domingo, 21 de julho de 2019

Entre o grotesco e o perigoso

Pense no que o presidente Jair Bolsonaro fez e falou de grotesco em 200 dias. Você só conseguirá se lembrar de tudo se recorrer a uma pesquisa. São tantas esquisitices diárias que a gente se esquece porque precisa cuidar da vida. O presidente investiu contra radar, cadeira de criança, taxa cobrada em Noronha. Defendeu o trabalho infantil, disse que, sim, beneficiará filho seu, postou notícia falsa, deu visibilidade a uma cena escatológica no carnaval e tratou com escárnio valores fundamentais. Qualquer lista que for feita aqui ficará incompleta. O problema é que junto com atos e palavras sem noção há perigo real contra pessoas e instituições.


Governar um país não é comandar um programa humorístico. As palavras bizarro e tosco têm sido usadas com frequência, mas talvez devamos pensar mais na palavra perigo. Enquanto renova o estoque da “última de Bolsonaro”, a Presidência contrata o desastre em inúmeras áreas.

Os ataques ao meio ambiente são diários, a educação perdeu um semestre, o Brasil se aproximou na ONU de países párias nos direitos da mulher, o governo naturalizou a intolerância, suspendeu a fabricação de remédios essenciais, escalou a liberação de agrotóxicos, estimulou o preconceito, encurralou a cultura e esteve nas ruas com quem pediu fechamento do Congresso e do Supremo.

Enquanto tudo isso acontecia, a economia continuou em crise, a queda da atividade se aprofundou, o desemprego permaneceu alto, a confiança caiu. Há relação entre uma coisa e outra. Até agora o que se tem é um governo sem rumo em todas as áreas, inclusive na economia. Alguns integrantes da equipe econômica se dedicam ao extremo a determinadas ações, mas o governo tem apresentado miragens como se fossem projetos em andamento. A lista de não eventos está cheia. De concreto, houve dois avanços em seis meses. A aprovação da reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara e o anúncio do acordo Mercosul-União Europeia. Na Previdência, o parlamento avançou a despeito da balbúrdia do governo. No acordo comercial há ainda uma longa estrada até virar realidade. Não se pode contar ainda como conquista consolidada. A falta de fatos concretos na administração Bolsonaro mantém nos agentes econômicos a desconfiança em relação à retomada do crescimento. Os investidores da economia real precisam de sinais mais sólidos.

Há perigos agudos. O ministro Ricardo Salles visitou madeireiros, foi aplaudido por eles e os elogiou no mesmo local onde duas semanas antes madeireiros haviam queimado um caminhão tanque do Ibama. Foi em Espigão D'Oeste, Rondônia. O combustível abasteceria três helicópteros que seriam usados para fiscalizar a retirada ilegal de madeira na Terra Indígena Zoró. Não houve a operação. Criminosos queimaram patrimônio público, retiraram madeira de terra protegida, ameaçaram um órgão do governo, abortaram uma ação de fiscalização. A extração ilegal de madeira é a principal suspeita. O ministro do Meio Ambiente deveria ter sido mais cauteloso ao ir ao local se solidarizar com os madeireiros.

A lista dos perigos é tão extensa quanto a das tosquices. É importante ficar atento. O governo Bolsonaro tem um padrão. Ele vai encurralando e desmoralizando os órgãos públicos. O que há de comum entre defensoria pública, Ibama, ICMbio, Itamaraty, Inpe, IBGE, Inep, Fiocruz, tantos outros, é que o governo tem tentado impedir que eles façam o seu trabalho. De forma sutil ou ostensiva funcionários são neutralizados. Os contribuintes pagam os salários dos servidores para que eles exerçam funções específicas, e o governo tenta paralisar as atividades. É desperdício de um recurso público valioso e caro: o capital humano. Isso enfraquece o Estado nas funções que precisam ser fortalecidas.

Há áreas mais vulneráveis porque viraram os primeiros alvos, mas outros órgãos estão na mira. Para legitimar seus atos, o governo dirá que a reação de funcionários é corporativismo, quando é a saudável defesa da sua missão dentro do Estado. Depois de 200 dias não há mais como se enganar. O governo não é apenas incompetente. Ele está criando perigos reais para o país.

