quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

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PEDER MORK MONSTED   Autorretrato diante de um cavalete num caminho do jardim   Óleo sobre papelão - 35 x 26 - 1895     No mundo das ar...
Peder Mork Monsted (1895)

A batalha perdida

Na Espanha do rei José II, no século XIV, segundo José Ortega e Gasset, todos os seres tinham o direito e o dever de serem o que eram, fossem “dignificados ou humildes, abençoados ou malditos”. O judeu ou árabe eram, para as demais pessoas, “uma realidade, dotada do direito de ser, com uma posição social só sua e seu próprio lugar na pluralidade hierárquica do mundo”. No limiar do século seguinte, porém, judeus e mouros foram obrigados a deixar a Espanha pelo rei católico Fernando II. Segundo o filósofo espanhol, essa foi a gênese da primeira geração moderna. “De fato, é o homem moderno que pensa ser possível excluir determinadas realidades e construir um mundo segundo as próprias preferências, à semelhança de uma ideia pré-concebida”, ressalta.

O exemplo é citado pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman ao abordar a relação entre verdade, ficção e incerteza no mundo contemporâneo (O mal-estar da pós-modernidade, Zahar). A tolerância em relação às diferenças no mundo pré-moderno era resultado de uma visão conservadora do tipo “tudo já está em seu lugar”. O rei Fernando da Espanha foi precursor de uma estratégia “que seria aplicada, com maior ou menor zelo e com maior ou menor êxito, ao longo da história moderna e em todas as partes do globo”. A destruição da diferença era o pressuposto da nova ordem. Mas a guerra contra a diferença e a pluralidade foi perdida em todo lugar. “A história moderna resultou, e a prática moderna continua resultando na multiplicação de divisões e diferenças.”

O aspecto novo das diferenças na pós-modernidade seria “a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e a resultante intangibilidade, maleabilidade e o curto período de vida”. O “desencaixe” existencial e as dificuldades para definir “projetos de vida” e construir a própria identidade, típicos das gerações mais jovens, seriam consequência não apenas da desestruturação das classes da antiga sociedade industrial, mas também da ausência de pontos de referência duradouros, como as ideologias do século passado. O “mundo lá fora” é cada vez mais virtual e parecido com um jogo, no qual as regras mudam de uma hora para outra. Qual o sentido de uma identidade vitalícia se as pessoas estão sendo obrigadas a se reinventar?

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Bauman recorre aos ensaios literários de Milan Kundera e Umberto Eco para dizer que talvez a verdade esteja mais na ficção dos romances do que na aparência das pessoas, cujas verdadeiras identidades são mutantes, estão ocultas ou dissimuladas. Muito do que está acontecendo na política brasileira tem a ver com tudo isso. Há um choque monumental entre as nossas práticas políticas tradicionais, encasteladas nas instituições de poder, e uma realidade social em mudança, com o agravante de que a reboque dos efeitos da globalização. Há um abismo entre uma elite política e seus partidos envelhecidos e as transformações em curso na sociedade, nas quais as pessoas comuns foram “desconstruídas”, mas estão plugadas nas redes sociais.

Não deixa de ser um paradoxo o cenário eleitoral que se apresenta. Nas redes sociais, um candidato de ficção à esquerda, que se tornou inelegível, acredita que pode voltar ao poder se reeditar velhas fórmulas políticas, nas quais as diferenças são sufocadas pela intolerância ideológica; de outro, um candidato real, porta-voz de práticas embrutecidas, que também quer sufocar as diferenças, inclusive as de costumes e de comportamento. No processo eleitoral real, porém, prevalece a força da ordem institucional. As regras do jogo favorecem os grandes partidos, a imunidade parlamentar e a sobrevida de uma geração política que pretende empurrar a fila para trás. Entretanto, a fragmentação e as diferenças predominam, tanto nas redes sociais, quanto no sistema político, o que aumenta as incertezas.

A lógica natural das coisas será a transferência gradativa das disputas políticas e ideológicas das redes sociais para o processo eleitoral, ou seja, toda a diversidade e a fragmentação existentes na sociedade buscarão representação nos partidos e em suas candidaturas. Nesse sentido, pode haver uma ultrapassagem da radicalização direita versus esquerda, típica de um processo de eliminação das diferenças, e a construção de um novo consenso, no qual a moderação, o pluralismo e a tolerância prevaleçam. Essa é a equação que está posta na disputa eleitoral para a Presidência da República, tendo por pano de fundo uma tremenda crise ética na política, que ameaça tragar as principais lideranças, seja nos tribunais, seja no silêncio das urnas.

A ressaca do PT e o pós-Lula

Em dia de ressaca ruim do PT, a gente ouvia dúvidas novas de lideranças petistas e de amigos de Lula da Silva. A conversa sobre o pós-Lula pode começar talvez muito mais cedo do que se previa. Em vez de 2019, pode ser um problema para as águas de março.


Talvez logo se imponham a definição de um candidato substituto e a revisão da estratégia de sobrevivência parlamentar e de alianças. Pode haver disputa precoce sobre a futura liderança partidária, abafada por Lula em particular desde os anos 1990, quando restou apenas uma palmeira em um petismo reduzido a um gramado.

Até a derrota completa no julgamento de Porto Alegre, dizer que "não havia plano B" era mais que retórica, pelo menos desde meados de 2017. De um modo ou de outro, Lula conduziria o partido até o dia da eleição, como candidato ou grande tutor do escolhido para sucedê-lo. Agora, há uma imensa e nova pedra no caminho desse plano, que é a possível prisão de Lula.

Um encarceramento provisório, sustado por uma decisão liminar qualquer, pode não ser o fim da linha (ou até o contrário, pode ser uma martirização alentadora). Uma decisão milagrosa do Supremo sobre o fim das prisões depois de condenações em segunda instância é uma esperança. E se der tudo errado?

Os petistas que se dispuseram a falar dizem que eles mesmos sabem muito pouco do que será feito dos problemas criados pelo julgamento de Porto Alegre. Muito depende de Lula. Mas se ouve que a cúpula do partido ficará "nervosa", que "atritos antigos vão aflorar", como se houvesse uma antecipação do "pós-Lula".

Primeiro problema: se Lula estiver preso, não será possível levar o sucessor em caravanas de campanha; seria muito difícil ungir e favorecer o escolhido da prisão. Lula teria de fazê-lo o quanto antes. Se o fizer, como ficam as conversas de unificação da esquerda e conversas sobre a possibilidade remota de o PT apoiar um aliado com mais potencial? Mais importante, como apresentar o candidato? Lula jogaria a toalha?

Além do mais, estando desarranjado o plano principal, como organizar as alianças e as candidaturas parlamentares de modo a evitar que o partido seja dizimado no Congresso?

Segundo problema, há críticas ao desempenho de Gleisi Hoffmann na presidência do PT e a suas manifestações mais exaltadas, que não seriam a posição de várias lideranças e, de qualquer modo, são vistas como nada pragmáticas ou nada eficientes mesmo entre a militância. Sem a presença de Lula, essas lideranças não querem que Gleisi seja a voz do partido.

Terceiro e mais vistoso problema, ainda é difícil descobrir quem seria o possível candidato no lugar de Lula. Há quem diga que isso não está definido, que não se sabe, que é Jaques Wagner ou que há chance para Fernando Haddad, talvez protegido por Lula de um tiroteio precoce.

Quarto problema (e curioso ouvir tal coisa no PT): o humor do eleitorado pode mudar "ligeiramente" nos próximos meses, uma confluência de ventos ruins para o partido. Por um lado, deve haver alguma melhora de ânimos na economia; por outro, vai haver desânimos com o futuro de Lula, no eleitorado em geral e mesmo na militância. Há o risco de o PT cair pelas tabelas muito antes de começar a campanha.
Vinicius Torres Freire

Respeito ao eleitor, o Brasil do século 21

O momento é oportuno para o debate de relevantes questões que transcendem o estreito âmbito do dia a dia da política e alcançam o patamar mais elevado da ética e dos próprios fundamentos da democracia.

Jorge G. Castañeda, professor da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade Nacional Autônoma do México, no seu excelente livro Utopia Desarmada – que trata das intrigas, dos dilemas e das promessas da esquerda latino-americana –, examina três grandes temas. O primeiro, embora de origem apenas mexicana, tem repercussão que alcança todo o continente: o levante indígena armado na região de Chiapas. O segundo é o das dificuldades da esquerda em diversas partes da América Latina. No terceiro tema, Castañeda examina a situação no Brasil.

Uma das teses de Utopia Desarmada é sobre a violência à flor da pele na América Latina – o caráter fragmentado das sociedades latino-americanas, na consequente fragilidade de seus sistemas políticos democráticos e na ameaça permanente do ressurgimento da violência, que se origina “das abismais” desigualdades latino-americanas: sociais, étnicas, regionais, de gênero e de geração.

Jorge Castañeda refere-se ao efeito que o levante de Chiapas teve na vida política e no debate ideológico do México. O autor alega que a viabilidade do reformismo sempre se baseou na existência de um “mal maior”: o espectro do comunismo de que fala Marx no Manifesto, as chamadas “classes perigosas” (segunda metade do século 19), o bolchevismo (1931), a revolução cubana (1959) na América. A queda do Muro de Berlim reduziu os efeitos danosos do “mal maior”.
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O “mal maior” é a violência, com ou sem pano de fundo explicitamente político. Daí a importância de reformas sociais profundas, notadamente no Brasil. Esse é um dos importantes temas a serem debatidos na campanha eleitoral que se avizinha. Além desse – de vital importância –, a política econômica, com os seus capítulos: Presidência, inflação, nível de emprego, câmbio, política externa, Mercosul, etc...

A verdadeira reforma política precisa ser repensada. O que o atual Congresso Nacional fez até agora foi muito pouco, ou quase nada. A reforma tributária e, notadamente, a previdenciária também merecem ampla discussão e um projeto compatível com as reais necessidades do Brasil.

Outros pontos passam pela reflexão e tomada de posição dos eleitores e transcendem o estreito ambiente do dia a dia da política. Exemplo: a vaga nas Casas legislativas é do partido ou da coligação? Em caso de afastamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou ao reconhecer o direito do primeiro suplente do partido. As coligações são motivadas muito menos pela coincidência de princípios programáticos, que poderiam diferenciar um candidato de seus concorrentes, e muito mais pelo aumento do tempo no horário gratuito de televisão e pelo reforço dos cofres de campanha.

