sexta-feira, 18 de junho de 2021
O povo brasileiro é objeto do deboche de Bolsonaro
O presidente Alberto Fernández, no dia 9 de junho, reunia-se com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, que lhe levara apoio na renegociação da dívida milionária da Argentina com o FMI e o Clube de Paris. Por meio de uma gracinha antidiplomática, quis bajular o chanceler espanhol: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, os argentinos, viemos dos barcos. E eram barcos que vinham da Europa”.
A desinformação de Fernández contraria a reputação argentina de país culto, que por muito tempo teve alto padrão de educação, interrompido pela ditadura militar. Um país que tem cinco prêmios Nobel.
Já o México é, provavelmente, o país mais culto da América Latina. Foram justamente os espanhóis que destruíram civilizações na extensa região de que o México era parte. Seus intelectuais são em boa parte mestiços.
Qualquer criança sabe que nós brasileiros não viemos só da selva. Quem dela veio, foi lá buscado e caçado. Somos originários da miscigenação de portugueses e espanhóis com indígenas e africanos. O Brasil de então esteve sob domínio da Espanha de 1580 a 1640.
Bolsonaro é até mais abundante nas gracinhas presidenciais desenxabidas. Só que ele elege como objeto do seu deboche, da sua política de pouco caso, o povo brasileiro. Para ele, nós brasileiros somos estrangeiros de anedota. Somos tratados como inimigos do brasileiro que ele pensa que é, cidadão de quartel.
Ele se esbalda nas gozações da cultura de botequim que caracteriza muitas de suas manifestações demagógicas, a do público que ri com seus ditos ofensivos. Faz alusões indevidas aos brasileiros que não pensam como ele nem se rebaixam a seu nível de compreensão do que é o poder, a política, a sociedade civil, a democracia.
Em 17 de maio, dirigiu-se a seus bajuladores costumeiros, na entrada do Palácio do Planalto, e citou os que estão guardando as recomendações científicas e médicas de proteção sanitária em face da pandemia: “Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa”. Orgulho-me de ser um desses idiotas. Tenho discernimento.
No final de 2020, em visita ao Maranhão, alguém lhe ofereceu, para que provasse, o famoso e antigo refrigerante regional Cola Guaraná Jesus, que tem a coloração cor-de-rosa. Com gargalhadas, características das conversações incultas dos que se afirmam minimizando os outros, gritou para todos: “Virei boiola, igual maranhense”. Uma afirmação perturbadora porque expressa desconhecimento do que é a bebida que estava tomando.
O Guaraná Jesus é muito apreciado não só no Maranhão, como também no Piauí e no Tocantins. É o refrigerante do Meio-Norte. Foi criado pelo farmacêutico maranhense Jesus Norberto Gomes, em 1927.
Ele adaptou receita antiga de mães e avós que faziam chá frio, de canela e cravo bem doce, para agradar as crianças. Costume difundido no Brasil inteiro. Isso foi antes da invenção dos refrigerantes gaseificados. Acrescentou o medicinal guaraná da Amazônia na composição da bebida. Gastou um bom tempo até chegar à fórmula final do produto.
No Sudeste, o médico, filósofo, cientista fluminense e cafeicultor Luís Pereira Barreto, radicado em São Paulo e um dos fundadores da Faculdade de Medicina, conseguiu fazer o extrato da fruta, em 1909, que daria origem ao Guaraná Champanhe, que a Antárctica industrializaria.
Quando a Coca-Cola tentou entrar no mercado maranhense, encontrou resistências. A população preferia o histórico refrigerante do farmacêutico Jesus. O refrigerante americano teve que se render: comprou a fábrica do concorrente, a fórmula e a marca Jesus.
Há, no Maranhão, uma espécie de orgulho patriótico por esse feito do refrigerante local. A receita do modesto Jesus bateu, na concorrência, uma das maiores potências do mundo na produção e comercialização de um refrigerante. Que também nasceu como remédio, vendido em farmácias, beneficiado pelas proibições da Lei Seca. A Coca, comprada em farmácia, entrava no imaginário puritano dos americanos como estimulante não pecaminoso. É o que expôs o antropólogo americano Sidney Mintz em conferência que dele ouvi na Universidade da Flórida, em 1983, sobre “A pausa que refresca”, famoso slogan da Coca-Cola.
A Coca tentou interromper a produção do Guaraná nativo do Maranhão para ocupar-lhe o lugar. Não deu certo. Teve que assumir a produção do produto concorrente.
A Cola Guaraná Jesus foi um dos documentos do imaginário messiânico brasileiro exibidos na exposição do Quinto Centenário da Descoberta do Brasil, no Ibirapuera.
Eu estava em São Luís quando um belíssimo pôster, com uma foto da garrafa da Cola Jesus, foi colocado pela Coca nos bares e casas comerciais com este anúncio genial: “Jesus voltou!”.
A desinformação de Fernández contraria a reputação argentina de país culto, que por muito tempo teve alto padrão de educação, interrompido pela ditadura militar. Um país que tem cinco prêmios Nobel.
Já o México é, provavelmente, o país mais culto da América Latina. Foram justamente os espanhóis que destruíram civilizações na extensa região de que o México era parte. Seus intelectuais são em boa parte mestiços.
Qualquer criança sabe que nós brasileiros não viemos só da selva. Quem dela veio, foi lá buscado e caçado. Somos originários da miscigenação de portugueses e espanhóis com indígenas e africanos. O Brasil de então esteve sob domínio da Espanha de 1580 a 1640.
Bolsonaro é até mais abundante nas gracinhas presidenciais desenxabidas. Só que ele elege como objeto do seu deboche, da sua política de pouco caso, o povo brasileiro. Para ele, nós brasileiros somos estrangeiros de anedota. Somos tratados como inimigos do brasileiro que ele pensa que é, cidadão de quartel.
Ele se esbalda nas gozações da cultura de botequim que caracteriza muitas de suas manifestações demagógicas, a do público que ri com seus ditos ofensivos. Faz alusões indevidas aos brasileiros que não pensam como ele nem se rebaixam a seu nível de compreensão do que é o poder, a política, a sociedade civil, a democracia.
