sábado, 14 de janeiro de 2017
A morte do homem cordial
A aliança de modernismo e ufanismo alimentou, desde cedo, a ilusão do brasileiro como protótipo do homem cordial. Faz parte daquelas fantasias que impulsionaram a virada do século XX. A efusão da natureza, a força do sertanejo e a cordialidade inata são capítulos de uma história precipitadamente edificante. Foi surpreendida por algumas curvas do caminho, quando certos desvios inesperados, a urbanização avassaladora, a irrupção das massas e a privatização da esfera pública agravaram o quadro insólito.
A percepção aguda de Mário de Andrade já havia identificado, na sua “Pauliceia desvairada”, sinais evidentes de um desvario que se expandiu por todo o território nacional, de Porto Alegre a Manaus.
A máquina de trituração da metrópole avançou sem pedir nem aceitar licença de ninguém. O tripé republicano, com mecanismo de acesso controvertido, se visivelmente abalado, em meio a licitações ilícitas, negócios escusos conduzidos pelas municipalidades de várias geografias. A representação política perde legitimidade e, consequentemente, representatividade.
O poeta Carlos Drummond de Andrade certamente perguntaria: E agora, José?
A própria ideia de cordialidade já era um resíduo essencialista, que os pensadores plantados teriam dificuldades de absorver. Porque nenhum homem é ou deixa de ser cordial fora do seu horizonte existencial. Ou seja, indiferente à sua circunstância (Ortega), à sua situação (Sartre), aos angustiantes sinais do ser no tempo (Heidegger).
Assim sendo, o homem cordial brasileiro levantou voo sem gasolina no tanque, e deu no que deu. Alguma coisa parecida com o trajeto da Chapecoense.
O capítulo da escravidão nunca foi um exemplo de cordialidade. E fomos os últimos na América Latina a se livrar dessa praga. Os índices de violência hoje, segundo agências idôneas, ultrapassam aqueles que têm lugar em países em estado de guerra. As taxas de homicídio, praticados dentro e fora dos presídios, nos conferem medalha de ouro (falso) na olimpíada da criminalidade. A junção de violência social e violência política denuncia o quadro de calamidade, que começa a ser institucionalizado em todo o país. A privatização do público é a negação da cordialidade.
Grande parte do que vem acontecendo se deve ao fato de que a educação e a cultura não foram chamadas a participar do encaminhamento dessas questões. Duas entidades estruturalmente solidárias, a serem pensadas conjugadamente, no polo oposto do que supõem as corporações nervosas.
A educação é, em princípio, a cultura escolarizada. Enquanto a cultura é a educação transescolar, mais virtuosa que virtual. Ambas têm de conviver hoje com a internacionalização e com a internetização.
Não são da competência apenas de uma repartição ou de um ministério. São ambas, ou uma só, políticas de Estado. Por essas e outras razões, tem faltado cultura à educação e educação à cultura. E, na falta de ambas, facilita-se ou contribui-se para a proliferação da violência e da criminalidade.
O homem cordial já se encontrava respirando por aparelhos. Ultimamente, ao que tudo indica, esses aparelhos foram desligados.
É claro que tudo tem a ver com a prática da justiça social. Quando aumenta a desigualdade, diminui a cordialidade.
Daí a necessidade de uma reforma política, ampla, geral e irrestrita, a ser conduzida jamais pelos protagonistas do caos, e sim pelo mais íntegro diálogo societário.
Eduardo Portella
A percepção aguda de Mário de Andrade já havia identificado, na sua “Pauliceia desvairada”, sinais evidentes de um desvario que se expandiu por todo o território nacional, de Porto Alegre a Manaus.
A máquina de trituração da metrópole avançou sem pedir nem aceitar licença de ninguém. O tripé republicano, com mecanismo de acesso controvertido, se visivelmente abalado, em meio a licitações ilícitas, negócios escusos conduzidos pelas municipalidades de várias geografias. A representação política perde legitimidade e, consequentemente, representatividade.
O poeta Carlos Drummond de Andrade certamente perguntaria: E agora, José?
Assim sendo, o homem cordial brasileiro levantou voo sem gasolina no tanque, e deu no que deu. Alguma coisa parecida com o trajeto da Chapecoense.
O capítulo da escravidão nunca foi um exemplo de cordialidade. E fomos os últimos na América Latina a se livrar dessa praga. Os índices de violência hoje, segundo agências idôneas, ultrapassam aqueles que têm lugar em países em estado de guerra. As taxas de homicídio, praticados dentro e fora dos presídios, nos conferem medalha de ouro (falso) na olimpíada da criminalidade. A junção de violência social e violência política denuncia o quadro de calamidade, que começa a ser institucionalizado em todo o país. A privatização do público é a negação da cordialidade.
Grande parte do que vem acontecendo se deve ao fato de que a educação e a cultura não foram chamadas a participar do encaminhamento dessas questões. Duas entidades estruturalmente solidárias, a serem pensadas conjugadamente, no polo oposto do que supõem as corporações nervosas.
A educação é, em princípio, a cultura escolarizada. Enquanto a cultura é a educação transescolar, mais virtuosa que virtual. Ambas têm de conviver hoje com a internacionalização e com a internetização.
Não são da competência apenas de uma repartição ou de um ministério. São ambas, ou uma só, políticas de Estado. Por essas e outras razões, tem faltado cultura à educação e educação à cultura. E, na falta de ambas, facilita-se ou contribui-se para a proliferação da violência e da criminalidade.
O homem cordial já se encontrava respirando por aparelhos. Ultimamente, ao que tudo indica, esses aparelhos foram desligados.
É claro que tudo tem a ver com a prática da justiça social. Quando aumenta a desigualdade, diminui a cordialidade.
Daí a necessidade de uma reforma política, ampla, geral e irrestrita, a ser conduzida jamais pelos protagonistas do caos, e sim pelo mais íntegro diálogo societário.
Eduardo Portella
A cartada final de Lula
Lula continua encenando o papel de presidenciável. Sabe que as chances reais de exercê-lo de fato são tão remotas quanto as de Dilma Roussef voltar à vida pública.
Lula é réu em cinco processos criminais - e em breve o será de outros mais, podendo ser preso a qualquer momento.
Queixa-se com frequência de que já não pode comparecer a locais públicos sem ouvir desaforos. Viajar em aviões comerciais, nem pensar. Viaja em jatos particulares, cedidos por amigos. Hoje, só fala a plateias amestradas – e mesmo aí já enfrenta resistências.
Na quinta-feira, por exemplo, num encontro em Brasília, foi vaiado pelo PSTU, legenda da esquerda radical que o considera um traidor da causa. E a causa, óbvio, é a revolução, abandonada ou negligenciada na medida em que Lula enriquecia e se aburguesava.
Com todas essas credenciais adversas, Lula insiste, como disse esta semana em Salvador, em que, “se for necessário”, voltará a disputar a presidência da República. Não esclarece que necessidade seria essa. Do país, seguramente, não é.
O rastro de destruição – política, econômica, social e moral - que o período por ele inaugurado, em 2003, e encerrado em 2016 com Dilma, deixou confere-lhe uma das maiores taxas de rejeição de toda a história. Dilma é parte de sua obra, concluída com um impeachment e a revelação do maior escândalo de corrupção já visto em todo o mundo. Corrupção e má gestão, soma fatal, que impôs ao país a crise atual, da qual procura acusar os que a herdaram.
