segunda-feira, 18 de agosto de 2025
Os Estados Unidos que conhecemos estão sumindo diante de nossos olhos
De todas as coisas terríveis que Donald Trump disse e fez como presidente, a mais perigosa aconteceu no início deste mês. Trump, na prática, ordenou que nosso confiável e independente escritório governamental de estatísticas econômicas se tornasse tão mentiroso quanto ele.
Ele demitiu Erika McEntarfer, chefe da secretaria de Estatísticas Trabalhistas (BLS, na sigla em inglês), confirmada pelo Senado, por trazer-lhe notícias econômicas que não lhe agradaram. E, nas horas imediatamente seguintes, ocorreu a segunda coisa mais perigosa: os principais responsáveis do governo Trump pela condução da economia —pessoas que, em seus negócios privados, jamais cogitariam demitir um subordinado por apresentar dados financeiros desfavoráveis— simplesmente aceitaram a decisão.
O que eles deveriam ter dito a Trump era o seguinte: "Senhor presidente, se não reconsiderar esta decisão —se demitir a principal estatística do BLS por trazer más notícias econômicas— como alguém, no futuro, poderá confiar nesse escritório quando ele divulgar boas notícias?" Em vez disso, acobertaram o ato imediatamente.
Como destacou o Wall Street Journal, a secretária do Trabalho, Lori Chavez-DeRemer, havia declarado na Bloomberg TV, ainda na manhã daquele dia, sexta-feira, 1º de agosto, que apesar da revisão para baixo dos números de emprego em maio e junho, "temos visto crescimento positivo do emprego". Mas, poucas horas depois, ao saber da demissão da diretora do BLS, que se reportava diretamente a ela, escreveu no X: "Concordo plenamente com @POTUS [o perfil do presidente americano no X] que nossos números de emprego devem ser justos, precisos e nunca manipulados para fins políticos."
O jornal perguntou: "Então os dados de emprego que eram ‘positivos’ de manhã foram fraudados à tarde?" Claro que não. Mas daqui em diante, quantos funcionários públicos terão coragem de transmitir más notícias sabendo que seus superiores —como o secretário do Tesouro, Scott Bessent, o diretor do Conselho Econômico Nacional, Kevin Hassett, a secretária do Trabalho Chavez-DeRemer e o representante comercial dos EUA, Jamieson Greer— não apenas deixarão de defendê-los, como também os oferecerão como sacrifício a Trump para manterem seus cargos?
Vergonha para cada um deles —especialmente para Bessent, ex-gestor de fundos de hedge, que tinha conhecimento e não interveio. Que covarde. Como disse sua antecessora, Janet Yellen —ex-secretária do Tesouro e também ex-presidente do Fed, o banco central americano, alguém com verdadeira integridade— a meu colega Ben Casselman sobre a demissão no BLS: "Esse é o tipo de coisa que só se esperaria ver em uma república de bananas."
É importante notar como o exterior enxerga essa situação. Bill Blain, operador de títulos em Londres que publica um popular boletim entre especialistas do mercado chamado Blain’s Morning Porridge, escreveu na segunda-feira seguinte: "A sexta-feira, 1º de agosto, pode entrar para a história como o dia em que o mercado de títulos do Tesouro dos EUA morreu. Havia uma arte em interpretar os dados americanos. Ela se baseava na confiança. Agora, isso se quebrou —se não se pode confiar nos dados, no que se pode confiar?"
Em maio, a diretora de Inteligência Nacional, Tulsi Gabbard, demitiu dois altos funcionários de Inteligência que supervisionaram uma avaliação contradizendo as afirmações de Trump de que a gangue Tren de Aragua operava sob direção do regime venezuelano. Essa avaliação enfraqueceu a frágil justificativa legal invocada por Trump —a raramente usada Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798— para permitir a expulsão de supostos membros da gangue sem devido processo legal.
E agora essa tendência de autocegueira se espalha para outros setores do governo.
Uma das principais especialistas em guerra cibernética dos EUA, Jen Easterly, que foi diretora da Agência de Segurança Cibernética e de Infraestrutura durante o governo de Joe Biden, teve sua nomeação para um cargo de docência na Academia Militar de West Point revogada no fim de julho pelo secretário do Exército, Daniel Driscoll, depois que Laura Loomer, uma conspiracionista de extrema direita, conhecida por comentários racistas e homofóbicos, publicou que Easterly seria uma "agente" da era Biden.
Leia essa frase novamente, devagar. O secretário do Exército, agindo sob a orientação de uma seguidora delirante de Trump, revogou a nomeação de ensino de —qualquer um confirmaria— uma das mais qualificadas especialistas apartidárias em cibersegurança dos EUA, ela mesma formada em West Point.
Eis a resposta de Easterly no LinkedIn: "Como independente ao longo da vida, servi nossa nação em tempos de paz e em combate sob administrações republicanas e democratas. Liderei missões no país e no exterior para proteger todos os americanos contra terroristas brutais. Trabalhei minha carreira inteira não como partidária, mas como patriota —não em busca de poder, mas a serviço do país que amo e em lealdade à Constituição que jurei proteger e defender contra todos os inimigos."
E ela acrescentou um conselho aos jovens cadetes de West Point que não terá a honra de ensinar: "Todo membro da Longa Linha Cinzenta [referência a West Point] conhece a Oração do Cadete. Ela pede que escolhamos ‘o caminho mais difícil, mas correto, em vez do caminho mais fácil, mas errado’. Essa linha —tão simples, mas tão poderosa— tem sido minha estrela-guia por mais de três décadas. Em salas de reunião e em salas de guerra. Em momentos silenciosos de dúvida e em atos públicos de liderança. O caminho mais difícil e correto nunca é fácil. Esse é justamente o ponto."
Essa é a mulher que Trump não quis que ensinasse a próxima geração de combatentes.