Em 17 de maio, dirigiu-se a seus bajuladores costumeiros, na entrada do Palácio do Planalto, e citou os que estão guardando as recomendações científicas e médicas de proteção sanitária em face da pandemia: “Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa”. Orgulho-me de ser um desses idiotas. Tenho discernimento.
No final de 2020, em visita ao Maranhão, alguém lhe ofereceu, para que provasse, o famoso e antigo refrigerante regional Cola Guaraná Jesus, que tem a coloração cor-de-rosa. Com gargalhadas, características das conversações incultas dos que se afirmam minimizando os outros, gritou para todos: “Virei boiola, igual maranhense”. Uma afirmação perturbadora porque expressa desconhecimento do que é a bebida que estava tomando.
O Guaraná Jesus é muito apreciado não só no Maranhão, como também no Piauí e no Tocantins. É o refrigerante do Meio-Norte. Foi criado pelo farmacêutico maranhense Jesus Norberto Gomes, em 1927.
Ele adaptou receita antiga de mães e avós que faziam chá frio, de canela e cravo bem doce, para agradar as crianças. Costume difundido no Brasil inteiro. Isso foi antes da invenção dos refrigerantes gaseificados. Acrescentou o medicinal guaraná da Amazônia na composição da bebida. Gastou um bom tempo até chegar à fórmula final do produto.
No Sudeste, o médico, filósofo, cientista fluminense e cafeicultor Luís Pereira Barreto, radicado em São Paulo e um dos fundadores da Faculdade de Medicina, conseguiu fazer o extrato da fruta, em 1909, que daria origem ao Guaraná Champanhe, que a Antárctica industrializaria.
Quando a Coca-Cola tentou entrar no mercado maranhense, encontrou resistências. A população preferia o histórico refrigerante do farmacêutico Jesus. O refrigerante americano teve que se render: comprou a fábrica do concorrente, a fórmula e a marca Jesus.
Há, no Maranhão, uma espécie de orgulho patriótico por esse feito do refrigerante local. A receita do modesto Jesus bateu, na concorrência, uma das maiores potências do mundo na produção e comercialização de um refrigerante. Que também nasceu como remédio, vendido em farmácias, beneficiado pelas proibições da Lei Seca. A Coca, comprada em farmácia, entrava no imaginário puritano dos americanos como estimulante não pecaminoso. É o que expôs o antropólogo americano Sidney Mintz em conferência que dele ouvi na Universidade da Flórida, em 1983, sobre “A pausa que refresca”, famoso slogan da Coca-Cola.
A Coca tentou interromper a produção do Guaraná nativo do Maranhão para ocupar-lhe o lugar. Não deu certo. Teve que assumir a produção do produto concorrente.
A Cola Guaraná Jesus foi um dos documentos do imaginário messiânico brasileiro exibidos na exposição do Quinto Centenário da Descoberta do Brasil, no Ibirapuera.
Eu estava em São Luís quando um belíssimo pôster, com uma foto da garrafa da Cola Jesus, foi colocado pela Coca nos bares e casas comerciais com este anúncio genial: “Jesus voltou!”.
Esbofeteados por Bolsonaro
No momento em que você estiver lendo este texto, a Covid terá atingido perto de 18 milhões de brasileiros. Desses, quase meio milhão já perderam a vida, e essa estatística está longe do fim. Mais de 1 milhão estão “em acompanhamento” —na fila por um leito, respirando por uma máquina ou inconscientes numa UTI— e 16 milhões se recuperaram. Dos que morreram ou estão lutando pela vida, só os seus médicos e familiares saberão dizer. Mas, pelos relatórios dos sobreviventes, podemos calcular o que representou para eles ter o inimigo dentro de si.
Imagino que mesmo para os assintomáticos houve certa apreensão ao serem informados de que o teste dera positivo. Quero crer que até os seguidores de Jair Bolsonaro entre eles terão acusado um susto —porque, ainda que convencidos de que a Covid era uma “gripezinha”, como adivinhar como ela se desenvolveria? Claro que, tratados com cloroquina, Coca-Cola e Gatorade, e tendo o vírus cedido espontaneamente, tais infectados se jactaram da eficácia de seu tratamento.
Não sei quantos deles estão entre os 18 milhões. Mas sei de muitas pessoas que não tiveram igual sorte e, com ou sem recursos, ainda sofrem as consequências da doença. Ouço falar de graves problemas pulmonares, cardíacos, renais, intestinais. De doenças autoimunes, inflamações, colesterol alto, hipertensão. De joelhos e calcanhares inchados, formigamento nas pernas, pés que não esquentam, dificuldade para reaprender a andar. De ansiedade, depressão, angústia, enxaqueca, insônia, perda de paladar e olfato. Alguns levarão para sempre a rouquidão, provocada pela intubação,
Entre os 18 milhões de “recuperados”, muitos tiveram a vida pessoal, emocional e profissional destroçada. Eles também talvez sejam alguns milhões. Bolsonaro os esbofeteia diariamente com sua crueldade e seu deboche. Quantos não terão sido seus eleitores?
A ver se continuarão a ser.
Imagino que mesmo para os assintomáticos houve certa apreensão ao serem informados de que o teste dera positivo. Quero crer que até os seguidores de Jair Bolsonaro entre eles terão acusado um susto —porque, ainda que convencidos de que a Covid era uma “gripezinha”, como adivinhar como ela se desenvolveria? Claro que, tratados com cloroquina, Coca-Cola e Gatorade, e tendo o vírus cedido espontaneamente, tais infectados se jactaram da eficácia de seu tratamento.
Não sei quantos deles estão entre os 18 milhões. Mas sei de muitas pessoas que não tiveram igual sorte e, com ou sem recursos, ainda sofrem as consequências da doença. Ouço falar de graves problemas pulmonares, cardíacos, renais, intestinais. De doenças autoimunes, inflamações, colesterol alto, hipertensão. De joelhos e calcanhares inchados, formigamento nas pernas, pés que não esquentam, dificuldade para reaprender a andar. De ansiedade, depressão, angústia, enxaqueca, insônia, perda de paladar e olfato. Alguns levarão para sempre a rouquidão, provocada pela intubação,
Entre os 18 milhões de “recuperados”, muitos tiveram a vida pessoal, emocional e profissional destroçada. Eles também talvez sejam alguns milhões. Bolsonaro os esbofeteia diariamente com sua crueldade e seu deboche. Quantos não terão sido seus eleitores?