Diante de tal cenário, sua candidatura a presidente só não é uma piada porque serve a uma causa real: sua blindagem, pessoal e política. Mantendo-se presente e atuante no cenário público, dá concretude àquilo que dele falou o presidente Michel Temer, a quem finge odiar, mas com cuja complacência tem contado.
Temer, numa recente entrevista ao programa Roda Viva, se disse contrário à prisão de Lula por achar que tumultuaria a paz pública. Com isso, conferiu-lhe um prestígio que já não tem – e o transfigurou em salvo conduto, inibindo, de maneira oblíqua, a ação dos que têm a responsabilidade de fazê-lo pagar por seus delitos.
Não parece ter sido por mera simpatia que o fez. Temer receia o que está por vir – as delações, sobretudo as da Odebrecht - e parece inclinado a estabelecer um armistício com o PT, de que dá testemunho a preservação de aliados da velha ordem em cargos estratégicos da administração pública.
PMDB e PT, afinal, foram parceiros. Embora o comando da Organização Criminosa (nas palavras de Celso de Melo, do STF) coubesse ao PT, o PMDB desfrutava de alguns feudos dentro da máquina pública, de que dão notícias operações da Polícia Federal.
A mais recente delas, ontem efetuada, flagrou uma rapina organizada dentro da Caixa Econômica Federal, entre 2011 e 2013, envolvendo o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o vice-presidente daquela instituição, Geddel Vieira Lima, até há pouco ministro do núcleo duro do governo Temer.
Para sorte de Temer, Geddel caiu antes desse escândalo, por outro comparativamente menor. Mas a lama do PT, como é óbvio, salpicou também – e com frequência - no PMDB.
Lula investe nisso ao atacar o governo Temer, ao tempo em que busca um protagonismo oposicionista, que o transfigure de mero (ou por outra, mega) gatuno em perseguido político.
É um jogo esquizofrênico em que, de um lado, pede a cabeça do presidente da República e, de outro, manda PT e aliados apoiar o candidato do Planalto à presidência da Câmara, Rodrigo Maia.
Claro está, portanto, que não postula a presidência para valer; quer apenas tornar mais complexa ou mesmo impossível a operação de colocá-lo atrás das grades. Joga sua cartada final.
Lula é réu em cinco processos criminais - e em breve o será de outros mais, podendo ser preso a qualquer momento.
Queixa-se com frequência de que já não pode comparecer a locais públicos sem ouvir desaforos. Viajar em aviões comerciais, nem pensar. Viaja em jatos particulares, cedidos por amigos. Hoje, só fala a plateias amestradas – e mesmo aí já enfrenta resistências.
Na quinta-feira, por exemplo, num encontro em Brasília, foi vaiado pelo PSTU, legenda da esquerda radical que o considera um traidor da causa. E a causa, óbvio, é a revolução, abandonada ou negligenciada na medida em que Lula enriquecia e se aburguesava.
O rastro de destruição – política, econômica, social e moral - que o período por ele inaugurado, em 2003, e encerrado em 2016 com Dilma, deixou confere-lhe uma das maiores taxas de rejeição de toda a história. Dilma é parte de sua obra, concluída com um impeachment e a revelação do maior escândalo de corrupção já visto em todo o mundo. Corrupção e má gestão, soma fatal, que impôs ao país a crise atual, da qual procura acusar os que a herdaram.
Diante de tal cenário, sua candidatura a presidente só não é uma piada porque serve a uma causa real: sua blindagem, pessoal e política. Mantendo-se presente e atuante no cenário público, dá concretude àquilo que dele falou o presidente Michel Temer, a quem finge odiar, mas com cuja complacência tem contado.
Temer, numa recente entrevista ao programa Roda Viva, se disse contrário à prisão de Lula por achar que tumultuaria a paz pública. Com isso, conferiu-lhe um prestígio que já não tem – e o transfigurou em salvo conduto, inibindo, de maneira oblíqua, a ação dos que têm a responsabilidade de fazê-lo pagar por seus delitos.
Não parece ter sido por mera simpatia que o fez. Temer receia o que está por vir – as delações, sobretudo as da Odebrecht - e parece inclinado a estabelecer um armistício com o PT, de que dá testemunho a preservação de aliados da velha ordem em cargos estratégicos da administração pública.
PMDB e PT, afinal, foram parceiros. Embora o comando da Organização Criminosa (nas palavras de Celso de Melo, do STF) coubesse ao PT, o PMDB desfrutava de alguns feudos dentro da máquina pública, de que dão notícias operações da Polícia Federal.
A mais recente delas, ontem efetuada, flagrou uma rapina organizada dentro da Caixa Econômica Federal, entre 2011 e 2013, envolvendo o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o vice-presidente daquela instituição, Geddel Vieira Lima, até há pouco ministro do núcleo duro do governo Temer.
Para sorte de Temer, Geddel caiu antes desse escândalo, por outro comparativamente menor. Mas a lama do PT, como é óbvio, salpicou também – e com frequência - no PMDB.
Lula investe nisso ao atacar o governo Temer, ao tempo em que busca um protagonismo oposicionista, que o transfigure de mero (ou por outra, mega) gatuno em perseguido político.
É um jogo esquizofrênico em que, de um lado, pede a cabeça do presidente da República e, de outro, manda PT e aliados apoiar o candidato do Planalto à presidência da Câmara, Rodrigo Maia.
Claro está, portanto, que não postula a presidência para valer; quer apenas tornar mais complexa ou mesmo impossível a operação de colocá-lo atrás das grades. Joga sua cartada final.
Maior que o Brasil
Memória demolida
Fechado, sem dono e saqueado, o Maracanã se desmancha às nossas vistas. Gramado, túneis, vestiários, salas, vidros, esquadrias, tudo destruído. Sumiram fiações, computadores, extintores, mangueiras, milhares de cadeiras e, para completar, o busto de Mario Filho —o jornalista cuja campanha foi decisiva para a existência do Maracanã e que, desde sua morte em 1966, honrava-o com seu nome.
Talvez haja aí um componente simbólico: que bom que nem em busto Mario Filho esteja lá para ver o que fizeram com seu estádio. E, assim como ele, tantos outros que escreveram tão bem sobre futebol: seu irmão Nelson Rodrigues, João Saldanha, Sandro Moreyra, Armando Nogueira, Ney Bianchi, Achilles Chirol, Sergio Porto. Todos, em algum momento, cronistas do Maracanã. Nenhum deles, hoje, entre nós.
Reinauguração do estádio em 2013 com as autoridades reinantes |
Às vésperas dos 80 anos, dos quais abençoado há três por uma forma irreversível de demência senil, ele parece não saber muito bem das acusações que pesam sobre seu filho e homônimo, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
Em sete anos de Sérgio filho à frente do Estado (2007-14), o Maracanã foi derrubado e reconstruído tantas vezes em nome da Copa, do Pan e da Olimpíada que perdemos a conta. Conta esta que a Odebrecht sempre teve de manter em dia, para pagar as supercomissões que, segundo as delações, ele levava. O fato é que, em cada metro de cimento do Maraca que Sérgio filho mandou quebrar, uma parte da memória de Sérgio pai também se esfacelou.