E essa ética —sempre escolher o caminho mais difícil, porém correto, em vez do mais fácil e errado— é uma ética que Bessent, Hassett, Chavez-DeRemer e Greer desconhecem —sem falar do próprio Trump.
Por isso, caro leitor, embora eu seja um otimista nato, pela primeira vez acredito que, se o comportamento que esta administração exibiu em apenas seus primeiros seis meses continuar e for ampliado ao longo de quatro anos, a América que você conhece terá desaparecido. E não sei como a recuperaremos.
Ele demitiu Erika McEntarfer, chefe da secretaria de Estatísticas Trabalhistas (BLS, na sigla em inglês), confirmada pelo Senado, por trazer-lhe notícias econômicas que não lhe agradaram. E, nas horas imediatamente seguintes, ocorreu a segunda coisa mais perigosa: os principais responsáveis do governo Trump pela condução da economia —pessoas que, em seus negócios privados, jamais cogitariam demitir um subordinado por apresentar dados financeiros desfavoráveis— simplesmente aceitaram a decisão.
O que eles deveriam ter dito a Trump era o seguinte: "Senhor presidente, se não reconsiderar esta decisão —se demitir a principal estatística do BLS por trazer más notícias econômicas— como alguém, no futuro, poderá confiar nesse escritório quando ele divulgar boas notícias?" Em vez disso, acobertaram o ato imediatamente.
Como destacou o Wall Street Journal, a secretária do Trabalho, Lori Chavez-DeRemer, havia declarado na Bloomberg TV, ainda na manhã daquele dia, sexta-feira, 1º de agosto, que apesar da revisão para baixo dos números de emprego em maio e junho, "temos visto crescimento positivo do emprego". Mas, poucas horas depois, ao saber da demissão da diretora do BLS, que se reportava diretamente a ela, escreveu no X: "Concordo plenamente com @POTUS [o perfil do presidente americano no X] que nossos números de emprego devem ser justos, precisos e nunca manipulados para fins políticos."
O jornal perguntou: "Então os dados de emprego que eram ‘positivos’ de manhã foram fraudados à tarde?" Claro que não. Mas daqui em diante, quantos funcionários públicos terão coragem de transmitir más notícias sabendo que seus superiores —como o secretário do Tesouro, Scott Bessent, o diretor do Conselho Econômico Nacional, Kevin Hassett, a secretária do Trabalho Chavez-DeRemer e o representante comercial dos EUA, Jamieson Greer— não apenas deixarão de defendê-los, como também os oferecerão como sacrifício a Trump para manterem seus cargos?
Vergonha para cada um deles —especialmente para Bessent, ex-gestor de fundos de hedge, que tinha conhecimento e não interveio. Que covarde. Como disse sua antecessora, Janet Yellen —ex-secretária do Tesouro e também ex-presidente do Fed, o banco central americano, alguém com verdadeira integridade— a meu colega Ben Casselman sobre a demissão no BLS: "Esse é o tipo de coisa que só se esperaria ver em uma república de bananas."
É importante notar como o exterior enxerga essa situação. Bill Blain, operador de títulos em Londres que publica um popular boletim entre especialistas do mercado chamado Blain’s Morning Porridge, escreveu na segunda-feira seguinte: "A sexta-feira, 1º de agosto, pode entrar para a história como o dia em que o mercado de títulos do Tesouro dos EUA morreu. Havia uma arte em interpretar os dados americanos. Ela se baseava na confiança. Agora, isso se quebrou —se não se pode confiar nos dados, no que se pode confiar?"
Em maio, a diretora de Inteligência Nacional, Tulsi Gabbard, demitiu dois altos funcionários de Inteligência que supervisionaram uma avaliação contradizendo as afirmações de Trump de que a gangue Tren de Aragua operava sob direção do regime venezuelano. Essa avaliação enfraqueceu a frágil justificativa legal invocada por Trump —a raramente usada Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798— para permitir a expulsão de supostos membros da gangue sem devido processo legal.
E agora essa tendência de autocegueira se espalha para outros setores do governo.
Uma das principais especialistas em guerra cibernética dos EUA, Jen Easterly, que foi diretora da Agência de Segurança Cibernética e de Infraestrutura durante o governo de Joe Biden, teve sua nomeação para um cargo de docência na Academia Militar de West Point revogada no fim de julho pelo secretário do Exército, Daniel Driscoll, depois que Laura Loomer, uma conspiracionista de extrema direita, conhecida por comentários racistas e homofóbicos, publicou que Easterly seria uma "agente" da era Biden.
Leia essa frase novamente, devagar. O secretário do Exército, agindo sob a orientação de uma seguidora delirante de Trump, revogou a nomeação de ensino de —qualquer um confirmaria— uma das mais qualificadas especialistas apartidárias em cibersegurança dos EUA, ela mesma formada em West Point.
Eis a resposta de Easterly no LinkedIn: "Como independente ao longo da vida, servi nossa nação em tempos de paz e em combate sob administrações republicanas e democratas. Liderei missões no país e no exterior para proteger todos os americanos contra terroristas brutais. Trabalhei minha carreira inteira não como partidária, mas como patriota —não em busca de poder, mas a serviço do país que amo e em lealdade à Constituição que jurei proteger e defender contra todos os inimigos."
E ela acrescentou um conselho aos jovens cadetes de West Point que não terá a honra de ensinar: "Todo membro da Longa Linha Cinzenta [referência a West Point] conhece a Oração do Cadete. Ela pede que escolhamos ‘o caminho mais difícil, mas correto, em vez do caminho mais fácil, mas errado’. Essa linha —tão simples, mas tão poderosa— tem sido minha estrela-guia por mais de três décadas. Em salas de reunião e em salas de guerra. Em momentos silenciosos de dúvida e em atos públicos de liderança. O caminho mais difícil e correto nunca é fácil. Esse é justamente o ponto."