A ver se continuarão a ser.
Exército estrábico
Quem critica Bolsonaro faz isso de manhã, de tarde, de noite. Tudo atribuem ao presidente. Tudo de errado. Será que você aguentaria isso? Que reação eu teria? Não sei. E alguma coisa boa lhe atribuem? O Brasil está crescendo, a economia está crescendo, mesmo com todas as dificuldades. Não tenho dúvida de que estão esticando demais a cordaLuis Carlos Gomes Mattos, general presidente do Superior Tribunal Militar
Pandemias, desmatamentos e vírus
Ao longo deste último ano nos habituamos a ouvir termos pouco comuns em nosso cotidiano, como pandemia, lockdown, média móvel e outros mais. Conhecemos um novo vírus e começamos a temer pelo que há por vir.
Tivemos que nos acostumar com a distância, com o medo do próximo, a ficar longe da família e viver com a ausência do abraço. Estabelecemos novas formas de nos olharmos de longe, de nos reunirmos através de uma tela e de comemorarmos datas importantes através da frieza de um computador.
Acostumamos-nos também a ouvir que tudo isso vai passar, pois tudo passa. Mas como tem sido dolorosa esta passagem!
A atual pandemia, que vem em forma de ondas, evidenciou para todos nós a grande fragilidade e efemeridade da vida humana. Não é nestes mares que gostaríamos de navegar. Essa doença demonstrou que devemos olhar para a natureza com mais cuidado e, acima de tudo, com muito respeito.
Vale alertar que pandemias estão também diretamente relacionadas com a degradação ambiental e, em especial, com os desmatamentos.
Nas florestas existem diversas formas de seres que vivem em equilíbrio entre si. Dentre estes, os vírus são os mais abundantes e presentes em todos os ecossistemas. Porém, os constantes desmatamentos aproximam cada vez mais o homem de novos vírus transmitidos por animais silvestres, as chamadas zoonoses.
A fragmentação de habitats promove rupturas em cadeias alimentares, fazendo com que populações de determinada espécie, antes em equilíbrio, se transformem em pragas e doenças.
A pandemia evidenciou que a preocupação com perda de vegetação não deve ficar restrita a um determinado grupo de pesquisadores. Os desmatamentos afetam a todas as pessoas, independentemente de onde elas moram ou do que fazem.
Cuidar de nossas florestas é cuidar do equilíbrio das espécies vivas do planeta e que, na ausência deste equilíbrio, nossas vidas entram em risco.
Com isso, cabe a toda a sociedade brasileira refletir e, principalmente, agir sobre a perda de 581 km2 de vegetação que ocorreu na Amazônia apenas no mês de abril deste ano, conforme dados do INPE. Este valor é 43% superior aos valores desmatados em 2020.
A situação agrava-se ainda mais, pois, é o segundo mês consecutivo de recordes históricos, já que, em março deste ano foram desmatados 368 quilômetros quadrados de floresta, 12% a mais que em 2020.
O mesmo cenário de perda de vegetação nativa se repete quando se considera o bioma Cerrado. Ainda conforme o INPE, o desmatamento nesta região em 2020 foi de 7.340 km2, que representa um aumento de 13% em relação ao ano de 2019, último período divulgado.
Nestes dois casos temos adotado a política de abrir a porteira para novas zoonoses.
Pandemias são mais um alerta, dentre vários outros, de que há algo errado na forma com a qual nos relacionamos com o meio ambiente. O atual surto que estamos passando indica a necessidade urgente de mudarmos a nossa postura e consolidarmos políticas públicas que preservem as matas.
É de se perguntar quantos alertas ainda serão necessários para entendermos que nós, auto denominados seres superiores, podemos sucumbir rapidamente quando confrontados com os seres que chamamos de inferiores.
Tivemos que nos acostumar com a distância, com o medo do próximo, a ficar longe da família e viver com a ausência do abraço. Estabelecemos novas formas de nos olharmos de longe, de nos reunirmos através de uma tela e de comemorarmos datas importantes através da frieza de um computador.
Acostumamos-nos também a ouvir que tudo isso vai passar, pois tudo passa. Mas como tem sido dolorosa esta passagem!
A atual pandemia, que vem em forma de ondas, evidenciou para todos nós a grande fragilidade e efemeridade da vida humana. Não é nestes mares que gostaríamos de navegar. Essa doença demonstrou que devemos olhar para a natureza com mais cuidado e, acima de tudo, com muito respeito.
Vale alertar que pandemias estão também diretamente relacionadas com a degradação ambiental e, em especial, com os desmatamentos.
Nas florestas existem diversas formas de seres que vivem em equilíbrio entre si. Dentre estes, os vírus são os mais abundantes e presentes em todos os ecossistemas. Porém, os constantes desmatamentos aproximam cada vez mais o homem de novos vírus transmitidos por animais silvestres, as chamadas zoonoses.
A fragmentação de habitats promove rupturas em cadeias alimentares, fazendo com que populações de determinada espécie, antes em equilíbrio, se transformem em pragas e doenças.
A pandemia evidenciou que a preocupação com perda de vegetação não deve ficar restrita a um determinado grupo de pesquisadores. Os desmatamentos afetam a todas as pessoas, independentemente de onde elas moram ou do que fazem.
Cuidar de nossas florestas é cuidar do equilíbrio das espécies vivas do planeta e que, na ausência deste equilíbrio, nossas vidas entram em risco.
Com isso, cabe a toda a sociedade brasileira refletir e, principalmente, agir sobre a perda de 581 km2 de vegetação que ocorreu na Amazônia apenas no mês de abril deste ano, conforme dados do INPE. Este valor é 43% superior aos valores desmatados em 2020.
A situação agrava-se ainda mais, pois, é o segundo mês consecutivo de recordes históricos, já que, em março deste ano foram desmatados 368 quilômetros quadrados de floresta, 12% a mais que em 2020.