Fala sério, Brasil


Bolsonaro transformou a mentira em prática cotidiana

Todos os políticos mentem, mas alguns políticos mentem mais do que os outros. Com Donald Trump, a mentira virou método de governo. O presidente dos EUA espalha <em>span como quem troca de camisa. Desde o início do mandato, já divulgou mais de dez mil informações falsas ou distorcidas. A conta é do jornal “The Washington Post”, que criou um site só para registrar as cascatas do republicano. Bolsonaro é admirador declarado de Trump. Na campanha, seguiu sua receita de tuítes incendiários e “fatos alternativos”. Disseminou embustes sobre as urnas eletrônicas, a distribuição de livros escolares e a própria atuação no Congresso.

No poder, o presidente adotou a mentira como prática cotidiana. Na sexta-feira, ele bateu uma espécie de recorde pessoal. Em entrevista à imprensa estrangeira, mentiu sobre a fome, o desmatamento, a educação e o uso de agrotóxicos no país.


“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”, disse. O último relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) mostrou que 5,2 milhões de brasileiros vivem em grave situação alimentar. Devem ser cidadãos invisíveis para o presidente.

Em resposta a um correspondente alemão, Bolsonaro disse que o Brasil está “nos últimos lugares no tocante ao uso de agrotóxicos”. A mesma FAO informa que o país é o mais consumidor de pesticidas no mundo. Nos primeiros seis meses do ano, foram liberadas 239 novas substâncias.

Questionado sobre a Amazônia, o presidente repetiu a cantilena de que “nós podemos ensinar qualquer país do mundo a proteger seu meio ambiente”. Mais tarde, alguém o lembrou de que o desmatamento da floresta cresceu 60% em junho. Irritado, ele contestou os dados oficiais e sugeriu que o diretor do Inpe estaria “a serviço de alguma ONG”.

Bolsonaro também disse que “a educação aqui no Brasil, nos últimos 30 anos, nunca esteve tão ruim”. A afirmação não bate com a vida real. Em 1991, o país tinha 20% de analfabetos. Hoje tem 6,8%, de acordo com o IBGE.

O presidente ainda usou informações falsas para atacar Míriam Leitão. Disse que a jornalista participou de ações armadas contra a ditadura, o que não ocorreu, e contestou as torturas que ela sofreu num quartel do Exército, relatadas à Justiça Militar.

Dois dias antes, Trump sacou outras mentiras para difamar a deputada Omar, nascida na Somália. Chegou a acusá-la de simpatia com uma organização terrorista, reforçando o preconceito contra muçulmanos.

Além do uso contumaz de mentiras, os insultos de Trump e Bolsonaro têm outra característica em comum. Seus alvos preferenciais são as mulheres.

Na sexta, Bolsonaro anunciou mais um desejo autoritário. Quer impor um “filtro cultural” ao financiamento do cinema brasileiro. “Nem na época da ditadura existiu isso”, afirma o produtor Luiz Carlos Barreto. Aos 91 anos, ele lembra que o regime militar só censurava os filmes depois que estavam prontos.

Dá-lhe na lata

(Bolsonaro) está cuidando demais do que não precisa e fazendo pouco o principal dever dele: que é ser presidente
Raquel Pacheco, conhecida como Bruna Surfistinha

Política, sexo e religião

Clássico da sociologia brasileira, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é uma obra polêmica desde sua primeira edição, em 1933, pois desnudou aspectos da formação da sociedade que a elite da época se recusava a considerar. Teve mais ou menos o mesmo impacto de Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1902, a maior e mais importante reportagem já escrita no Brasil. Seu autor descreveu com riqueza de detalhes as características do sertão nordestino e de seus habitantes, além de narrar, como testemunha ocular, a Guerra de Canudos, no interior da Bahia, uma tragédia nacional.

Nas palavras de Antônio Cândido, o lançamento de Casa-Grande & Senzala “foi um verdadeiro terremoto”. À época, houve mais críticas à direita do que à esquerda; com o passar do tempo, porém, Freyre passou a ser atacado por seu conservadorismo. Essa é uma interpretação errônea da obra, por desconsiderar o papel radical que desempenhou para desmistificar preconceitos e ultrapassar valores desconectados da nossa realidade: “É uma obra surpreendente e esclarecedora sobre a formação do povo brasileiro — com todas as qualidades e seus vícios”, avalia Cândido. Consagrou “a importância do indígena — e principalmente do negro — no desenvolvimento racial e cultural do Brasil, que é um dos mais complexos do mundo.”


O presidente Jair Bolsonaro talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, porque a Guerra de Canudos faz parte dos currículos das academias militares. Esse foi o livro de cabeceira dos jovens oficiais que protagonizaram o movimento tenentista, servindo de referência para toda a movimentação tática da Coluna Prestes (1924-1927), que percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do país. Certamente, porém, não leu Gilberto Freyre, obra seminal sobre a formação da cultura brasileira, traduzida em diversos países. Se o fizesse, talvez conhecesse melhor e respeitasse mais os “paraíbas”, como são chamados os nordestinos por aquela parcela dos cariocas que se acha melhor do que os outros. Ser paraibano é naturalidade, não é pejorativo.

