domingo, 27 de abril de 2025
Em 100 dias, o fim de 100 anos de domínio
À medida que o governo Trump inunda a zona do euro com sucessivas mudanças radicais, suas tarifas têm recebido mais atenção. Mas a política que pode acabar custando ainda mais aos EUA a longo prazo é o ataque da Casa Branca às universidades e à pesquisa em geral.
Os EUA lideram o mundo em ciências há tanto tempo que é fácil acreditar que este recurso sempre foi uma das forças naturais do país. Na realidade, no século 19 e no início do século 20, Washington foi mais seguidor do que líder. Industriais britânicos frequentemente reclamavam que empresas americanas lhes roubavam tecnologias e violavam suas patentes. Nas primeiras décadas do século 20, o país que conquistou o maior número de Prêmios Nobel em Ciências foi a Alemanha – com um terço de todas as premiações. Em seguida, veio o Reino Unido, com quase 20%. Os EUA receberam apenas 6% dos Prêmios Nobel em Ciências.
Três forças poderosas transformaram o cenário científico em meados do século 20. A primeira foi Adolf Hitler, que levou uma geração das melhores mentes científicas da Europa – muitas delas judias – a buscar refúgio nos EUA (cerca de um quarto dos laureados com o Nobel em Ciências pela Alemanha até 1932 era de judeus, enquanto menos de 1% da população alemã era judia). Muitos desses cientistas vieram para os EUA e constituíram a espinha dorsal do establishment científico americano. Após a reforma imigratória de 1965, os EUA continuaram a atrair as melhores mentes do mundo, muitas da China e da Índia, que vinham estudar, ficavam e erguiam laboratórios de pesquisa e empresas de tecnologia.
GUERRAS. As duas guerras mundiais foram a segunda força. Em 1945, o Reino Unido, a França e, principalmente, a Alemanha estavam devastados, com milhões de cidadãos mortos, cidades reduzidas a escombros e governos incapacitados por montanhas de dívidas. A União Soviética saiu-se vitoriosa da 2.ª Guerra, mas perdeu cerca de 24 milhões de pessoas no conflito. Os EUA, por outro lado, emergiram da guerra com domínio absoluto em termos econômicos, tecnológicos e militares.
A terceira força que impulsionou os EUA foi a decisão visionária do governo americano de se tornar um grande financiador de ciência básica. Durante a década de 50, o gasto total com pesquisa e desenvolvimento nos EUA atingiu quase 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB), a maior fatia de gasto com esse tipo de investimento no planeta. E isso foi possível graças à criação de um modelo inovador. Universidades de todo o país, públicas e privadas, competiam por verbas governamentais para pesquisas. O governo federal assinava os cheques, mas não tentava controlar os programas. Essa competição e essa liberdade criaram o establishment científico americano moderno, o mais bem-sucedido da história da humanidade.
Essas três forças estão sendo revertidas. O governo Trump está em guerra com as principais universidades do país, ameaçando-as com mecanismos de controle hostis e retendo bilhões de dólares em financiamento para pesquisas. Os Institutos Nacionais de Saúde e a Fundação Nacional de Ciências, as joias da coroa da ciência americana, estão sendo evisceradas.
CHINA. A segunda vantagem dos EUA, se destacar em relação a todos os países do mundo, obviamente diminuiu desde 1945. Mas vale ressaltar que, na última década, a China se tornou líder mundial em muitas métricas importantes no campo da ciência. A China tem uma participação maior do que os EUA em artigos publicados nos 82 principais periódicos científicos monitorados pelo Nature Index. Em artigos sobre engenharia e tecnologia, a China também está bem à frente dos EUA. Em pedidos de patentes, não há mais competição: a China recebe quase metade de todos os pedidos no mundo. E mesmo em termos de universidades de ponta a China passou de 27 instituições entre as 500 melhores em 2010 para 76 em 2020, segundo uma métrica. Os EUA foram na direção oposta, de 154 para 133.
IMIGRANTES. A vantagem final dos americanos, que a China não conseguiu igualar, é que os EUA atraem os melhores e mais brilhantes indivíduos do mundo. Entre 2000 e 2014, mais de um terço dos americanos que ganharam Prêmios Nobel em Ciências era imigrante. Em 2019, quase 40% de todos os desenvolvedores de software eram imigrantes e, nos principais centros de câncer, em 2015, a porcentagem de imigrantes variava entre cerca de 30% (no Fred Hutchinson) e 62% (no MD Anderson).