O mesmo cenário de perda de vegetação nativa se repete quando se considera o bioma Cerrado. Ainda conforme o INPE, o desmatamento nesta região em 2020 foi de 7.340 km2, que representa um aumento de 13% em relação ao ano de 2019, último período divulgado.
Nestes dois casos temos adotado a política de abrir a porteira para novas zoonoses.
Pandemias são mais um alerta, dentre vários outros, de que há algo errado na forma com a qual nos relacionamos com o meio ambiente. O atual surto que estamos passando indica a necessidade urgente de mudarmos a nossa postura e consolidarmos políticas públicas que preservem as matas.
É de se perguntar quantos alertas ainda serão necessários para entendermos que nós, auto denominados seres superiores, podemos sucumbir rapidamente quando confrontados com os seres que chamamos de inferiores.
Não dá mais
Coube a Jair Bolsonaro o duvidoso mérito de demonstrar que o atual sistema de governo não funciona. O perigo do desenho de um sistema que opõe o vencedor de uma eleição plebiscitária (portanto, uma figura forte) a um Parlamento fracionado e com baixa representatividade (o sistema proporcional de voto brasileiro garante a desproporção) já vinha sendo apontado há anos. Nem era preciso esperar a chegada de uma caricatura de homem de Estado como o atual presidente.
Caricaturas às vezes ilustram um argumento, e a maneira como Bolsonaro, em busca da reeleição, está negociando com uma agremiação política de aluguel (das quais existem dezenas) serviu também para reiterar a falência do sistema de partidos. A combinação do mau funcionamento de ambos – sistema de governo e sistema político-partidário – é, ao mesmo tempo, causa e consequência da profunda crise atual.
A amplitude da crise está levando elites pensantes no mundo político, intelectual e empresarial à convicção de que as próximas eleições não trarão uma solução, nem mesmo uma saída provisória – sequer com uma candidatura viável de terceira via. Esse “não dá mais de jeito nenhum” é o grande cenário de fundo para o que se discute no momento na Câmara em termos de reforma política. Desse cenário surgiu também a proposta do semipresidencialismo.
A proposta vem da intersecção entre o mundo acadêmico do Direito e o da política e envolve também ministros do STF. Na sua essência, significa manter a atual figura do presidente da República como chefe de Estado com a prerrogativa de nomear um primeiro-ministro (que não precisa ser parlamentar nem eleito) que, por sua vez, teria de montar um gabinete de ministros dependendo de maioria no Legislativo. O modelo é o que já existe na França e em Portugal: sem maioria no Parlamento cai o governo chefiado pelo primeiro-ministro, mas não cai o presidente eleito diretamente.
A ideia do semipresidencialismo agora lançada em debate público embute duas constatações realistas e uma forte dose de esperança. Ela assume, corretamente, que nunca funcionará o atual sistema presidencialista pelo qual o chefe do Executivo começa o governo tendo então de buscar maioria no Legislativo num sistema político-partidário fracionado e pouco representativo. E assume ainda, corretamente, que a “cultura política” brasileira precisa da figura forte do presidente (que continuaria chefe das Forças Armadas e da diplomacia) e não comportaria um parlamentarismo puro.
A esperança é a de que a necessária redução do número de partidos – elemento essencial em qualquer reforma política – se daria na medida em que surgissem dois grandes blocos no Legislativo, o da “situação” e o da “oposição”. Alteração como a introdução do voto distrital misto ajudaria, mas não seria precondição para o semipresidencialismo. A ideia em debate assume também, realisticamente, que não há perspectiva de ampla reforma política com as atuais forças em jogo no Legislativo.
De qualquer maneira, só valeria a partir de 2026. Mas não seria – e aí há um involuntário componente de ironia política – tão radical diante do que já acontece. De fato, Jair Bolsonaro divide a chefia de governo não com um, mas com dois primeiros-ministros, os presidentes da Câmara e do Senado. Já o Centrão pode ser descrito como uma “federação” de partidos de situação com uma notável diferença em relação à proposta do semipresidencialismo: no sistema de governo atual o presidente é seu refém. Ou seja, no semipresidencialismo Bolsonaro não precisaria ter medo de impeachment.
Não importam os defeitos ou vantagens desse tipo de ideia, o principal mérito político no momento está em forçar um debate para além dos sistemas de governo e político-partidário atuais, dentro dos quais não se vislumbra saída para a crise permanente. Provavelmente a discussão em torno de normas futuras surja para muitos como perda de tempo, utopia acadêmica ou impossibilidade política (ou tudo junto).
Cabe então lembrar que só há duas resoluções de crises como a que o Brasil enfrenta. Existe a saída pela negociação, compromisso e algum tipo de consenso. E a saída pelo conflito. Bolsonaro aposta no conflito.
Caricaturas às vezes ilustram um argumento, e a maneira como Bolsonaro, em busca da reeleição, está negociando com uma agremiação política de aluguel (das quais existem dezenas) serviu também para reiterar a falência do sistema de partidos. A combinação do mau funcionamento de ambos – sistema de governo e sistema político-partidário – é, ao mesmo tempo, causa e consequência da profunda crise atual.
A amplitude da crise está levando elites pensantes no mundo político, intelectual e empresarial à convicção de que as próximas eleições não trarão uma solução, nem mesmo uma saída provisória – sequer com uma candidatura viável de terceira via. Esse “não dá mais de jeito nenhum” é o grande cenário de fundo para o que se discute no momento na Câmara em termos de reforma política. Desse cenário surgiu também a proposta do semipresidencialismo.
A proposta vem da intersecção entre o mundo acadêmico do Direito e o da política e envolve também ministros do STF. Na sua essência, significa manter a atual figura do presidente da República como chefe de Estado com a prerrogativa de nomear um primeiro-ministro (que não precisa ser parlamentar nem eleito) que, por sua vez, teria de montar um gabinete de ministros dependendo de maioria no Legislativo. O modelo é o que já existe na França e em Portugal: sem maioria no Parlamento cai o governo chefiado pelo primeiro-ministro, mas não cai o presidente eleito diretamente.