Outra importante questão é a suscitada pelo afastamento de quase meia centena de deputados que, logo após eleitos, trocaram a cadeira de parlamentar por cargos nos Executivos federal e estaduais. Trata-se de perguntar se é legítimo e ético um deputado ou senador virar as costas a seus eleitores e aceitar convites para exercer outras funções – convites, aliás, resultantes, em boa parte dos casos, de um processo de loteamento de cargos públicos, em que vale mais o peso financeiro e político do órgão cobiçado e menos a competência do escolhido.

A resposta só pode ser negativa, considerando que, em última instância, o mandato é um contrato estabelecido entre o eleito e seus eleitores, sacramentado nas urnas. Ou seja, a eleição é ganha pelo candidato que convence o eleitorado a conceder-lhe seus votos.

Numa análise técnica, o eleito compromete-se a exercer o mandato legislativo por um contrato e não teria o direito de rescindir unilateralmente esse compromisso, numa atitude que não pode, sob nenhum aspecto, ser considerada moral ou ética.

Usando os modernos conceitos de comunicação, não é difícil perceber que grande parte do eleitorado se ressente do desprezo por seu voto. Somando-se a outras atitudes questionáveis, a sensação de voto desperdiçado contribui para arranhar ainda mais a imagem dos políticos perante a sociedade, que acaba por colocar na mesma cesta os bons e os maus mandatários. E mais, esse conjunto de percepções negativas inevitavelmente deságua no aumento do descrédito da instituições republicanas.

Sem detalhar demasiadamente as razões que levam à crescente avaliação negativa da classe política, é perceptível que está vencendo o prazo para que os seus integrantes – legitimados pelo voto ou, quando não eleitos, por sua postura cidadã e republicana (há, sim, bons políticos, e não são poucos, embora tenham visibilidade muito menor do que os maus) – empreendam efetivamente a reforma política no País. Uma reforma que também atenda às aspirações dos milhões de brasileiros cansados da corrupção, dos desmandos, do estilo “só lembrar do eleitor durante a campanha”, das ambições escancaradas e desligadas dos interesses maiores da Nação.

Os brasileiros já dão sinais de que têm consciência de que chegou o momento de repensar o Brasil. Essa tendência se manifesta, até com certa impaciência, na reivindicação do respeito aos direitos do cidadão, nos movimentos em defesa da ética. Falta agora aos representantes do povo, com o faro político que devem ter ou desenvolver, alinhar-se às aspirações do eleitorado e contribuir efetivamente para a construção do Brasil do século 21.

Como afirmei em recente artigo, vamos eleger estadistas, os que pensam nas próximas gerações, deixando de lado os políticos, que apenas pensam na próxima eleição!

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Têmis vai acabar nua

Não está fácil ser Deusa da Justiça. Têmis que o diga. Juristas trabalham dia e noite na busca de técnicas de remoção da venda dos olhos da justiça. Considera-se até mesmo via cirúrgica. Ou, se necessário, amputação.

Em inesperado (ou talvez previsível) e espetacular sequência de eventos, juristas buscam a freneticamente cura da cegueira que, dizem, deveria prevalecer na aplicação da lei. Remover pública e institucionalmente a venda de Têmis virou prioridade. Ainda que a custa da humilhação da filha de Urano e de Gaia.

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Em esforço sem precedentes, juristas tropicais consideram prioritário a aplicação desigual da lei tornando inadmissível que a justiça não leve em consideração a identidade do condenado. Nos trópicos, a justiça tem horror a regra. Mas é apaixonada pela exceção. Para ela, fatos, são muitas vezes secundários. E sempre relativos.

Já sabíamos que o país havia tempo navegava sem bússola. Deriva é coisa que parece nunca incomodar. Direção e sentido são coisas para lugares onde jabuticabeiras não crescem. Não causa surpresa que em nação viciada em fraude, a balança da justiça sempre funcione adulterada.

Muito menos é causa para espanto que a espada da justiça, raramente utilizada, seja enferrujada, sem corte, ou que careca do peso necessário ao fim (ou pelo menos redução) da impunidade. Até aí, tudo normal na terra da anormalidade.

A novidade agora é simplesmente assumir publicamente que que a lei vale de acordo com a cara do freguês. Já que aparentemente aumentar a estatura do nosso sistema legal é carta fora do baralho, a decisão considerada sensata parece envolver o rebaixamento do teto. Sem medo de ser feliz.

Não que igualdade na aplicação da lei ser considerada uma tradição, ou mesmo corriqueira no um dia foi o país do futebol. Acreditar no equilíbrio da justiça tropical talvez seja absurdo. E certamente insensato. Seria simples propensão inaceitável ao autoengano. Inconsequente mesmo.

Mas haviam as aparências. Ou no mínimo a preocupação ou a tentativa de salva-la, mesmo que com narrativas e justificativas esfarrapadas, espalhadas por tediosas palavras nas toneladas de documentos ininteligíveis depositados na pilha de processos parados no sistema judiciário tropical.

Mas em tempos de maldade insolente, aparência perdeu a serventia. Diante da exaustão de argumentos que, mesmo carecendo de sentido, sejam minimamente lógicos, faltam opções para justificar o injustificável. Resta abraçar o horror.

Evoluímos da hipocrisia para a simples institucionalização escancarada da injustiça. Não é mesmo tempo ou lugar para justiça cega. Têmis que se cuide. Vai acabar nua.

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janetmillslove:  Oregon ✿⊱╮ moment love                                                                                                                                                     Mais

Temer trata como rotina o que parece criminoso

Numa entrevista à Rádio Bandeirantes, Michel Temer defendeu as nomeações políticas. Declarou: “Quando o presidente chega, são cerca de 200 cargos para preencher. Você quer que eu sente e eu escolha as 200 pessoas com critérios de moralidade absoluta? Muitas vezes chegam sugestões. Se são nomes inconvenientes, que não atendem a critérios éticos, muito bem, o governo dirá que não aceita, mas o fato de indicar não é um fato criminoso, é um fato sensível a uma democracia.” Ai, ai, ai…


É desalentador que, com a corrupção a pino, um presidente ainda pergunte diante de um microfone: “Você quer que eu escolha pessoas com critérios de moralidade absoluta?” Dá vontade de responder: Não, pode continuar nomeando salafrários! Dias atrás Temer se recusou a atender ao pedido da Procuradoria para afastar diretores suspeitos da Caixa Econômica. Teve de voltar atrás. Um dos diretores afastados, Roberto Derziê, tinha vinculações com o próprio Temer.

A Lava Jato dissolveu a Presidência de Dilma, enfiou duas denúncias criminais na biografia de Temer e aproximou Lula do xadrez. Mas a ficha de Temer ainda não caiu. Na escolha dos seus auxiliares mais próximos, Temer optou pelas más companhias. Hoje, os amigos do presidente se dividem em dois grupos: quem não tem mandato nem cargo no ministério está na cadeia. Os outros continuam protegidos dentro da bolha do foro privilegiado. Ética e moralidade tornaram-se abstrações. Para Temer, o que todos consideram criminoso não passa de rotina.

Tragédia divina

Aconteceu lá em Bihar, na Índia: a administração de um templo decidiu nele instalar uma lata de lixo em formato de canguru - para descobrir, horrorizada, que esta acabou virando objeto de adoração pelos fiéis, que a tomaram por uma divindade! A lata de lixo passou a ser lavada com água "santa" e a receber moedas dos devotos!

Na África do Sul abriu-se uma igreja de nome "Gabola" - "bebida", no idioma Tswana. Os cultos são celebrados por um bispo, devidamente paramentado, pelos bares da cidade - durante os quais é incentivado o consumo de todo tipo de bebida. Detalhe final: os batismos são realizados não com água, mas com cerveja.

No Paquistão um certo elemento de nome Ghazi Khan, casado, decidiu dedicar-se à bestialidade, "estuprando" um jumento. Surpreendidos, foram levados a julgamento - ele e o infeliz animal. O veredito considerou ser o "adultério" contrário aos fundamentos religiosos, razão pela qual condenou-se à morte… o jumento!

Enquanto isso, na Malaysia, as lanchonetes terão que rebatizar os populares "cachorros-quentes". O motivo é um decreto emitido por dada autoridade religiosa governamental, que entende serem os caninos "impuros".

No avançado Japão surgiu um robô cuja função é celebrar cultos em cerimônias fúnebres, inclusive lendo textos religiosos. Ainda naquele país lançou-se o serviço de funerais "drive-through". Funciona assim: o motorista para o carro ao lado de uma cabine, e, sem sequer desligar o motor, acende um incenso oferecido por um funcionário, faz uma oração, assina o livro de presenças e… vai embora!

Ainda sobre cerimônias fúnebres, em Madagascar as autoridades sanitárias fizeram um apelo desesperado: que as pessoas parem de dançar com defuntos em enterros, prática religiosa que tem disseminado epidemias - muitas delas resultando em centenas de mortes.

Nos EUA e na Holanda reconheceu-se oficialmente a Igreja do Monstro do Espaguete Voador como uma religião. Sua doutrina é simples: há o paraíso e o inferno, ambos com vulcões de cerveja e mulheres praticando "strip-tease". A diferença: no inferno a cerveja é "choca" e as dançarinas transmitem doenças.

Diante deste quadro, superior ao espaço e ao tempo, fico a pensar em Horace Walpole, ao exclamar que "a vida é uma comédia para os que pensam e uma tragédia para os que sentem".

Pedro Valls Feu Rosa

O que aprendi no Facebook, que abandonei

paulo ferreira
Alguém me disse que às vezes, na vida, é necessário perder uma coisa para apreciá-la. Foi o que aconteceu com a minha experiência no Facebook, que decidi interromper, porque, contradizendo o que havia proposto aos meus muitos amigos, que fosse um espaço de reflexão e discussão sobre o que vivemos, com total respeito às diferenças que sempre nos enriquecem, alguns, em vez de contribuir para o diálogo, declararam guerra com descomedimentos e insultos. Não percebi quão fortes podem ser os laços de amizade que se criam na rede, à distância, até anunciar que estava saindo. De repente, fui inundado por um rio de declarações positivas sobre o que, segundo eles, eu lhes havia proporcionado. Mensagens que pareciam de pessoas que eu conheci e amei sempre e que me repetiam como um mantra: “Juan, não vá embora”.