Mas voltemos ao leito antropológico do sociólogo pernambucano. A ideia de que o livro defende a existência de uma “democracia racial” no Brasil, disseminada pelos críticos de Freyre, é reducionista. Casa-Grande & Senzala exalta a formação de nosso povo, mas não esconde as mazelas de uma sociedade patriarcal, ignorante e violenta. A origem dessa crítica é o fato de que o autor destaca a especificidade de nossa escravidão, menos segregacionista do que a espanhola e a inglesa. O colonizador português não era um fanático religioso católico como o espanhol nem um racista puritano como os protestantes ingleses.

Tanto que Casa-Grande & Senzala escandalizou o país por causa dos capítulos sobre a sexualidade do brasileiro. Entretanto, não foram os indígenas nem os negros africanos que criaram a fama de promíscuo sexual do brasileiro. Foi o sistema escravocrata e patriarcal da colonização portuguesa, que serviu para criar um ambiente de precocidade e permissividade sexuais. Tanto os índios quanto os negros eram povos que viam o sexo com naturalidade, sem a malícia sensual dos europeus.

Freyre lutou como um gigante contra o racismo “científico”, que atribuía aos indígenas e ao africano as origens de nossas mazelas sociais. Há muito mais o que dizer sobre a sua obra, mas o que a torna mais atual é a agenda de costumes do presidente Jair Bolsonaro, que reproduz, em muitos aspectos, características atrasadas e perversas do patriarcado brasileiro, que estão na raiz da violência, da ignorância e do preconceito contra os índios, os negros e as mulheres.

Bolsonaro estabeleceu com eixo de sua atuação a defesa da fé, da ordem e da família. Há um forte ingrediente eleitoral nessa estratégia, mas não é somente isso. Há convicções de natureza “terrivelmente” religiosas e ideológicas, que não têm correspondência com o modo de vida e o imaginário da maioria da sociedade brasileira, com os nossos costumes e tradições, pautados pelo sincretismo e pela miscigenação. No Brasil, tudo é mitigado e misturado, não existe pureza absoluta. Além disso, não se pode fazer a roda da História andar para trás. A família unicelular patriarcal, por exemplo, é minoritária, nem o clã presidencial manteve esse padrão; não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo.

Um dos equívocos de Bolsonaro é acreditar que pode aprisionar a cultura nacional no âmbito dos seus dogmas. Quando investe contra o cinema nacional, a pretexto de que obras como Bruna Sufistinha, um blockbuster da nossa indústria cinematográfica, são mera pornografia e não um retrato da prostituição no Brasil, sua motivação é mais política do que religiosa. Na verdade, deve estar mais incomodado com filmes como Marighella e Democracia em vertigem, que glamoriza a luta armada e enaltece o ex-presidente Luiz Inácio Lula das Silva, respectivamente. Uma coisa é a crítica à obra cinematográfica, outra é o dirigismo oficial à produção cinematográfica, numa ótica que lembra o cinema produzido durante a II Guerra Mundial.

Pura perda de tempo. Com “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o Cinema Novo emergiu como resposta à falta de recursos técnicos e financeiros. O que temos hoje no cinema brasileiro resulta da centralidade dada por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros cineastas à discussão dos problemas e questões ligadas à “realidade nacional” e a uma linguagem inspirada na nossa própria cultura. “Domesticar” a cultura popular é uma tarefa tão inglória como foi a censura à música popular no regime militar, tanto quanto obrigar os jovens a manter a virgindade até o casamento e mandar os gays de volta para dentro dos armários.

Os rios morrem de sede

No relatório de Conjuntura de Recursos Hídricos do Brasil de 2018, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), destaca-se uma análise da crise hídrica observada pelos indicadores de 2017. Dos 5.570 municípios brasileiros, 2.560 (48%) decretaram situação de emergência ou estado de calamidade pública devido a cheias pelo menos uma vez de 2003 a 2017, enquanto 2.839 (51%), por causa da seca ou estiagem no mesmo período. Foram cerca de 38 milhões de pessoas afetadas por secas e estiagem, quase 13 vezes mais que por cheias.