A ideia do semipresidencialismo agora lançada em debate público embute duas constatações realistas e uma forte dose de esperança. Ela assume, corretamente, que nunca funcionará o atual sistema presidencialista pelo qual o chefe do Executivo começa o governo tendo então de buscar maioria no Legislativo num sistema político-partidário fracionado e pouco representativo. E assume ainda, corretamente, que a “cultura política” brasileira precisa da figura forte do presidente (que continuaria chefe das Forças Armadas e da diplomacia) e não comportaria um parlamentarismo puro.
A esperança é a de que a necessária redução do número de partidos – elemento essencial em qualquer reforma política – se daria na medida em que surgissem dois grandes blocos no Legislativo, o da “situação” e o da “oposição”. Alteração como a introdução do voto distrital misto ajudaria, mas não seria precondição para o semipresidencialismo. A ideia em debate assume também, realisticamente, que não há perspectiva de ampla reforma política com as atuais forças em jogo no Legislativo.
De qualquer maneira, só valeria a partir de 2026. Mas não seria – e aí há um involuntário componente de ironia política – tão radical diante do que já acontece. De fato, Jair Bolsonaro divide a chefia de governo não com um, mas com dois primeiros-ministros, os presidentes da Câmara e do Senado. Já o Centrão pode ser descrito como uma “federação” de partidos de situação com uma notável diferença em relação à proposta do semipresidencialismo: no sistema de governo atual o presidente é seu refém. Ou seja, no semipresidencialismo Bolsonaro não precisaria ter medo de impeachment.
Não importam os defeitos ou vantagens desse tipo de ideia, o principal mérito político no momento está em forçar um debate para além dos sistemas de governo e político-partidário atuais, dentro dos quais não se vislumbra saída para a crise permanente. Provavelmente a discussão em torno de normas futuras surja para muitos como perda de tempo, utopia acadêmica ou impossibilidade política (ou tudo junto).
Cabe então lembrar que só há duas resoluções de crises como a que o Brasil enfrenta. Existe a saída pela negociação, compromisso e algum tipo de consenso. E a saída pelo conflito. Bolsonaro aposta no conflito.
'Otoridade' na infectologia
De uma hora para outra, ele virou infectologista. Ele virou a maior autoridade sanitária do BrasilOtto Alencar (PSD-BA), presidente da CPI da Covid no Senado
Jesus é a bandeira antibolsonarista
Já antecipo que esta não é uma coluna de humor, mas uma reflexão irônica sobre o uso e o abuso que o presidente Bolsonaro está fazendo de Jesus. A marcha motorizada do último sábado em São Paulo, batizada por parte dos apoiadores de “Acelera para Cristo com Bolsonaro”, para a qual os evangélicos foram convidados, me lembrou do realismo mágico do escritor García Márquez. Algo irreal que revela como Jesus se tornou entre os bolsonaristas negacionistas um fetiche para tudo, exceto para o consolo dos que choram e morrem sozinhos e esquecidos.
Jesus, o verdadeiro, não aquele que ressoa na boca de Bolsonaro e seus motoqueiros, é o símbolo da vida e não da morte, da verdade e não da mentira. É o Jesus dos sem-teto e sem comida. O dos esquecidos e desprezados. É o símbolo do silêncio que cura e não do ruído que mata.
O Cristo da marcha ruidosa dos motociclistas de Bolsonaro é uma fake news das que o capitão machista e suas tropas armadas tanto gostam. O Jesus da marcha desapareceu de repente. Deram-se conta quando, na ausência do general Pazuello para convidá-lo a subir ao palco, Bolsonaro chamou Jesus. Sua surpresa foi que ele havia desaparecido.
O capitão reformado convocou seu enxame de policiais para que fossem procurá-lo. Onde poderia estar? Em algum bairro nobre da rica São Paulo? Em alguma favela? Em algum templo evangélico?
Nem mesmo a poderosa polícia de Bolsonaro conseguia encontrar Jesus. Até mobilizaram a polícia secreta. Nada. Perguntaram até aos mendigos. Ninguém o tinha visto.
De repente, espalhou-se a notícia de que Jesus havia aparecido. Acabara de ser encontrado por um médico em um hospital do SUS na periferia pobre de São Paulo. Estivera à cabeceira de uma mulher negra, intubada e amarrada à cama por falta de oxigênio.
Bolsonaro imediatamente quis saber mais detalhes sobre como Jesus a havia curado, se tinha sido com cloroquina. O médico e as enfermeiras juraram que Jesus não tinha dado nenhum remédio à doente, que segurou a cabeça dela nas mãos e lhe deu um beijo na testa, dizendo: “Mulher levanta-te e anda”. E a mulher ficou curada.
Bolsonaro insistiu em saber o que Jesus havia dado à mulher intubada. Uma enfermeira, falando quase sem abrir a boca, com medo, sussurrou: “Ele a curou com um gesto de amor”. Bolsonaro se irritou e comentou: “Não conheço esse remédio do amor. Com certeza ele lhe deu o que combate os piolhos”. E perguntou ainda se Jesus usava máscara. Disseram-lhe que sim e, então, fazendo uma de suas caretas típicas, ele afirmou, taxativo: “Então não era Jesus. Ele não é covarde. É macho”. Jesus era um profeta destemido. Chamou de “raposa” o imperador Herodes, que tentou impedi-lo de pregar para seu exército de doentes, leprosos, cegos e mendigos. Mas Jesus não era um valentão. Andava desarmado e a pé. Suou sangue quando soube que iriam crucificá-lo.
Já agonizando, queixou-se a Deus: “Por que me abandonastes?”, Jesus não era um super-herói. Ele se comovia com a dor alheia. Não mandava matar. Ressuscitava os mortos. “Curava todos”, escreve Lucas em seu evangelho. Não cultivava a violência nem a morte. Por isso fugiu da marcha para ir curar a mulher negra intubada e sem oxigênio.
Jesus é a bandeira antibolsonarista.
Jesus, o verdadeiro, não aquele que ressoa na boca de Bolsonaro e seus motoqueiros, é o símbolo da vida e não da morte, da verdade e não da mentira. É o Jesus dos sem-teto e sem comida. O dos esquecidos e desprezados. É o símbolo do silêncio que cura e não do ruído que mata.
