sábado, 11 de novembro de 2023

Pensamento do Dia

 


A guerra de cada um

Existiram um dia a Ucrânia, a Palestina, Israel, e têm direito de continuar existindo? Como? São perguntas que afloram ao ler A Ucrânia de cada um, livro organizado por Flávio Limoncic e Monica Grin na emoção da guerra fratricida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também fratricida batalha de Gaza.

Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram sua vida no Brasil e em outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passou. E estes, estimulados a construir sua vida no novo mundo, olhavam para a frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais. Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar e é preciso lembrar de onde viemos.


Os velhos se foram, os filhos e netos amadureceram e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e fotografias, em registros e nas redes de internet as histórias de seus pais e o sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no domínio de cada uma das antigas cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia, Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kishinev – quase todas hoje partes da Ucrânia, da Moldova e da Polônia.

As histórias familiares fazem parte da identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Em razão do que passou, é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local, baseada numa língua comum e em instituições comunitárias, de cunho religioso ou não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão numa importante tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as Américas e que, aos poucos, vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à tradição do messianismo religioso do hassidismo, seja no sionismo secular em suas diferentes vertentes. Ou, finalmente, pela busca de identidades novas: participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fossem o nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e na cultura de países europeus como Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão bem-sucedida quanto o foi nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.

A Ucrânia foi por muito tempo lugar de coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica, mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser reconhecidos e apreciados.

Meu tataravô materno, no século 19, fazia parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões religiosas, terminar sua vida em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola, onde nasceu minha mãe. Meu pai se dizia romeno, nascido numa das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa, hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.

Nada disso nos dá uma solução simples para as guerras de hoje, mas fica, ao menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar. Na apresentação do livro, Flávio e Monica citam Bashevis Singer dizendo que, na língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios militares ou táticas de guerra. Hoje, são estas as palavras que mais se ouvem nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um Estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da Primeira Guerra Mundial. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.

Entre o ódio e a vingança, o trauma do cerco e aniquilamento de Gaza

O Adeus às Armas, de Ernest Hemingway, publicado em 1929, é um romance quase autobiográfico, cujo protagonista é um americano que participa da Primeira Guerra Mundial como voluntário no exército italiano. É uma história de amor entre um soldado ferido na perna e uma enfermeira, que se conheceram no hospital. O relacionamento se consolidou e resultou num filho do casal, mas o soldado teve que voltar à guerra. Ao retornar, já estava exausto do conflito, como a maioria dos seus companheiros. O herói deserta. A guerra se estendia por tempo demais.

Esse tipo de situação fora comum no front da Primeira Guerra Mundial, entre soldados alemães e ingleses, que chegaram a se confraternizar no Natal e realizar animadas partidas de futebol. Com base no que ocorreu, o Estado-maior britânico desenvolveu o conceito de “sombra de futuro”: os soldados procuram ganhar tempo, em ataques e retaliações quase que combinadas, à espera de que os políticos e os generais assinem um armistício. Era mais ou menos o que acontecia entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, até 7 de outubro passado, quando a milícia palestina realizou um inédito ataque terrorista a Israel, que matou 1.400 pessoas, das quais 828 civis e 31 crianças. Mais de 240 pessoas foram feitas reféns.

A retaliação de Israel ao Hamas na Palestina é uma operação de cerco e aniquilamento na cidade de Gaza e seus arredores, com bombardeios implacáveis, às vezes, indiscriminados, que deslocaram mais de um milhão de palestinos do Norte para o Sul da região. Até o dia 6, segundo a BBC, somavam 25, 4 mil palestinos feridos e 10 mil mortos, sendo 2,55 mil mulheres, 596 idosos e 4,1 mil crianças. Estão desaparecidos 2,5 mil palestinos, sendo 1,3 mil crianças, provavelmente soterradas nos bombardeios. Na Cisjordânia, 114 palestinos já foram mortos em ações do Exército de Israel. Mais de 200 mil habitações foram destruídas, e há 1,5 milhão de desalojados, de uma população de 2,2 milhões da Faixa de Gaza.


A doutrina da guerra justa (Bellum iustum ou jus ad bellum) define em quais condições a guerra é uma ação moralmente aceitável. O conceito foi cunhado por Agostinho de Hipona (354-430), inspirado em Cícero, e também foi usado como justificativa para as Cruzadas. Além de Agostinho, Tomás de Aquino (1225-1274) e Hugo Grócio (1583-1645), em O direito da guerra e da paz, defenderam essa doutrina. A expressão guerra justa faz parte da cultura jurídico-política do Ocidente. Na Roma Antiga, Cícero ensinou que havia bellum iustum quando os romanos entravam em guerra contra uma nação estrangeira por eventuais danos sofridos ou temidos.