Como o Brasil dispõe de uma rede hidrográfica com rios extensos e volumosos (bacia Amazônica, bacia do Araguaia-Tocantins, bacia do São Francisco, bacia Platina), a maioria dos brasileiros tem a impressão de que a água não é um bem escasso no país e, portanto, pode ser tratada como um bem não econômico de livre acesso. Nesse contexto, os rios do Brasil estão passíveis de vivenciar “a tragédia dos bens comuns”, definida por Garett Hardin como uma situação em que indivíduos, agindo de acordo com seus próprios interesses, comportam-se contrariamente aos legítimos interesses de uma comunidade, esgotando algum recurso comum.
Rogério Borges

Utilizam os rios como se fossem um estoque inesgotável de um bem livre, fundamental direta ou indiretamente para o seu bem-estar, ou como um lixão onde depositam recorrentemente os resíduos ou dejetos de seus hábitos de consumo ou de seus padrões de produção. Pouco se preocupam com a deterioração da qualidade das águas pela falta de saneamento básico ou pela poluição das atividades produtivas; ou com os impactos degradantes das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos; ou até mesmo que a crise hídrica nas grandes metrópoles ou no semiárido acabe por penalizar os mais pobres e miseráveis, que não dispõem de recursos para superar os problemas de desabastecimento e de saneamento.

Estudo da FEA/USP mostrou que, com o aquecimento global, no Nordeste as chuvas tenderiam a diminuir de 2 mm a 2,5 mm/dia até 2.100 mm, causando graves perdas agrícolas em todos os Estados da região. O declínio da precipitação afetaria a vazão de rios em bacias do Nordeste importantes para a geração de energia, como a do Parnaíba e a do Atlântico Leste, com redução de vazões de até 90% entre 2070 e 2100. Na Amazônia, o aquecimento poderia chegar a 7ºC em 2100, gerando um processo de savanização da floresta. E a oferta de águas de superfície para quase todas as regiões do Brasil indica tendência declinante, com substancial diminuição dos excedentes de águas.

O título de nosso artigo é uma lembrança do livro de Wander Piroli “Os Rios Morrem de Sede”, pioneiro na apresentação didática e realista dos temas ecológicos para crianças. Basicamente, o premiado jornalista e escritor conta a história de um homem que leva o seu filho para pescar no rio das Velhas, como fazia na sua infância, mas encontra um meio ambiente degradado e as águas do rio sujas e de cor marrom, tendo o curso d’água se tornado um verdadeiro esgoto, segundo um canoeiro que ali pescava.

Benjamin Franklin já dizia em 1746: quando o poço seca, é que sabemos o valor da água. O livro de Wander Piroli é de 1976. São pródromos da crise hídrica cujas vozes de alerta parecem desvanecer no tempo de lideranças políticas e comunitárias supérfluas.

Fala sério, Brasil


A trágica história dos campos de concentração do Ceará

A solenidade de tombamento do sítio arquitetônico do Campo de Concentração do Patu, neste sábado, localizado em Senador Pompeu, a 270 quilômetros de Fortaleza, representa o reconhecimento de um capítulo trágico da história do Ceará e do Brasil.

Ruínas de Patu
Nesse campo, milhares de pessoas sofreram e morreram, no início da década de 1930, de doenças, de maus-tratos e de inanição. A construção tinha como objetivo evitar que retirantes chegassem às cidades, principalmente à capital do Ceará. Além de isolados e confinados, os retirantes eram explorados como mão de obra escrava em obras públicas.

Além do Patu, outros seis campos foram instalados no Ceará durante a grande estiagem de 1932. Dois ficavam em Fortaleza. Esses sete campos, no entanto, também não foram pioneiros. Seu surgimento remonta aos abarracamentos (acampamentos improvisados) instalados pelo Estado para abrigar os retirantes nas secas de 1877 a 1880, quando Fortaleza foi ocupada por cerca de 100 mil flagelados, mais do triplo de sua população na época.

Após novas estiagens, a ideia de "concentrar" os retirantes foi se consolidando, como também o projeto de modernização e embelezamento das cidades, acompanhado ainda da popularização da ideia do darwinismo social, que à época ajudava a justificar ideologicamente o domínio de uma "raça" sobre outra.
No Ceará, isso fez com que os flagelados que procuravam abrigo na capital do Estado passassem a ser aglomerados no Campo de Concentração do Alagadiço, em 1915. Assim, era mais fácil escondê-los da população urbana.

A designação "campo de concentração" acabou oficialmente por substituir os antigos abarracamentos na mesma época, sendo usada tanto pela imprensa da época quanto pelo governo. Na década de 1930, seria a vez de o governo local criar sete novos campos desse tipo, entre eles o do Patu.