Essas mensagens me confirmam que os descomedidos são minoria nas redes sociais, apesar do barulho que fazem. A grande maioria é de mergulhadores em busca da verdade e da felicidade. Do encontro amistoso, dos pequenos detalhes de beleza que alegram e enriquecem a vida. Minha colega do EL PAÍS, Flávia Marreiro resumiu assim minha saída do Facebook: “Sim, uma pena. Perde delicadeza e amor aos detalhes que me davam um beliscão para acordar muitas vezes”. E outra colega do jornal, María Martin, me pede para ao menos continuar enviando-lhe fotos das minhas orquídeas por WhatsApp.


Não poderei responder a todas as mensagens de solidariedade, mas como a grande maioria é de meus leitores no jornal, isso me permitiu oferecer-lhes essa reflexão com um grande abraço para todos e cada um. Quero, no entanto, destacar a mensagem de um dos jornalistas que mais admiro e respeito neste país, Ricardo Kotscho, que nunca encontrei, mas sei que é um desses colegas que não se vendem ou se deixam comprar. Ele me escreve resumindo o que neste momento me preocupa: “Pedir reflexão e debate, em lugar de ofensas e agressões, é o sonho de todos nós que vivemos de escrever. Mas isto está cada vez mais difícil. Vou continuar lendo teus artigos que tão bem retratam o Brasil. Não vá embora. Fique com meu abraço”. As palavras de Kotscho me lembraram o que outro grande mestre do jornalismo brasileiro, Clóvis Rossi, me escreveu quando me deram o Prêmio Comunique-se de correspondente estrangeiro. Ele me disse com humor que o prêmio era injusto porque não sou um jornalista estrangeiro, mas “mais brasileiro do que ninguém”. Esses abraços de colegas que admiro e amo e que considero como mestres do nosso difícil ofício de contar às pessoas o que o poder se esforça para esconder, compensam quando me escrevem para que eu vá “para a minha Espanha de merda porque não entendo o Brasil”.

Não sei se entendo isso como gostaria, pois de vir para cá, há 20 anos, sociólogos espanhóis e italianos me diziam que o Brasil é um laboratório de coexistência entre as diferenças que deveria ser mais bem estudado. Talvez a intolerância que a luta política semeou tenha ofuscado essa realidade. Se eu talvez não conheça todas as riquezas que este país encerra, sei que eu o amo. Gal Fernandes, que também não conheço, me diz que guardou meu artigo “Tudo é enorme no Brasil, menos o biquíni” porque “adorou”. Gostaria de terminar esta coluna com as últimas linhas daquela peça que ofereço a todos os meus amigos do Facebook, que continuarei a seguir, embora sem participar: “Pequeno, no Brasil, eu só encontrei os biquínis e a falta de generosidade dos poucos que acumulam a maior parte da riqueza do país. O Brasil, com todas as suas corrupções e contradições, é essa enormidade que se deixa amar e que acabou me conquistando”.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Paisagem brasileira


Paisagem (1962), Daniel Freire 

Brasil, uma história lamentável

Desde 1946, o Brasil teve apenas três transições de poder algo tranquilas: Dutra para Vargas (1951), Juscelino para Jânio (1961) e FHC para Lula (2003). Desde 1980, o Brasil teve três recessões destrutivas, típicas de guerras. A baixa do PIB per capita foi de 12,3% em 1981-83, de 8,6% em 1990-92 e de 9,1% em 2014-2016. No meio do caminho de pedras, houve a hiperinflação e mais que uma década perdida na economia (1982-1992). A caminho, outro desperdício quase tão grande (2014-2023?).

Um presidente que estava para ser deposto se suicidou (Getúlio Vargas, 1954), um renunciou (Jânio Quadros, 1961), outros dois quase não tomaram posse (JK, 1956; João Goulart, 1961). Três presidentes da República de 1946 foram expulsos da política pela ditadura (JK, Jango e Jânio).

Dois presidentes da precarizada democracia de 1988 foram impedidos, Fernando Collor e Dilma Rousseff. Um dos presidentes mais populares da história do país foi condenado à prisão.

A paz de 1995-2012 era pouca e se quebrou. Mais desanimador, se percebe agora, foi um período em que era cevado outro monstro de várias cabeças: a indiferença pelas regras de disputa democrática, a idiotice econômica e a raiva da democracia social.

Houve mais que mensalão e petrolão. Dilma degradou a economia e, enfim, fraudou as contas públicas também para se reeleger (mas também acreditava em seus planos infalíveis ruinosos). Por sua vez, a deposição da presidente era um projeto bem antes de tomar a forma de impeachment.
O candidato do PSDB em 2014, quase eleito, era um elemento que faz molecagem com a ordem institucional (queria impugnar a chapa de Dilma “para encher o saco”) e pede dinheiro a gângsteres, para mencionar apenas fatos recentes da folha corrida de Aécio Neves. O núcleo do presente governo e do governismo terá sido composto de presidiários, vários deles políticos de carreiras infladas sob Dilma, Lula, FHC, Collor e Sarney.

Mesmo quem vive nos polos do conflito político pode compreender o desalento. Deve ser ainda mais o caso de quem vive na linha imaginária do equador da isenção.

A reflexão desesperançada pode caber tanto na cabeça de quem acha que Lula foi perseguido ou justamente condenado; tanto para os adeptos da tese do “golpe” ou para quem “as instituições estão funcionando”. Seja lá qual for o clichê político ou gosto do freguês, há inegáveis problemas de base, mesmo que as interpretações divirjam ao longo do espectro do ódio político brasileiro.

Desde a volta da democracia, houve alguma paz econômica em apenas um terço do tempo. Os tumultos político e econômico se realimentam e, na economia, não raro são causados por algum besteirão programático jeca, ignorante ou reacionário. A instabilidade agrava e prolonga as perdas econômicas, pois não há plano de investimentos ou programa de Estado que resista a tal desordem, que nada tem de revolucionária, mas extrapola o conflito democrático.

Bobagem dizer que “isso não é normal”. É. Raros são os casos de países com estabilidade política e civilidade socioeconômica. Mas mesmo nesta vizinhança ruim da América do Sul há quem pareça progredir. Qual é o nosso problema?

De tombo em tombo

Ninguém consegue ganhar uma guerra acumulando derrotas. O ex-presidente Lula começou a perder a sua guerra quando 500 000 pessoas foram há menos de três anos à Avenida Paulista, em São Paulo, protestar contra a corrupção e dizer claramente, no fim das contas, que estavam cheias dele. Cheias dele e do PT, dos seus amigos ladrões que acabaram confessando crimes de corrupção nunca vistos antes na história deste país e das desgraças que causou — incluindo aí, como apoteose, essa trágica Dilma Rousseff que inventou para sentar (temporariamente, esperava ele) em sua cadeira. Lula, na ocasião, não reagiu. Achou que deveria ser um engano qualquer: como seria possível tanta gente ir à rua contra ele? Preferiu se convencer de que tudo era apenas um ajuntamento de “coxinhas” aproveitando o domingão de sol. Acreditou no Datafolha, cujas pesquisas diziam que não havia quase ninguém na Paulista — parecia haver, nas fotos, mas as fotos provavelmente estavam com algum defeito. Seja como for, não quis enfrentar o problema cara a cara. Preferiu ignorar o que viu, na esperança de que aquele povo todo sumisse sozinho. Enfim: bateu em retirada — e, assim como acontece com as derrotas, também não se pode ganhar guerras fazendo retiradas.


Lula não ganhou mais nada dali para a frente. Foi perdendo uma depois da outra, e recuando a cada derrota. Pior: batia em retirada e achava que estava avançando. Confundiu o que imaginava ser uma “ofensiva política” com o que era apenas a ira do seu próprio discursório. O ex-presidente, então, mobilizava exércitos que não tinha, como o “do Stédile”. Fazia ameaças que não podia cumprir. Contava com multidões a seu favor que não existiam. Imaginava-se capaz de demitir o juiz Sergio Moro ou de deixar o Judiciário inteiro com medo dele, e não tinha meios para fazer nenhuma das duas coisas. Chegou a supor, inclusive, que poderia ser ajudado por artistas mostrando plaquinhas contra o “golpe” no Festival de Cinema de Cannes — ou pela “opinião pública internacional”, o costumeiro rebanho de intelectuais que falam muito em inglês ou francês, mas resolvem tão pouco quanto os que falam em português. O resultado é que o mundo de Lula girava numa direção, e o mundo das coisas concretas girava na direção contrária. Sua comédia só poderia acabar como acabou: com a sua condenação, pela segunda vez, por crime de corrupção, e agora não mais por um juiz só, mas pelos três magistrados do TRF4, de Porto Alegre. Pior, impossível: ele perdeu por 3 a 0.

Derrotas, sobretudo quando não entendidas, em geral têm dentro de si apenas a semente de outras derrotas. Foi assim com o ex-presidente. Depois de derrotado na Avenida Paulista e nas ruas do Brasil inteiro, Lula perdeu o apoio que tinha no Congresso. As gangues de assaltantes do Erário que formavam a sua “base aliada” começaram a largar de Lula em busca de um novo futuro — e ele não conseguiu segurar essa tropa. Tome-se um Geddel Vieira Lima, por exemplo — esse dos 51 milhões de reais enfurnados num apartamento de Salvador e residente na cadeia desde setembro do ano passado. Foi ministro de Lula durante três anos inteiros, depois peixe graúdo no governo Dilma — e mesmo assim o nosso gênio da “engenharia política” não conseguiu segurar o seu apoio. Geddel é apenas o representante clássico de todos; há centenas de outros e de outras. Lula, embora contasse com a máquina do governo Dilma a seu favor, foi perdendo todos — e deixou-se ficar em minoria no Congresso. Perdeu, também, quando foi levado por uma escolta armada para prestar depoimento na polícia. Não se ouviu, na ocasião, um pio em seu favor por parte da massa de brasileiros reais; descobriu, chocado, que podia ser enfiado num camburão de polícia a qualquer momento — e ninguém estava ligando a mínima para isso. Foi derrotado, não muito depois, quando tentou nomear-­se “ministro” de Dilma e arrumar para si o infame “foro privilegiado”, que, na opinião da massa, é apenas um esconderijo de ladrões que querem ficar livres da Justiça. Foi derrotado de novo, logo em seguida, quando ficou claro que o seu lado não tinha força para fazer nem isso.