Ruy Castro
Entre dois amores
Brasil continua sendo governado por uma quadrilha
É uma constatação muito triste, que já era prevista quando o presidente interino anunciou seu ministério, dia 12 de maio. A quantidade de políticos envolvidos direta ou indiretamente com atos de corrupção mostrava que Temer estava cercado pelo que há de pior na política, exatamente como ocorrera com a presidente Dilma Rousseff.
A grande diferença é que Temer teve a esperteza de colocar Henrique Meirelles na linha de frente, oferecendo-lhe carta branca para nomear praticamente toda a equipe econômica. Com isso, acalmou o mercado e conseguiu iniciar o governo num clima de normalidade, que logo seria quebrado pelas denúncias envolvendo dois de seus ministros mais próximos, amigos de todas as horas – Romero Jucá (Planejamento) e Henrique Eduardo Alves (Turismo), que tiveram de se afastar.
De lá para cá, foi uma crise atrás da outra. E a mais uma bomba agora explode, com a participação do ex-ministro Geddel Vieira Lima em uma quadrilha montada na Caixa Econômica Federal junto com o então deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com envolvimento direto de um dos vice-presidentes do banco, Roberto Derziê, uma indicação pessoal do presidente Michel Temer.
De lá para cá, foi uma crise atrás da outra. E a mais uma bomba agora explode, com a participação do ex-ministro Geddel Vieira Lima em uma quadrilha montada na Caixa Econômica Federal junto com o então deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com envolvimento direto de um dos vice-presidentes do banco, Roberto Derziê, uma indicação pessoal do presidente Michel Temer.
Com tantos escândalos, o governo Temer está se tornando uma peça de ficção, em que o enredo das personagens corruptas passa de pai para filho, com os jovens Helder Barbalho (PMDB) e Fernando Bezerra Coelho Filho (PSB) participando do Ministério sem terem a menor experiência administrativa, vejam a que ponto chegamos.
Além disso, há dois ministros com bens bloqueados pela Justiça – Blairo Maggi eEliseu Padilha. O titular da Agricultura é acusado de usar recursos públicos para comprar uma vaga de conselheiro do Tribunal de Contas do Mato Grosso. E o chefe da Casa Civil responde a processo também em Mato Grosso, por grilagem de terras públicas e devastação de 1,3 mil hectares de reserva ambiental, com agravante da apreensão de 18 armas de fogo na fazenda, incluindo rifles de mira telescópica.
Bem, este é perfil criminal do governo Temer, e não estamos nem falando em citações na Lava Jato, que envolvem o próprio presidente e a maior parte dos caciques do PMDB e de todos os grandes partidos, é um verdadeiro festival.
Além disso, há dois ministros com bens bloqueados pela Justiça – Blairo Maggi eEliseu Padilha. O titular da Agricultura é acusado de usar recursos públicos para comprar uma vaga de conselheiro do Tribunal de Contas do Mato Grosso. E o chefe da Casa Civil responde a processo também em Mato Grosso, por grilagem de terras públicas e devastação de 1,3 mil hectares de reserva ambiental, com agravante da apreensão de 18 armas de fogo na fazenda, incluindo rifles de mira telescópica.
Bem, este é perfil criminal do governo Temer, e não estamos nem falando em citações na Lava Jato, que envolvem o próprio presidente e a maior parte dos caciques do PMDB e de todos os grandes partidos, é um verdadeiro festival.
Temer poderia fazer como Lula da Silva e Dilma Rousseff, não seria surpresa ele também dizer que não sabia de nada. Mas não tem a menor condição de fazê-lo, porque os fatos são públicos e notórios, o presidente da República toma conhecimento, mas simplesmente não demite ninguém.
O presidente Temer mostra ser uma espécie de Itamar Franco às avessas, porque Fabiano Silveira (Transparência), Romero Jucá (Planejamento), Henrique Eduardo Alves (Turismo) e Geddel Vieira Lima (Secretária de Governo), envolvidos em corrupção, todos eles pediram demissão.
Do outro lado da praça, Henrique Meirelles faz o seu jogo no Ministério da Fazenda. Sabe que se tornou o único avalista de Temer, que está completamente desacreditado. Estrategicamente, Meirelles deixou o PSDB, onde não tinha espaço, e se filiou ao PSD, aquele partido que não é de direita nem de esquerda, muito pelo contrário, e prontamente lhe ofereceu a candidatura à Presidência da República em 2018.
O presidente Temer mostra ser uma espécie de Itamar Franco às avessas, porque Fabiano Silveira (Transparência), Romero Jucá (Planejamento), Henrique Eduardo Alves (Turismo) e Geddel Vieira Lima (Secretária de Governo), envolvidos em corrupção, todos eles pediram demissão.
Do outro lado da praça, Henrique Meirelles faz o seu jogo no Ministério da Fazenda. Sabe que se tornou o único avalista de Temer, que está completamente desacreditado. Estrategicamente, Meirelles deixou o PSDB, onde não tinha espaço, e se filiou ao PSD, aquele partido que não é de direita nem de esquerda, muito pelo contrário, e prontamente lhe ofereceu a candidatura à Presidência da República em 2018.
Lula se defende
O grupo de advogados que atende o ex-presidente Lula mostra-se tranquilo quanto ao fracasso e a falta de eficácia das cinco denúncias abertas contra ele. Concluíram não haver base para incluí-lo na possibilidade de vir a ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda aguardam a íntegra das delações que 77 ex-diretores da Odebrecht fizeram ao ministro Teori Zavaski, que depois serão levadas ao Procurador Geral da República para decidir se pede ou não a abertura de processos criminais.
Os advogados, entre eles também juristas, argumentam que as acusações se repetem e não atingem o ex-presidente. Sustentam estar havendo perseguição por parte dos procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato, e também do juiz Sérgio Moro. Quando tiverem acesso à delações, recorrerão em grande estilo, já tendo preparado memoriais que submeterão ao STF, para apreciação.
Apesar de entenderem estar havendo desrespeito ao princípio da presunção de inocência e à imparcialidade por parte dos procuradores, os advogados aguardam a revelação das delações e o pronunciamento do ministro Zavaski para formalizarem a defesa. Consideram que o Lula nada tem a esconder e editaram uma coletânea de 18 artigos de 22 autores, uma espécie de pré-defesa do ex-presidente. Entre eles estão Cristiano e Valeska Zanin Martins, Rafael Martins, Celso Antônio Bandeira de Melo, Eugênio de Aragão, Nilo Batista e outros. Um detalhe que alinham é a parcialidade dos meios de comunicação ao referir-se ao Lula, a quem têm estimulado a não interromper sua tarefa de reconstrução do PT
Em suma, até que novos capítulos se desenrolem na questão, o ex-presidente continua liderando o partido que fundou e abrindo oportunidades de vir a candidatar-se ao palácio do Planalto, em 2018. Este seria, para ele, o objetivo de deslocar-se para diversos estados, reunindo bases partidárias e sindicais, esta semana na Bahia.
A incompetência, uma praga em nossas estatais
Um juiz federal em Brasília mandou afastar seis vice-presidentes dos Correios. Por falta de qualificação técnica. Em outras palavras, por incompetência para o cargo. Quem indicou os seis dos oito vice-presidentes (e para que os Correios precisam mesmo de oito vice-presidentes?) foi a Casa Civil do presidente Michel Temer. Quem pediu o afastamento foi a Associação dos Profissionais dos Correios, cansada de pagar o pato pelo aparelhamento da empresa.