Essa é a mulher que Trump não quis que ensinasse a próxima geração de combatentes.
E essa ética —sempre escolher o caminho mais difícil, porém correto, em vez do mais fácil e errado— é uma ética que Bessent, Hassett, Chavez-DeRemer e Greer desconhecem —sem falar do próprio Trump.
Por isso, caro leitor, embora eu seja um otimista nato, pela primeira vez acredito que, se o comportamento que esta administração exibiu em apenas seus primeiros seis meses continuar e for ampliado ao longo de quatro anos, a América que você conhece terá desaparecido. E não sei como a recuperaremos.
O aleitamento do caos
Da triste arruaça no Congresso, permanece nas retinas a imagem de uma deputada tumultuária com um bebê de quatro meses no colo, sequestrando a cadeira do presidente da Câmara. Essa persistência ótica é o que Roland Barthes, a propósito da fotografia, chama de "punctum", um ponto de convergência do olhar que centraliza o sentido da imagem (em "Câmara Clara"). A parlamentar admitiu, depois, que pretendia usar a criança como escudo durante a balbúrdia.
Não mais funcionam adjetivos como "chocante" para o grotesco do extremismo político nacional. Da baderna na Câmara, poderia ficar como ponto de mirada o esparadrapo na boca dos desordeiros. Seria, porém, mero clichê diante do risco assumido pela parlamentar na mesa diretora. Por maior cuidado que se possa dispensar a um recém-nascido, numa tropelia física, é alta a probabilidade de um impacto aleatório em ossos (a moleira, a sutura) fragilíssimos. Em princípio, mãe nenhuma aceitaria o risco.
A deputada aceitou. Não era caso de aleitar filho no trabalho, o Congresso estava em recesso. Queria usá-lo como escudo, ela própria afirmou, o que suscita interrogações sobre esse comportamento puerperal em grau de anomalia coextensiva a uma turba violenta. A motivação é complexa: ponto cego numa explicação sócio-histórica para esse tipo de bizarrice, segundo a qual não se trataria de déficit moral ou cognitivo dos agentes, mas da precária interlocução política no espaço público. É uma hipótese que aposta no poder agregativo da ideologia.
A lógica do diálogo público não dá conta, entretanto, da anômala surdez seletiva no predomínio mental da informação sobre a experiência prática. Confinados a suas golpistas bolhas informativas, os deputados amotinados eram surdos à liturgia parlamentar e à percepção de que perpetravam o que não se pode em uma República: a desmoralização do Congresso.
A realidade paralela nas redes bolsonaristas equivale à desintegração socioemocional nos agentes do caos. Uma infantilização adulta que faz lembrar a revolta sem causa da adolescência. Em vez de consciência de si, delírio performativo, com um fio condutor: o golpismo que, sem ousar dizer o seu nome, dá lugar de fala à doença. Mas não se trata de doença mental entendida em termos individuais como delírio e sofrimento passíveis de uma remissão psiquiátrica. Não há cura possível para uma afecção de natureza grupal alimentada por ódio e mentira. O único caminho para uma resposta cívica é a imprescindível punição institucional.
Em modo permanente, esse ativismo delirante suprime sentimentos. "Ghosting" é designação corrente, não apenas na internet, para o brusco desaparecimento de um contato. Mas, a fragmentação afetiva, provocada pelas redes e pelo socionarcisismo emergente, é simultânea ao ghosting do sentimento de nação, da convivência democrática e, pelo visto, da maternagem. Um ponto crítico de mirada para o aleitamento do caos.
Não mais funcionam adjetivos como "chocante" para o grotesco do extremismo político nacional. Da baderna na Câmara, poderia ficar como ponto de mirada o esparadrapo na boca dos desordeiros. Seria, porém, mero clichê diante do risco assumido pela parlamentar na mesa diretora. Por maior cuidado que se possa dispensar a um recém-nascido, numa tropelia física, é alta a probabilidade de um impacto aleatório em ossos (a moleira, a sutura) fragilíssimos. Em princípio, mãe nenhuma aceitaria o risco.
A deputada aceitou. Não era caso de aleitar filho no trabalho, o Congresso estava em recesso. Queria usá-lo como escudo, ela própria afirmou, o que suscita interrogações sobre esse comportamento puerperal em grau de anomalia coextensiva a uma turba violenta. A motivação é complexa: ponto cego numa explicação sócio-histórica para esse tipo de bizarrice, segundo a qual não se trataria de déficit moral ou cognitivo dos agentes, mas da precária interlocução política no espaço público. É uma hipótese que aposta no poder agregativo da ideologia.
A lógica do diálogo público não dá conta, entretanto, da anômala surdez seletiva no predomínio mental da informação sobre a experiência prática. Confinados a suas golpistas bolhas informativas, os deputados amotinados eram surdos à liturgia parlamentar e à percepção de que perpetravam o que não se pode em uma República: a desmoralização do Congresso.
A realidade paralela nas redes bolsonaristas equivale à desintegração socioemocional nos agentes do caos. Uma infantilização adulta que faz lembrar a revolta sem causa da adolescência. Em vez de consciência de si, delírio performativo, com um fio condutor: o golpismo que, sem ousar dizer o seu nome, dá lugar de fala à doença. Mas não se trata de doença mental entendida em termos individuais como delírio e sofrimento passíveis de uma remissão psiquiátrica. Não há cura possível para uma afecção de natureza grupal alimentada por ódio e mentira. O único caminho para uma resposta cívica é a imprescindível punição institucional.
Em modo permanente, esse ativismo delirante suprime sentimentos. "Ghosting" é designação corrente, não apenas na internet, para o brusco desaparecimento de um contato. Mas, a fragmentação afetiva, provocada pelas redes e pelo socionarcisismo emergente, é simultânea ao ghosting do sentimento de nação, da convivência democrática e, pelo visto, da maternagem. Um ponto crítico de mirada para o aleitamento do caos.