Lula sofreu mais uma derrota pavorosa, até ali a pior de todas, quando Dilma conseguiu o prodígio de ser deposta da Presidência da República por 367 votos contra 137, na Câmara de Deputados — nada menos que 71,5% dos votos disponíveis, sem falar no seu naufrágio por 61 votos a 20 no Senado Federal, num total de 81 senadores. Para qualquer político, seria um aviso de que o seu lado estava na mais miserável minoria; não tinha força para exigir nada, e muito menos para derrubar no grito o sistema judiciário do Brasil, só porque estava sendo incomodado por um juiz de direito de Curitiba. Para Lula, não houve nada. Como o seu partido, disse que tudo foi um simples “golpe” e que a CUT, a UNE, o MST, os bispos, os sem-teto e os etcs. jamais iriam aceitar isso. Somados, não juntavam três estilingues — mas Lula achou que conseguiriam salvá-lo. Daí para diante foi apenas de mal a pior. Quis enfrentar o juiz Sergio Moro num concurso de popularidade. Perdeu. Quis se safar com truquezinhos de advogado. Não deu certo. Tentou passar recibos falsos. Falhou de novo.

Mais que tudo, Lula nunca percebeu que o Brasil, apesar de todos os seus atrasos, já saiu um pouco do século XIX. Como José Sarney, Renan Calheiros e o restante do Brasil da senzala, não conseguiu entender que existe hoje, na vida real, uma parte do sistema de Justiça que não depende de quem manda no governo, como foi durante séculos. Poder Judiciário, para Lula, é uma força auxiliar dos donos do governo, dos que têm influência e bons “índices de pesquisa”. Estão lá para “acertar”, ajudar e resolver. Tem um juiz atrapalhando? Tira o juiz. É Maranhão puro. No seu caso, quando enfim se deu conta de que não estava funcionando assim, entrou em pane — “espanou”, como se diz, e perdeu de vez o rumo. Ao fim, veio a derrota mais arrasadora, do seu ponto de vista pessoal. Foi condenado como ladrão, e demolido de vez, agora, com o aumento da sua sentença de nove anos e meio para doze anos de cadeia no tribunal que está acima de Moro — com provas que não podem mais ser contestadas. Fim da história — sem contar a batelada de processos penais que ainda tem pela frente.

Lula se vê reduzido, hoje, a contar com gente que queima pneu na rua para fechar o trânsito por umas tantas horas, e diz que isso é um ato de “resistência” política. Põe na praça manifestantes que correm da polícia. Manda milícias sindicalistas proibir que trabalhadores entrem em seus locais de trabalho — frequentemente, acabam apenas levando uns tapas e desistem de seus piquetes. Pode, como sabotagem, organizar greves de funcionários públicos; mas isso só funcionaria se as greves durassem pelo resto da vida. Pode, também, tumultuar as eleições. No mais, sobram-lhe os “intelectuais”, artistas da Globo que assinam manifestos, a classe média urbana que não precisa pegar no pesado e a elite milionária — que tem aí mais uma oportunidade de fingir-se de “esquerda civilizada” sem correr risco nenhum. Não é grande coisa. Não dá para fazer uma revolução bolivariana. Não dá para tomar de volta o Brasil.

Narrativas falsas

O mundo descobriu recentemente o poder e o risco das fake news. Mas no Brasil, há décadas, somos vítimas de narrativas falsas que corrompem nossa maneira de pensar.

Para defender seus gastos, o governo corrompe a aritmética e cria a falsa narrativa da moeda com a inflação, dando-lhe valor menor do que o indicado na cédula.

Bastaria o PIB crescer para todos terem bons empregos e altos salários e o Brasil chegaria ao Primeiro Mundo. O resultado foi o crescimento da riqueza nas mãos dos poucos ricos e a persistência da pobreza na vida da multidão de pobres.

Quando essa narrativa mostrou a cara perversa, optou-se pela falácia de que a transferência de R$ 170 em média por mês seria suficiente para tirar uma família da pobreza. Decretou-se o fim da miséria, independentemente da verdade.

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O impeachment seguiu prescrições constitucionais e as instituições continuam funcionando. O novo presidente foi escolhido vice duas vezes pela presidente impedida. Mas ainda prevalece a falsa narrativa de golpe.

A mesma falácia que impedia ver os problemas já anunciados em 2011 no meu livro “A Economia Está Bem, Mas Não Vai Bem” agora mostra os problemas herdados como sendo criados pelo atual governo.

E esse mesmo governo, imerso na corrupção e desprezando a opinião pública, contribui para fortalecer a falsa narrativa de que ele é o culpado do desastre, mesmo quando a economia mostra recuperação.

Da mesma forma, sustenta-se a falsa narrativa de que a Lava Jato vai salvar o Brasil, esquecendo-se de que juiz pode mandar prender político corrupto, mas não elege político honesto.

Criou-se a narrativa da Lei da Ficha Limpa, de que a política acabou com a corrupção, mesmo deixando soltos e elegíveis políticos e juízes que constroem palácios, com dinheiro roubado de escolas, do saneamento, de teatros e da ciência.

É também falsa a narrativa de que a cassação dos direitos políticos de um corrupto vai educar o eleitor, quando poderá até acomodá-lo. Todos que não forem condenados serão vistos como igualmente bons.

Depois do “rouba, mas faz”, cairemos no “se não rouba, já é bom”, não importando suas prioridades e competência. O Brasil vai continuar igual se não nos educarmos como eleitores.

Quando se discutia a Lei da Ficha Limpa, defendi que o “ficha-suja” deveria poder ir à campanha como os cigarros vão à venda, com o aviso de que “este candidato foi condenado por corrupção e faz mal à saúde nacional”.

A Justiça condenaria, mas caberia ao eleitor cassá-lo nas urnas. Não se tiraria a soberania do povo e certamente educaria melhor o eleitor. Mas não foi assim que a lei foi aprovada, com apoio dos que não aceitaram a sugestão e, hoje, reclamam dela.

A Lei da Ficha Limpa deu à Justiça o poder de condenar e cassar. Vamos ter de conviver com ela, esperando educar o eleitor por outros meios, mas alertando que acreditar plenamente em narrativas falsas não educa.

Cristovam Buarque

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Imagem do Dia

Alfama.- Lisboa
Alfama (Lisboa)

Brasília, a Versalhes de Luís XVI no Brasil 2018

Qualquer analista imparcial, não comprometido com o gozo de benefícios e privilégios “autoassegurados”, em Brasília, percebe que, se políticos e burocratas não mudarem a mentalidade, o Brasil será o mais forte candidato a reeditar o drama venezuelano, em médio prazo, no cenário mundial.

Não discuto, neste breve artigo, a idoneidade dos membros dos tribunais superiores e do Ministério Público, aparentemente não contaminados pela avalanche de investigações, denúncias e condenações que atingiram os componentes dos outros Poderes, até porque, sendo o Judiciário um Poder técnico e o Ministério Público uma função essencial à administração da Justiça, seus integrantes são, na expressiva maioria, aprovados em duríssimos concursos, em que o exame de seu passado ético sofre também severa avaliação. Participei da banca de três concursos de magistratura (aprovamos, ao todo, menos de cem magistrados nos dois concursos federais e no do Estado de São Paulo, entre 6 mil candidatos). Sei, portanto, do rigor e das dificuldades que lhes impusemos para conhecer sua competência e sua vocação.

Todavia tais instituições – que são técnicas, e não políticas –, ao arrepio da Lei Suprema, passaram a entender que poderiam substituir os poderes políticos dos governos, neles interferindo, como se legisladores ou executivos fossem.

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O Brasil só sofreu o terceiro rebaixamento no grau de investimento, por importante agência de rating, por força da paralisação das reformas, cujo principal responsável foi o antigo procurador-geral da República. Numa nação em que a escandalosa carga tributária beneficia fundamentalmente os burocratas e políticos, sem reverter, em benefício do povo, serviços públicos na proporção de sua cobrança, é de estarrecer a decisão monocrática de respeitado ministro da Suprema Corte que autorizou aumento do funcionalismo federal que fora suspenso pelo governo em face do acentuado déficit das contas públicas.

Em outras palavras, o Brasil passou a ser um país menos confiável para receber investimentos pela incapacidade dessas autoridades de perceber que o que gera tributos (para poderem continuar nos seus postos), cria empregos e produz desenvolvimento são os investimentos, que o governo não tem recursos suficientes para estimular nem prestígio internacional para receber na proporção que a grandeza do Brasil merece.

Por outro lado, os participantes dos governos anteriores, que colocaram assaltantes públicos em empresas estatais, causando prejuízos monumentais por corrupção e incompetência na Petrobrás, no BNDES e em outras entidades públicas sustentadas pelos contribuintes brasileiros, além de provocarem inflação de dois dígitos, desemprego acentuado, PIB negativo, recessão, queda na balança comercial e monumental atraso na eventual inserção brasileira no comércio internacional, protagonizando um populismo deletério e corrosivo, continuam lutando para impedir as reformas saneadoras! E desafiam a Justiça do País, apoiados por notórios violadores da lei, especialistas em promover invasões de terras e de prédios, sob a alegação de que o “direito” por eles ditado é que deve prevalecer sobre o que foi aprovado pela Constituinte ou pelo Poder Legislativo. Investigada senadora da República, defensora no Brasil do ditador Nicolás Maduro, chegou a dizer que, se Lula for condenado e preso, haverá mortes!

Infelizmente, todo este cenário de desajustes, em que bons e maus se unem para impedir o avanço das reformas necessárias, objetivando garantir seus privilégios, concentra-se na capital do País, cidade absolutamente divorciada da realidade brasileira e em nada semelhante à de um país como, por exemplo, a Suécia, onde os magistrados da Suprema Corte vão de bicicleta ou de trem para o tribunal, o que não se vê no Brasil.

Quem estuda a Revolução Francesa se impressiona com a alienação da corte de Luís XVI sobre a realidade francesa, que resultou, em 1789, na insurreição e, dois anos depois, na derrubada do próprio Luís XVI e de sua corte, quando se instalou a denominada Era do Terror. O comportamento pessoal de Maria Antonieta e Luís XVI, mesmo na prisão, antes do cadafalso, foi de muita dignidade, lembrando que há pedido de reabertura do processo de beatificação de sua irmã. Mas foi sua brutal insensibilidade ante a realidade francesa – a frase atribuída a Maria Antonieta “se o povo não tem pão, que coma brioches” é paradigmática – que levou à queda de todo um regime, abrindo espaço aos desmandos, à execução de Robespierre e ao domínio posterior de Napoleão.