A base do pedido foi a recente Lei das Estatais, em vigor desde junho do ano passado. Como o Brasil é, historicamente, um país que valoriza o Q.I. (Quem Indica), foi necessário aprovar uma lei que estipula o óbvio. Tenta-se evitar, nas empresas estatais, as indicações políticas que beneficiam o amiguinho, o afilhado ou o parente de alguém importante ou muito chegado, numa troca amoral de favores. Diz o texto da lei que diretores de estatais devem ter “reputação ilibada, notório conhecimento mediante comprovação de experiência profissional, formação compatível com o cargo e ficha limpa”. Não deveria ser sempre assim?
Nenhum desses seis vice-presidentes dos Correios, eleitos em agosto, comprovou qualificação técnica. Não foram analisados seus currículos. O Conselho dos Correios pediu a análise, mas não foi ouvido. Maria Inês Capelli, presidente da Associação dos Profissionais dos Correios, foi ouvida pelo Bom Dia Brasil: “O prejuízo [dessas indicações] estamos vendo agora. [Os Correios são] uma empresa deficitária, por muito tempo reconhecida por sua alta credibilidade e pelo serviço que prestava. O aparelhamento da empresa é a causa maior de sua decadência”.
No fim, os Correios convocam seus próprios funcionários a cobrir o rombo com descontos no contracheque ou com a adesão a programas de demissão voluntária. Em 2015, o prejuízo dos Correios passou de R$ 2 bilhões. No ano passado, chegou perto: R$ 1,9 bilhão no vermelho. Agora, os vice-presidentes dos Correios prometem recorrer da sentença do juiz Márcio de França Moreira. Afirmam não ter tido chance de se defender. Não sabemos se o afastamento é justo ou não. Mas os Correios não estão sozinhos no apadrinhamento de incompetentes nas estatais.
Se algo ficou claro para os brasileiros no expurgo da Lava Jato é que a politicagem estimula a corrupção. O que aconteceu com Petrobras, BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil – e por aí vai – foi uma injustiça com o país e com o trabalhador. A imagem do Brasil sofre lá fora. Pela primeira vez, passamos a China num ranking internacional de propina, elaborado nos Estados Unidos por um site especializado em legislação anticorrupção. Os três campeões nesse ranking são Brasil, China e Iraque.
O preço da má gestão, aliado à cobrança de subornos, é muito alto. O desemprego vai aumentar em 2017. Será o pior quadro entre as 20 maiores economias no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Mais de 1,2 milhão de brasileiros perderão seu emprego. Ao todo, teremos 13,6 milhões de desempregados, ou 12,4% da população com idade para trabalhar.
Os Correios não têm concorrente. Estão sozinhos no mercado. Precisava ser uma empresa tão deficitária e crivada de denúncias de desvio e fraudes, também no fundo de pensão, o Postalis? Precisava ter gestores nomeados por partidos políticos, para encher as burras individuais de dinheiro? Todos devem lembrar que o escândalo do mensalão começou com a CPI dos Correios, em 2005. Um vídeo mostrou um executivo dos Correios, Maurício Marinho, negociando propina com empresas e agindo em nome do deputado Roberto Jefferson. Jefferson cunhou o neologismo “mensalão”. Seu depoimento derrubou o ministro-chefe da Casa Civil de Lula, Zé Dirceu.
Governos após governos ignoram o anseio da sociedade para acabar com os cabides enferrujados de empregos, onde se penduram marajás não qualificados para os cargos. Isso não quer dizer que a privatização resolva os males da incompetência. Uma empresa privada precisa de boa gestão tanto quanto uma estatal. O Q.I. pode levar à falência empresas privadas.
O presídio de Manaus é um exemplo drástico de como uma “semiprivatização” malsucedida serve para disfarçar a omissão do Estado. Era o Estado que deveria ter saneado as condições carcerárias explosivas em Manaus, detectadas desde 2013. É o Estado que precisa agora dar as devidas respostas para a segurança dos presídios, em vez de defender o indefensável: que se gravem as conversas entre advogados e presos. Michel Temer ainda não percebeu os males da incompetência em seu Ministério. Como Dilma Rousseff, cercou-se de vários ministros que podem afundá-lo.
A base do pedido foi a recente Lei das Estatais, em vigor desde junho do ano passado. Como o Brasil é, historicamente, um país que valoriza o Q.I. (Quem Indica), foi necessário aprovar uma lei que estipula o óbvio. Tenta-se evitar, nas empresas estatais, as indicações políticas que beneficiam o amiguinho, o afilhado ou o parente de alguém importante ou muito chegado, numa troca amoral de favores. Diz o texto da lei que diretores de estatais devem ter “reputação ilibada, notório conhecimento mediante comprovação de experiência profissional, formação compatível com o cargo e ficha limpa”. Não deveria ser sempre assim?
Nenhum desses seis vice-presidentes dos Correios, eleitos em agosto, comprovou qualificação técnica. Não foram analisados seus currículos. O Conselho dos Correios pediu a análise, mas não foi ouvido. Maria Inês Capelli, presidente da Associação dos Profissionais dos Correios, foi ouvida pelo Bom Dia Brasil: “O prejuízo [dessas indicações] estamos vendo agora. [Os Correios são] uma empresa deficitária, por muito tempo reconhecida por sua alta credibilidade e pelo serviço que prestava. O aparelhamento da empresa é a causa maior de sua decadência”.
No fim, os Correios convocam seus próprios funcionários a cobrir o rombo com descontos no contracheque ou com a adesão a programas de demissão voluntária. Em 2015, o prejuízo dos Correios passou de R$ 2 bilhões. No ano passado, chegou perto: R$ 1,9 bilhão no vermelho. Agora, os vice-presidentes dos Correios prometem recorrer da sentença do juiz Márcio de França Moreira. Afirmam não ter tido chance de se defender. Não sabemos se o afastamento é justo ou não. Mas os Correios não estão sozinhos no apadrinhamento de incompetentes nas estatais.
Se algo ficou claro para os brasileiros no expurgo da Lava Jato é que a politicagem estimula a corrupção. O que aconteceu com Petrobras, BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil – e por aí vai – foi uma injustiça com o país e com o trabalhador. A imagem do Brasil sofre lá fora. Pela primeira vez, passamos a China num ranking internacional de propina, elaborado nos Estados Unidos por um site especializado em legislação anticorrupção. Os três campeões nesse ranking são Brasil, China e Iraque.
O preço da má gestão, aliado à cobrança de subornos, é muito alto. O desemprego vai aumentar em 2017. Será o pior quadro entre as 20 maiores economias no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Mais de 1,2 milhão de brasileiros perderão seu emprego. Ao todo, teremos 13,6 milhões de desempregados, ou 12,4% da população com idade para trabalhar.
