segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

(Des)continuidades

Edward Johnston poderia ter se formado médico, mas abandonou a faculdade em Edimburgo para retornar a Londres no final do século XIX. Fascinado por tipografia antiga, passava dias estudando antigos manuscritos medievais no Museu Britânico. Começou então a dar aulas de lettering e em 1906 publicou um livro ensinando suas técnicas, que tinha o sugestivo nome “Escrevendo e Iluminando”.

Em 1913, Johnston foi contratado pela companhia de metrô de Londres para propor uma reformulação da identidade visual das estações. Trabalhando sobre a ideia de um antigo símbolo que combinava um círculo vermelho e uma barra horizontal azul e introduzindo o nome da estação com uma tipografia leve no centro, a proposta de Johnston foi aprovada pelos executivos da empresa e passou a ser adotada em toda a cidade a partir de 1919.

Alguns anos depois, o departamento de sinalização do metrô contratou um jovem desenhista de nome Henry Beck. Sua principal missão era desenhar plantas de engenharia e placas seguindo a tipografia criada por Johnston. Mas, com a expansão das linhas e do número de estações, Beck se incomodava com a complexidade dos mapas do Underground, à época elaborados em escala geográfica.

Apostando na concepção de que o passageiro estava mais interessado na sequência das estações e na conexão entre as linhas do que na distância percorrida entre elas, Beck começou a desenvolver, nas suas horas vagas, um novo mapa. Baseado na ideia de um circuito elétrico e atribuindo cores diferentes para cada linha, o mapa de Beck foi testado em 1933 e desde então tem sido copiado pelos principais sistemas de transporte do mundo, inclusive o metrô de São Paulo.


Se você visitar algum dos vagões antigos das décadas de 1940 ou 1950 expostos no London Transport Museum, localizado do lado de Covent Garden, vai verificar que, a despeito das mudanças no mobiliário, a identidade visual das placas informativas é praticamente a mesma de hoje em dia. Um século depois que suas ideias foram propostas, os logotipos e desenhos criados por Johnston e Beck não apenas continuam a designar as estações e linhas do metrô, como tornaram-se ícones culturais da cidade de Londres e da própria Inglaterra.

O metrô londrino começou a ser desenvolvido em 1863, quando o primeiro túnel ligando as estações de Paddington e Farringdon foi inaugurado. Hoje conta com 402 km, distribuídos em 11 linhas interligando 270 estações que movimentam 5 milhões de passageiros por dia. Em quase 160 anos de expansão praticamente contínua muita coisa mudou, a começar pela tecnologia dos trens, que inicialmente eram movidos a vapor e migraram para a eletricidade com o advento do século XX. A forma de provimento do serviço também foi bastante alterada. Nas primeiras décadas as linhas eram construídas e mantidas de forma independente por companhias privadas, que passaram por um intenso processo de fusões e aquisições. A grande depressão de 1929 levou as empresas ao colapso, forçando a estatização de quase todas as empresas de metrô, ônibus e bondes em 1933. Daí até 2000 o gerenciamento do sistema de transporte urbano na região metropolitana de Londres trocou de mãos entre os governos central e local diversas vezes, até a implementação do modelo atual, uma parceria público-privada controlada pela administração municipal.

O interessante é que essa combinação mágica de estabilidade (da comunicação visual) com desenvolvimento (das linhas, estações e trens) se deu num quadro de frequente alternância no poder entre os dois principais partidos britânicos. Para ficar só neste século, a população de Londres elegeu como prefeitos um trabalhista da ala mais radical, Ken Livingstone (2000-2008), depois o conservador e atual primeiro-ministro Boris Johnson (2008-2016) e atualmente um trabalhista moderado, Sadiq Khan. Apesar das diferentes visões políticas, ideologias e concepções de cidade defendidas por aqueles que a governaram nos últimos 160 anos, nada disso interrompeu o ritmo da capilarização do sistema de transporte e nem sequer suas mundialmente conhecidas plaquinhas de identificação.

Quadro muito diferente observamos no Brasil. Em pleno 2020 não conseguimos implementar uma cultura de avaliar as políticas públicas e julgá-las segundo parâmetros claros de custo-benefício e impacto. Programas governamentais e investimentos estatais ainda são decididos com base no achismo de governantes e burocratas - quando não no oportunismo de corruptos e corruptores mal disfarçado em promessas vãs de aumento do emprego ou do crescimento do PIB.