Mas isso está mudando rapidamente. Centenas de vistos estão sendo revogados, estudantes estão sendo detidos para ser deportados e estudantes de pós-graduação e pesquisadores chineses agora estão diante da perspectiva de ser foco de constantes investigações do FBI. A China criou incentivos generosos para receber seus melhores e mais brilhantes indivíduos de volta ao país. Muitos outros estão optando por ir para outros lugares – como Europa, Canadá e Austrália. No mês passado, a revista Nature perguntou a leitores pesquisadores americanos se eles estavam pensando em deixar o país. Dos mais de 1,6 mil que responderam, impressionantes 75% disseram que consideravam a ideia.
Estamos falando dos elementos fundamentais da força extraordinária dos EUA, que se formaram ao longo dos últimos 100 anos e agora estão sendo desmantelados em apenas 100 dias.
Os EUA lideram o mundo em ciências há tanto tempo que é fácil acreditar que este recurso sempre foi uma das forças naturais do país. Na realidade, no século 19 e no início do século 20, Washington foi mais seguidor do que líder. Industriais britânicos frequentemente reclamavam que empresas americanas lhes roubavam tecnologias e violavam suas patentes. Nas primeiras décadas do século 20, o país que conquistou o maior número de Prêmios Nobel em Ciências foi a Alemanha – com um terço de todas as premiações. Em seguida, veio o Reino Unido, com quase 20%. Os EUA receberam apenas 6% dos Prêmios Nobel em Ciências.
Três forças poderosas transformaram o cenário científico em meados do século 20. A primeira foi Adolf Hitler, que levou uma geração das melhores mentes científicas da Europa – muitas delas judias – a buscar refúgio nos EUA (cerca de um quarto dos laureados com o Nobel em Ciências pela Alemanha até 1932 era de judeus, enquanto menos de 1% da população alemã era judia). Muitos desses cientistas vieram para os EUA e constituíram a espinha dorsal do establishment científico americano. Após a reforma imigratória de 1965, os EUA continuaram a atrair as melhores mentes do mundo, muitas da China e da Índia, que vinham estudar, ficavam e erguiam laboratórios de pesquisa e empresas de tecnologia.
GUERRAS. As duas guerras mundiais foram a segunda força. Em 1945, o Reino Unido, a França e, principalmente, a Alemanha estavam devastados, com milhões de cidadãos mortos, cidades reduzidas a escombros e governos incapacitados por montanhas de dívidas. A União Soviética saiu-se vitoriosa da 2.ª Guerra, mas perdeu cerca de 24 milhões de pessoas no conflito. Os EUA, por outro lado, emergiram da guerra com domínio absoluto em termos econômicos, tecnológicos e militares.
A terceira força que impulsionou os EUA foi a decisão visionária do governo americano de se tornar um grande financiador de ciência básica. Durante a década de 50, o gasto total com pesquisa e desenvolvimento nos EUA atingiu quase 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB), a maior fatia de gasto com esse tipo de investimento no planeta. E isso foi possível graças à criação de um modelo inovador. Universidades de todo o país, públicas e privadas, competiam por verbas governamentais para pesquisas. O governo federal assinava os cheques, mas não tentava controlar os programas. Essa competição e essa liberdade criaram o establishment científico americano moderno, o mais bem-sucedido da história da humanidade.
Essas três forças estão sendo revertidas. O governo Trump está em guerra com as principais universidades do país, ameaçando-as com mecanismos de controle hostis e retendo bilhões de dólares em financiamento para pesquisas. Os Institutos Nacionais de Saúde e a Fundação Nacional de Ciências, as joias da coroa da ciência americana, estão sendo evisceradas.
CHINA. A segunda vantagem dos EUA, se destacar em relação a todos os países do mundo, obviamente diminuiu desde 1945. Mas vale ressaltar que, na última década, a China se tornou líder mundial em muitas métricas importantes no campo da ciência. A China tem uma participação maior do que os EUA em artigos publicados nos 82 principais periódicos científicos monitorados pelo Nature Index. Em artigos sobre engenharia e tecnologia, a China também está bem à frente dos EUA. Em pedidos de patentes, não há mais competição: a China recebe quase metade de todos os pedidos no mundo. E mesmo em termos de universidades de ponta a China passou de 27 instituições entre as 500 melhores em 2010 para 76 em 2020, segundo uma métrica. Os EUA foram na direção oposta, de 154 para 133.
