segunda-feira, 20 de julho de 2020

Insanidade de rebanho

As evidências cada vez mais abundantes de sequelas diversas nos pacientes recuperados da Covid-19 têm causado espanto e apreensão na comunidade médica e científica. A mais recente foi revelada em estudo publicado no European Heart Journal, com financiamento da British Heart Foundation. Entre os mais de 1.200 pacientes avaliados provenientes de 69 países, 55% apresentaram anomalias cardíacas e cardiopatias. Entre os cerca de 900 desses 1.200 que não tinham qualquer condição cardíaca preexistente, 46% apresentaram anomalias em ecocardiogramas e demais avaliações clínicas e diagnósticas. Ainda que não se possa dizer conclusivamente que as cardiopatias detectadas sejam decorrentes da Covid-19 — para tanto seria necessária a condução de um estudo randomizado com grupos de controle bem estabelecidos —, o estudo é mais um a demonstrar a existência de estreita correlação entre a Covid-19 e doenças cardiovasculares. Como muitos já suspeitam que a doença esteja mais para uma síndrome vascular sistêmica do que para um mal estritamente pulmonar, as evidências se encaixam.


Há também evidências de neuropatias, de doenças renais, de tromboses e acidentes cardiovasculares entre os pacientes recuperados. Portanto, os desafios relacionados ao sars-CoV-2 vão além da pandemia. Depois que ela passar — e isso ainda há de demorar —, é possível que os sistemas de saúde mundo afora continuem com intensa demanda ou até sobrecarga. Para além das mortes evitáveis, são as sequelas que põem em xeque as estratégias de “imunidade de rebanho” seguidas por governos como o brasileiro. Sim, pois ainda que a estratégia não tenha sido anunciada com essas palavras, a política de Bolsonaro é a de alcançar o mais indesejável dos resultados, a julgar por parâmetros de um governo minimamente responsável. Já com a política adotada, partimos para a insanidade de rebanho, e ela é irreversível.

O quadro tem consequências diversas para a economia. Mas, antes de enumerá-las, permito-me uma digressão. Penso que qualquer pessoa que pretenda fazer projeções macroeconômicas, debater políticas públicas ou apresentar propostas deva, antes de tudo, estabelecer algum tipo de relação com a área biomédica. Tenho insistido em diferentes espaços na necessidade de buscar algum conhecimento sobre temas dessa área para que se possa entender a extensão da crise subjacente, que de econômica nada tem. A crise econômica é tão somente o sintoma da patologia sistêmica que se propagou. Sem que se tenha alguma compreensão da doença, de como ela se manifesta, sem que se tenha uma mínima capacidade de acompanhar os artigos científicos, as projeções econômicas têm o mesmo valor que uma nota de um cruzeiro.</p>

Quais as consequências? Em primeiro plano, está o SUS e todas aquelas pessoas que podem dele ter de depender depois de recuperadas da Covid-19. Ou seja, caso fique estabelecido que a Covid-19 causa sequelas reversíveis e irreversíveis, brandas ou severas, o subfinanciamento do SUS não só ficará mais agudo, como aportes de recursos serão necessários por muito mais tempo do que o previsto. Isso implicará abrir espaço no orçamento público para o investimento na saúde. A insanidade de rebanho, afinal, tem custos fiscais elevados — apenas para pôr a questão em termos compreensíveis para os fiscalistas mais extremados. Além de um maior número de dependentes do SUS e do inevitável ônus fiscal, as sequelas podem ser um dano adicional em um mercado de trabalho já combalido. Muitas pessoas podem ter de se afastar de seus empregos por um tempo. Em certos casos seu afastamento pesaria sobre as contas públicas, o que seria dramático para elas e para a esperada recuperação da economia. Por fim, uma economia permanentemente debilitada pelo vírus seria bem menos atraente para investidores externos ou domésticos, reduzindo o ímpeto de qualquer retomada prevista.

Em vez de nos darmos conta disso, insistimos no devaneio dos riscos inflacionários, na preservação de um teto de gastos incompatível com a insanidade de rebanho, nos temores de que o câmbio se desvalorize ainda mais e de que o investimento externo não retorne. Francamente? A porteira já se abriu e a insanidade é outra.

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