeriu uma trilha para seus pensamentos. "Inútil! A gente somos inútil" (1984), da banda de rock Ultraje a Rigor.

Foi uma conversa fascinante sobre perguntas. Cada resposta conduzia a uma reflexão e mais outra. “Como as bonequinhas russas”, disse Ailton, as matrioskas. “Se a gente tiver a coragem de enfrentar uma pergunta, de dentro dela sairão outras”. A mais minúscula das bonequinhas não se abre. Como se fosse um totem, um enigma.

Ailton domina a tradição indígena da oralidade. Suas palavras acabam em livros como “Ideias para adiar o fim do mundo”, de 2019. “Não dou conselhos nem lanço modas”. “A vida não é útil” não será manual de autoajuda e não vai consolar ninguém sobre seus erros. “É um não-livro, como os anteriores. Foram pensados e falados, não escritos”. Um dos capítulos se chama "Não se come dinheiro". A vida não pode ser uma caixa registradora.
A vida é um dom, não uma mercadoria

No novo não-livro do pensador indígena, a noção de "vida útil" é detonada. Quem tem idade útil é lâmpada, diz Ailton. Lâmpadas são feitas com base na obsolescência, para não durar. Viramos meras lâmpadas, descartáveis, com prazo de validade, determinado pelo mercado primeiro para coisas e depois estendido a nossa experiência de vida.

Observar o que a pandemia faz com os idosos é doloroso. “Você é o próximo na lista de extinção. Somos descartados antes de cair no chão”. Os muito velhos têm maior clarividência. Já viram todo o jogo sujo. O conceito de utilidade mata também o planeta. “Comemos oceanos e montanhas. Para ser útil, a Terra precisa ser consumida por nós”. 

“A Greta (Thunberg, ambientalista sueca adolescente) falou que estavam roubando seu futuro. E é isso mesmo”. Não há nada mais subversivo do que a honestidade. Por isso o mundo adulto sabota o mundo infantil. A vida é um dom, não uma mercadoria. O recém-nascido não chegou para nos ser útil. “Chegou para fruir a vida. Tem esse direito. Não é lâmpada”.

Vivemos a experiência do tempo líquido, nas palavras do pensador. A realidade líquida é apavorante. Precisamos de uma âncora mas estamos em suspensão. Multidões correm aos shoppings com crianças pequenas e de colo quando se abre a porteira. Todos se arriscam e ameaçam os outros para comprar uma pulseira ou um colar. O consumo é compulsivo. Nem é uma escolha. É um impulso. Que consegue enganar o estado de consciência. Shoppings, com seus pisos imaculados, assustam Ailton. "Se me obrigarem a atravessar um shopping, acabarei vomitando. E acharão que é sacanagem minha". 

A pandemia escracha valores antes subliminares. Os seres que não enxergam o outro se comportam de maneira danosa, egoísta, narcisista. “São incompletos”. Pior que uma negação, é uma predação. Quando enxergam, é “para devorar o outro”. Vivemos um canibalismo mútuo.

“Agora habitamos um fim de mundo. Um admirável mundo podre”. Feito para zumbis, aqueles que operam de maneira impessoal e indiferente. Nesse momento da conversa, eu me perguntei quantos zumbis conheço. E você?

Ailton não crê que a pandemia deixe como legado sentimentos como compaixão, esperança, prosperidade. Essa seria uma ideia muito reconfortante da humanidade. “A esperança placebo é uma baba, uma mentira. Não uma coisa luminosa. Sei que posso parecer pessimista”. O líder Krenak não curte o mercado de ilusões.

Há outros mundos possíveis? Ailton responde com outra pergunta. “Se pudéssemos mudar, mudaríamos em que direção? O filósofo americano Noam Chomsky, o ex-presidente soviético Gorbachev e outros criaram fóruns mundiais pensando nisso. Mas a conclusão é que as pessoas querem mais do mesmo. Mais fake news, mais sacanagem e mais terror”.

A música do Ultraje a Rigor virou hino da Diretas Já. “A gente não sabemos escolher presidente/A gente não sabemos tomar conta da gente/A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nóis é indigente/Inútil!/A gente somos inútil”. A ironia e a provocação do Ultraje continuam atuais.