Dessa forma, o governo local trilhava um caminho já percorrido por outros países. Décadas antes, os EUA criaram campos desse tipo para internar indígenas Cherokee. E o antigo governo colonial de Cuba chegou a decretar que moradores que não quisessem ser tratados como rebeldes fossem internados em "campos de reconcentración" durante as guerras de independência da ilha (1868-1898). O mesmo ocorreu na África do Sul e nas Filipinas no final do século 19.
Campo de concentração em Fortaleza serviu de entreposto
para exportação de mão de obra para outros estados
Mas apesar desses usos locais, incluindo no Ceará, o termo "campo de concentração" ganhou notoriedade com a chegada dos nazistas ao poder na Alemanha, em 1933. Entre os campos cearenses e os Konzentrationlager nazistas há algumas semelhanças, mas também diferenças fundamentais, como apontam ativistas, historiadores e membros do Ministério Público envolvidos no processo de tombamento do Patu.

Em entrevista à DW, o procurador do Ministério Público em Senador Pompeu, Geraldo Laprovitera, afirmou que o Estado brasileiro não teve interesse em preservar a memória do campo que está localizado dentro de uma área de uma autarquia federal chamada Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs). "Então nós do MP estadual partimos para uma proteção local, um tombamento", disse Laprovitera.

"No Campo de Concentração do Patu, tivemos lá uma população de aproximadamente 20 mil pessoas. O que são 20 mil pessoas em 1932? É algo gigantesco. E desses 20 mil, embora não haja registros oficiais, pois não se lavravam certidões de óbitos, a estimativa é que entre 8 mil e 12 mil pessoas morreram e foram enterradas em valas coletivas."

Na época da construção do Patu, a população de Fortaleza tinha cerca de 120 mil habitantes. Além de Senador Pompeu e da capital, em 1932, outros campos de concentração foram instalados nos municípios de Ipu, Quixeramobim, Crato e Cariús, disse o promotor. "No entanto, pelo que me consta, a maioria desses campos não resistiu à ação do tempo."

O Patu, único campo de concentração que restou dos dez instalados no Ceará entre 1915 e 1932 engloba 12 construções de estilo neocolonial, a chamada Vila dos Ingleses.

"Essas instalações são anteriores aos campos de concentração nazistas e não tinham obviamente a mesma finalidade dos campos da Segunda Guerra, mas tinham também algumas semelhanças sórdidas", explicitou o promotor.

"A estrutura dos prédios; a população distribuída em barracões; grande parte dessa população sendo atraída ao local com falsas promessas de que teria acesso a trabalho, à comida, a medicamentos e atendimento médico, o que não era realidade", apontou Laprovitera.

"Mas, enquanto nos campos de concentração nazistas a mortandade se deu por uma ação estatal, nos campos de concentração cearenses a mortandade se deu por causa de uma omissão. Não havia comida, não havia água e as condições de higiene eram muito precárias."

Frederico de Castro Neves, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta as diferenças entre os campos cearenses e os nazistas. "Senador Pompeu não é igual a Auschwitz. Aqui, a pessoa recebia uma assistência, que era precária, discutível, mas era uma assistência médica. As pessoas não eram carregadas para o campo, debaixo de violência, embora houvesse uma tentativa de manter aquelas pessoas ali no isolamento", afirmou ao jornal El País.

Natural de Senador Pompeu, o advogado e ativista dos direitos humanos Valdecy Alves vem promovendo há mais de duas décadas a divulgação da existência do Campo de Concentração do Patu. Ele conta que, na sua infância, o local despertava medo. "Ninguém ia lá, porque diziam que havia tido uma tragédia muito grande, que o lugar era cheio de assombração", disse.

"Muita gente também dizia: 'não use esse nome campo de concentração porque isso só se usou na Alemanha'. Não, eu tenho um relatório de um médico da época em que ele critica o governador por usar esse nome. E o governador justificou que assim era mais fácil atrair recursos", informou Valdecy Alves.

Segundo Alves, além dos prédios da administração, havia no Patu 160 barracas de taipa onde dormiam os flagelados. Ele afirma que as principais causas das mortes foram "tifo; paratifo com febre, que é altamente contagiosa nos adultos; sarampo nas crianças".

Muitas dessas doenças também foram registradas nos campos de concentração alemães. "Estive na Polônia, em Auschwitz, para ver se eu detectava similaridades entre os campos de lá e daqui", narrou Alves.