IMIGRANTES. A vantagem final dos americanos, que a China não conseguiu igualar, é que os EUA atraem os melhores e mais brilhantes indivíduos do mundo. Entre 2000 e 2014, mais de um terço dos americanos que ganharam Prêmios Nobel em Ciências era imigrante. Em 2019, quase 40% de todos os desenvolvedores de software eram imigrantes e, nos principais centros de câncer, em 2015, a porcentagem de imigrantes variava entre cerca de 30% (no Fred Hutchinson) e 62% (no MD Anderson).
Mas isso está mudando rapidamente. Centenas de vistos estão sendo revogados, estudantes estão sendo detidos para ser deportados e estudantes de pós-graduação e pesquisadores chineses agora estão diante da perspectiva de ser foco de constantes investigações do FBI. A China criou incentivos generosos para receber seus melhores e mais brilhantes indivíduos de volta ao país. Muitos outros estão optando por ir para outros lugares – como Europa, Canadá e Austrália. No mês passado, a revista Nature perguntou a leitores pesquisadores americanos se eles estavam pensando em deixar o país. Dos mais de 1,6 mil que responderam, impressionantes 75% disseram que consideravam a ideia.
Estamos falando dos elementos fundamentais da força extraordinária dos EUA, que se formaram ao longo dos últimos 100 anos e agora estão sendo desmantelados em apenas 100 dias.
Precisamos dar voz aos invisíveis
Nos últimos meses, venho liderando uma ampla pesquisa que investiga a natureza da polarização política no Brasil. Aproveito o espaço desta coluna para compartilhar alguns entendimentos e resultados preliminares desse trabalho, que ajudam a desenhar um retrato mais preciso do conflito que atravessa nossa sociedade.
A polarização política parece envolver toda a sociedade, mas o antagonismo, na verdade, é puxado por pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população, ladeados por segmentos “semiativistas”, que compõem outros 15%. Entre esses dois polos, há uma grande maioria silenciosa, silenciada, de aproximadamente 60% do Brasil — são os invisíveis.Essa maioria — moderada e um pouco desinteressada de política — se torna invisível pela agitação ativista dos polos nas mídias sociais, que terminam se fazendo passar pelo todo. Quando dividimos mentalmente o Brasil entre petistas e bolsonaristas, não apenas representamos o país de maneira imprecisa, mas bloqueamos também qualquer discussão de propostas matizadas e independentes, porque acreditamos que não contemplariam grupos que erroneamente acreditamos majoritários.
No entanto, mesmo nos temas divisivos das guerras culturais, há mais antagonismo afetivo — hostilidade pelo adversário —do que propriamente divergência de opinião. Embora os grupos antagônicos se imaginem radicalmente diferentes, eles muitas vezes secretamente convergem. Progressistas e conservadores razoavelmente convergem no respeito às mulheres e na defesa da família — ao mesmo tempo que conservadores desconfiam e desgostam das feministas, e progressistas desconfiam e desgostam dos conservadores. O que afasta os dois grupos não é tanto a divergência, mas a animosidade contra o grupo adversário, uma animosidade que tende à violência.
O polo conservador é um pouco maior e demograficamente mais próximo do Brasil médio: pardo e com escolaridade de ensino médio. O polo progressista, embora se veja como porta-voz dos grupos oprimidos, é muito mais branco, muito mais escolarizado, muito mais sudestino e muito mais rico que o resto do país. Não se trata apenas de uma contradição entre o conteúdo do discurso progressista e a condição social de quem o enuncia. Essas características demográficas são a base material de sustentação ao discurso populista conservador que apresenta as elites intelectuais como alienadas, empenhadas em predicar para um povo majoritariamente conservador.
Como atribuem ao progressismo o domínio do establishment e dos aparelhos culturais, os conservadores têm muito pouca confiança em instituições como a Justiça, as universidades públicas e a grande imprensa. O inverso é verdadeiro: os progressistas, que outrora se viam como revolucionários, se acomodaram na defesa do statu quo.
Não devemos confundir a polarização política com a disputa eleitoral. Elas influenciam uma à outra, mas são essencialmente diferentes. A liderança do presidente Lula amplia muito o apelo eleitoral da esquerda, para além do progressismo. A memória das melhorias econômicas passadas faz com que parte do eleitorado conservador vote em Lula. Quando o presidente finalmente deixar o jogo eleitoral, deveremos ver com mais frequência o antagonismo eleitoral entre elites urbanas escolarizadas e o povo comum, a que assistimos nas eleições municipais do Rio e de São Paulo, com Marcelo Freixo e Guilherme Boulos. Apesar disso, sempre que a esquerda apelar para o discurso da proteção social, poderá equilibrar o jogo eleitoral.