A crise no Congresso Nacional é também estética
Na semana passada, quando vi um vídeo que mostrava um deputado sentado como se fosse uma múmia, com os olhos, o ouvido e a boca tapados com fita adesiva em pleno Congresso Nacional, tive um ataque de riso que demorou a passar.
Como podem os deputados, que são autoridades eleitas pelo povo, agirem desse jeito? A cena seria engraçada mesmo se o indivíduo em questão fosse um "garoto birrento” do jardim de infância brincando de múmia. Como se diz por aí, a crise também é estética.
Eu ri, mas talvez tenha sido de nervoso. Afinal, o "motim", quando parlamentares aliados ao presidente Jair Bolsonaro ocuparam as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado foi, acima de tudo, revoltante e deprimente.
Os congressistas em questão protestavam contra a prisão domiciliar de Bolsonaro. Na prática, fizeram uma "chantagem", uma forma de "política" em "moda" esses dias por parte da extrema direita. É também o caso do (ainda) deputado Eduardo Bolsonaro que, morando nos Estados Unidos, vive ameaçando o Estado brasileiro.
No caso dos parlamentares, eles impediram o trabalho legislativos para promover uma lista de pedidos, incluindo uma "anistia”.
Durante as 30 horas do motim e ocupação das mesas, muita coisa ridícula aconteceu. Um grupo de parlamentares tapou a boca com adesivos e se acorrentou. O deputado Paulo Bilynskyj (PL) agrediu o jornalista Guga Noblat, do ICL Notícias. Houve xingamentos ao microfone, empurra-empurra, muitas selfies, gritos que mais pareciam de torcidas de futebol, orações e por aí vai. Uma vergonha. Uma cena perfeita do "sanatório geral”, como Chico Buarque definiu o Brasil na música Vai Passar, dos anos 80.
Olhando o Congresso Nacional, é difícil não sentir vergonha (alheia? do país? da gente mesmo?).
Existem deputados e deputadas sérias lá, não tenho dúvidas. Mas o comportamento desse grande grupo sem decoro e elegância faz o Brasil cair de novo no clichê de que "esse não é um país sério", mas sim uma "república das bananas" (por mais que esse termo seja problemático e preconceituoso).
É chato, mas esse vexame (mais um!) acontece em um momento em que muitos (e me incluo) sentem orgulho do país ao ver, por exemplo, o trabalho do Supremo, que vem investigando, punindo e julgando os responsáveis pelos atentados à democracia que culminaram no 8 de janeiro de 2023, quando uma horda de fanáticos invadiu os prédios da Esplanada em Brasília.
Por anos, ouvimos a frase "no Brasil tudo acaba em pizza", que se refere à impunidade, principalmente de ricos e poderosos. Agora, quando sentimos esperança de que as coisas podem não ser sempre assim, os parlamentares aprontam essa e jogam nosso orgulho no lixo.
Essa não é a primeira vez que o Congresso mostra que é uma arena que concentra boa parte do que há de pior no Brasil. Não há decoro, bom senso, nada. Há anos vemos gritaria e brigas físicas, comportamentos que seriam inaceitáveis em qualquer ambiente de trabalho.
Em abril, por exemplo, uma discussão entre os deputados Paulo Bilynskyj e Lindbergh Farias (PT) quase virou uma briga física. Outros deputados se envolveram, chegou a turma do "deixa disso" e até a Polícia Legislativa foi chamada. Imagina se você briga com um colega, todo mundo do escritório se mete, e vocês só param quando a polícia chega? Vocês seriam demitidos, certo? Nem é possível imaginar isso em um ambiente de trabalho normal.
A noite do impeachment
Um momento marcante, no qual o "horror" do Plenário da Câmara se revelou para muitos de nós, foi a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Naquela noite de 2016, vimos deputados fantasiados, muitos dedicando votos a netos e netas, a torturadores (o então deputado Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Brilhante Ustra e levou uma cusparada de Jean Wyllys) e por aí vai.
Assistir àquilo foi como ver um filme de terror. O "motim” mostra que esse horror continua e só piorou com a ascensão da extrema direita no Brasil.
E pensar que, quando eu era adolescente, assisti empolgada à abertura da Constituinte (que aconteceu em 1988), comandada por Ulysses Guimarães, e acreditei que aquele, no futuro, seria um ambiente sério... Quanta ingenuidade.
Como podem os deputados, que são autoridades eleitas pelo povo, agirem desse jeito? A cena seria engraçada mesmo se o indivíduo em questão fosse um "garoto birrento” do jardim de infância brincando de múmia. Como se diz por aí, a crise também é estética.
Eu ri, mas talvez tenha sido de nervoso. Afinal, o "motim", quando parlamentares aliados ao presidente Jair Bolsonaro ocuparam as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado foi, acima de tudo, revoltante e deprimente.
Os congressistas em questão protestavam contra a prisão domiciliar de Bolsonaro. Na prática, fizeram uma "chantagem", uma forma de "política" em "moda" esses dias por parte da extrema direita. É também o caso do (ainda) deputado Eduardo Bolsonaro que, morando nos Estados Unidos, vive ameaçando o Estado brasileiro.
No caso dos parlamentares, eles impediram o trabalho legislativos para promover uma lista de pedidos, incluindo uma "anistia”.
Durante as 30 horas do motim e ocupação das mesas, muita coisa ridícula aconteceu. Um grupo de parlamentares tapou a boca com adesivos e se acorrentou. O deputado Paulo Bilynskyj (PL) agrediu o jornalista Guga Noblat, do ICL Notícias. Houve xingamentos ao microfone, empurra-empurra, muitas selfies, gritos que mais pareciam de torcidas de futebol, orações e por aí vai. Uma vergonha. Uma cena perfeita do "sanatório geral”, como Chico Buarque definiu o Brasil na música Vai Passar, dos anos 80.