A corte de Versalhes estava distanciada da realidade francesa, como a corte brasiliense de burocratas e políticos está distanciada das necessidades brasileiras, pouco sensível ao alerta de especialistas no sentido de que, se tais reformas não vierem, o Brasil dificilmente sairá da crise, apesar de alguns resultados positivos do atual governo, não obstante as resistências, com inflação abaixo da meta (menos de 3%), PIB positivo, juros bem inferiores aos do período Lula-Dilma, emprego em alta, maior saldo da balança comercial, etc.

Quando, como mostrou Ruy Altenfelder em artigo neste jornal, a média de pagamentos previdenciários para os servidores públicos da União está em torno de R$ 15.800 mensais e para o povo, que sustenta tais benefícios (regime geral), é de R$ 1.900 – nenhuma diferença é tão grande em todos os países desenvolvidos ou emergentes de expressão –, é de perceber que a elite brasiliense, como a corte de Luís XVI, é hoje o principal obstáculo a que o Brasil progrida. A ela se acresce o populismo daqueles que levaram o País, no passado, ao caos econômico e à corrupção deslavada.

“Quousque tandem abutere patientia nostra?”, diria Cícero à corte brasiliense, se vivesse no Brasil de 2018.

E agora, Brasil?

Bom dia, Brasil. Hoje, você amanheceu outro. Não diria novo, mas outro. A decisão foi tomada, e agora é só uma questão de tempo. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve ficar fora da corrida eleitoral de 2018. Lula, seus advogados, seu partido e milhares de seus seguidores ainda farão bastante barulho daqui até a hora fatal em quem ele será declarado inelegível com base na Lei da Ficha Limpa. Daqui até outubro, mesmo em meio a intenso tiroteio, haverá tempo suficiente para os brasileiros escolherem em quem votarão para suceder ao presidente Michel Temer. Por ora, o único nome fora da urna é o de Lula.

O barulho não será pequeno, preste muita atenção. Vão dizer que a sua vontade, Brasil, foi golpeada e violentada, que a palavra de seu povo foi calada. Haverá um sem número de recursos que correrão em instâncias judiciais ainda superiores. Aqui, em casa, e lá fora. Na ONU, em Haia, no Conselho de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, onde houver um fórum, haverá um recurso. Os advogados de Lula são bons nisso. O GLOBO mostrou que entraram com um novo recurso a cada seis dias no decorrer do processo em Curitiba.

Uma comissão chefiada pela presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, com os advogados Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, mais um e outro aliado e um assessor, será fotografada e filmada ainda neste inverno no Hemisfério Norte. Seus membros, com casacos de lã e cachecóis vermelhos, percorrerão ruas geladas e tribunais frios buscando o que julgam ser uma reparação para seu líder injustiçado. E farão discursos nas portas de cortes internacionais atacando você e sua Justiça.

É hora de tomar fôlego, Brasil. Este ano será bem maior do que todos os outros que você já viveu. Serão jornadas inesquecíveis para uns e angustiantes para outros. Mas você terá que se resguardar para ao final proteger os seus filhos. Além do percurso político que terá de enfrentar, há outros tão importantes quanto este. São os caminhos que consolidarão a base substantiva que o seu futuro presidente haverá de enfrentar.

Para ter seu registro eleitoral aceito pelo TSE, Lula terá de convencer outras instâncias do que não conseguiu até aqui comprovar. O caminho da defesa até ontem foi atacar o juiz, a Justiça, a imprensa, todas as instituições que desconfiassem da inocência de Lula. Os aliados do ex-presidente politizaram a questão judicial de maneira a desacreditá-la. O fato é que a Justiça se manifestou, e Lula deverá ficar inelegível. Dirão que esta decisão jamais aconteceria em outro país, em país civilizado. Só aqui, Brasil.

O PT irá para o ataque ainda mais frontalmente. Com a esfera jurídica praticamente concluída, porque dificilmente o STJ reformará a decisão e o TSE permitirá o registro da candidatura de Lula, o que sobra é partir para o confronto político. E o PT é bom nisso. Mas teremos de ver como reagirão as forças que sustentam o PT e seu líder. A lógica agora é outra. Um colegiado se manifestou. Portanto, será uma guerra, Brasil.

Uma guerra para defender um homem condenado por corrupção em duas instâncias da Justiça. O discurso contra Sergio Moro desapareceu. O juiz que a defesa de Lula considerou suspeito, que o PT chamou de fascista, não está mais sozinho. E atacar os desembargadores, que ontem reafirmaram a sentença de Moro, significará ir contra toda a Justiça brasileira. Dirão que aqui, nesta nossa terra, tudo é possível, inclusive condenar um ex-presidente sem provas.

E muito dificilmente prosperará o discurso petista dos últimos dias, que considera o julgamento de ontem não uma ação judicial contra um ex-presidente, mas sim uma manobra política para afastá-lo da eleição presidencial. Daí aquelas palavras de ordem:

“Eleição sem Lula é fraude, eleição sem Lula é golpe”. O que provavelmente ocorrerá, Brasil, é eleição presidencial sem um dos pré-candidatos, aquele que foi denunciado e condenado por corrupção.

E o que ainda pode acontecer neste nosso solo, Brasil? Um morto! Por sorte, mesmo condenado em duas instâncias, Lula não será preso agora. Se prisão houver, será depois das eleições de outubro, possivelmente no ano que vem ou depois de outra condenação, no processo do sítio de Atibaia, por exemplo. E aí, não haverá por que matar ou morrer.

Condenado pelo conjunto da obra

Desejado ou não pelo leitor, não vem ao caso, o resultado foi o esperado diante de notícias e manifestações prévias. O TRF da 4.a Região tem confirmado os vereditos do juiz Sérgio Moro e no caso do ex-presidente Lula não foi diferente. O placar, talvez, suscitasse dúvidas e apostas. Mas o 3×0 não chegou a surpreender. Lula foi condenado e suas condições de recorrer ou delongar os efeitos da condenação ficam, então, bastante reduzidas. É quase igual a zero hipótese de que esteja na cédula eleitoral.

O resultado e o placar deixam uma mensagem eloquente: ao contrário do que tem se dado nos tribunais superiores — onde o Foro Especial tem falado alto —, a Justiça de instâncias inferiores não está disposta a fazer concessões à moderação e à conciliação, ao perdão. O sinal inequívoco é sua disposição punitiva; da busca de seu fortalecimento político e institucional. Provavelmente, também de seu Poder.


Já na introdução de suas falas, os desembargadores federais de Porto Alegre pronunciaram-se, todos, em defesa do sistema jurídico a que pertencem. Prova de que a pressão feita pelo PT e suas lideranças, gerou efeito contrário: ao invés de acuar, atiçou. Fez reafirmar a independência. Realmente, a presidente do PT foi pouco inteligente ao dizer que ''morreria gente''. Os magistrados pagaram para ver. Mais que inútil, foi um erro.

Depois, foram as teses gerais de cada um dos desembargadores. Demonstraram que o que mais os tocava era a corrupção sistêmica em que as autoridades, não só do PT, se envolveram. Na existência da corrupção não há novidades, mas foi exatamente neste ponto que morou o centro e o coração da racionalidade dos juízes. O foco da disposição de punir.

Pode-se argumentar a falta de provas; que não se comprovou que o ex-presidente fosse dono ou pelo menos usufruísse do tríplex que, ao final, causou sua ruína. Parece-me que há meandros do Direito que nem o próprio Direito compreende ao certo. OK, pode até ser; formalmente, pode até ser. O caso do sítio, talvez, desse até mais condições de prova. Mas, o fato é que Lula foi condenado pelo conjunto da obra.

Foi punido pelo papel e pelas relações que estabeleceu com os vícios do sistema político, onde, um dia, foi o número um. Teoria do Domínio do Fato, como no Mensalão. ''Tu és responsável por aquilo que cativas''.

Para quem procura olhar para o processo, pelo qual o Brasil está passando, com alguma lucidez e enxergar sem paixão, não há prazer algum na condenação de Lula. Mas é preciso reconhecer que Lula, a maior liderança popular da história do país, e seu partido, que se fundou e se desenvolveu na crítica ética ao sistema político nacional, sucumbiram à tradição clientelista e patrimonialista do Brasil. A questão não foi o tríplex.

Se não força para mudar, Lula e o PT tiveram, pelo menos, a oportunidade de articular estresses e rupturas no sistema político nacional. E não o fizeram. Aliaram-se ao tradicional e arcaico como se esta fosse a única possibilidade e o único modo de fazer política. Lamentável, não por Lula e nem pelo PT. Mas, pela chance perdida. Pela inocência perdida. Pela história perdida.

A pergunta que se fará agora será ''por que apenas Lula''? Disposição em persegui-lo, por tudo o que, um dia, representou? Complô das elites? Ora, não há Comitê Central da Burguesia e nem as elites são organizadas assim. Embora não sejam os únicos, Lula e o PT caíram na rede que ajudaram a tecer.

Mais produtivo, no entanto, será questionar o Foro Privilegiado, exigir seu fim. Apostar que, agora, por onde passou um boi terá que passar toda boiada comprometida. Lutar, sim, mas pela transformação do sistema político, por seu aperfeiçoamento. O maior risco será transformar Lula num mártir apenas por ser o único peixe realmente graúdo fisgado. Outro erro será transformar ''a questão Lula'' no problema central do Brasil, reduzindo o debate eleitoral ao seu azar ou à sua sorte. É preciso olhar para frente, consertar o que está quebrado.

Carlos Melo 

Gente fora do mapa

Onde estávamos há cem anos?

O Brasil começava o ano de 1918 com a expectativa de eleições presidenciais, que seriam realizadas em 1° de março. Melhor: não o Brasil como um todo, mas aquela pequena parcela de homens maiores de 21 anos e alfabetizados, cerca de 6% da população de 28,9 milhões de pessoas — o voto era proibido aos menores de 21 anos, analfabetos, mulheres, religiosos e militares. Ainda assim, apenas 395 mil eleitores (1,4% do total) compareceriam às urnas, sufragando a eleição do advogado paulista Rodrigues Alves, numa coalizão do Partido Republicano Paulista (PRP) com o Partido Republicano Mineiro (PRM), naquela que se convencionou chamar de política do café com leite.