Mudanças de governo, principalmente quando envolvendo a troca de grupos políticos no comando, trazem consigo a paralisação de programas e tentativas de reinvenção da roda, começando tudo de novo a partir do zero.

Diferentemente do caso do metrô londrino, a cada novo mandato de presidente, governador ou prefeito, programas governamentais mudam de nome, prédios públicos são repintados nas cores do partido do novo dirigente e obras públicas são abandonadas incompletas em função de “novas prioridades”.

No plano federal, Bolsonaro pressiona ministros e assessores para darem uma nova roupagem para o Bolsa Família - preferencialmente com um novo nome que o desvincule do governo do PT. Pior ainda são casos observados nos setores de meio-ambiente, educação e saúde, onde políticas criadas e aperfeiçoadas de modo incremental a três décadas ou mais vêm sendo esvaziadas por motivos ideológicos ou políticos. Mas não se iludam, em diferentes graus, seus antecessores fizeram o mesmo, sempre com o propósito de imprimir sua marca pessoal e colher frutos eleitorais.

Em outubro próximo elegeremos os prefeitos dos mais de 5.500 municípios brasileiros. É boa hora de nos perguntarmos o que de bom vem sendo feito nas cidades em que vivemos e cobrarmos sua continuidade ou melhoramentos. Como diriam os ingleses, mind the gap.
Bruno Carazza

Metamorfose

As redes sociais nos transformaram. Antes
Nós achávamos ter o direito
E hoje nós achamos ter o dever
De julgar nossos semelhantes.

O jornalismo muda e permanece

Não sei se ele tentou fazer uma brincadeira. Talvez não, porque o humor e a ironia não são seus pontos fortes e são recursos de linguagem que exigem bastante do cérebro. Seu histórico é mesmo de agressões. O presidente Jair Bolsonaro disse que os jornalistas são animais em extinção que deveriam ser entregues ao Ibama. Suas ofensas frequentes aos repórteres na porta do Palácio da Alvorada podem ser definidas como assédio. Como fazem os valentões, ele sempre se cerca da sua claque, aposta na impunidade e dispara seus mísseis cheios de machismo, homofobia, mentiras e desprezo por valores democráticos.

Ele gostaria de ser um exterminador da imprensa. Principalmente daquela que incomoda, que insiste, que esclarece, que investiga. Bolsonaro preferia que o país tivesse apenas os seres amestrados que se definem como jornalistas mas são escolhidos por ele pela certeza de que nunca vão incomodá-lo ou surpreendê-lo. Serão dóceis depositários de falas suas. Esses sim se extinguirão quando ele deixar o poder, ou então vão atracar-se como cracas ao novo poder que se formar.


O jornalismo continuará sendo indispensável e continuará a existir. O papel institucional do bom jornalismo é requisito básico para o funcionamento das instituições democráticas. O presidente confunde seus desejos com prognósticos, quando ameaça de extinção um ou outro órgão de imprensa, ou então quando imagina o fim de toda uma categoria.

A imprensa passa por transformações intensas. Muda o modelo de negócios, a maneira como se apuram as informações, a forma como a notícia é apresentada e a intensidade com que o fluxo de dados e fatos circula. Alguns nichos de mercado desaparecem e outros surgem constantemente. Nessa voragem, os jornalistas vão trocando de equipamentos, aprendendo a usar novas técnicas, entrando e saindo de plataformas. Mas não é o fim da atividade, é que a tecnologia acelerou o ritmo de mudanças que sempre estiveram ligadas ao jornalismo. Mesmo quando alguns órgãos fecham, reduzem-se os profissionais necessários para executar uma tarefa, velhas fontes de receita diminuem, não é o jornalismo acabando. É a transformação com a qual a imprensa sempre conviveu. Mudar é a nossa matéria. E, como seres inquietos que são os jornalistas, acho que não ficariam felizes na placidez. Por mais inquietante que seja este momento, os jornalistas estão testando as novas fronteiras das possibilidades.

Nos tempos das redes sociais, há uma confusão e é nela que o presidente está apostando. O transmissor do último fato pode não ser jornalista. Muitas vezes essa pessoa é um elo importante na circulação da notícia, mas sobre cada evento os repórteres profissionais se debruçarão com sua técnica de apuração e checagem, separando, como sempre fizeram, os boatos das informações sólidas e verificáveis. Bolsonaro se convenceu de que, se não ler os jornais, ficará melhor. Chegarão a ele apenas os elogios e a postagem dos áulicos. Governará mal qualquer um que se afaste das críticas ou tente apagá-las, por autoritarismo ou incapacidade de conviver com a discordância.