Olhando o Congresso Nacional, é difícil não sentir vergonha (alheia? do país? da gente mesmo?).
Existem deputados e deputadas sérias lá, não tenho dúvidas. Mas o comportamento desse grande grupo sem decoro e elegância faz o Brasil cair de novo no clichê de que "esse não é um país sério", mas sim uma "república das bananas" (por mais que esse termo seja problemático e preconceituoso).
É chato, mas esse vexame (mais um!) acontece em um momento em que muitos (e me incluo) sentem orgulho do país ao ver, por exemplo, o trabalho do Supremo, que vem investigando, punindo e julgando os responsáveis pelos atentados à democracia que culminaram no 8 de janeiro de 2023, quando uma horda de fanáticos invadiu os prédios da Esplanada em Brasília.
Por anos, ouvimos a frase "no Brasil tudo acaba em pizza", que se refere à impunidade, principalmente de ricos e poderosos. Agora, quando sentimos esperança de que as coisas podem não ser sempre assim, os parlamentares aprontam essa e jogam nosso orgulho no lixo.
Essa não é a primeira vez que o Congresso mostra que é uma arena que concentra boa parte do que há de pior no Brasil. Não há decoro, bom senso, nada. Há anos vemos gritaria e brigas físicas, comportamentos que seriam inaceitáveis em qualquer ambiente de trabalho.
Em abril, por exemplo, uma discussão entre os deputados Paulo Bilynskyj e Lindbergh Farias (PT) quase virou uma briga física. Outros deputados se envolveram, chegou a turma do "deixa disso" e até a Polícia Legislativa foi chamada. Imagina se você briga com um colega, todo mundo do escritório se mete, e vocês só param quando a polícia chega? Vocês seriam demitidos, certo? Nem é possível imaginar isso em um ambiente de trabalho normal.
A noite do impeachment
Um momento marcante, no qual o "horror" do Plenário da Câmara se revelou para muitos de nós, foi a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Naquela noite de 2016, vimos deputados fantasiados, muitos dedicando votos a netos e netas, a torturadores (o então deputado Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Brilhante Ustra e levou uma cusparada de Jean Wyllys) e por aí vai.
Assistir àquilo foi como ver um filme de terror. O "motim” mostra que esse horror continua e só piorou com a ascensão da extrema direita no Brasil.
E pensar que, quando eu era adolescente, assisti empolgada à abertura da Constituinte (que aconteceu em 1988), comandada por Ulysses Guimarães, e acreditei que aquele, no futuro, seria um ambiente sério... Quanta ingenuidade.
Fome: um crime de guerra não processado internacionalmente
Os apelos para processar o crime de guerra da fome estão se tornando mais intensos e frequentes.
"[A fome] é uma arma de guerra que está sendo usada em todo o mundo neste momento. Mas isso tem que acabar; é contra o direito internacional humanitário", disse recentemente Shayna Lewis, consultora sênior para o Sudão do grupo americano PAEMA (Prevenção e Fim das Atrocidades em Massa). Ela se referia à cidade sudanesa de El Fasher, sitiada há um ano e onde os suprimentos de comida para cerca de 30 mil pessoas presas ali estão se esgotando. "É um crime internacional e deve ser processado como tal", argumentou Lewis.
Organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch , fizeram alegações semelhantes sobre o bloqueio israelense de ajuda e fornecimento de alimentos à Faixa de Gaza .
"Israel está matando Gaza de fome. É genocídio. É um crime contra a humanidade. É um crime de guerra", disse Michael Fakhri, relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, ao jornal britânico The Guardian na semana passada.
Especialistas apontam que um dos motivos pelos quais há mais pedidos hoje para processar a fome civil como um crime de guerra é que há mais fome causada por conflitos.
Durante a primeira década deste século, houve muito pouca fome, escreveram pesquisadores da World Peace Foundation (WPF) em uma coletânea de ensaios de 2022 intitulada " Responsabilização pela Fome ". Mas, nos últimos tempos, isso mudou.
"Este é um fenômeno antigo; as partes em conflito o utilizam há séculos", disse Rebecca Bakos Blumenthal, consultora jurídica do projeto Starvation Accountability, da fundação jurídica holandesa Global Rights Compliance (GRC). Ela acrescentou que a tática ressurgiu desde 2015.
Na última década, fomes relacionadas a conflitos ocorreram na Nigéria , Somália , Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen. Especialistas em segurança alimentar sugerem que os ataques russos ao setor agrícola da Ucrânia também podem ser considerados tentativas criminosas de usar alimentos como arma.
Em essência, eles argumentam que esse crime de guerra está acontecendo novamente com maior frequência.
"Mesmo com a melhora da segurança alimentar global, a incidência da fome está aumentando", escreveu Alex de Waal, professor da Universidade Tufts (EUA) e chefe da pesquisa do WPF sobre fome em massa, na semana passada. "Isso nos diz que a segurança alimentar global é mais volátil e desigual. E isso é consistente com o uso da fome como arma."
A privação deliberada de alimentos ou outros itens essenciais para a sobrevivência de civis é classificada como crime de guerra por muitos países, bem como em várias formas de direito internacional, incluindo as Convenções de Genebra e o Estatuto de Roma (aplicado pelo Tribunal Penal Internacional).
Mas até agora, aqueles que usaram essa "arma" nunca foram levados a julgamento: o crime de guerra de fome nunca foi processado em um tribunal internacional como um crime independente, apenas como parte de cerca de 20 outros casos de crimes de guerra.
E o fato de civis estarem morrendo de fome em um conflito não significa automaticamente que um crime foi cometido. "Uma das questões legais é a questão da intenção", disse De Waal. "O crime de guerra de fome exige que o perpetrador aja com intenção."