Insanidade de rebanho

As evidências cada vez mais abundantes de sequelas diversas nos pacientes recuperados da Covid-19 têm causado espanto e apreensão na comunidade médica e científica. A mais recente foi revelada em estudo publicado no European Heart Journal, com financiamento da British Heart Foundation. Entre os mais de 1.200 pacientes avaliados provenientes de 69 países, 55% apresentaram anomalias cardíacas e cardiopatias. Entre os cerca de 900 desses 1.200 que não tinham qualquer condição cardíaca preexistente, 46% apresentaram anomalias em ecocardiogramas e demais avaliações clínicas e diagnósticas. Ainda que não se possa dizer conclusivamente que as cardiopatias detectadas sejam decorrentes da Covid-19 — para tanto seria necessária a condução de um estudo randomizado com grupos de controle bem estabelecidos —, o estudo é mais um a demonstrar a existência de estreita correlação entre a Covid-19 e doenças cardiovasculares. Como muitos já suspeitam que a doença esteja mais para uma síndrome vascular sistêmica do que para um mal estritamente pulmonar, as evidências se encaixam.


Há também evidências de neuropatias, de doenças renais, de tromboses e acidentes cardiovasculares entre os pacientes recuperados. Portanto, os desafios relacionados ao sars-CoV-2 vão além da pandemia. Depois que ela passar — e isso ainda há de demorar —, é possível que os sistemas de saúde mundo afora continuem com intensa demanda ou até sobrecarga. Para além das mortes evitáveis, são as sequelas que põem em xeque as estratégias de “imunidade de rebanho” seguidas por governos como o brasileiro. Sim, pois ainda que a estratégia não tenha sido anunciada com essas palavras, a política de Bolsonaro é a de alcançar o mais indesejável dos resultados, a julgar por parâmetros de um governo minimamente responsável. Já com a política adotada, partimos para a insanidade de rebanho, e ela é irreversível.

O quadro tem consequências diversas para a economia. Mas, antes de enumerá-las, permito-me uma digressão. Penso que qualquer pessoa que pretenda fazer projeções macroeconômicas, debater políticas públicas ou apresentar propostas deva, antes de tudo, estabelecer algum tipo de relação com a área biomédica. Tenho insistido em diferentes espaços na necessidade de buscar algum conhecimento sobre temas dessa área para que se possa entender a extensão da crise subjacente, que de econômica nada tem. A crise econômica é tão somente o sintoma da patologia sistêmica que se propagou. Sem que se tenha alguma compreensão da doença, de como ela se manifesta, sem que se tenha uma mínima capacidade de acompanhar os artigos científicos, as projeções econômicas têm o mesmo valor que uma nota de um cruzeiro.</p>

Quais as consequências? Em primeiro plano, está o SUS e todas aquelas pessoas que podem dele ter de depender depois de recuperadas da Covid-19. Ou seja, caso fique estabelecido que a Covid-19 causa sequelas reversíveis e irreversíveis, brandas ou severas, o subfinanciamento do SUS não só ficará mais agudo, como aportes de recursos serão necessários por muito mais tempo do que o previsto. Isso implicará abrir espaço no orçamento público para o investimento na saúde. A insanidade de rebanho, afinal, tem custos fiscais elevados — apenas para pôr a questão em termos compreensíveis para os fiscalistas mais extremados. Além de um maior número de dependentes do SUS e do inevitável ônus fiscal, as sequelas podem ser um dano adicional em um mercado de trabalho já combalido. Muitas pessoas podem ter de se afastar de seus empregos por um tempo. Em certos casos seu afastamento pesaria sobre as contas públicas, o que seria dramático para elas e para a esperada recuperação da economia. Por fim, uma economia permanentemente debilitada pelo vírus seria bem menos atraente para investidores externos ou domésticos, reduzindo o ímpeto de qualquer retomada prevista.

Em vez de nos darmos conta disso, insistimos no devaneio dos riscos inflacionários, na preservação de um teto de gastos incompatível com a insanidade de rebanho, nos temores de que o câmbio se desvalorize ainda mais e de que o investimento externo não retorne. Francamente? A porteira já se abriu e a insanidade é outra.