Rodrigues Alves já havia sido presidente do Brasil, entre 1902 e 1906, num período de bonança econômica. Com a entrada de divisas provenientes da exportação de café e borracha, o país remodelou as estradas de ferro, comprou da Bolívia o território do Acre e, principalmente, promoveu a reforma da capital, então o Rio de Janeiro. O objetivo era, além de dotar a cidade de um planejamento urbano, combater a peste bubônica, a febre amarela e a varíola que grassavam por ali. Instigados pela oposição, o povo se revoltou contra a vacina obrigatória antivariólica e alguns militares aproveitaram para tentar um golpe de estado, rapidamente sufocado.

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A gripe "espanhola" matou até o presidente
Com o prestígio adquirido naquele primeiro mandato, Rodrigues Alves venceu o pleito de 1918 com 99% dos votos. É bom lembrar que na época o voto não era secreto e quem determinava o resultado das eleições era o poder dos coronéis, título genérico que se dava às lideranças políticas ou militares regionais. Mas Rodrigues Alves não chegou a tomar posse. Os soldados que lutavam na Europa, na carnificina denominada I Guerra Mundial, começaram a ser dizimados por uma nova doença, a gripe espanhola. Os primeiros casos surgem em abril, e em setembro a epidemia já aportava no Brasil, acarretando mais de 300 mil mortes, incluindo o presidente recém-eleito.

No dia 15 de novembro, data marcada para a posse, assume o cargo interinamente o vice-presidente eleito, na época votava-se para ambos os cargos, o mineiro Delfim Moreira. Nas novas eleições, realizadas em 13 de abril daquele ano, saiu vitorioso o paraibano Epitácio Pessoa, apoiado pelo PRM. Detalhe curioso é que Epitácio Pessoa venceu o pleito, contra o jurista baiano Ruy Barbosa, estando fora do Brasil, chefiando a delegação brasileira na Conferência de Paz de Versalhes, na França. Ele só voltou ao país um mês antes da posse, ocorrida no dia 28 de julho...

O fim da I Guerra Mundial, ocorrido em 11 de novembro de 1918, deixou como saldo, após quatro anos de batalhas, cerca de nove milhões de mortos, entre civis e militares, o mapa-múndi redesenhado, o surgimento de uma nova potência, os Estados Unidos, e problemas econômicos e políticos não resolvidos, que iriam desencadear a Grande Depressão da década de 1930 e provocar o reinício dos conflitos que redundariam na II Guerra Mundial, apenas 21 anos depois. Com um novo e fundamental componente: o aparecimento das ideologias totalitárias, o fascismo, o nazismo e o stalinismo.

Benito Mussolini, sargento “por mérito em guerra”, após lutar por nove meses e ser ferido por uma granada, volta para seu país e funda em 1919 o Fasci Italiani di Combatimento, origem do partido fascista, que a partir de 1922 assume com poderes absolutos o governo da Itália. O austríaco Adolf Hitler, cabo do exército alemão, esteve todo o período da guerra em frentes de batalha. Em 1919, toma a liderança do Partido dos Trabalhadores Alemães, origem do partido nazista, que a partir de 1933 alcançaria o poder absoluto na Alemanha. O georgiano Josef Stálin, durante a I Guerra Mundial, amargava o exílio no Círculo Polar Ártico, por conta de suas atividades como membro do comitê central do Partido Comunista. Em 1917, é libertado, e em 1924, com a morte de Lênin, assume com poderes absolutos o governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Há cem anos, o Brasil enfrentava problemas com a educação (a educação de qualidade era privilégio da elite), com a saúde (epidemias grassavam, causando pânico), bandos de cangaceiros agitavam o Nordeste, os militares planejavam golpes de estado, as eleições eram fraudadas, a população mantinha-se apática, e nasciam, com força, os ideólogos das doutrinas totalitárias, alimentando-se da frustração, da ignorância e da desesperança...

Pensando alto

Pensar alto, exteriorizando em palavras ou gestos o que está restrito ao interior da cabeça, é muito perigoso. Corre-se risco quando se fala o que se pensa e se pensa o que se fala.

Pode dar prisão e morte — destruir reputações. Você pode ser chamado de esquerdista ou, como hoje é moda, de golpista e, pior que tudo, de liberal...

Livre da consciência, o pensamento é controlado, protocolado ou proibido. Nas ditaduras não se pode pensar. As cabeças autoritárias coroadas pelo êxito assumem que tomar partido é decidir.

Falamos em fake news sem prestar atenção a que elas são atos falhos, são sussurros mentais e, como as intrigas e calúnias, são descobertas incômodas — verdades verdadeiras. Expressões de desejos e de alternativas culturais suprimidas ou reprimidas. Não falo nem morto; se ele for condenado, morremos...

Muitas anedotas que circularam em regimes despóticos revelam isso claramente. No Brasil, muitas ressaltavam e extrema feiura, ausência de inteligência e de tato de alguns dos nossos ditadores. Na Alemanha do nacional-socialismo existe um verdadeiro cânone desses eventos imaginários, expressivos de desejos aprisionados. Eis um exemplo:
“Hitler e Goering estão olhando a paisagem do alto de uma estação de rádio em Berlim.
Hitler revela que ele gostaria de fazer alguma coisa que abrisse um sorriso nos rostos tristes dos berlinenses. Goering pensa um pouco e sugere: ‘Por que você não pula?’”
Ouvida por nazistas, a piada deu interrogatório e perseguição. Os politicamente corretos não podiam admitir o humor que deixa “falar alto” e revela os interstícios. A filigrana onde os desejos lutam para sair porque denunciam a mistificação.


Certas piadas, senão todas, bem como o seu inverso — as calúnias e pragas que fazem sofrer e chorar —, são censuradas porque o “pensar alto” revela o lado dissimulado de um regime ou pessoa sagrada.

Pensar alto é um meio-termo entre o peso da verdade e o seu desvendamento. No meu longo e elaborado treinamento, cujo destino era ser pesquisador e professor, eu passei por muitos exercícios de controle do pensar alto. Uma vez assisti a uma conferência singularmente presunçosa sobre “teoria do parentesco” proferida por um pós-estruturalista francês no Museu Geral, onde trabalhava. Seu ponto de partida era genial: só há parentesco porque um homem se casa com uma mulher...

Meu professor adorou. Eu, porejando pusilanimidade, concordei, mas pensei baixinho com desmedida coragem: trata-se de uma besta quadrada! A quantas conferências e seminários idiotas eu assisti? Em quantas aulas e palestras eu mesmo disse lixo? Quantas vezes eu sufoquei o meu pensar alto? Perdi a conta...

Lembro-me de alguns conselhos recebidos nesta preparação para uma apropriada cultura da hipocrisia. Quando, no seu período pré-Trump, os Estados Unidos eram a América, meu mentor exigia que eu fosse direto ao ponto (go straight to the point!) arcando com todas as consequências, inclusive a de revelar a desonestidade intelectual do conferencista ou do autor. No Brasil, porém, onde discordar é tido como falta de consideração e de humanidade (errar é humano, persistir no erro é estar no lugar certo e ser superior!), aprendi o exato oposto: “Jamais, admoestou-me um mentor, diga o que você pensa!” Encaixei as duas lições e confesso a minha total insegurança entre o pensar alto e deixar de pensar.

Quando eu observo que um operador profissional de propinas está paradoxalmente “preso” na sua fazenda porque o Estado não tem tornozeleiras eletrônicas, eu penso alto: não seria melhor acabar com julgamentos de todas as ex-autoridades que continuam a gozar de suas majestades?

Queremos justiça, mas não gostamos de suas consequências: prisões, igualdade absoluta, isolamento e algemas. O político enganador e poderoso algemado promove empatia porque não temos como fotografar o seu crime. Ele roubou “do governo”, recebeu propinas, seus companheiros mais chegados o denunciaram abertamente, ele quebrou o Brasil, mas a “crise”, embora tremenda, é impessoal e abstrata. Ela é sentida e vivida, mas não pode ser presa e ninguém vai morrer por ela.

Pensando alto, o que conta no Brasil é a personificação. Milhares, porém, foram algemados a uma vida miserável por irresponsabilidade do governante, mas, ao vê-lo prestes a ser julgado e a receber o seu fim político, o coveiro de esperanças é transformado por alguns numa pobre vítima e num herói nacional. Tudo é falso e irreal. Trata-se, inclusive, de julgar o julgamento. Eis o dogma em estado puro. O assassínio do pensamento.

Roberto DaMatta

Nem costas largas, nem quentes

Mais do que reafirmar por unanimidade a sentença do juiz Sérgio Moro e ampliar para 12 anos e um mês a pena imposta ao ex-presidente Lula, os desembargadores da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região protagonizaram um necessário desagravo à Justiça.

Reafirmaram a independência do Poder Judiciário, não cedendo a constrangimentos e pressões. E destruíram a falácia de que no Brasil imperam tribunais de exceção, como o PT e sua turma tentam, irresponsavelmente, propagar por aqui e além das fronteiras do país.


Antes de tudo, o julgamento foi didático.

João Pedro Gebran Neto, o relator, Leandro Paulsen, o presidente da turma e revisor, e Victor Laus, expuseram com minúcias a denúncia do MPF e a sentença de Moro, as arguições da defesa, as provas documentais e circunstanciais, os relatos de testemunhas e delatores. Explicaram os procedimentos processuais e o significado das acusações de lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Tudo tintim por tintim.

E rechaçaram, com citações de peças expostas nos autos, os argumentos de falta de provas e cerceamento de defesa, teses caras a Lula e seus advogados, que demonizam a Justiça quando ela condena o ex e dela abusam com um sem número de recursos. Mais de 150 só no TRF4. Diga-se, alguns deles deferidos em favor do réu, como salientou Paulsen, reiterando a isenção da Corte.

Como bem disse Laus, “em bom português, se alguém fez algo errado, e se esse algo errado é crime, a pessoa responde e pronto”.