A fome ocorre a longo prazo, ressalta De Waal, e alguns estudiosos do direito argumentam que deve ser provado que o perpetrador teve a intenção de matar de fome desde o início, por exemplo, em um cerco ou bloqueio.
Mas a maioria dos especialistas jurídicos acredita que também pode haver "intenção indireta", explica De Waal. Ou seja, deve ser evidente que a fome ocorrerá "no curso normal dos eventos" e que o perpetrador sabia disso, teve oportunidades de evitá-la e não o fez. Outro obstáculo legal relacionado à fome é a falta de precedentes e a questão de quais tribunais internacionais ou nacionais têm jurisdição sobre supostos criminosos de guerra.
Até alguns anos, a fome era frequentemente vista como uma questão de desenvolvimento ou humanitária, explica Blumenthal, do GRC. Mas agora mais atenção está sendo dada aos seus aspectos criminais.
"Tenho trabalhado nessa questão há alguns anos, e as coisas estão caminhando lentamente", admite Blumenthal, que estuda o assunto desde 2020. "Mas acho que a situação está mudando, e passos importantes foram dados nos últimos 10 anos."
Em 2018, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade a Resolução 2417, "condenando o uso da fome contra civis como método de guerra". Em 2019, o Estatuto de Roma foi alterado, classificando a fome como crime de guerra em conflitos armados não internacionais, não apenas internacionais. Também houve comissões de inquérito da ONU sobre os conflitos no Sudão do Sul e na Etiópia-Tigre, com foco específico na fome como crime de guerra, observa Blumenthal.
"Estamos vendo muito mais organizações internacionais e locais, juntamente com mecanismos de responsabilização, denunciando isso. E exemplos chocantes, como o caso em Gaza hoje, ampliaram muito a conscientização sobre esse crime", observa ele.
De fato, os mandados de prisão emitidos pelo TPI em novembro de 2024 contra o presidente israelense Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, que mencionam especificamente o crime de guerra de fome, são um "marco histórico", enfatiza Blumenthal. É a primeira vez que mandados internacionais são emitidos para a fome como um crime independente. O TPI também mantém uma investigação aberta sobre o Sudão, acrescenta.
"A questão certamente recebeu mais atenção nos últimos 10 anos", confirma De Waal. "Os marcos legais já estão em vigor. O que falta é vontade política para agir."
Ainda há desafios jurisdicionais, disse De Waal. "Mas estou confiante de que há muitos casos em que as condenações são possíveis. Tudo o que é necessário é levar os réus ao tribunal."
Blumenthal concorda. "Existem ideias equivocadas sobre isso, e muitas pessoas acreditam que [a fome] é uma parte inevitável da guerra", comenta. "Mas, em nossas investigações aprofundadas, é surpreendente a rapidez com que fica claro que, em muitas situações, uma estratégia deliberada pode ser identificada." Blumenthal está cautelosamente otimista de que aqueles que deliberadamente matam civis de fome em breve enfrentarão a justiça. "Essa é certamente a esperança", conclui. "É para isso que todos estamos trabalhando."
Cathrin Schaer
"[A fome] é uma arma de guerra que está sendo usada em todo o mundo neste momento. Mas isso tem que acabar; é contra o direito internacional humanitário", disse recentemente Shayna Lewis, consultora sênior para o Sudão do grupo americano PAEMA (Prevenção e Fim das Atrocidades em Massa). Ela se referia à cidade sudanesa de El Fasher, sitiada há um ano e onde os suprimentos de comida para cerca de 30 mil pessoas presas ali estão se esgotando. "É um crime internacional e deve ser processado como tal", argumentou Lewis.
Organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch , fizeram alegações semelhantes sobre o bloqueio israelense de ajuda e fornecimento de alimentos à Faixa de Gaza .
"Israel está matando Gaza de fome. É genocídio. É um crime contra a humanidade. É um crime de guerra", disse Michael Fakhri, relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, ao jornal britânico The Guardian na semana passada.
Especialistas apontam que um dos motivos pelos quais há mais pedidos hoje para processar a fome civil como um crime de guerra é que há mais fome causada por conflitos.
Durante a primeira década deste século, houve muito pouca fome, escreveram pesquisadores da World Peace Foundation (WPF) em uma coletânea de ensaios de 2022 intitulada " Responsabilização pela Fome ". Mas, nos últimos tempos, isso mudou.
"Este é um fenômeno antigo; as partes em conflito o utilizam há séculos", disse Rebecca Bakos Blumenthal, consultora jurídica do projeto Starvation Accountability, da fundação jurídica holandesa Global Rights Compliance (GRC). Ela acrescentou que a tática ressurgiu desde 2015.
Na última década, fomes relacionadas a conflitos ocorreram na Nigéria , Somália , Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iêmen. Especialistas em segurança alimentar sugerem que os ataques russos ao setor agrícola da Ucrânia também podem ser considerados tentativas criminosas de usar alimentos como arma.
Em essência, eles argumentam que esse crime de guerra está acontecendo novamente com maior frequência.
"Mesmo com a melhora da segurança alimentar global, a incidência da fome está aumentando", escreveu Alex de Waal, professor da Universidade Tufts (EUA) e chefe da pesquisa do WPF sobre fome em massa, na semana passada. "Isso nos diz que a segurança alimentar global é mais volátil e desigual. E isso é consistente com o uso da fome como arma."
A privação deliberada de alimentos ou outros itens essenciais para a sobrevivência de civis é classificada como crime de guerra por muitos países, bem como em várias formas de direito internacional, incluindo as Convenções de Genebra e o Estatuto de Roma (aplicado pelo Tribunal Penal Internacional).
Mas até agora, aqueles que usaram essa "arma" nunca foram levados a julgamento: o crime de guerra de fome nunca foi processado em um tribunal internacional como um crime independente, apenas como parte de cerca de 20 outros casos de crimes de guerra.