O Cristo da marcha ruidosa dos motociclistas de Bolsonaro é uma fake news das que o capitão machista e suas tropas armadas tanto gostam. O Jesus da marcha desapareceu de repente. Deram-se conta quando, na ausência do general Pazuello para convidá-lo a subir ao palco, Bolsonaro chamou Jesus. Sua surpresa foi que ele havia desaparecido.
O capitão reformado convocou seu enxame de policiais para que fossem procurá-lo. Onde poderia estar? Em algum bairro nobre da rica São Paulo? Em alguma favela? Em algum templo evangélico?
Nem mesmo a poderosa polícia de Bolsonaro conseguia encontrar Jesus. Até mobilizaram a polícia secreta. Nada. Perguntaram até aos mendigos. Ninguém o tinha visto.
De repente, espalhou-se a notícia de que Jesus havia aparecido. Acabara de ser encontrado por um médico em um hospital do SUS na periferia pobre de São Paulo. Estivera à cabeceira de uma mulher negra, intubada e amarrada à cama por falta de oxigênio.
Bolsonaro imediatamente quis saber mais detalhes sobre como Jesus a havia curado, se tinha sido com cloroquina. O médico e as enfermeiras juraram que Jesus não tinha dado nenhum remédio à doente, que segurou a cabeça dela nas mãos e lhe deu um beijo na testa, dizendo: “Mulher levanta-te e anda”. E a mulher ficou curada.
Bolsonaro insistiu em saber o que Jesus havia dado à mulher intubada. Uma enfermeira, falando quase sem abrir a boca, com medo, sussurrou: “Ele a curou com um gesto de amor”. Bolsonaro se irritou e comentou: “Não conheço esse remédio do amor. Com certeza ele lhe deu o que combate os piolhos”. E perguntou ainda se Jesus usava máscara. Disseram-lhe que sim e, então, fazendo uma de suas caretas típicas, ele afirmou, taxativo: “Então não era Jesus. Ele não é covarde. É macho”. Jesus era um profeta destemido. Chamou de “raposa” o imperador Herodes, que tentou impedi-lo de pregar para seu exército de doentes, leprosos, cegos e mendigos. Mas Jesus não era um valentão. Andava desarmado e a pé. Suou sangue quando soube que iriam crucificá-lo.
Já agonizando, queixou-se a Deus: “Por que me abandonastes?”, Jesus não era um super-herói. Ele se comovia com a dor alheia. Não mandava matar. Ressuscitava os mortos. “Curava todos”, escreve Lucas em seu evangelho. Não cultivava a violência nem a morte. Por isso fugiu da marcha para ir curar a mulher negra intubada e sem oxigênio.
Jesus é a bandeira antibolsonarista.
Bolsonarismo vicia
Em abril do ano passado, em artigo publicado na revista piauí (edição 163), Uma esfinge na presidência, o cientista político Miguel Lago propôs uma chave intrigante para interpretar o bolsonarismo. Segundo o autor, quanto maior e mais conflagrado for o confronto nas redes sociais, mais sustentação terá o presidente da República – e quanto mais baixo descer a reputação do governante, mais alto soará o alarido daqueles que o sustentam. Miguel Lago previu que a bandeira do impeachment não iria minar as bases de apoio de Bolsonaro; ao contrário, ajudaria a solidificá-las. Previu e acertou. A força política de Jair Bolsonaro tornou-se tanto mais determinada, embora minoritária, quanto pior ficou sua imagem perante a opinião pública minimamente esclarecida.
A explicação para essa modalidade pútrida de “quanto pior, melhor” vem da dinâmica peculiar das mídias sociais. As compactações das multidões virtuais seguem leis que pouco ou nada têm que ver com a política dita convencional. Enquanto na cartilha dos politólogos as alianças políticas resultam da negociação de interesses e se formalizam em programas propositivos, nos algoritmos das plataformas sociais tudo acontece de ponta-cabeça: o que rende audiência, empolgação e adesão não é o que pacifica, mas o que choca, ofende, escarnece – daí o sucesso das agressões, das manifestações de ódio e da infâmia. Se nos sindicatos ou nos partidos políticos o que reúne as pessoas são os acordos mais ou menos racionais, na internet o que as congrega é o êxtase de insultar e ultrajar um inimigo real ou imaginário, num fragor que não tem parte com a razão.
Quanto mais desaforado for, quanto mais animalesco e mais boçal, mais amado será o líder ciberpopulista – para usar aqui o conceito que Andrés Bruzzone apresenta no livro "Ciberpopulismo: democracia e política no mundo digital", lançado no mês passado pela Editora Contexto. Quanto mais asqueroso e mais contrário aos bons modos, mais festejado. Essa é a receita seguida pelo presidente da República. As falanges virtuais o aclamam não apesar de sua falta de boas maneiras, mas justamente por causa delas. Quanto mais desclassificado ele for, mais idolatrado será.
Se levarmos essa perspectiva analítica um pouco mais longe, além daquilo que sustentam Miguel Lago ou Andrés Bruzzone, veremos que há um nexo nervoso, neuronal, entre a vileza dos discursos da extrema direita antidemocrática e o prazer das massas. Milhões de anônimos, encolhidos em suas misérias afetivas, sorvem a torpeza bolsonarista como quem degusta um cálice de absinto. Vão se entorpecendo de fluxos de gozo. Esses infelizes, tomados pela paixão da raiva e da intolerância, encontram nas barbaridades proferidas e alardeadas pelo fascismo de silício uma satisfação libidinal equivalente à que vai buscar nos sites pornográficos ou nos jogos online, que sabidamente exploram a dependência psíquica do freguês.
O caráter viciante das atrações da internet não é uma novidade. Em artigo para a edição 96 da revista Estudos Avançados (IEA-USP), em 2019, os professores Ricardo Abramovay e Rafael Zanata documentaram fartamente como as empresas de tecnologia administram suas funcionalidades para “gerar adição”. No ano passado, o filme "O Dilema das Redes" trouxe depoimentos de altos executivos da indústria confirmando a estratégia de causar dependência. A propósito, um deles lembra que o termo “usuário” só é utilizado para designar o consumidor de drogas e o frequentador das redes sociais, como a dizer que os traficantes e os gigantes da internet lucram com o mesmo negócio: o vício. E foi nesse negócio que o trumpismo e o bolsonarismo se deram muito bem, obrigado.