Os Correios não têm concorrente. Estão sozinhos no mercado. Precisava ser uma empresa tão deficitária e crivada de denúncias de desvio e fraudes, também no fundo de pensão, o Postalis? Precisava ter gestores nomeados por partidos políticos, para encher as burras individuais de dinheiro? Todos devem lembrar que o escândalo do mensalão começou com a CPI dos Correios, em 2005. Um vídeo mostrou um executivo dos Correios, Maurício Marinho, negociando propina com empresas e agindo em nome do deputado Roberto Jefferson. Jefferson cunhou o neologismo “mensalão”. Seu depoimento derrubou o ministro-chefe da Casa Civil de Lula, Zé Dirceu.
Governos após governos ignoram o anseio da sociedade para acabar com os cabides enferrujados de empregos, onde se penduram marajás não qualificados para os cargos. Isso não quer dizer que a privatização resolva os males da incompetência. Uma empresa privada precisa de boa gestão tanto quanto uma estatal. O Q.I. pode levar à falência empresas privadas.
O presídio de Manaus é um exemplo drástico de como uma “semiprivatização” malsucedida serve para disfarçar a omissão do Estado. Era o Estado que deveria ter saneado as condições carcerárias explosivas em Manaus, detectadas desde 2013. É o Estado que precisa agora dar as devidas respostas para a segurança dos presídios, em vez de defender o indefensável: que se gravem as conversas entre advogados e presos. Michel Temer ainda não percebeu os males da incompetência em seu Ministério. Como Dilma Rousseff, cercou-se de vários ministros que podem afundá-lo.
Candidatura de Lula é uma aposta no cinismo
Dentro de seis dias, o PT deve deflagrar uma cruzada por eleições diretas e lançar a re-re-recandidatura de Lula. Numa reunião do diretório nacional do partido, o pajé do petismo aceitará o sacrifício de retornar ao Planalto para salvar o país. Não é propriamente um projeto político. Trata-se de uma aposta no poder de sedução do cinismo.
Só há uma coisa pior do que o antipetismo primário. É o pró-petismo inocente, que engole todas as presunções de Lula a seu próprio respeito. Isso inclui aceitar a tese segundo a qual o xamã da tribo petista veio ao mundo para desempenhar uma missão que, por ser divina, é indiscutível.
Todos os líderes políticos cultivam a fantasia da excepcionalidade. Mas nunca antes na história desse país surgiu um personagem como Lula. Dotado de uma inédita ambição de personificar a moral, acha que sua noção de superioridade anistia os seus crimes. E avalia que seu destino evangelizador o dispensa de dar explicações.
Não é a hipocrisia de Lula que assusta. A hipocrisia pelo menos é uma estratégia compreensível para alguém que é réu em cinco inquéritos e convive com o risco real de ser preso. Melhor ir em cana fazendo pose de presidenciável perseguido do que amargando a fama de corrupto.
O que espanta é perceber que, em certos momentos, Lula parece acreditar de verdade que sua missão sublime no planeta lhe dá o direito de cometer atentados em série contra a inteligência alheia. Desprezadas a lógica e as evidências, sobram o cinismo e a licença dada por Lula a si mesmo para tratar os brasileiros como idiotas. Mesmo sabendo que já não encontra tanto material.
Só há uma coisa pior do que o antipetismo primário. É o pró-petismo inocente, que engole todas as presunções de Lula a seu próprio respeito. Isso inclui aceitar a tese segundo a qual o xamã da tribo petista veio ao mundo para desempenhar uma missão que, por ser divina, é indiscutível.
Não é a hipocrisia de Lula que assusta. A hipocrisia pelo menos é uma estratégia compreensível para alguém que é réu em cinco inquéritos e convive com o risco real de ser preso. Melhor ir em cana fazendo pose de presidenciável perseguido do que amargando a fama de corrupto.
O que espanta é perceber que, em certos momentos, Lula parece acreditar de verdade que sua missão sublime no planeta lhe dá o direito de cometer atentados em série contra a inteligência alheia. Desprezadas a lógica e as evidências, sobram o cinismo e a licença dada por Lula a si mesmo para tratar os brasileiros como idiotas. Mesmo sabendo que já não encontra tanto material.
Triste final feliz
Na Pompeia, sapos e peixes combatem pernilongos
Enquanto diversos bairros da zona oeste de São Paulo estão em pânico catando dezenas, centenas de pernilongos toda noite desde o início do verão, uma pequena vizinhança na Pompeia está olhando todo o movimento só com curiosidade. Em vez de desesperados à espera do fumacê, os moradores se mobilizaram para garantir um controle dos mosquitos próprio, com a ajuda da natureza.
O cenário é a Praça Romero Silva – rebatizada há alguns anos como Praça da Nascente depois que os vizinhos encamparam a revitalização do espaço que reúne oito nascentes do riacho Água Preta. Ali, dois lagos criados para receber tanta água contam desde o final do ano passado com todo um ecossistema de animais e plantas aquáticas que estão controlando localmente as larvas do pernilongo comum e de Aedes aegypti, o transmissor de dengue, zika, chikungunya e febre amarela.
“Sapinhos, peixinhos, insetos, camarões e caranguejos foram inseridos para recriar um micro-habitat em equilíbrio que trouxesse à natureza predadores para os mosquitos”, explica o biólogo Sandro Von Matter, que voluntariamente fez o trabalho de introdução das espécies.
Ele chegou à praça a convite da amiga Andrea Pesek, jardineira e ex-moradora da região e uma das ativistas do coletivo Ocupe e Abrace, que em 2013 iniciou o trabalho de recuperação do local.
“Isso aqui antes era um charco cheio de lixo, mosquitos, moscas, ratos. As nascentes tentavam correr, mas não conseguiam. Então fizemos os lagos. E logo colocamos peixes, para lidar com os mosquitos”, conta Andrea, de 51 anos.
A princípio foram colocados peixes ‘barrigudinhos’ (também conhecidos como guppy ou lebiste – Poecilia reticulata), mas logo outras pessoas foram trazendo outros peixes, alguns sapos cururu (Rhinella icterica) aportaram por lá, e as larvas dos mosquitos começaram a desaparecer. No final do ano passado, porém, os girinos atingiram uma quantidade preocupante e ela notou que o ambiente poderia estar em desequilíbrio.
Andrea então pediu a ajuda de Von Matter, pesquisador do Instituto Passarinhar e especialista em restauração de ecossistemas, que já trabalhava com projetos de recuperação da natureza nativa em praças urbanas.
O problema, explica ele, é que não basta devolver somente uma espécie à área, porque aí ela que pode acabar se proliferando demais. “É importante reconstruir os links entre as espécies que são nativas dos ambientes. O que eu busquei foi recriar o ambiente como se fosse natural”, afirma.
Armadilha. Assim, caranguejos e camarões de água doce, que comem o girino, foram colocados para impedir que a população de sapos explodisse. Os anfíbios adultos são importantes porque pegam o mosquito no ar, mas os girinos têm um papel interessante também dentro da água ao comer fungos e algas, deixando o ambiente mais estável, por exemplo, para insetos da família Notonectidae – aqueles que andam sobre a água –, que adoram larvas de mosquitos.
No total, há hoje cerca de 20 espécies de peixes, entre nativas e exóticas, pelo menos 10 de invertebrados e uma de anfíbio. A ideia, afirma Von Matter, é com o tempo trazer outros animais para a praça.
O trabalho de introdução dessas novas espécies começou a ser feito há cerca de dois meses. Von Matter visita o local a cada 15 dias para medir quanto tem de cada animal nos lagos e checar se não há nenhum novo desequilíbrio. Ele também conta as larvas de mosquito. “No começo ainda tinha, mas hoje posso dizer que o lago não tem mais nenhuma”, diz.