E o fato de civis estarem morrendo de fome em um conflito não significa automaticamente que um crime foi cometido. "Uma das questões legais é a questão da intenção", disse De Waal. "O crime de guerra de fome exige que o perpetrador aja com intenção."
A fome ocorre a longo prazo, ressalta De Waal, e alguns estudiosos do direito argumentam que deve ser provado que o perpetrador teve a intenção de matar de fome desde o início, por exemplo, em um cerco ou bloqueio.
Mas a maioria dos especialistas jurídicos acredita que também pode haver "intenção indireta", explica De Waal. Ou seja, deve ser evidente que a fome ocorrerá "no curso normal dos eventos" e que o perpetrador sabia disso, teve oportunidades de evitá-la e não o fez. Outro obstáculo legal relacionado à fome é a falta de precedentes e a questão de quais tribunais internacionais ou nacionais têm jurisdição sobre supostos criminosos de guerra.
Até alguns anos, a fome era frequentemente vista como uma questão de desenvolvimento ou humanitária, explica Blumenthal, do GRC. Mas agora mais atenção está sendo dada aos seus aspectos criminais.
"Tenho trabalhado nessa questão há alguns anos, e as coisas estão caminhando lentamente", admite Blumenthal, que estuda o assunto desde 2020. "Mas acho que a situação está mudando, e passos importantes foram dados nos últimos 10 anos."
Em 2018, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade a Resolução 2417, "condenando o uso da fome contra civis como método de guerra". Em 2019, o Estatuto de Roma foi alterado, classificando a fome como crime de guerra em conflitos armados não internacionais, não apenas internacionais. Também houve comissões de inquérito da ONU sobre os conflitos no Sudão do Sul e na Etiópia-Tigre, com foco específico na fome como crime de guerra, observa Blumenthal.
"Estamos vendo muito mais organizações internacionais e locais, juntamente com mecanismos de responsabilização, denunciando isso. E exemplos chocantes, como o caso em Gaza hoje, ampliaram muito a conscientização sobre esse crime", observa ele.
De fato, os mandados de prisão emitidos pelo TPI em novembro de 2024 contra o presidente israelense Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, que mencionam especificamente o crime de guerra de fome, são um "marco histórico", enfatiza Blumenthal. É a primeira vez que mandados internacionais são emitidos para a fome como um crime independente. O TPI também mantém uma investigação aberta sobre o Sudão, acrescenta.
"A questão certamente recebeu mais atenção nos últimos 10 anos", confirma De Waal. "Os marcos legais já estão em vigor. O que falta é vontade política para agir."
Ainda há desafios jurisdicionais, disse De Waal. "Mas estou confiante de que há muitos casos em que as condenações são possíveis. Tudo o que é necessário é levar os réus ao tribunal."
Blumenthal concorda. "Existem ideias equivocadas sobre isso, e muitas pessoas acreditam que [a fome] é uma parte inevitável da guerra", comenta. "Mas, em nossas investigações aprofundadas, é surpreendente a rapidez com que fica claro que, em muitas situações, uma estratégia deliberada pode ser identificada." Blumenthal está cautelosamente otimista de que aqueles que deliberadamente matam civis de fome em breve enfrentarão a justiça. "Essa é certamente a esperança", conclui. "É para isso que todos estamos trabalhando."
Cathrin Schaer
A infância roubada
No Brasil, a infância tem sido abreviada por duas forças opostas, mas complementares: a pobreza estrutural e a cultura do consumo midiático. De um lado, milhões de crianças são obrigadas a assumir responsabilidades adultas cedo demais, cuidando de irmãos, ajudando no sustento da casa ou, simplesmente, sendo empurradas para o trabalho infantil. De outro, crianças das classes médias e altas são induzidas a vestir-se, comportar-se e consumir como se fossem adultas em miniatura, pressionadas por agendas lotadas, padrões de beleza e a lógica da performance.
Nos últimos dias, o tema da adultização infantil, termo utilizado para se referir a crianças expostas a comportamentos, linguagens e contextos não correspondentes à idade, ganhou grande repercussão, depois que o youtuber e humorista Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, lançou um vídeo sobre o assunto na internet. A peça também denuncia possíveis casos de pedofilia nas redes sociais. Mostra perfis que usam crianças e adolescentes com pouca roupa, dançando músicas sensuais ou falando de sexo em programas divulgados nas plataformas digitais com objetivo de monetizar esse conteúdo, gerando dinheiro para os donos dos canais.
As instituições políticas (Senado, Câmara Federal, Assembleias Legislativas e Câmara Municipais) e entidades da sociedade civil abriram espaço para o debate. O presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, prometeu de dar prioridade à votação de projeto de lei regulamentando a matéria. Uma comissão geral, liderada por Hugo, contando com a participação de especialistas e de organizações da sociedade civil, deu início ao debate.
A sociedade, por meio de suas entidades representativas, entra no foro de debates. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) solicitou à Câmara dos Deputados, urgência na aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 2.628/2022, que estabelece regras e mecanismos para prevenir, identificar e coibir o abuso e a exploração sexual infanto-juvenil em plataformas digitais. O texto já passou pelo Senado.
O fato é que a adultização infantil não é uma abstração. Segundo o IBGE, mais de 1 milhão de meninos e meninas ainda trabalham no país, apesar de a prática ser proibida por lei. Quem anda pelas ruas das capitais ou pelas feiras do interior não precisa de estatísticas para constatar: crianças vendem balas nos semáforos, carregam sacolas em mercados, catam recicláveis. A infância lhes é negada em nome da sobrevivência.
Mas não é só a miséria que rouba o tempo de ser criança. A cultura midiática brasileira, marcada pela exposição precoce de meninos e meninas em programas de TV, reality shows e redes sociais, incentiva a sexualização e a pressa em “crescer”. Pequenas já desfilam de salto alto, fazem coreografias de músicas adultas e reproduzem padrões de consumo de influenciadores digitais. Nesse cenário, o brincar — elemento essencial do desenvolvimento infantil — perde espaço para a exibição e a competitividade.