Há ainda muito a estudar, mas os resultados iniciais impõem uma agenda. Nosso desafio é dar visibilidade à maioria silenciosa, ainda não polarizada, e resgatar o espaço dos consensos possíveis, abafados pelo barulho das margens. Se não conseguirmos desarmar o antagonismo afetivo entre esses pequenos grupos, corremos o risco de assistir a uma espiral crescente de hostilidade que pode precipitar o país na violência política — ou na ruptura institucional.
A polarização política parece envolver toda a sociedade, mas o antagonismo, na verdade, é puxado por pequenas minorias, grupos ativistas de no máximo 5% da população, ladeados por segmentos “semiativistas”, que compõem outros 15%. Entre esses dois polos, há uma grande maioria silenciosa, silenciada, de aproximadamente 60% do Brasil — são os invisíveis.Essa maioria — moderada e um pouco desinteressada de política — se torna invisível pela agitação ativista dos polos nas mídias sociais, que terminam se fazendo passar pelo todo. Quando dividimos mentalmente o Brasil entre petistas e bolsonaristas, não apenas representamos o país de maneira imprecisa, mas bloqueamos também qualquer discussão de propostas matizadas e independentes, porque acreditamos que não contemplariam grupos que erroneamente acreditamos majoritários.
A divisão da sociedade brasileira, induzida pelos polos, está concentrada nos temas das guerras culturais, batalhas em torno dos valores morais relacionados à família e à sexualidade. Sob essas disputas, há blocos de quase consenso em torno do papel do Estado, da punição a criminosos e do combate ao racismo. Há amplo consenso de que o Estado deve prover serviços públicos, mas divergimos cada vez mais sobre temas como o ensino de questões de gênero nas escolas e o direito de portar armas.
No entanto, mesmo nos temas divisivos das guerras culturais, há mais antagonismo afetivo — hostilidade pelo adversário —do que propriamente divergência de opinião. Embora os grupos antagônicos se imaginem radicalmente diferentes, eles muitas vezes secretamente convergem. Progressistas e conservadores razoavelmente convergem no respeito às mulheres e na defesa da família — ao mesmo tempo que conservadores desconfiam e desgostam das feministas, e progressistas desconfiam e desgostam dos conservadores. O que afasta os dois grupos não é tanto a divergência, mas a animosidade contra o grupo adversário, uma animosidade que tende à violência.
O polo conservador é um pouco maior e demograficamente mais próximo do Brasil médio: pardo e com escolaridade de ensino médio. O polo progressista, embora se veja como porta-voz dos grupos oprimidos, é muito mais branco, muito mais escolarizado, muito mais sudestino e muito mais rico que o resto do país. Não se trata apenas de uma contradição entre o conteúdo do discurso progressista e a condição social de quem o enuncia. Essas características demográficas são a base material de sustentação ao discurso populista conservador que apresenta as elites intelectuais como alienadas, empenhadas em predicar para um povo majoritariamente conservador.
Como atribuem ao progressismo o domínio do establishment e dos aparelhos culturais, os conservadores têm muito pouca confiança em instituições como a Justiça, as universidades públicas e a grande imprensa. O inverso é verdadeiro: os progressistas, que outrora se viam como revolucionários, se acomodaram na defesa do statu quo.
Não devemos confundir a polarização política com a disputa eleitoral. Elas influenciam uma à outra, mas são essencialmente diferentes. A liderança do presidente Lula amplia muito o apelo eleitoral da esquerda, para além do progressismo. A memória das melhorias econômicas passadas faz com que parte do eleitorado conservador vote em Lula. Quando o presidente finalmente deixar o jogo eleitoral, deveremos ver com mais frequência o antagonismo eleitoral entre elites urbanas escolarizadas e o povo comum, a que assistimos nas eleições municipais do Rio e de São Paulo, com Marcelo Freixo e Guilherme Boulos. Apesar disso, sempre que a esquerda apelar para o discurso da proteção social, poderá equilibrar o jogo eleitoral.
Há ainda muito a estudar, mas os resultados iniciais impõem uma agenda. Nosso desafio é dar visibilidade à maioria silenciosa, ainda não polarizada, e resgatar o espaço dos consensos possíveis, abafados pelo barulho das margens. Se não conseguirmos desarmar o antagonismo afetivo entre esses pequenos grupos, corremos o risco de assistir a uma espiral crescente de hostilidade que pode precipitar o país na violência política — ou na ruptura institucional.