De acordo com o ativista, o darwinismo social, a ideia da superioridade de uma raça sobre a outra, também marcou o Brasil no início do século 20. Segundo ele, Getúlio Vargas era também seguidor do darwinismo social. "Para se ter uma ideia, na Constituição de 1937, há um artigo [Art. 138] que diz que o Estado teria que 'estimular a educação eugênica'."

"Então tem esse aspecto do darwinismo social que justifica moralmente a implantação dos campos. Há também a mão de obra, que foi usada como escrava, porque os grandes açudes e as estradas foram feitas por eles em troca de comida", explica Alves.

Do campo cercado por arame farpado, os flagelados só podiam sair para trabalhar. A segurança era feita por guardas cujo pagamento era realizado em espécie, não havendo documentos comprobatórios, explicou o advogado. "Todos os campos de concentração e os abarracamentos, quando terminavam, eles tocavam fogo em tudo. Para não deixar pista, não havia atestado de óbitos, não tinha nada."

O número de flagelados em campos de concentração cearenses entre 1932 e 1933 ainda é objeto de discussões, assim como o número de mortes. De acordo com jornais da época, 73.918 mil flagelados foram abrigados nos campos, sendo 16.221 deles no do Patu.

Segundo Castro Neves, em janeiro de 1933, apenas quatro dos sete campos continuavam em operação, com 90 mil pessoas ainda espalhadas por eles. "O maior de todos foi o de Buriti, no sul do estado, na região do Crato. Ali chegou a ter 60 mil pessoas", disse o professor ao jornal El País.

A historiadora Kênia Sousa Rios, também da UFC, relata que somente no campo de Ipu, a oeste do Estado, houve registros de mais de mil mortos entre 1932 e 1933. De acordo com informações da época, o campo chegou a abrigar 6.507 flagelados.

No entanto, com base em um discurso que Getúlio Vargas fez na capital cearense em setembro de 1933, quando os campos já tinham sido desmantelados e o governo passou a priorizar frentes de trabalho, o advogado Valdecy Alves estima que o número total de flagelados nos campos tenha sido muito maior.

"No período mais agudo da estiagem, em Dezembro do ano findo [1932], elevou-se a 260 mil o número de operários diretamente empregados nas obras contra as secas, sendo 236 mil, na Inspetoria, e 24 mil, na Rede de Viação Cearense [...] Organizaram-se, além disso, neste Estado, campos de concentração, por onde transitou mais de um milhão de pessoas, atendidas com serviços profícuos de higiene e assistência", disse Vargas em seu discurso.

Segundo o historiador Frederico Castro Neves, foi o horror provocado pelos campos de concentração alemães, construídos a partir de 1933 e cuja existência foi divulgada após o fim da guerra, que desencorajou a construção de novas instalações desse tipo no Ceará após a Segunda Guerra mundial.

Ainda está longe...

Tempo virá em que dialogar cortesmente será um ato natural de todos os homens civilizados, mesmo a disputar o poder, que será uma maneira plebiscitada de melhor servir, e não trampolim de nenhuma megalomania ou ambição inconfessada
Miguel Torga, Diário XVI

Freio de desarrumação

Aceitemos, se não de bom grado ao menos com esforço de tolerância, que o presidente Jair Bolsonaro fale aos seus nichos eleitorais de forma a compensar a perda de apoio registrada pelas pesquisas entre o pessoal que votou nele por exclusão, motivado pela oportunidade de afastar o PT do poder. É um método. Conflituoso e muito semelhante ao artifício do “nós contra eles” de Luiz Inácio da Silva, mas exitoso. O eleitor de raiz está firme.

Dadas as qualificações intelectuais de ambos, não se pode condenar Bolsonaro por copiar o adversário de quem absorve os conceitos trocando-lhes os sinais antes de apresentá-­los à população, a fim de tentar obter o mesmo grau de sucesso conseguido pelo discurso da “quase lógica”, assim muito bem denominado pela cientista política Luciana Veiga.

Ainda em 2005, quando era geral o encantamento com Lula, a ponto de serem celebradas suas exorbitâncias verbais, vistas como fruto de genialidade política, a cientista pontuava: “O presidente usa argumentos que parecem lógicos segundo noções genéricas do cotidiano, embora não o sejam se cotejados com a precisão da realidade”.

Luciana Veiga à época foi ignorada pelos meios de comunicação e pela comunidade acadêmica que hoje a ouvem a respeito do jeito Bolsonaro de ser. Não se toca no assunto nem se relembra o conteúdo da análise sobre Lula. A tal da quase lógica é a arte de dizer bobagens e/ou obviedades com jeito de coisa séria.