A contradição é cruel. Enquanto uns carregam sacos de cimento, outros carregam a pressão da fama e da estética. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: a negação da infância. Crianças deixam de experimentar a leveza do jogo, da imaginação, da descoberta sem pressa, e assumem papéis que não lhes cabem.
O problema é cultural, social e político. Não basta responsabilizar apenas famílias ou escolas. É preciso uma ação coordenada: fiscalização rigorosa contra o trabalho infantil, regulação mais firme da publicidade dirigida às crianças, educação crítica para o uso da mídia e, sobretudo, valorização da infância como um bem coletivo.
Quais são as consequências? Entre elas, o trabalho infantil persistente que, apesar de proibido ainda envolve mais de 1 milhão de crianças e adolescentes segundo o IBGE; a sexualização precoce (pesquisas mostram aumento da iniciação sexual em idades cada vez mais baixas, muitas vezes associada à falta de orientação adequada); a perda do brincar, bastando ver que crianças de classes médias e altas, embora não trabalhem, vivem sob agendas lotadas (escola, idiomas, esportes, cursos), o que as aproxima mais de adultos do que da ludicidade infantil.
A sociedade brasileira precisa se perguntar: que adultos formamos quando roubamos das crianças o direito de ser crianças? Um país que não protege sua infância planta adultos ansiosos, inseguros e despreparados para a vida em comunidade. Recuperar o tempo da infância é, antes de tudo, um investimento no futuro.
A adultização infantil no Brasil tem um pé na pobreza estrutural e outro no consumismo midiático. Enquanto milhões de crianças trabalham cedo para sobreviver, outras são empurradas ao universo adulto por estímulos de mercado, moda e mídia. Em ambos os casos, a infância — que deveria ser tempo de descoberta e formação — acaba reduzida.
Nos últimos dias, o tema da adultização infantil, termo utilizado para se referir a crianças expostas a comportamentos, linguagens e contextos não correspondentes à idade, ganhou grande repercussão, depois que o youtuber e humorista Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, lançou um vídeo sobre o assunto na internet. A peça também denuncia possíveis casos de pedofilia nas redes sociais. Mostra perfis que usam crianças e adolescentes com pouca roupa, dançando músicas sensuais ou falando de sexo em programas divulgados nas plataformas digitais com objetivo de monetizar esse conteúdo, gerando dinheiro para os donos dos canais.
As instituições políticas (Senado, Câmara Federal, Assembleias Legislativas e Câmara Municipais) e entidades da sociedade civil abriram espaço para o debate. O presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, prometeu de dar prioridade à votação de projeto de lei regulamentando a matéria. Uma comissão geral, liderada por Hugo, contando com a participação de especialistas e de organizações da sociedade civil, deu início ao debate.
A sociedade, por meio de suas entidades representativas, entra no foro de debates. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) solicitou à Câmara dos Deputados, urgência na aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 2.628/2022, que estabelece regras e mecanismos para prevenir, identificar e coibir o abuso e a exploração sexual infanto-juvenil em plataformas digitais. O texto já passou pelo Senado.
O fato é que a adultização infantil não é uma abstração. Segundo o IBGE, mais de 1 milhão de meninos e meninas ainda trabalham no país, apesar de a prática ser proibida por lei. Quem anda pelas ruas das capitais ou pelas feiras do interior não precisa de estatísticas para constatar: crianças vendem balas nos semáforos, carregam sacolas em mercados, catam recicláveis. A infância lhes é negada em nome da sobrevivência.
Mas não é só a miséria que rouba o tempo de ser criança. A cultura midiática brasileira, marcada pela exposição precoce de meninos e meninas em programas de TV, reality shows e redes sociais, incentiva a sexualização e a pressa em “crescer”. Pequenas já desfilam de salto alto, fazem coreografias de músicas adultas e reproduzem padrões de consumo de influenciadores digitais. Nesse cenário, o brincar — elemento essencial do desenvolvimento infantil — perde espaço para a exibição e a competitividade.
A contradição é cruel. Enquanto uns carregam sacos de cimento, outros carregam a pressão da fama e da estética. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: a negação da infância. Crianças deixam de experimentar a leveza do jogo, da imaginação, da descoberta sem pressa, e assumem papéis que não lhes cabem.
O problema é cultural, social e político. Não basta responsabilizar apenas famílias ou escolas. É preciso uma ação coordenada: fiscalização rigorosa contra o trabalho infantil, regulação mais firme da publicidade dirigida às crianças, educação crítica para o uso da mídia e, sobretudo, valorização da infância como um bem coletivo.
Quais são as consequências? Entre elas, o trabalho infantil persistente que, apesar de proibido ainda envolve mais de 1 milhão de crianças e adolescentes segundo o IBGE; a sexualização precoce (pesquisas mostram aumento da iniciação sexual em idades cada vez mais baixas, muitas vezes associada à falta de orientação adequada); a perda do brincar, bastando ver que crianças de classes médias e altas, embora não trabalhem, vivem sob agendas lotadas (escola, idiomas, esportes, cursos), o que as aproxima mais de adultos do que da ludicidade infantil.
A sociedade brasileira precisa se perguntar: que adultos formamos quando roubamos das crianças o direito de ser crianças? Um país que não protege sua infância planta adultos ansiosos, inseguros e despreparados para a vida em comunidade. Recuperar o tempo da infância é, antes de tudo, um investimento no futuro.
A adultização infantil no Brasil tem um pé na pobreza estrutural e outro no consumismo midiático. Enquanto milhões de crianças trabalham cedo para sobreviver, outras são empurradas ao universo adulto por estímulos de mercado, moda e mídia. Em ambos os casos, a infância — que deveria ser tempo de descoberta e formação — acaba reduzida.
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