“A gente nem precisa de veneno”, concorda Andrea. “O bacana é que o lago funciona como uma espécie de armadilha para o mosquito. Ele vem para cá para botar ovos, mas aí não se prolifera, porque as larvas vão ser comidas”, explica.
No ambiente urbano, os pernilongos se acostumaram a botar ovos em praticamente qualquer lugar com água. “Mas se tem um ambiente aberto com água, como o lago na praça, eles até preferem. A vantagem é que se esse ecossistema estiver equilibrado, vai predar as larvas e elas não vão ter sucesso”, complementa Von Matter.
Os vizinhos imediatos da praça aprovaram a intervenção. “No verão sempre tem algum mosquito, claro, mas nada como isso aí que o pessoal dos outros bairros está reclamando no jornal. Pelo contrário, aqui a gente tem visto uma diminuição dos mosquitos. Acho que isso é graças ao lago e aos peixes e sapos”, conta a farmacêutica Arlene Saboia, de 65 anos, que mora em frente à Romero Silva há 8 anos. “Bom seria se todo mundo tivesse assim uma praça por perto.”
Expansão da ideia. O biólogo defende que esse tipo de iniciativa deveria ser feito em outras praças e parques da cidade para estender esse efeito em outros micro-cosmos. “Tem de ter o cuidado de trazer espécies que deveriam existir na região, fazer um levantamento científico antes de introduzir qualquer animal e garantir as interações entre as espécies. Se o poder público investisse não gastaria mais que R$ 1.000 por praça”, estima.
Von Matter afirma que seria possível alcançar esses benefícios também em ambientes secos. “Temos árvores ótimas que dão suporte para morcegos insetívoros. Um morcego pode comer 5 mil pernilongos numa noite. Mas muitas árvores antigas têm sido cortadas por risco de cair e uma nova demora para ter o mesmo resultado”, diz.
Ele lembra que na natureza uma árvore também nunca está “pelada”. Ela é coberta com outras espécies da flora, como orquídeas, bromélias, trepadeiras. “Isso tudo oferece recursos para a fauna que ajuda a controlar mosquitos. As pessoas falaram muito que a bromélia é um risco, mas dentro dela vivem organismos, como libélulas, que ajudam a controlar a larva dos pernilongos. Vamos recolonizar as árvores, deixá-las ‘selvagens’”, recomenda.
O cenário é a Praça Romero Silva – rebatizada há alguns anos como Praça da Nascente depois que os vizinhos encamparam a revitalização do espaço que reúne oito nascentes do riacho Água Preta. Ali, dois lagos criados para receber tanta água contam desde o final do ano passado com todo um ecossistema de animais e plantas aquáticas que estão controlando localmente as larvas do pernilongo comum e de Aedes aegypti, o transmissor de dengue, zika, chikungunya e febre amarela.
“Sapinhos, peixinhos, insetos, camarões e caranguejos foram inseridos para recriar um micro-habitat em equilíbrio que trouxesse à natureza predadores para os mosquitos”, explica o biólogo Sandro Von Matter, que voluntariamente fez o trabalho de introdução das espécies.
Ele chegou à praça a convite da amiga Andrea Pesek, jardineira e ex-moradora da região e uma das ativistas do coletivo Ocupe e Abrace, que em 2013 iniciou o trabalho de recuperação do local.
“Isso aqui antes era um charco cheio de lixo, mosquitos, moscas, ratos. As nascentes tentavam correr, mas não conseguiam. Então fizemos os lagos. E logo colocamos peixes, para lidar com os mosquitos”, conta Andrea, de 51 anos.
A princípio foram colocados peixes ‘barrigudinhos’ (também conhecidos como guppy ou lebiste – Poecilia reticulata), mas logo outras pessoas foram trazendo outros peixes, alguns sapos cururu (Rhinella icterica) aportaram por lá, e as larvas dos mosquitos começaram a desaparecer. No final do ano passado, porém, os girinos atingiram uma quantidade preocupante e ela notou que o ambiente poderia estar em desequilíbrio.
Andrea então pediu a ajuda de Von Matter, pesquisador do Instituto Passarinhar e especialista em restauração de ecossistemas, que já trabalhava com projetos de recuperação da natureza nativa em praças urbanas.
O problema, explica ele, é que não basta devolver somente uma espécie à área, porque aí ela que pode acabar se proliferando demais. “É importante reconstruir os links entre as espécies que são nativas dos ambientes. O que eu busquei foi recriar o ambiente como se fosse natural”, afirma.
Armadilha. Assim, caranguejos e camarões de água doce, que comem o girino, foram colocados para impedir que a população de sapos explodisse. Os anfíbios adultos são importantes porque pegam o mosquito no ar, mas os girinos têm um papel interessante também dentro da água ao comer fungos e algas, deixando o ambiente mais estável, por exemplo, para insetos da família Notonectidae – aqueles que andam sobre a água –, que adoram larvas de mosquitos.
No total, há hoje cerca de 20 espécies de peixes, entre nativas e exóticas, pelo menos 10 de invertebrados e uma de anfíbio. A ideia, afirma Von Matter, é com o tempo trazer outros animais para a praça.
O trabalho de introdução dessas novas espécies começou a ser feito há cerca de dois meses. Von Matter visita o local a cada 15 dias para medir quanto tem de cada animal nos lagos e checar se não há nenhum novo desequilíbrio. Ele também conta as larvas de mosquito. “No começo ainda tinha, mas hoje posso dizer que o lago não tem mais nenhuma”, diz.
“A gente nem precisa de veneno”, concorda Andrea. “O bacana é que o lago funciona como uma espécie de armadilha para o mosquito. Ele vem para cá para botar ovos, mas aí não se prolifera, porque as larvas vão ser comidas”, explica.
No ambiente urbano, os pernilongos se acostumaram a botar ovos em praticamente qualquer lugar com água. “Mas se tem um ambiente aberto com água, como o lago na praça, eles até preferem. A vantagem é que se esse ecossistema estiver equilibrado, vai predar as larvas e elas não vão ter sucesso”, complementa Von Matter.
Os vizinhos imediatos da praça aprovaram a intervenção. “No verão sempre tem algum mosquito, claro, mas nada como isso aí que o pessoal dos outros bairros está reclamando no jornal. Pelo contrário, aqui a gente tem visto uma diminuição dos mosquitos. Acho que isso é graças ao lago e aos peixes e sapos”, conta a farmacêutica Arlene Saboia, de 65 anos, que mora em frente à Romero Silva há 8 anos. “Bom seria se todo mundo tivesse assim uma praça por perto.”
Expansão da ideia. O biólogo defende que esse tipo de iniciativa deveria ser feito em outras praças e parques da cidade para estender esse efeito em outros micro-cosmos. “Tem de ter o cuidado de trazer espécies que deveriam existir na região, fazer um levantamento científico antes de introduzir qualquer animal e garantir as interações entre as espécies. Se o poder público investisse não gastaria mais que R$ 1.000 por praça”, estima.
Von Matter afirma que seria possível alcançar esses benefícios também em ambientes secos. “Temos árvores ótimas que dão suporte para morcegos insetívoros. Um morcego pode comer 5 mil pernilongos numa noite. Mas muitas árvores antigas têm sido cortadas por risco de cair e uma nova demora para ter o mesmo resultado”, diz.