A 8ª turma do TRF4 foi além: aumentou a pena de Lula por considerar que um representante ungido pelo voto à posição de maior mandatário do país tem de ser exemplar e, portanto, seu dolo provoca danos ainda maiores.
Mais: jogou areia no marketing de campanha do PT de que eleição sem Lula é fraude.

Agora, terão de rebolar para contraditar a frase de Paulsen, a que mais traduziu o espírito do julgamento: “Aqui, ninguém pode ser condenado por ter costas largas, nem absolvido por ter costas quentes”.

Mary Zaidan

Paisagem brasileira

Paisagem (1962), Daniel Freire

Candidato, Lula presta último serviço ao país

Ao grudar na imagem de Lula, por um placar de 3 a 0, a qualificação de corrupto, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região carbonizou o projeto presidencial do réu. Horas depois, em comício na Praça da República, em São Paulo, o condenado reafirmou sua candidatura ao Planalto. A insistência de Lula é algo a ser festejado. Com seu atrevimento, o personagem mostra que a prioridade da disputa presidencial de 2018 deve ser assegurar aos brasileiros o direito a um governo decente, comandado por biografias limpas.

Ao contrário do que sustenta o slogan do PT, eleição sem Lula não será uma fraude, mas um bom começo. A democracia não cai do céu, precisa ser conquistada. E a exclusão de um ficha-suja graúdo da corrida sucessória emitirá um sinal de vitalidade que as instituições brasileiras estão devendo ao país. Urnas servem para contar votos, não para expedir habeas corpus. Um sentenciado a 12 anos de reclusão deve ser tratado como candidato favorito a passar uma temporada atrás das grades, não na poltrona de presidente.


Por falta de uso, a legislação penal brasileira sofre de atrofia muscular. Não consegue atingir larápios acima de um certo nível de renda. Deve-se à impunidade dos criminosos do poder a conversão da nossa democracia em ratocracia. Antes do mensalão e da Lava Jato, a taxa de risco da corrupção era baixa. O normal era não ser apanhado. Ou ser apanhado e fazer piada da má sorte. O drama de Lula consolida uma terceira hipótese: a de ser pilhado e pagar pelos crimes. Parece pouco. Mas faz uma enorme diferença.

Nem todo mundo notou, mas o Brasil está mudando. O que desanima é a lentidão do processo. A candidatura de Lula é útil porque ajuda a trazer a mercadoria podre do fundo da loja para a vitrine. O PT se pergunta: por que prender Lula e deixar solto Aécio Neves? Logo alguém gritará: “Numa disputa em que até Fernando Collor concorre ao Planalto, a exclusão de Lula é um despropósito.”

Não demora e o ministro Dias Toffoli, do Supremo, será constrangido a retirar da gaveta o pedido de vista que mantém a salvo, dentro da bolha do foro privilegiado, Aécio, Collor e outros 271 políticos processados por corrupção. O mau exemplo de Lula será redentor se for capaz de arrancar órgãos como a Suprema Corte e o Tribunal Superior Eleitoral de sua tradicional letargia.

A desfaçatez de Lula será útil também pelo contraste. Encrencado por corrupção e lavagem de dinheiro, o pajé do PT voltou a comparar-se no comício noturno desta quarta-feira a Nelson Mandela, encarcerado por combater a discriminação racial. Microfone em punho, Lula declarou: “Mandela ficou preso 27 anos. E nem por isso a luta que ele fazia diminuiu. Ele voltou e virou presidente da África do Sul.” Quem ouve fica tentado a perguntar: por que Lula quer voltar?

A resposta está no parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição Federal. Anota o seguinte: “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.” Traduzindo para o português do asfalto: eleito, Lula não poderia responder por crimes praticados antes do início do mandato. E a ação sobre o tríplex iria para o freezer. Seria congelada junto com os outros oito processos criminais que perseguem o autoproclamado Mandela brasileiro como um rastro pegajoso.

Diz-se que o brasileiro não tem memória. Engano. O que falta à plateia é curiosidade. Ao manter viva sua candidatura ficcional, Lula presta um último serviço ao país. Seu descaramento é útil porque estimula as pessoas a buscarem as causas da ruína ética. Muita gente talvez encontre no espelho a melhor explicação.

Noutras nações, a condenação de um ex-presidente por ladroagem seria vista como um desses acontecimentos que ferem a rotina e fazem a vida escapar da normalidade. No Brasil, não. Deve-se rezar para que Lula leve sua candidatura às últimas (in)consequências. Com sorte, o brasileiro talvez perceba que algo de extremamente anormal precisa acontecer para alterar a insuportável normalidade reinante no cenário político.

A aplicação indiscriminada de leis como a da Ficha Limpa, por exemplo, saciaria a fome de limpeza que paira no ar. O cumprimento automático de regras como a que abre a porta da cadeia para os condenados na segunda instância provocaria uma revolução nos costumes. Torça-se para que o PT mantenha um militante de plantão junto à orelha de Lula por 24 horas. Ao menor sinal de renúncia à candidatura, o plantonista deve dizer: “Tem que manter isso, viu?”

O pior para Lula está por vir

Convocadas pelo PT, quantas pessoas saíram às ruas do país, ontem, para protestar contra o julgamento de Lula ou para se manifestar a favor dele? Foram 70 mil em Porto Alegre, a acreditar-se nos números do PT. Em Brasília, 50 pessoas, contadas por jornalistas. Não se teve notícias de outros atos no resto do país.

Foi pouca gente, pôs. E nada indica que hoje muito mais ocupará as ruas das grandes cidades. Quem se interessa pelo assunto estará ligado na televisão e no rádio e conectado à internet. Esse era o medo do PT. O medo de ser abandonado por sua gente, e mais adiante pelo partido, é o que hoje move Lula. E ele tem razões de sobra para isso.


É menos o PT por vontade própria, e mais Lula que força o partido a ficar com ele. O PT dá como certo que sairá menor das urnas em outubro próximo. Sua atual bancada de 60 deputados federais deverá reduzida à metade, segundo os cálculos mais otimistas. Minas Gerais e Piauí são os únicos Estados onde o PT elegeria, hoje, governadores.

Com Lula candidato a presidente, seria possível que o partido tivesse melhor desempenho, mas a depender mesmo assim. Um Lula absolvido em Porto Alegre teria lugar garantido no segundo turno e uma vitória final mais do que provável. Um Lula sub judice, não. Apanharia feio durante a campanha. Quase certamente perderia.

Além das figurinhas carimbadas do tipo Dilma, Gleisi Hoffmann, Lindberg Farias, Vanessa Graziotin e outras poucas, que nomes políticos de peso suaram de fato a camisa ou se arriscaram a perder a voz em defesa de Lula? As caravanas que percorreram os Estados fracassaram. Um vexame, os últimos encontros de Lula com artistas e intelectuais.

Se o povo não é bobo, não há bobos nos escalões superiores do PT e dos demais partidos. Nem nos escalões intermediários. Sabe-se ali melhor do que aqui fora o que Lula fez ou deixou de fazer para estar na situação em que se encontra. O PT não é vítima de Lula. É vítima de suas ambições de chegar com ele ao poder e de manter-se nele o máximo que pudesse.

Dos processos contra Lula, o do tríplex 164-A é, digamos, o mais inocente, o que menos estragos produzirá à imagem dele e a do PT. Há outros piores. Como o do sítio em Atiabaia, reformado de graça pelas construtoras Odebrech e o OAS, com direito a pedalinhos infantis, copos com o escudo do Corinthians, adega, torre de celular e tudo mais.

Lula até poderá escapar de todos, mas seu calvário mal teve início.

A frase 'não há nada tão ruim que não possa piorar' parece brasileira

A frase que dá título a estas linhas tem cara de ser brasileira, mas há quem diga que se trata de um provérbio inglês. Bem utilizada, pode nos servir no dia a dia para combater (ou acordar?) o desespero, que vai tomando conta de muitos de nós. Pois veja, leitor: Fernando Collor de Melo, em seu Estado natal e diante da tropa que o elegeu senador por Alagoas, no final da semana passada, anunciou sua candidatura à Presidência da República pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC) nas eleições do dia 7 de outubro deste ano. Quando imaginava que poderia ficar livre de alguns ex-presidentes (não preciso citar nomes, pois você os conhece de cor e salteado), dou de cara com mais essa: está de volta o caçador de marajás! O país está precisado de um bom banho de descarrego, embora, pessoalmente, eu não acredite nisso…

Collor e sua ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Melo, que (imagine, leitor!) foi casada com o genial Chico Anysio e ainda mereceu um livro do saudoso Fernando Sabino (todos nós temos o direito de cometer pequenos erros), como o país todo sabe, fizeram o diabo contra milhões de brasileiros. Mas ninguém – a não ser eu, a mãe dos meus filhos e eles próprios – tem a mais distante ideia do que fizeram a mim, pessoalmente (perdoe-me pela autorreferência). Se não fosse uma juíza de Belo Horizonte (que exigiu declaração assinada de próprio punho), não teria condições de arcar com o tratamento da doença grave que acometera minha mulher, que, enfim, depois de anos de muita dor e sofrimento, a levou a falecer. O que recebera pelos 23 anos de trabalhos prestados ao “Jornal do Brasil” foram simplesmente subtraídos pelos dois. Nunca imaginei que isso pudesse ocorrer em nosso país.

Collor desafiou não só a Justiça, mas o país inteiro.

De Dutra para cá, que governou de 1946 a 1951, passando por Getúlio Vargas, Café Filho, Carlos Luz (interino), Nereu Ramos (interino), Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Ranieri Mazzilli (interino duas vezes), Jango, Castello Branco, Costa e Silva, Junta Militar, Médici, Geisel, Figueiredo, Tancredo, Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique (duas vezes), Lula (duas vezes), Dilma (duas vezes, impedida antes de completar o segundo mandato) e Temer, vi, como se fosse num filme de terror, a partir dos 11 anos, este país se transfigurar.

O país do patrimonialismo e do jeitinho, que nos parecia bem mais cordial do que era, com preconceitos soterrados pelas próprias vítimas, no qual vivi minha infância e adolescência, parecia mais ameno, e de fato o era. O ódio já podia existir, mas não era comum. Os políticos procuravam – não todos, obviamente – se tornar “homens públicos”, voltados para a prestação do desmoralizado bem comum.