As Forças de Defesa de Israel (FDI), fundadas em 1948, estão entre os exércitos mais experientes em batalhas no mundo, tendo participado de seis grandes guerras. Suas responsabilidades são defender a soberania e a integridade territorial do Estado de Israel, deter todos os inimigos e coibir todas as formas de terrorismo que ameacem a vida diária. Em tese, suas tarefas são a consolidação de acordos de paz, como os celebrados com o Egito e a Jordânia; garantir a segurança na Cisjordânia em coordenação com a Autoridade Palestina; liderar a guerra contra o terrorismo, dentro e além de suas fronteiras; e manter a capacidade de dissuasão de ataques.

A estratégia militar de Israel é defensiva, mas suas táticas são ofensivas. Como não possui profundidade territorial, precisa tomar a iniciativa e, rapidamente, levar a batalha para o território do inimigo. Embora em menor número do que os exércitos vizinhos, as FDI possuem vantagem qualitativa, graças aos recursos e ao apoio estratégico que recebe dos Estados Unidos, e os sistemas de armas avançadas de que dispõe, entre os quais a bomba atômica, um segredo de polichinelo.

O efetivo regular do exército de Israel é pequeno, porém muito operacional. Sua força maior reside na capacidade de mobilizar homens e mulheres reservistas bem treinados, em todas as regiões do país. Todo o seu poderio está sendo demonstrado nessa operação de cerco e aniquilamento do Hamas, que já destruiu praticamente todo o norte da Faixa de Gaza. Entretanto, o conceito de guerra justa está sendo posto em xeque em razão dos sofrimentos impostos aos palestinos, sobretudo idosos, mulheres e crianças, além de destruição de seus lares, hospitais e escolas. A ONU afirma que 88 funcionários da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) já foram mortos, com 18 trabalhadores da defesa civil. Até 5 de novembro, também morreram 46 jornalistas nos ataques de Israel.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, anunciou a ocupação da Faixa de Gaza pelo exército de Israel “por tempo indeterminado”. Entre o ódio e a vingança, há uma guerra de narrativas sobre o que acontece em Gaza. Os refugiados palestinos têm seu lugar de fala, assim como os soldados de Israel, que agora caminham sobre escombros e entre milhares de cadáveres. Nos Estados Unidos, o chamado transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) atingiu 800 mil veteranos do Vietnã, 175.000 combatentes da Guerra do Golfo e outros 300 mil retornados do Iraque e do Afeganistão. Nos “corredores da morte” nos EUA, 10% dos condenados são veteranos. O trauma da guerra, como na obra de Hemingway, sempre atinge os soldados.

A hipocrisia da linguagem: o que é terrorismo?

As palavras também podem matar como armas. Elas estão fazendo isso neste momento das duas guerras que assustam o mundo e fazem correr rios de sangue. Basta olhar as notícias para compreender que, por exemplo, a palavra terrorismo acumula vítimas mortais.

Sob o toldo do terrorismo, esconde-se a vingança e infiltram-se interesses puramente políticos. Não é necessário recorrer aos dicionários para saber que o termo terrorismo evoca agora e sempre medo, pânico, horror, vingança, morte, dor e injustiça.

Se fosse feito um estudo sobre as palavras que estão sendo usadas em todo o mundo devido, por exemplo, à guerra em Israel, veríamos que o terrorismo domina a língua.


A palavra terrorismo não necessita de exegese excessiva. Até as crianças sabem o que é e por vezes são as maiores vítimas, como está a acontecer no Oriente Médio.

Aqui no Brasil, o governo progressista de Lula e principalmente os líderes de seu partido, o PT, sofrem com a discussão se o Hamas é ou não um grupo terrorista ou simplesmente de libertação.

Lula tem usado a desculpa de não admitir que o Hamas é terrorista porque a ONU também não o considera porque o Hamas foi eleito nas urnas. É novamente a ambiguidade da linguagem. Negar, a esta hora, depois de tanto sangue derramado de ambos os lados, que o terrorismo invadiu o conflito entre Israel e a Palestina, é infantil.

Neste momento o governo brasileiro ainda luta para libertar 30 dos seus cidadãos que não podem sair de Gaza e especula-se que seja a vingança de Israel pela ambiguidade em não considerar o Hamas como terrorista.

Mais uma vez a linguagem ao serviço da violência e da morte. E neste momento e depois do horror que o mundo inteiro vê nesta guerra, pouco importa se o sangue derramado, a dor acumulada, as crianças e mulheres sacrificadas e o peso da vingança atávica são chamados de uma forma ou de outra. Nada pior e mais perigoso do que a hipocrisia.

O que o mundo precisa é que acabe esta guerra, o que esperamos que aconteça o mais rapidamente possível; que volte o espírito da razão para poder chamar as coisas pelo seu nome próprio e que a luz da paz reemerja para ambos os povos em eterno conflito, sem que nenhum deles tente eliminar o outro.

A ideia, por exemplo, que sempre falhou, de que Israel e Palestina podem coexistir em paz, como dois povos que, em suma, têm as mesmas raízes históricas, de alguma forma até o mesmo Deus a adorar, pode parecer banal ou ingênua. E para que esta utopia se torne realidade é necessário começar a rever a linguagem até agora utilizada que evoca apenas dor, morte e vingança.