Bolsonaro se convenceu também, equivocadamente, de que pode continuar se comunicando através de transmissões em que aparece ao lado de pessoas que são ornamentos, sem qualquer espaço para o contraditório. E que os robôs comandados por gente da família ou pessoas contratadas com dinheiro público serão suficientes para conduzir as tendências da opinião pública. Eles criam os trending topics com suas repetições programadas e acham que isso os transforma em criadores de realidades. O que eles fazem circular são calúnias, difamações, mentiras, propaganda. Isso não é jornalismo. O gabinete do ódio dentro do Palácio do Planalto sobrevive porque as instituições não foram eficientes até o momento para defender a sociedade brasileira dessa perigosa distorção, financiada com o dinheiro público.

O que existe de comum entre os jornalistas e o Ibama é que estariam todos extintos, se dependesse apenas dele. Inclusive o órgão de defesa do meio ambiente brasileiro. Muitas vezes este governo constrangeu publicamente funcionários do Ibama, ou de outros órgãos do Estado brasileiro, que, contudo, seguem fazendo seu trabalho. E para o desgosto presidencial os jornalistas também permanecerão.

Pensamento do Dia

João Fazenda

Literatura e justiça

Hoje, de repente, como num verdadeiro achado, minha tolerância para com os outros sobrou um pouco para mim também (por quanto tempo?). Aproveitei a crista da onda, para me pôr em dia com o perdão. Por exemplo, minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me aproximar de um modo “literário” (isto é, transformado na veemência da arte) da “coisa social”. Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir “arte”, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era “fazer” alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O que não consigo é usar escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele – e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberta, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Tenho consciência de estar simplificando primariamente o problema. Mas, por tolerância hoje para comigo, não estou me envergonhando totalmente de não contribuir para nada humano e social por meio do escrever. É que não se trata de querer, é questão de não poder. Do que me envergonho, sim, é de não “fazer”, de não contribuir com ações. (Se bem que a luta pela justiça leva à política, e eu ignorantemente me perderia nos meandros dela.) Disso me envergonharei sempre. E nem sequer pretendo me penitenciar. Não quero, por meios indiretos e escusos, conseguir de mim a minha absolvição. Disso quero continuar envergonhada. Mas, de escrever o que escrevo, não me envergonho: sinto que, se eu me envergonhasse, estaria pecando por orgulho.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Armadilha

É crucial que os políticos da oposição evitem a armadilha de deixar o Bolsonaro determinar a agenda política, concentrando-se exclusivamente em suas falhas pessoais e políticas. Em vez de denunciar as palavras afrontosas que estão sempre saindo dos lábios dos populistas, eles deveriam tentar uma estratégia própria. Pois somente quando os cidadãos se sentem mais esperançosos do que fatalista – apenas quando recuperam a confiança de que políticos mais moderados lutarão e trabalharão por eles – eles mudam seu voto. Para resgatar o país, os defensores da democracia liberal precisam provar para seus concidadãos não só que Bolsonaro é ruim para a nação, como também que eles podem fazer um trabalho melhor
Yascha Mounk, cientista político alemão e professor da Universidade Johns Hopkins

Ricos e pobres, cada vez mais separados

Nas cidades as pessoas diferentes vivem em locais diferentes: se chama segregação urbana. A segregação pode ocorrer por diversos motivos, como a etnia e os estilos de vida, mas o fator mais importante é o econômico. Os que têm mais dinheiro podem escolher onde moram, para os mais pobres a escolha não é tão ampla. Os primeiros moram em bairros melhores, com melhores serviços, melhor construção e qualidade ambiental. Os pobres precisam se resignar a morar em bairros onde tudo é um pouco mais precário e até a expectativa de vida alguns anos menor. A influência da segregação residencial na trajetória vital das pessoas se chama “efeito bairro”, muitas vezes traduzido em fracasso escolar, desigualdade e falta de oportunidades.

Estudos e especialistas dizem que a segregação aumenta, em correlação às crescentes desigualdades provocadas pelo modelo econômico vigente, o que pode provocar problemas nas megacidades para as quais nos dirigimos. As Nações Unidas preveem que 68% da população morará em cidades em 2050, na Espanha 80% já estão nelas. As cidades são e serão os cenários dos conflitos sociais presentes e futuros.

