segunda-feira, 20 de julho de 2020

'A vida não é útil'

Esse é o título do próximo livro do líder indígena Ailton Krenak. Conversamos longamente. Eu no Rio de Janeiro, ele na aldeia do Rio Doce, terra da nação Krenak, em Minas. Confinado coletivamente com 130 famílias para que o vírus não entre ali. Ailton sugeriu uma trilha para seus pensamentos. "Inútil! A gente somos inútil" (1984), da banda de rock Ultraje a Rigor.

Foi uma conversa fascinante sobre perguntas. Cada resposta conduzia a uma reflexão e mais outra. “Como as bonequinhas russas”, disse Ailton, as matrioskas. “Se a gente tiver a coragem de enfrentar uma pergunta, de dentro dela sairão outras”. A mais minúscula das bonequinhas não se abre. Como se fosse um totem, um enigma.

Ailton domina a tradição indígena da oralidade. Suas palavras acabam em livros como “Ideias para adiar o fim do mundo”, de 2019. “Não dou conselhos nem lanço modas”. “A vida não é útil” não será manual de autoajuda e não vai consolar ninguém sobre seus erros. “É um não-livro, como os anteriores. Foram pensados e falados, não escritos”. Um dos capítulos se chama "Não se come dinheiro". A vida não pode ser uma caixa registradora.
A vida é um dom, não uma mercadoria

No novo não-livro do pensador indígena, a noção de "vida útil" é detonada. Quem tem idade útil é lâmpada, diz Ailton. Lâmpadas são feitas com base na obsolescência, para não durar. Viramos meras lâmpadas, descartáveis, com prazo de validade, determinado pelo mercado primeiro para coisas e depois estendido a nossa experiência de vida.

Observar o que a pandemia faz com os idosos é doloroso. “Você é o próximo na lista de extinção. Somos descartados antes de cair no chão”. Os muito velhos têm maior clarividência. Já viram todo o jogo sujo. O conceito de utilidade mata também o planeta. “Comemos oceanos e montanhas. Para ser útil, a Terra precisa ser consumida por nós”. 

“A Greta (Thunberg, ambientalista sueca adolescente) falou que estavam roubando seu futuro. E é isso mesmo”. Não há nada mais subversivo do que a honestidade. Por isso o mundo adulto sabota o mundo infantil. A vida é um dom, não uma mercadoria. O recém-nascido não chegou para nos ser útil. “Chegou para fruir a vida. Tem esse direito. Não é lâmpada”.

Vivemos a experiência do tempo líquido, nas palavras do pensador. A realidade líquida é apavorante. Precisamos de uma âncora mas estamos em suspensão. Multidões correm aos shoppings com crianças pequenas e de colo quando se abre a porteira. Todos se arriscam e ameaçam os outros para comprar uma pulseira ou um colar. O consumo é compulsivo. Nem é uma escolha. É um impulso. Que consegue enganar o estado de consciência. Shoppings, com seus pisos imaculados, assustam Ailton. "Se me obrigarem a atravessar um shopping, acabarei vomitando. E acharão que é sacanagem minha". 

A pandemia escracha valores antes subliminares. Os seres que não enxergam o outro se comportam de maneira danosa, egoísta, narcisista. “São incompletos”. Pior que uma negação, é uma predação. Quando enxergam, é “para devorar o outro”. Vivemos um canibalismo mútuo.

“Agora habitamos um fim de mundo. Um admirável mundo podre”. Feito para zumbis, aqueles que operam de maneira impessoal e indiferente. Nesse momento da conversa, eu me perguntei quantos zumbis conheço. E você?

Ailton não crê que a pandemia deixe como legado sentimentos como compaixão, esperança, prosperidade. Essa seria uma ideia muito reconfortante da humanidade. “A esperança placebo é uma baba, uma mentira. Não uma coisa luminosa. Sei que posso parecer pessimista”. O líder Krenak não curte o mercado de ilusões.

Há outros mundos possíveis? Ailton responde com outra pergunta. “Se pudéssemos mudar, mudaríamos em que direção? O filósofo americano Noam Chomsky, o ex-presidente soviético Gorbachev e outros criaram fóruns mundiais pensando nisso. Mas a conclusão é que as pessoas querem mais do mesmo. Mais fake news, mais sacanagem e mais terror”.

A música do Ultraje a Rigor virou hino da Diretas Já. “A gente não sabemos escolher presidente/A gente não sabemos tomar conta da gente/A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nóis é indigente/Inútil!/A gente somos inútil”. A ironia e a provocação do Ultraje continuam atuais.

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