Quando confessa que veio para destruir, Bolsonaro diz a verdade. Ele é o herói da devastação, o ídolo dos que culpam o “sistema” por seus infortúnios pessoais. As almas viciadas na bestialogia querem varrer do mapa o saber científico, a imprensa crítica e as artes, pois essas instituições fazem doer, de forma humilhante, a ferida da ignorância bruta. Os adictos do bolsonarismo querem banir os jornalistas com a mesma sanguinolência com que os homofóbicos assassinam gays e os machistas espancam o feminismo, com a mesma tara mortífera com que os racistas proclamam que o Brasil é uma “democracia” racial. O ódio contra o tal “sistema” – que no fundo é o que nos resta de civilização – leva o sujeito a exterminar a própria liberdade para se entregar à tirania. Só aí deixará de padecer. A visão da beleza é insuportável para ele.
As massas dependentes no ciberbolsonarismo são descendentes diretas dos espectadores do circo romano, em que gladiadores e feras se retalham reciprocamente. O frêmito que experimentam é o mesmo. Apontando o polegar para o chão, plateia do horror, de ontem e de hoje, se imagina admitida na arena dos assuntos de Estado. A política vai se reduzindo à celebração gozosa dos linchamentos físicos e morais. Ser cidadão é esquartejar o outro. Por prazer. Esse vício vai nos matar a todos de overdose.
A explicação para essa modalidade pútrida de “quanto pior, melhor” vem da dinâmica peculiar das mídias sociais. As compactações das multidões virtuais seguem leis que pouco ou nada têm que ver com a política dita convencional. Enquanto na cartilha dos politólogos as alianças políticas resultam da negociação de interesses e se formalizam em programas propositivos, nos algoritmos das plataformas sociais tudo acontece de ponta-cabeça: o que rende audiência, empolgação e adesão não é o que pacifica, mas o que choca, ofende, escarnece – daí o sucesso das agressões, das manifestações de ódio e da infâmia. Se nos sindicatos ou nos partidos políticos o que reúne as pessoas são os acordos mais ou menos racionais, na internet o que as congrega é o êxtase de insultar e ultrajar um inimigo real ou imaginário, num fragor que não tem parte com a razão.
Quanto mais desaforado for, quanto mais animalesco e mais boçal, mais amado será o líder ciberpopulista – para usar aqui o conceito que Andrés Bruzzone apresenta no livro "Ciberpopulismo: democracia e política no mundo digital", lançado no mês passado pela Editora Contexto. Quanto mais asqueroso e mais contrário aos bons modos, mais festejado. Essa é a receita seguida pelo presidente da República. As falanges virtuais o aclamam não apesar de sua falta de boas maneiras, mas justamente por causa delas. Quanto mais desclassificado ele for, mais idolatrado será.
Se levarmos essa perspectiva analítica um pouco mais longe, além daquilo que sustentam Miguel Lago ou Andrés Bruzzone, veremos que há um nexo nervoso, neuronal, entre a vileza dos discursos da extrema direita antidemocrática e o prazer das massas. Milhões de anônimos, encolhidos em suas misérias afetivas, sorvem a torpeza bolsonarista como quem degusta um cálice de absinto. Vão se entorpecendo de fluxos de gozo. Esses infelizes, tomados pela paixão da raiva e da intolerância, encontram nas barbaridades proferidas e alardeadas pelo fascismo de silício uma satisfação libidinal equivalente à que vai buscar nos sites pornográficos ou nos jogos online, que sabidamente exploram a dependência psíquica do freguês.
O caráter viciante das atrações da internet não é uma novidade. Em artigo para a edição 96 da revista Estudos Avançados (IEA-USP), em 2019, os professores Ricardo Abramovay e Rafael Zanata documentaram fartamente como as empresas de tecnologia administram suas funcionalidades para “gerar adição”. No ano passado, o filme "O Dilema das Redes" trouxe depoimentos de altos executivos da indústria confirmando a estratégia de causar dependência. A propósito, um deles lembra que o termo “usuário” só é utilizado para designar o consumidor de drogas e o frequentador das redes sociais, como a dizer que os traficantes e os gigantes da internet lucram com o mesmo negócio: o vício. E foi nesse negócio que o trumpismo e o bolsonarismo se deram muito bem, obrigado.
Quando confessa que veio para destruir, Bolsonaro diz a verdade. Ele é o herói da devastação, o ídolo dos que culpam o “sistema” por seus infortúnios pessoais. As almas viciadas na bestialogia querem varrer do mapa o saber científico, a imprensa crítica e as artes, pois essas instituições fazem doer, de forma humilhante, a ferida da ignorância bruta. Os adictos do bolsonarismo querem banir os jornalistas com a mesma sanguinolência com que os homofóbicos assassinam gays e os machistas espancam o feminismo, com a mesma tara mortífera com que os racistas proclamam que o Brasil é uma “democracia” racial. O ódio contra o tal “sistema” – que no fundo é o que nos resta de civilização – leva o sujeito a exterminar a própria liberdade para se entregar à tirania. Só aí deixará de padecer. A visão da beleza é insuportável para ele.
As massas dependentes no ciberbolsonarismo são descendentes diretas dos espectadores do circo romano, em que gladiadores e feras se retalham reciprocamente. O frêmito que experimentam é o mesmo. Apontando o polegar para o chão, plateia do horror, de ontem e de hoje, se imagina admitida na arena dos assuntos de Estado. A política vai se reduzindo à celebração gozosa dos linchamentos físicos e morais. Ser cidadão é esquartejar o outro. Por prazer. Esse vício vai nos matar a todos de overdose.
Vacinas e liberdade
Esta semana trouxe para a minha geração um sopro de esperança. Com a chegada da vez dos cinquentões na fila da vacina e a iminência de as pessoas de mais de 40 anos também começarem a ser contempladas (quarta-feira sou eu!), a sensação é de alívio, por ver irmãos, companheiros, primos, cunhados, amigos de infância, colegas de faculdade e outros contemporâneos finalmente a caminho de estarem mais protegidos contra o vírus que paralisou nossa vida há um ano e três meses, já.