Paul Valls
“Os ricos e pobres estão morando em distâncias crescentes uns dos outros, e isso pode ser desastroso à estabilidade social e ao poder competitivo das cidades”, diz um estudo realizado durante a primeira década deste século por várias universidades europeias (Socio-Economic Segregation in European Capital Cities). Entre as causas estão a globalização, a reestruturação do mercado de trabalho, a diferença de renda, a decadência do Estado de bem-estar social e a mercantilização da moradia. A gentrificação e a turistificação são, além disso, processos que contribuem a essa separação entra as pessoas que, de acordo com suas condições vitais, deixam de conviver com outros grupos diferentes. Se o interessante das cidades era sua condição de caldo de pessoas e culturas, essa característica pode estar chegando ao seu fim.

As coisas nem sempre foram assim. Na segunda metade do século XIX, como lembra o sociólogo Richard Sennett em seu recente ensaio Construir e Habitar, os edifícios, por mais imponentes que fossem, podiam abrigar oficinas no térreo, depois andares nos quais morava a burguesia e os andares mais altos, que eram piores e menores, em que moravam trabalhadores humildes. Havia contato entre as classes sociais, a segregação ocorria no próprio edifício, nem tanto em escala urbana. Mas com a chegada dos transportes, como o bonde, já não era preciso que as classes populares morassem junto com as mais abastadas. A produção industrial as levou à periferia: “A cidade operava como uma centrífuga que separava especialmente as classes”, escreve Sennett. O elevador (físico, não social) permitiu que os ricos morassem em andares altos sem a necessidade de subir escadas. E agora estão na moda as coberturas de luxo, coisa à época impensável.

Por que a segregação urbana não é desejável? Além das razões relacionadas com a justiça social, existem outras: “A segregação é prejudicial do ponto de vista da inovação, as cidades muito segregadas expulsam os trabalhadores que não podem viver nelas e têm dificuldades para crescer no futuro”, diz Esteban Moro, pesquisador da Universidade Carlos III de Madri e do MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts). A aglomeração da diversidade humana nas primeiras cidades, há 7.500 anos, afirma o ensaísta científico Steven Johnson em seu livro De Onde Vêm as Boas Ideias, foi o que acelerou o processo de inovação com invenções simultâneas como o alfabeto, a moeda, a pavimentação, a roda e a navegação. “Além disso, a segregação impede que algumas pessoas vejam os problemas das outras, e assim é difícil que se peça uma redistribuição da riqueza. As pessoas de rendas mais altas podem chegar a se opor às políticas sociais”, acrescenta Moro.

De fato, o contato traz o carinho e a segregação o anula. De acordo com as pesquisas em neurociência social de Lasana Harris, da Universidade de Duke, e Susan Fiske, de Princeton, (citadas pela jornalista Marta Peirano em seu recente livro O Inimigo Conhece o Sistema), quando não temos contato com outros grupos perdemos a capacidade de empatizar com eles, e até se desativam as áreas cerebrais que se ocupam da compreensão e da identificação. Desumanizamos os diferentes e os preconceitos aparecem.

É verdade que o bairro em que moramos é importante, mas também é verdade que passamos até 80% de nosso tempo fora de casa, de modo que, como Moro descobriu analisando dados obtidos de celulares através de técnicas de big data, os lugares que frequentamos durante o dia também são importantes. É o que demonstra o projeto Atlas da Desigualdade que o pesquisador desenvolve no MIT MediaLab, em que analisa outros fatores da segregação além do local de residência em algumas cidades dos Estados Unidos. Por exemplo, a segregação também ocorre em lojas e restaurantes, em bares, em cabeleireiros, em shoppings, os “terceiros lugares” (cada vez mais relacionados com o consumo, e em decadência em relação às relações digitais) que não são o domicílio e o trabalho. Os ricos e os pobres não frequentam os mesmos.

Os ricos partiram e agora vivem em um satélite artificial, longe da superfície terrestre em que os menos felizardos enfrentam condições pós-apocalípticas de poluição e superpopulação. No satélite dos abastados, por outro lado, a água é abundante, o ar está limpo e se vive com todas as comodidades. Isso ainda não passou à realidade, mas é o enredo do filme de ficção científica Elysium ((Neill Blomkamp, 2013) que se passa no ano de 2154. Um retrato da segregação levado ao extremo.