Ele lembra que na natureza uma árvore também nunca está “pelada”. Ela é coberta com outras espécies da flora, como orquídeas, bromélias, trepadeiras. “Isso tudo oferece recursos para a fauna que ajuda a controlar mosquitos. As pessoas falaram muito que a bromélia é um risco, mas dentro dela vivem organismos, como libélulas, que ajudam a controlar a larva dos pernilongos. Vamos recolonizar as árvores, deixá-las ‘selvagens’”, recomenda.
De volta ao curral onde jaz meu umbigo
O primeiro ponto de referência de minha vida foi a porteira do curral em frente à casa de meu avô materno, onde nasci. Afinal, foi lá que enterraram meu cordão umbilical. Desde muito cedo me contaram isso. Desde muito cedo me acostumei a tirar os paus que impediam a saída das reses e a entrada dos vaqueiros. Nunca tive um gibão, nunca uma perneira, nunca um bornal pra encher de farinha seca e pedaços de rapadura que amoleciam ao sol. O velho Chico Ferreira também não usava os trajes dos meeiros de confiança que apartavam seu gado vacum, levavam-no cedo para o pasto e, ao anoitecer, o traziam para ruminar no leito macio e quente de bosta de vaca. Ao que me lembre, meu avô, magro e míope, muito míope, usava camisas e calças de tecido rústico, sempre muito limpas, com cheiro de sabão de pedra, anis e goma de mandioca, usada para passá-las.
Eu, gorducho, meio inseguro sobre coxas grossas e pernas bambas, acordava muito cedo para tomar meu café. Carregava com zelo um copo de vidro grosso no qual jorrava o leite gordo da teta que o dono ordenhava com calma, paciência e um amor que exalava por todos os seus poros. Ali era o pai de minha mãe, sua primogênita, o sogro de meu pai, seu sobrinho, ao mesmo tempo seu compadre, pois tinha sido padrinho de meu irmão um ano mais novo.
O líquido branco e morno já era despejado sobre o café, que dona Quinou Moreira, minha avó, havia feito na primeira hora, antes de a barra alumiar de rubro e o sol surgir luminoso, forte, quente e ameaçador. Quando meus pais se mudaram para a cidade, um vilarejo à época, o leite chegava em baldes e era fervido no fogão de lenha por minha mãe, Mundica, que o passava de tigela em tigela até atingir minha temperatura favorita, um pouquinho mais quente do que o leite mugido.
Até seu Chico morrer, e eu tinha apenas 6 anos, contudo, meu desjejum era no curral, ao qual só tinha acesso depois de pisar o chão que ocultava os restos em decomposição de meu cordão umbilical. Isso era muito cedo e o dia se alongava, de forma preguiçosa e lenta, até que eu me juntava ao ancestral para a cerimônia mais esperada do dia. Sentávamo-nos os dois na calçada alta e esperávamos a chegada do rebanho. Ao som dos chocalhos, o sol desmaiava aos poucos, desmanchando-se em cor de sangue. Aquela longa conversa muda entre o velho e a criança se reproduz até hoje em minhas lembranças e em meus gostos.
Às vezes, muito raramente, o ancião esticava o braço torrado da soleira na direção do ocidente e me mostrava nuvens carregadas ao perder de vista no horizonte:
– Veja, esse menino. Está chovendo em Souza. Pode ser que amanhã chegue por aqui. Estamos precisados.
Quando o dia morria, ouvíamos a voz da mulher, vinda da cozinha:
– Traga o menino pra dentro, seu Chico. É hora da ceia.
O idoso (e ele morreria tão cedo) sacava, então, sua peixeira e a amolava numa pedra, depois rapava uma rapadura que seus empregados traziam da Baixa Verde, sua propriedade no Rio Grande do Norte, onde nascera parte de sua prole, inclusive minha mãe. Despejava a rapadura rapada no prato fundo, acrescentava coalhada e soro. E os dois – o ancestral e parte de sua descendência – comíamos solenemente, em silêncio. Gostaria muito de um dia me lembrar da voz daquele homem tão íntimo de mim naquele tempo, mas ele foi e com ele levou a lembrança de seu timbre amável. Cruzava as pernas, sentava-me no colo e, antes de pitar um cigarro de palha, depositava a criança quieta no banco de madeira ao lado de uma mesa longa, à qual somente nós dois tomávamos assento. Minha avó comia na cozinha, de pé, ao lado do fogão, depois que os pratos dos homens estavam lavados, postos para a água escorrer logo ali ao lado.
Dormíamos em redes, ele no quarto com a mulher, eu na sala, insone pelo tique-taque do pêndulo do relógio de parede que dava os minutos e tocava as horas, contadas em algarismos romanos fora do padrão: quatro era IIII, não IV, como no império dos Césares se grafava. De onde algum desavisado teria tirado essa ideia de subverter o IV com que Marco Aurélio fazia suas contas na Antiguidade longínqua?
Quando chovia, contudo, eu dormia bem, embalado pelo ronco pesado de minha avó, as bátegas açoitando as telhas da casa antiga e o ranger dos armadores submetidos ao peso do velho se balançando para conciliar o sono. Uma vez, já adolescente, morto o avô, a avó surda e implicante ainda viva por um bom tempo, escrevi um poema sobre esta cena doméstica. É o único de todos os meus poemas que sei de cor. E tem o fecho mais comum, menos interessante, mas que me emociona até me levar aos prantos. O poema intitula-se “Na casa avoenga”. E termina com um verso súbito e impaciente: “eta emoção!” Só que o ritmo dos versos não lembra as noites de chuva e paz ou de ronco e vigília. Mas, sim, sempre, a chegada da boiada de volta ao curral, onde apodrece o cordão que me ligava ao ventre materno antes do parto complicado de que vim ao mundo.
Não sei por que, vou morrer sem saber, talvez nasça de novo e ainda não aprenda por que, com mil e seiscentos diachos, como praguejava seu Chico Ferreira, me senti pessoalmente agredido pelos bondosos defensores dos animais, pelos burocratas do Estado do Ceará que, a poucos quilômetros do alpendre da casa onde minha mãe me pariu, proibiram a vaquejada. Um ministro do Supremo Tribunal Federal me fez a suprema desfeita de decepar um pedaço da infância, a lembrança afetuosa que tinha do pai de minha mãe, com os quais, ele e ela, compartilho feições bem parecidas. Senti-me um irmão distante de Aldo Rebelo quando ele escreveu, na mesma página onde rabisco linhas sobre política no Estadão velho de guerra e paz, um protesto assim lírico e manso como o meu contra a medida Segundo Aldo, esta matou o vaqueiro e o sertanejo, os heróis da saga da conquista dos ermos pelas patas das boiadas da Casa da Torre, dos Garcia d’Ávila, na Bahia.
Lendo o noticiário posterior sobre o pretexto do conflito em torno da vaquejada, que teria ajudado a derrubar Marcelo Calero do Ministério da Cultura, que era contra, e da penada com que o presidente Temer a recolocou no altar da cultura popular, aproximei-me de novo de meu avô materno. E me senti de novo o bebê que Levina, filho de seu Natan, pesou na balança de pesar algodão de meus ancestrais e depois banhou pela primeira vez com sabonete Vale Quanto Pesa. Moradora de meu bisavô coronel, ela era mulher de Eloi, vaqueiro tresmalhado que chegou de Monte Santo, Bahia, onde o beato Conselheiro perdeu a vida para adentrar a lenda.