Já tivemos tempos melhores e, também, nos Três Poderes, que são a base estrutural do regime democrático, homens e mulheres melhores, mesmo apesar da famosa declaração do embaixador Oswaldo Aranha, feita antes de ser ministro da Fazenda, em 1933, de que “o Brasil é um deserto de homens e de ideias”. Não acho justa a frase. Na verdade, não foi ela que o tornou nosso grande embaixador. De todo modo, não é fácil identificar as razões que levaram o país a se transfigurar, a mudar não só sua feição cordial, mas seu próprio caráter.

Espero que, a partir do julgamento do ex-presidente Lula (escrevo estas linhas dois dias antes), o Brasil se conscientize da inteligência que tem e tente remodelar, democraticamente, seu caráter.

Essa seria, com certeza, sua maior transfiguração!

Acílio Lara Resende

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Imagem do Dia

Outras Paisagens Espetaculares 22

Mais reflexão, por favor

Nos jornais dos últimos dias, coincidências inquietantes. Em diferentes colunas e artigos, cresce o desassossego com a voracidade dos frequentadores das redes sociais e a obsessão do “politicamente correto”.

E o que fazer, se parece caminho sem volta? Como recuperar nossa saudável capacidade de reflexão driblando o ímpeto do “tem que ser já”?

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Debates assumem contornos inesperados nas redes sociais. Campanha contra assédio virou guerra entre gerações de mulheres. Ninguém ouve ninguém. Todas e todos devidamente punidos por seguidores esfomeados.

Cada vez menos importa o que você diz, o que interessa é o que seu interlocutor quer ouvir.

Extenuante a avidez nas redes, e quase insuportável a opressão do politicamente correto. Vamos respeitá-los, estão aí, existem, mas seria vantajoso discutir com quem entende e leva o assunto a sério.

O escritor, psicólogo, e educador Ilan Brenman, doutor pela USP, autor de duas dezenas de livros infantis premiados, analisa há muitos anos o “politicamente correto” a partir das histórias contadas para as crianças.Acha que esse politicamente recomendável “não só é incapaz de incutir atitudes nas crianças, como retira dos pequenos as válvulas de escape dos medos e frustrações”.

Na literatura “politicamente correta” o lobo mau não existe mais. O Chapeuzinho Vermelho não foi comido. Muito menos a vovozinha. O Saci Pererê virou afrodescendente. O Negrinho do Pastoreio quase foi banido. É a literatura infantil que não traz conflitos, não trabalha com o imponderável. Sem graça. Sem mistérios. Sem sustos.

Resta saber por quanto tempo ainda teremos liberdade para falar e escrever.

O adulto quer um ambiente controlado, menos trabalhoso, analisa Brenman, e é aí que a literatura “correta” encontra espaço e se distancia da verdadeira literatura. E é no mundo adulto que a patrulha se revela, predatória.

É muito bom que colunistas e jornalistas, especialistas ou não, escrevam muito sobre tudo isso.

Não vamos mudar o rumo da história. As redes sociais continuarão implacáveis e as “minorias” (maiorias, às vezes) não abrirão mão do que pode ser considerado ofensivo. Podemos tentar dar mais qualidade ao que lemos em casa, nos livros e nos computadores. Nós, nossos filhos, nossos netos. Sem opressão. Com mais reflexão, por favor.

Mirian Guaraciaba

Descobrimento

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Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
Oswald de Andrade

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar

O fim do mundo é anunciado desde a era pré-diluviana. Em 1938 Carmem Miranda imortalizou o samba de Assis Valente “O mundo não se acabou”, uma sátira a quem acreditou nessa conversa mole, beijou na boca de quem não devia, pegou na mão de quem não conhecia.

A nova versão do fim do mundo é o julgamento de Lula, visto pelas torcidas organizadas como o dia do juízo final. Para os petistas, a condenação do morubixaba é o próprio apocalipse. Só lhes restaria travar sua Armagedom, com o caudilho encarnando Cristo na batalha final contra os infiéis.

O fundamentalismo não é monopólio do PT. Com sinal trocado o mesmo sentimento se manifesta no outro campo, onde uma hipotética absolvição de Lula é vista como o próprio fim do mundo. Por isso os dois lados estão pondo suas torcidas nas ruas.

Uma anomalia, sem dúvidas. Numa democracia, a Justiça se pronuncia a partir do que está nos autos e não em decorrência da “pressão das massas”. Num impeachment, por ser um julgamento político, é perfeitamente legítima a pressão da sociedade, a favor ou contra. Já num julgamento jurídico, a pressão perde inteiramente o sentido.

Acontece que o mundo não vai acabar, seja qual for o desfecho do julgamento. O Brasil real passa ao largo desse clima. Não há, sequer, aquela curiosidade sobre quem matou Odette Rottman. O país não vai parar em frente à televisão à espera do veredicto do Tribunal Federal da Quarta Região.

Milhões de brasileiros não irão às ruas para comemorar ou protestar sobre o resultado. Suas motivações hoje são outras: a vacina contra a febre amarela, o emprego, a sobrevivência de sua família, o carnaval que bate à porta. As manifestações tendem, portanto, a ficar restritas à militância petista e seus círculos próximos.

O clima do país é de normalidade. Se algo o julgamento de Lula evidencia é a resiliência das instituições brasileiras, apesar de todas as suas mazelas. Eis algo a ser comemorado: o arcabouço institucional consignado na Carta Constitucional de 1988 tem seus freios e contrapesos e tem funcionado satisfatoriamente. Necessita a ser aperfeiçoado? Claro, mas com cuidado para não se jogar fora a criança junto com a água suja da banheira.

Este arcabouço não terá seus alicerces abalados seja qual for o parecer da segunda estância da justiça Federal. Caso confirme-se a condenação de Lula, teoricamente há o risco de o PT querer por o país em chamas, mas se for por aí será o maior prejudicado.

O mundo não vai acabar nem mesmo para Lula e o PT. O caudilho não estará morto politicamente mesmo se sua foto não estiver na urna eletrônica. Tem poder de fogo para transferir uma quantidade suficiente de votos para colocar o seu preposto no segundo turno. Como diziam os filósofos, a vida continua. O PT não adotará uma estratégia kamikaze que inviabilize a reeleição de seus parlamentares e de seus governadores.

O mesmo vale para o outro campo. Reconhecendo que o caudilho é um osso duro de roer mas está longe de ser imbatível. Isso valia para o Lula de 2010, quando tinha força para eleger até uma Dilma Rousseff. Hoje tem um telhado de vidro oceânico.

O julgamento de Lula não é o Dia D de um Brasil de uma economia diversificada, de uma sociedade plural e de instituições sólidas, que nos diferenciam de uma Venezuela da vida.

Como o sol não vai nascer antes da madrugada, os brasileiros podem pular no ensaio do seu bloco carnavalesco. Só não pode transar sem camisinha porque o mundo não vai se acabar.

O 24 de janeiro de Lula

Só quando o dia terminar é que se saberá o resultado do julgamento de Lula no TRF-4. 3 a 0? 2 a 1? Passarão alguns meses para que se chegue ao desfecho de todos os recursos que a lei permite, e aí fica embutida outra pergunta: o retrato de Lula estará na urna eletrônica no dia 7 de outubro?

Hoje fecha-se um ciclo da vida política brasileira, o da ideia de um partido de trabalhadores, que resultou na criação do PT. Fecha-se um ciclo, e começa outro, pois nem Lula nem o PT acabarão.
Exatamente no dia 24 de janeiro de 1979, no Colégio Salesiano da cidade paulista de Lins, um congresso de metalúrgicos aprovou uma tese “chamando todos os trabalhadores brasileiros a se unificarem na construção de seu partido, o Partido dos Trabalhadores”.

Criou-se uma comissão para cuidar do assunto, e nela estava Jacó Bittar, do Sindicato dos Petroleiros de Paulínia.

Lula, a estrela desse renascimento do sindicalismo, explicou a essência da iniciativa: “Pouca gente está mais preparada que a classe trabalhadora para assumir uma responsabilidade política deste nível. Não podemos ficar esperando a democracia das elites. Os trabalhadores não devem confundir o Partido dos Trabalhadores com o PTB, MDB ou Arena.” (A Arena era o partido do regime agonizante, virou PDS, PFL e, mais tarde, DEM.)


No poder, o Partido dos Trabalhadores foi o partido de alguns trabalhadores. A primeira proposta do Congresso de Lins era a “total desvinculação dos órgãos sindicais do aparelho estatal, ponto fundamental para o desenvolvimento da vida sindical”. O imposto sindical, que sustenta cartórios de patrões e empregados, foi preservado nos 14 anos de poder petista. Extinguiu-o a reforma trabalhista de Michel Temer.

Do grupo de Lins, Jacó Bittar, o “Turcão”, elegeu-se prefeito de Campinas em 1988 e dois anos depois deixou o PT. Foi condenado em duas instâncias por atos de improbidade administrativa.

Depois da vitória petista de 2002, Lula colocou Bittar no conselho do fundo de pensão da Petrobras. Dois anos depois, ele ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 7 mil mensais por conta de sua demissão da Petrobras. Seus dois filhos, Fernando e Kalil, associaram-se a Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, em empresas de entretenimento e tecnologia digital mimadas com contratos de operadoras de telefonia. Nelas, Lulinha teve um rendimento de R$ 5,2 milhões entre 2004 e 2014.

Fernando Bittar é um dos donos da propriedade onde está o sítio Santa Bárbara, em Atibaia. Lá, a Odebrecht gastou R$ 700 mil em obras, e a OAS pagou a cozinha. Nos armários de uma das quatro suítes da casa havia roupas com as iniciais de Lula. Isso e mais uma agenda com seu nome achada numa sala.

Veículos a serviço de Lula estiveram no sítio 270 vezes. Entre 2012 e 2016, sete servidores que trabalham com ele receberam 1.090 diárias por terem ido a Atibaia. Cerca de 50 e-mails de funcionários do sítio e do Instituto Lula relacionam o ex-presidente com a propriedade. Num deles, cuidava-se de identificar o bicho que comera os marrecos do lago. Teria sido uma jaguatirica.

Lula assegura que a propriedade não é dele. Esse sítio nada tem a ver com o apartamento do Guarujá que, segundo Lula, também não é dele. O processo de Atibaia ainda está com o juiz Sergio Moro.

Há dois anos ladrões entraram no sítio, levando vinhos e charutos. Foram presos dois suspeitos, mas a queixa foi retirada.
Elio Gaspari