Mas, ainda que pareça extremo, um fenômeno não muito diferente está acontecendo sobre a superfície do planeta. As chamadas gated communities aumentam, principalmente nos países mais desiguais: bairros fechados em que os privilegiados moram cercados de muros, câmeras de vigilância e aproveitando seus próprios serviços. Outro filme retrata uma dessa comunidades, Zona do Crime (Rodrigo Plá, 2007). E indo ainda mais além, onde a realidade iguala a ficção: o movimento seasteading, apoiado por papas do Vale do Silício como Peter Thiel, cofundador do PayPal, pretende criar utopias anarcocapitalistas para ricos em ilhas artificiais (e paraísos fiscais) nas águas do Taiti, não sem escândalo, como denuncia o documentário The Seasteaders, de Jacob Hurwitz-Goodman e Daniel Keller.

Na Espanha, Madri e Barcelona também são amostras de segregação. Em Madri a segregação ocorre notoriamente no eixo norte-sul: na parte noroeste, salvo exceções, estão as rendas mais altas; os tradicionais bairros operários (Vallecas, Usera, Carabanchel etc.) estão abaixo do rio Manzanares, no sudeste. “Na parte norte está o privilégio, no sul a vulnerabilidade”, diz o sociólogo Daniel Sorando, da Universidade Complutense de Madri, participante do estudo pan-europeu citado. De acordo com a pesquisa, Madri é a capital mais segregada da Europa e a segunda em desigualdade social. Em Barcelona, segundo aponta o urbanista Oriol Nel·lo, do departamento de Geografia da Universidade Autônoma de Barcelona, a segregação ultrapassa as divisas da capital catalã e ocorre entre diferentes municípios: Sant Cugat del Vallès não é a mesma coisa do que que Sant Adrià de Besòs.

Nesse tipo de capitais a força que separa as classes sociais é maior, pela constante chegada de visitantes e trabalhadores, muitos deles altamente qualificados, à procura de oportunidades em grandes empresas. A socióloga Saskia Sassen (prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais 2013) batizou esses nodos mundiais de capital e informação de “cidades globais” e, ainda que muitos lugares queiram se transformar em globais, isso não necessariamente beneficiará a maioria de seus habitantes.

A Nova Agenda Urbana das Nações Unidas, nascida de sua reunião sobre a Moradia e o Desenvolvimento Sustentável Hábitat III, de 2016 (realizada a cada 20 anos), aponta a segregação como um dos grandes desafios das cidades. E pela primeira vez coloca o direito à cidade, um conceito criado pelo filósofo Henri Lefebvre e reivindicado posteriormente pelo geógrafo David Harvey e diferentes movimentos sociais do século XXI.

“As injustiças sociais se refletem em questões espaciais: a segregação, a gentrificação, a especulação se manifestam no modo em que as pessoas vivem”, diz Antonio Campillo, professor da Universidade de Murcia e autor do recente ensaio Um Lugar no Mundo, Justiça Espacial e Direito à Cidade. A precarização tem um componente fundamental, de acordo com o professor, na falta de posse dos meios de vida mais básicos, como a moradia. “O direito à cidade fala de todas as dimensões que permitem levar uma vida digna”, diz o autor; “uma das coisas reivindicadas é a ordenação urbana com critérios de justiça social e ambiental, e a promoção de políticas participativas para que a população seja atora na vida da cidade: a cidade é de todos e é preciso fazê-la entre todos”.

O que mais pode ser feito para aliviar a segregação? “São necessárias políticas que não podem ser só locais, e sim supralocais e de caráter transversal”, diz Nel·lo, “não somente melhorar o espaço público e a acessibilidade, e sim todos os âmbitos da vida da população”. Entre as soluções apresentadas está o investimento em educação, transporte público, mobilidade social e urbanismo, regulamentar o mercado da moradia em áreas tensionadas com preços de aluguel desorbitados, aumentar a moradia social e, principalmente, misturá-la na cidade sem criar guetos. Nesse sentido, a Prefeitura de Barcelona aprovou em 2018 um plano em que qualquer nova promoção imobiliária é obrigada a incluir 30% de moradias acessíveis (as políticas de moradia da Prefeitura receberam em junho o prêmio European Responsible Housing Award). Desse modo, pessoas de diferentes estratos compartilharão escadas e empatizarão.