Quem sabe essa lembrança com gosto de leite recém-ordenhado no sertão do Rio do Peixe me consiga o perdão dos defensores dos animais, embora talvez seja impossível convencê-los de que, por mais que se esforcem, nunca cuidarão de uma rês ou uma rã tão bem como um vaqueiro do sertão. Seja como for, este idoso com o umbigo amarrado ao curral do avô sempre lhes será grato por terem eles permitido voltar à infância amputada por causa do episódio sem nexo nem razão da proibição da vaquejada. Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, ê boi.
José Nêumanne
Eu, gorducho, meio inseguro sobre coxas grossas e pernas bambas, acordava muito cedo para tomar meu café. Carregava com zelo um copo de vidro grosso no qual jorrava o leite gordo da teta que o dono ordenhava com calma, paciência e um amor que exalava por todos os seus poros. Ali era o pai de minha mãe, sua primogênita, o sogro de meu pai, seu sobrinho, ao mesmo tempo seu compadre, pois tinha sido padrinho de meu irmão um ano mais novo.
O líquido branco e morno já era despejado sobre o café, que dona Quinou Moreira, minha avó, havia feito na primeira hora, antes de a barra alumiar de rubro e o sol surgir luminoso, forte, quente e ameaçador. Quando meus pais se mudaram para a cidade, um vilarejo à época, o leite chegava em baldes e era fervido no fogão de lenha por minha mãe, Mundica, que o passava de tigela em tigela até atingir minha temperatura favorita, um pouquinho mais quente do que o leite mugido.
Até seu Chico morrer, e eu tinha apenas 6 anos, contudo, meu desjejum era no curral, ao qual só tinha acesso depois de pisar o chão que ocultava os restos em decomposição de meu cordão umbilical. Isso era muito cedo e o dia se alongava, de forma preguiçosa e lenta, até que eu me juntava ao ancestral para a cerimônia mais esperada do dia. Sentávamo-nos os dois na calçada alta e esperávamos a chegada do rebanho. Ao som dos chocalhos, o sol desmaiava aos poucos, desmanchando-se em cor de sangue. Aquela longa conversa muda entre o velho e a criança se reproduz até hoje em minhas lembranças e em meus gostos.
Marcos Pê |
– Veja, esse menino. Está chovendo em Souza. Pode ser que amanhã chegue por aqui. Estamos precisados.
Quando o dia morria, ouvíamos a voz da mulher, vinda da cozinha:
– Traga o menino pra dentro, seu Chico. É hora da ceia.
O idoso (e ele morreria tão cedo) sacava, então, sua peixeira e a amolava numa pedra, depois rapava uma rapadura que seus empregados traziam da Baixa Verde, sua propriedade no Rio Grande do Norte, onde nascera parte de sua prole, inclusive minha mãe. Despejava a rapadura rapada no prato fundo, acrescentava coalhada e soro. E os dois – o ancestral e parte de sua descendência – comíamos solenemente, em silêncio. Gostaria muito de um dia me lembrar da voz daquele homem tão íntimo de mim naquele tempo, mas ele foi e com ele levou a lembrança de seu timbre amável. Cruzava as pernas, sentava-me no colo e, antes de pitar um cigarro de palha, depositava a criança quieta no banco de madeira ao lado de uma mesa longa, à qual somente nós dois tomávamos assento. Minha avó comia na cozinha, de pé, ao lado do fogão, depois que os pratos dos homens estavam lavados, postos para a água escorrer logo ali ao lado.
Dormíamos em redes, ele no quarto com a mulher, eu na sala, insone pelo tique-taque do pêndulo do relógio de parede que dava os minutos e tocava as horas, contadas em algarismos romanos fora do padrão: quatro era IIII, não IV, como no império dos Césares se grafava. De onde algum desavisado teria tirado essa ideia de subverter o IV com que Marco Aurélio fazia suas contas na Antiguidade longínqua?
Quando chovia, contudo, eu dormia bem, embalado pelo ronco pesado de minha avó, as bátegas açoitando as telhas da casa antiga e o ranger dos armadores submetidos ao peso do velho se balançando para conciliar o sono. Uma vez, já adolescente, morto o avô, a avó surda e implicante ainda viva por um bom tempo, escrevi um poema sobre esta cena doméstica. É o único de todos os meus poemas que sei de cor. E tem o fecho mais comum, menos interessante, mas que me emociona até me levar aos prantos. O poema intitula-se “Na casa avoenga”. E termina com um verso súbito e impaciente: “eta emoção!” Só que o ritmo dos versos não lembra as noites de chuva e paz ou de ronco e vigília. Mas, sim, sempre, a chegada da boiada de volta ao curral, onde apodrece o cordão que me ligava ao ventre materno antes do parto complicado de que vim ao mundo.
Não sei por que, vou morrer sem saber, talvez nasça de novo e ainda não aprenda por que, com mil e seiscentos diachos, como praguejava seu Chico Ferreira, me senti pessoalmente agredido pelos bondosos defensores dos animais, pelos burocratas do Estado do Ceará que, a poucos quilômetros do alpendre da casa onde minha mãe me pariu, proibiram a vaquejada. Um ministro do Supremo Tribunal Federal me fez a suprema desfeita de decepar um pedaço da infância, a lembrança afetuosa que tinha do pai de minha mãe, com os quais, ele e ela, compartilho feições bem parecidas. Senti-me um irmão distante de Aldo Rebelo quando ele escreveu, na mesma página onde rabisco linhas sobre política no Estadão velho de guerra e paz, um protesto assim lírico e manso como o meu contra a medida Segundo Aldo, esta matou o vaqueiro e o sertanejo, os heróis da saga da conquista dos ermos pelas patas das boiadas da Casa da Torre, dos Garcia d’Ávila, na Bahia.
Lendo o noticiário posterior sobre o pretexto do conflito em torno da vaquejada, que teria ajudado a derrubar Marcelo Calero do Ministério da Cultura, que era contra, e da penada com que o presidente Temer a recolocou no altar da cultura popular, aproximei-me de novo de meu avô materno. E me senti de novo o bebê que Levina, filho de seu Natan, pesou na balança de pesar algodão de meus ancestrais e depois banhou pela primeira vez com sabonete Vale Quanto Pesa. Moradora de meu bisavô coronel, ela era mulher de Eloi, vaqueiro tresmalhado que chegou de Monte Santo, Bahia, onde o beato Conselheiro perdeu a vida para adentrar a lenda.
Quem sabe essa lembrança com gosto de leite recém-ordenhado no sertão do Rio do Peixe me consiga o perdão dos defensores dos animais, embora talvez seja impossível convencê-los de que, por mais que se esforcem, nunca cuidarão de uma rês ou uma rã tão bem como um vaqueiro do sertão. Seja como for, este idoso com o umbigo amarrado ao curral do avô sempre lhes será grato por terem eles permitido voltar à infância amputada por causa do episódio sem nexo nem razão da proibição da vaquejada. Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, ê boi.
José Nêumanne
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