Obrigado, Francisco: Se Papa pareceu radical, problema é do mundo de hoje
Quando o papa Francisco dizia que é impossível ser cristão e não dar prioridade aos excluídos, só estava citando o fundador da empresa milenar de que foi CEO nos últimos 12 anos.
Mesmo o então cardeal Joseph Ratzinger (futuro papa Bento 16), em seu combate à Teologia da Libertação, deixava claro que "o escândalo das gritantes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres, ou de desigualdades entre camadas sociais dentro de um mesmo território nacional – já não é tolerado" ("Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação", 1984).
Não é coincidência que tenha vindo da América Latina, a região mais desigual da cristandade moderna, um papa que desse prioridade à luta contra esse escândalo específico.
Francisco também promoveu um salto na reflexão católica sobre o meio ambiente, que papas recentes (citados na encíclica) já vinham enfatizando.
Contra os que interpretam a instrução de Gênesis 1:28 como licença para o homem fazer o que quiser com a natureza, a Laudato Si lembra que Deus colocou o homem no Éden "para cultivá-lo e guardá-lo" (Gênesis 2:15). O documento final do Sínodo da Amazônia terminou com um apelo a "Maria, mãe da Amazônia", para que "a vida plena que Jesus veio trazer ao mundo chegue a todos, especialmente aos pobres", e para que a igreja tenha "rosto amazônico" e "saída missionária".
Francisco também realizou um ajuste pequeno, mas importante, na discussão da igreja sobre a comunidade LGBT. Admitiu a possibilidade de padres católicos abençoarem casais LGBT e casais formados por pessoas divorciadas. Em repetidos pronunciamentos, pediu que os católicos não julgassem os LGBT, mas procurassem antes de tudo amá-los.
Não foi a aceitação plena dos LGBT que católicos de esquerda como eu desejariam. Mas foi importantíssimo por mostrar qual exatamente é o tamanho dessa questão dentro do cristianismo. Quando Francisco disse "quem sou eu para julgar?" sobre os homossexuais, não estava se declarando incapaz de condenar algo que, oficialmente, ainda é pecado. Afinal, Francisco julgou muita coisa: a miséria, a degradação ambiental, a desigualdade.
Estava tirando o foco de uma pauta que ocupa um lugar completamente desproporcional no discurso de movimentos políticos que se dizem cristãos. A homofobia como política funciona porque vende ao eleitor uma forma de se afirmar cristão condenando o desejo dos outros, não o próprio. E os LGBT são convenientemente minoritários na sociedade, de modo que o voto que se ganha entre a maioria hipócrita mais do que compensa o voto que se perde na minoria perseguida.
A maior parte da Bíblia é sobre pecados que todos cometemos, mas é difícil se eleger lutando contra os pecados da maioria. É melhor mentir, como faz a bancada fundamentalista, que a Bíblia é basicamente um livro falando mal da Pabllo Vittar.
Francisco fez uma bem-vinda mudança de foco para os pecados da maioria, o consumismo, a indiferença diante da miséria, a depredação da criação. Defendeu os pobres, e os mais pobres entre os pobres; os excluídos, e os mais excluídos entre os excluídos. É o que o Evangelho manda fazer. Se isso pareceu radical no mundo de hoje, o problema é do mundo de hoje.
Mesmo o então cardeal Joseph Ratzinger (futuro papa Bento 16), em seu combate à Teologia da Libertação, deixava claro que "o escândalo das gritantes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres, ou de desigualdades entre camadas sociais dentro de um mesmo território nacional – já não é tolerado" ("Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação", 1984).
Não é coincidência que tenha vindo da América Latina, a região mais desigual da cristandade moderna, um papa que desse prioridade à luta contra esse escândalo específico.
Francisco também promoveu um salto na reflexão católica sobre o meio ambiente, que papas recentes (citados na encíclica) já vinham enfatizando.
Contra os que interpretam a instrução de Gênesis 1:28 como licença para o homem fazer o que quiser com a natureza, a Laudato Si lembra que Deus colocou o homem no Éden "para cultivá-lo e guardá-lo" (Gênesis 2:15). O documento final do Sínodo da Amazônia terminou com um apelo a "Maria, mãe da Amazônia", para que "a vida plena que Jesus veio trazer ao mundo chegue a todos, especialmente aos pobres", e para que a igreja tenha "rosto amazônico" e "saída missionária".