Um louco mundo em chamas

Outro dia, num artigo, reproduzi uma frase do sociólogo Ulrich Beck em que ele afirma que as coisas estão mudando tão rápida e amplamente que as pessoas têm a impressão de que o mundo ficou maluco.

Pois acrescento outra impressão inquietante: a de que o mundo está pegando fogo. Com causas e consequências diferentes, três grandes incêndios assustaram o planeta: Amazônia, Califórnia e Austrália.

O grande incêndio da Austrália foi mal compreendido pelo governo brasileiro, que provocou as ONGS e artistas: por que não se manifestam?

Ilusão. No momento em que escrevo, de Pink a Elton John, os artistas já doaram US$15 milhões aos bombeiros de South Wales e Victoria, as regiões mais atingidas pelo fogo.

“Imprecionante”, como diria o ministro Weintraub. Acontece que a reação do governo australiano foi parecida com a do brasileiro, ao afirmar que eram incêndios frequentes e regulares nas regiões atingidas.

O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, interrompeu suas férias no Havaí, mas ainda assim foi severamente criticado nas regiões devastadas.

Seu governo não se prepara para as consequências do aquecimento global. A própria oposição está de mãos atadas porque as forças políticas dependem das forças que produzem carvão e gás. Para completar a visão do sistema, a mídia, dominada por Rupert Murdoch, tende também à negação das importantes mudanças climáticas.

Alguns cientistas impressionados com o processo acham que entramos na era do fogo, a qual chamam de Piroceno.

Acontece que não estamos apenas sob impacto de grandes incêndios, mas de eventos extremos, tempestades, furacões, secas prolongadas.
Isso acontece num mundo que reage à tese do aquecimento global, e às conquistas da ciência de um modo geral. É uma tendência ampla que não se limita a negar o aquecimento, mas se estende ao movimento antivacinação e, na sua face mais radical, chega ao terraplanismo.

Não há o que fazer, exceto seguir argumentando pacientemente. Mas talvez fosse necessária uma inflexão tática.

Ao invés de convencer sobre o aquecimento global, centrar a discussão nos eventos extremos que se sucedem.

Mesmo quem não acredita em aquecimento global pode ser convencido de que os desastres naturais são cada vez mais frequentes e é preciso uma séria preparação em escala nacional.

Isso não tem nada a ver com esquerda ou direita, muito menos é uma doutrinação do marxismo internacional.

Talvez seja possível obter dessa corrente de céticos, e até adversários da ciência, algum tipo de compromisso sobre o fortalecimento de uma Defesa Civil nacional.

Embora os dirigentes atuais sejam muito decididos a combater a ideia de aquecimento ou mudanças climáticas, um certo pragmatismo tem chance no Brasil, independentemente da posição deles.

Tive a impressão de que, depois das grandes inundações em Blumenau, a Defesa Civil de Santa Catarina se organizou melhor e se tornou uma das mais eficazes do país.

Os bombeiros de Minas Gerais, depois de tantos desastres com barragens, transformaram-se, por sua vez, numa referência internacional nesse tipo de intervenção.

Num mundo que parece maluco e prestes a se consumir em chamas, é muito difícil convencer com grandes ideias, embora os governos não param de se reunir para debater o tema.

O desenvolvimento de uma sólida e bem equipada Defesa Civil pode ser um objetivo alcançável, se houver uma concentração de forças nessa tarefa, aparentemente, modesta.

O interessante é que isto diz respeito apenas parcialmente ao governo e ao Parlamento. É essencial preparar a sociedade em todos os níveis. Não alcançaremos o rigor e a disciplina dos japoneses.

Mas também não somos os vira-latas que os pessimistas acreditam que somos. Há experiências pontuais de comunidades de risco que já sabem quem precisa de ajuda na hora crítica, onde estão guardados os barcos, para onde fugir quando necessário.

Enfim, a sensação que tenho é que, se baixarmos a bola, temos mais chance de chegar ao gol, apesar das exasperantes dificuldades da partida.

Mas, se tivéssemos tido a intuição de criar realmente um grande front pelo saneamento básico, o atraso não seria tão pesado como é hoje.
Não trabalho com a tese de uma coisa ou outra. Apenas acho que é preciso definir o possível e o necessário em cada momento e não se perder apenas nas belas ideias gerais.