Vacina é liberdade, pensei quando recebi a foto do meu marido tomando a primeira dose da vacina no braço esquerdo, no dia do seu aniversário.
E é por essa constatação básica, a que cada vez mais brasileiros chegarão à medida que a imunização avançar, que é mais criminosa a contraposição que Jair Bolsonaro, sempre ele, faz entre vacinação e liberdade.
A explicação (sic) dada pelo presidente no cercadinho dos horrores de seus seguidores para não sancionar, caso seja aprovado, o projeto em tramitação no Congresso que cria uma espécie de passaporte de imunidade é sem pé nem cabeça. Mal disfarça a real motivação de Bolsonaro: ele é, incorrigivelmente, um “antivax”. Continua a sabotar a vacinação mesmo quando estamos chegando a 500 mil mortos, e a CPI avança para responsabilizá-lo e a seu governo por essa matança.
O mesmo Bolsonaro, menos de uma semana antes, dizia que a vacina, vejam só, seria o passaporte para a liberdade de andar sem máscara. Existe uma clara contradição entre as duas falas, ambas estapafúrdias e fruto do mesmo negacionismo, traduzido em política de Estado.
Ironicamente, o Certificado de Imunização e Segurança Sanitária, estabelecido pelo projeto de lei 1674/2021, contra o qual o presidente se insurgiu, seria um passaporte para muitos dos fetiches bolsonarescos: relaxar medidas de distanciamento social, garantir o tão repisado e pouco compreendido “direito de ir e vir” e realizar, com maior grau de segurança, eventos com público. Não, ele não torna a vacinação obrigatória, como desinforma uma vez mais Bolsonaro.
Mais: com 11,4% da população apta a ser vacinada tendo recebido as duas doses, é uma discussão inócua neste momento. Porque o Brasil não tem como garantir passaporte de imunidade a ninguém com o vírus em alta taxa de transmissão.
Por tudo isso, uma vez mais, o que Bolsonaro faz é o oposto do que propaga: o presidente investe contra a liberdade, que só será plenamente assegurada quando um grande percentual da população estiver finalmente vacinado. É esse tipo de discurso que um estadista responsável tem de fazer.
Liberdade é aquilo que começam a desfrutar moradores de vários pontos dos Estados Unidos em que a vacinação avança de vento em popa.
Existe um consenso entre economistas, historiadores e cientistas, segundo o qual a grande depressão causada pela Covid-19 será sucedida por um boom de crescimento, prosperidade, inovação científica e tecnológica, revoluções culturais e comportamentais. É o que acontece em períodos subsequentes a pandemias e guerras.
Essa verdadeira e desejável liberdade não será vivida de forma tão pujante no Brasil, preso a uma administração tacanha, que subjuga a vida e os reais direitos da população à ignorância orgulhosa de um governante errado no momento mais errado possível.
Vacina é liberdade, pensei quando recebi a foto do meu marido tomando a primeira dose da vacina no braço esquerdo, no dia do seu aniversário.
E é por essa constatação básica, a que cada vez mais brasileiros chegarão à medida que a imunização avançar, que é mais criminosa a contraposição que Jair Bolsonaro, sempre ele, faz entre vacinação e liberdade.
A explicação (sic) dada pelo presidente no cercadinho dos horrores de seus seguidores para não sancionar, caso seja aprovado, o projeto em tramitação no Congresso que cria uma espécie de passaporte de imunidade é sem pé nem cabeça. Mal disfarça a real motivação de Bolsonaro: ele é, incorrigivelmente, um “antivax”. Continua a sabotar a vacinação mesmo quando estamos chegando a 500 mil mortos, e a CPI avança para responsabilizá-lo e a seu governo por essa matança.
Segundo a lógica tortuosa do capitão, sancionar o projeto implicaria tornar a vacina obrigatória, algo que ele, em nome de uma liberdade difícil de compreender, nunca fará.
O mesmo Bolsonaro, menos de uma semana antes, dizia que a vacina, vejam só, seria o passaporte para a liberdade de andar sem máscara. Existe uma clara contradição entre as duas falas, ambas estapafúrdias e fruto do mesmo negacionismo, traduzido em política de Estado.
Ironicamente, o Certificado de Imunização e Segurança Sanitária, estabelecido pelo projeto de lei 1674/2021, contra o qual o presidente se insurgiu, seria um passaporte para muitos dos fetiches bolsonarescos: relaxar medidas de distanciamento social, garantir o tão repisado e pouco compreendido “direito de ir e vir” e realizar, com maior grau de segurança, eventos com público. Não, ele não torna a vacinação obrigatória, como desinforma uma vez mais Bolsonaro.
Vai funcionar? Talvez não. A crítica feita pelo vice, Hamilton Mourão, em entrevista a Malu Gaspar, é mais razoável: parece uma ideia de difícil execução no Brasil. Embora o general também se equivoque ao dizer que as pessoas teriam de andar com um papel para todo canto. Trata-se, pelo projeto, de um documento digital, consultado numa base de dados.
Mais: com 11,4% da população apta a ser vacinada tendo recebido as duas doses, é uma discussão inócua neste momento. Porque o Brasil não tem como garantir passaporte de imunidade a ninguém com o vírus em alta taxa de transmissão.
Por tudo isso, uma vez mais, o que Bolsonaro faz é o oposto do que propaga: o presidente investe contra a liberdade, que só será plenamente assegurada quando um grande percentual da população estiver finalmente vacinado. É esse tipo de discurso que um estadista responsável tem de fazer.
Liberdade é aquilo que começam a desfrutar moradores de vários pontos dos Estados Unidos em que a vacinação avança de vento em popa.
Existe um consenso entre economistas, historiadores e cientistas, segundo o qual a grande depressão causada pela Covid-19 será sucedida por um boom de crescimento, prosperidade, inovação científica e tecnológica, revoluções culturais e comportamentais. É o que acontece em períodos subsequentes a pandemias e guerras.
Essa verdadeira e desejável liberdade não será vivida de forma tão pujante no Brasil, preso a uma administração tacanha, que subjuga a vida e os reais direitos da população à ignorância orgulhosa de um governante errado no momento mais errado possível.
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