No caso do atual mandatário, ainda há que acrescentar o gosto por decisões pautadas em irrelevâncias. Alguns temas até são importantes, mas perdem relevo e caem no esquecimento pela forma e pelo momento que Bolsonaro escolhe para a abordagem.

Um exemplo é a indicação do representante do Brasil para a embaixada em Washington, vaga desde abril, quando o diplomata Sergio Amaral decidiu retirar-se de cena por respeito a si e à carreira. Tantas são as resistências ao nome do deputado Eduardo Bolsonaro que não é arriscado apostar que a ideia não prospera. Então, por que semear conflito justamente quando o governo deveria curtir o bom momento da aprovação da reforma da Previdência na Câmara? Para atrair as atenções voltadas para o deputado Rodrigo Maia é uma hipótese. Irrelevante, pois.

Vamos aprendendo que nada é tão insignificante que não mereça a atenção de Jair Bolsonaro. Discutir horário de verão em pleno mês de março enquadra-se perfeitamente no modelo. Assim como proposições inexequíveis por força da realidade. Nesse campo temos a transferência da embaixada brasileira de Tel- Aviv para Jerusalém, o pacto entre Poderes cuja finalidade seria levar Legislativo e Judiciário a obedecer ao Executivo e a criação de uma moeda conjunta (peso-real) com a Argentina.

Nada disso vai adiante, tal qual não irão as ideias de transformar Angra dos Reis (RJ) numa nova Cancún ou de liberar Fernando de Noronha ao turismo predatório. Presidentes normalmente interferem quando há necessidade de um “freio de arrumação” no governo. Com Bolsonaro é diferente: ele está permanentemente com o freio de mão puxado no modo desarrumação.

Quando todos somos fascistas

Você é um fascista. E o seu vizinho. E também muitos dos manifestantes do último Dia do Orgulho Gay em Madri, segundo a deputada catalã Inés Arrimadas. E as pessoas do município espanhol de Alsasua que gritavam contra políticos do partido Cidadãos. Mas também os militantes do Vox e seus dirigentes, e Matteo Salvini e suas hordas da Liga Norte. Isso sem contar os que declararam a independência no Parlamento da Catalunha em outubro de 2017, os novos partidos que reivindicam Mussolini na Itália e os que dirigem seus veículos pelas cidades sem respeitar as ciclovias. Nenhuma palavra foi tão utilizada nos últimos tempos para desqualificar rivais de todo tipo, para refletir um autoritarismo crescente ou para definir, recorrendo ao passado de forma cansativa, um aroma político que emana do presente e cujas características se repetem no mundo todo sem uma resposta adequada.

O irresistível magnetismo de um período histórico em que alguns, como Umberto Eco, decifraram um estado de ânimo político e moral em permanente retorno tomou conta também do setor editorial. Quase uma dezena de novidades que abordam a questão acabam de chegar às livrarias e indagam sobre suas raízes, personagens e paralelismos com o momento atual. A Itália lidera a tendência com o maior catálogo de propostas, em meio aos rumos autoritários e xenofóbicos do Governo formado pela Liga e o Movimento 5 Estrelas. A obra mais festejada é M. Il figlio del secolo (M., o filho do século), com a qual Antonio Scurati venceu recentemente o Prêmio Strega. Uma extraordinária biografia romanceada sobre a ascensão ao poder de Benito Mussolini – pensada como a primeira parte de uma trilogia que também dará origem a uma série da TV – que triturou definitivamente o tabu de narrar os acontecimentos mais obscuros da primeira metade do século XX do ponto de vista dos carrascos. Certo, mas existem realmente semelhanças entre aquele período e o atual para justificar tanto furor?

Scurati, em plena ressaca pelo prêmio mais importante da Itália (a Alfaguara publicará o livro em janeiro na Espanha), encontra alguns paralelismos em aspectos muito concretos localizados no clima em que o monstro foi forjado. “A analogia mais forte está no sentimento de derrota, mal-estar, abandono, desilusão, rechaço e repulsa à velha classe dirigente e às instituições parlamentares. Também o fracasso da social-democracia de 1919 até 1921, um cenário em que o fascismo encontrou terreno fértil. Esse tipo de sentimento antipolítico, que nada tem a ver com a análise racional de nossa vida, é análogo. Volta a ser detectado, como na época, em elevadas porcentagens do eleitorado. Afeta pais de família, trabalhadores, gente de bem atraída por líderes e movimentos que manifestam abertamente o desprezo pela velha política, mas também pelas instituições parlamentares. A diferença é a violência, nisso não tem nada a ver”, afirma o autor.


Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de decomposição; e uma crise econômica incrustrada, que solapou a base da população. Esse clima é sentido há anos no Ocidente e chega até o Brasil, onde Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, ressuscita o autoritarismo e defende a tortura e a ditadura militar. Também alcança os Estados Unidos da era Trump: personagens como Steve Bannon declaram seu amor a intelectuais que deram cobertura ao fascismo, como Julius Evola. Por isso, a secretária de Estado do Governo de Bill Clinton, Madeleine Albright, portadora de extensa quilometragem diplomática, alerta com seu Fascismo: Um Alerta (Crítica) que o monstro “não é uma etapa excepcional na humanidade; faz parte dela” e se apresenta atualmente com rostos diferentes. Putin, Erdogan, Kim Jong-un...
Uma pequena burguesia não integrada a nenhuma classe ou grupo social, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira; partidos que invocam atalhos extraparlamentares e dão as costas às Câmaras num clima de decomposição; e uma crise econômica incrustada, que solapou a base da população
Todos fascistas, então? Scurati, como a maioria dos intelectuais consultados, denuncia um abuso que gerou o efeito contrário. “Muitos eleitores desses movimentos antissistema, gente integrada na sociedade, reagem também contra o antifascismo porque durante muito tempo ele foi usado de forma irresponsável. Quem quer que fosse de direita era chamado de autoritário, rotulado de fascista. Isso é inexato e já fez com que o antifascismo, abusado e defendido por gente que não conhecia seu verdadeiro significado, acabasse sendo uma arma equivocada para a democracia.”

A questão incendeia qualquer debate entre historiadores, com frequência divididos como a própria sociedade. A maioria concorda, porém, que o mundo não tomou a real consciência do fascismo e não fechou esse capítulo como aconteceu com o nazismo. Emilio Gentile, o maior especialista italiano nesse período, acaba de publicar Quien Es Fascista (quem é fascista). Um título provocador que aborda com todas as letras a superexposição do conceito e a languidez semântica que seu repetitivo eco traz aos relatos e à vida diária. “Esse abuso denota um não entendimento do que foi o fascismo realmente. Aplica-se a personagens com os quais não estamos de acordo, que não nos agradam. Mas não é novo: aconteceu nos últimos setenta anos. Foi aplicado a Eisenhower, Mao, Stálin... Palmiro Togliatti [secretário-geral e fundador do Partido Comunista Italiano] chegou a definir como fascista Carlo Rosselli, que criou o movimento antifascista Justiça e Liberdade. Mas os fenômenos de hoje não têm nada a ver com o fascismo.”

Gentile, extraordinário historiador e um tanto radical nesse campo, acredita que não há nada de novo a contribuir com o estudo do fascismo e que a banalização do termo, transformado em objeto de consumo, já é insuperável. O fascismo pode voltar? “Sim, claro. Como também podem voltar o bonapartismo, o jacobinismo… Estamos usando um termo de maneira inadequada para explicar fenômenos novos. E o erro responde principalmente à incapacidade de enfrentar, com olhar crítico atual, assuntos contemporâneos”, afirma. “A raiz se encontra na falta de uma etimologia precisa, como têm o comunismo e o liberalismo: fascismo só significa agrupar. E hoje se transformou num insulto para prepotentes, antissemitas, autoritários... Mas nenhum populismo atual que invoque o princípio de soberania popular pode ser fascista. O fascismo negava tudo o que derivava da Revolução Francesa. E se o que estamos falando é de nos identificarmos com a figura de um homem forte, de alguém que se dirija diretamente ao povo, então também poderíamos dizer que [o político italiano] Matteo Renzi é um fascista, não acha?”

A origem do termo encontra-se no símbolo romano do fascio (feixe de varas), por sua vez herdado dos etruscos. Os fasci simbolizavam a unidade da soberania, da ordem e do poder supremo capaz de conceder justiça. O mesmo símbolo foi depois usado na Revolução Francesa, na estátua de Abraham Lincoln em Washington e na marca da própria Guarda Civil Espanhola. Um dos primeiros movimentos sociais modernos que o empregaram foram os Fasci Siciliani entre 1891 e 1894: um grupo de inspiração libertária, democrática e socialista de agricultores que defendia seus direitos trabalhistas. Mas a apropriação definitiva chegou em 1919 com os Fasci Italiani Combattimento, fundado por Benito Mussolini em 23 de março de 1919, verdadeira gênese da mudança. Em parte por essa dispersão, por sua difusão pela esquerda e a direita do espectro ideológico, muitos encontram legitimidade para usá-lo nos dias de hoje.