Se política e democracia são palavras que devem evocar tempos de paz e harmonia entre os diferentes, é necessário que sejam novamente espanadas à luz do sol, sem serem distorcidas.

Se pode parecer difícil definir qual violência é terrorista e qual é libertadora, até que ponto pode ir a legítima defesa e a sede de vingança, é fácil compreender o que cada um de nós carrega gravado na pele e que evoca a sede de paz, de felicidade, de harmonia, de diálogo, de culturas reunidas que nos enriquecem.

É lamentável o fato de neste momento palavras malditas como genocídio e holocausto, ou o apelido de ratos para definir os judeus, serem mais uma vez ouvidas e defendidas na boca de alguns políticos de extrema direita, mesmo aqui no Brasil

Não se trata de pessimismo ou otimismo. Estão em jogo valores fundamentais que, se forem quebrados, poderá arrastar-nos para o pessimismo daqueles que continuam a pensar que os tempos passados foram melhores.

Hoje, figuras que um dia pegaram em armas em movimentos revolucionários de várias cores e que foram descritos como terroristas estão a entrar na política e a abraçar os valores da democracia. Nem sempre é fácil para eles.

A ascensão no mundo da extrema direita golpista e nostálgica das antigas ditaduras ressuscita mais uma vez a linguagem do terror, do medo, da vingança e da literatura da morte contra a vida. Talvez não seja precisamente com a nova onda de extremismo fascista e mesmo com conotações nazistas que as velhas guerras que pareciam apenas um pesadelo do passado tenham rebentado novamente.

Vemos que a linguagem e a força que ela implica podem ser objeto de paz ou de guerra nas palavras de ordem dos novos e obscuros líderes populistas que começam a emergir juntamente com os novos conflitos armados.

Palavras de dicionário que pareciam ter sido abandonadas com a chegada das democracias e dos valores libertários, como ditadura, tortura, genocídio, guerra, censura e até holocausto, começam a levantar a cabeça, ameaçando nos devolver a tempos que pensávamos derrotados.

Daí a importância que atinge hoje a liturgia do voto nas urnas. Não é mais simplesmente um jogo ou esporte democrático. É um novo imperativo, o último refúgio que temos contra o perigo de que os velhos demônios do terror possam ressuscitar.

Talvez, como aqui no Brasil, a guerra contra as urnas e contra o voto livre estivesse prestes a devolver o país aos tempos de terror fascista.

Israel perde a guerra pelos corações e mentes do mundo ocidental

O presidente francês Emmanuel Macron disse o que está na cabeça da maioria dos seus colegas europeus. Em entrevista à BBC, falou que “não há justificativa” para o contínuo bombardeio de Gaza por Israel, acrescentando que um cessar-fogo beneficiaria Israel.

O líder francês afirmou que reconhece o direito de Israel de se defender, mas pediu a Israel que pare com os bombardeios:

“De fato, civis são bombardeados. Estes bebês, estas senhoras, estes idosos são bombardeados e mortos. Portanto, não há razão para isso nem legitimidade. Nós pedimos a Israel para parar com os bombardeios”.


Perguntaram a Macron se ele queria que outros líderes, incluindo os dos Estados Unidos e Reino Unido, se juntassem aos seus apelos por um cessar-fogo. Macron respondeu:

“Espero que o façam”.

Macron foi um dos primeiros chefes de Estado a visitarem Tel Aviv depois do atentado terrorista do Hamas em 7 de outubro. Foi solidário com Israel e advogou seu direito a defender-se.

Mas reconhece que crimes de guerra como os cometidos pelo Hamas não podem ser respondidos com crimes de guerra. Observa Francesca Albanese, relatora da ONU:

“Atirar, matar, abusar de civis ou sequestrá-los como fez o Hamas é crime de guerra. Mas a resposta de Israel com ataques a hospitais, escolas e casas de civis também é crime de guerra”.

O secretário de Estado americano Antony J. Blinken comentou na sexta-feira  que “muitos palestinos foram mortos” em Gaza:

“Muitos palestinos foram mortos. Muitos sofreram nas últimas semanas. E queremos fazer todo o possível para evitar danos a eles e maximizar a assistência que lhes chega.”

O comentário de Blinken é a mais recente indicação de que o governo Joe Biden está cada vez mais preocupado com o número de civis mortos sob o bombardeio e a invasão terrestre de Israel.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu respondeu a Macron, dizendo que “a responsabilidade pelos danos aos civis cabe ao Hamas e à organização Estado Islâmico, não a Israel”.

Netanyahu parece uma barata tonta. Já disse que Israel ocupará a Faixa de Gaza tão logo destrua o Hamas. Pressionado por Biden, recuou e disse que não seria assim. Agora, repete que será assim.

A Faixa de Gaza virou um campo de concentração como os campos de concentração onde mais de 6 milhões de judeus foram exterminados durante a Segunda Guerra Mundial.

A guerra entre Israel e o Hamas é o holocausto do povo palestino.
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