Francisco também realizou um ajuste pequeno, mas importante, na discussão da igreja sobre a comunidade LGBT. Admitiu a possibilidade de padres católicos abençoarem casais LGBT e casais formados por pessoas divorciadas. Em repetidos pronunciamentos, pediu que os católicos não julgassem os LGBT, mas procurassem antes de tudo amá-los.
Não foi a aceitação plena dos LGBT que católicos de esquerda como eu desejariam. Mas foi importantíssimo por mostrar qual exatamente é o tamanho dessa questão dentro do cristianismo. Quando Francisco disse "quem sou eu para julgar?" sobre os homossexuais, não estava se declarando incapaz de condenar algo que, oficialmente, ainda é pecado. Afinal, Francisco julgou muita coisa: a miséria, a degradação ambiental, a desigualdade.
Estava tirando o foco de uma pauta que ocupa um lugar completamente desproporcional no discurso de movimentos políticos que se dizem cristãos. A homofobia como política funciona porque vende ao eleitor uma forma de se afirmar cristão condenando o desejo dos outros, não o próprio. E os LGBT são convenientemente minoritários na sociedade, de modo que o voto que se ganha entre a maioria hipócrita mais do que compensa o voto que se perde na minoria perseguida.
A maior parte da Bíblia é sobre pecados que todos cometemos, mas é difícil se eleger lutando contra os pecados da maioria. É melhor mentir, como faz a bancada fundamentalista, que a Bíblia é basicamente um livro falando mal da Pabllo Vittar.
Francisco fez uma bem-vinda mudança de foco para os pecados da maioria, o consumismo, a indiferença diante da miséria, a depredação da criação. Defendeu os pobres, e os mais pobres entre os pobres; os excluídos, e os mais excluídos entre os excluídos. É o que o Evangelho manda fazer. Se isso pareceu radical no mundo de hoje, o problema é do mundo de hoje.
Alianças entre a extrema-direita e o agronegócio ameaçam o planeta
A posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, no início deste ano, reacendeu debates que partem de suas alianças com os bilionários das Big Techs, a exemplo de Jeff Bezos, Mark Zuckerberg e Elon Musk – este último que se referiu a posse do atual presidente como um “ponto de virada para a civilização humana” -, como também em relação às políticas racistas contra imigrantes que se estendem para o chamado “ecofascismo”. Entre as principais discussões da política trumpista está a sua postura em relação à emergência climática, marcada por discursos que incentivam a exploração de petróleo e gás, a expansão de mineradoras e a reformulação de políticas ambientais que favorecem as grandes corporações.
O ecofascismo ganha espaço à medida que o colapso ambiental é reconhecido por segmentos da extrema-direita como uma oportunidade de reorganizar a sociedade sob lógicas autoritárias. Combinando discursos ambientalistas com manifestações racistas e nacionalistas, o ecofascismo se manifesta por meio da proposição de políticas que tratam da preservação dos recursos naturais — compreendida aqui segundo o discurso neoliberal da “economia verde”, “capitalismo verde” e “desenvolvimento sustentável” —, mas apenas para seu “grupo referente”: masculinista, rico e branco. Isso ocorre em detrimento da inclusão de pessoas racializadas, mulheres, corpos dissidentes e pessoas LGBTQIAPN+. Nesse contexto, a emergência climática é instrumentalizada para justificar restrições migratórias e negar a responsabilidade histórica dos países mais ricos nas emissões de carbono.
A ascensão da extrema-direita na última década é um fenômeno global, especialmente nas democracias ocidentais. Esses movimentos compartilham características como a construção de um “Outro” – um inimigo a ser combatido – e a defesa de ideias masculinistas e supremacistas brancas. Por outro lado, existem características específicas deste avanço no contexto brasileiro, onde a extrema-direita emerge a partir de um histórico que combina a consolidação de um liberalismo escravocrata, regimes autoritários recorrentes e o pacto das elites em torno da branquitude. Essa herança molda os valores da extrema-direita brasileira, que identifica como inimiga dos povos originários, comunidades tradicionais, mulheres, movimentos sociais, pessoas negras e LGBTQIAPN+.
Enquanto nos EUA e na Europa o “Outro” a ser enfrentado é frequentemente representado pelo imigrante – figura que ameaça a estabilidade econômica e cultural ao ser percebida como parasitária ao Estado de bem-estar e portadora de valores incompatíveis com as democracias ocidentais -, no Brasil, a ascensão ecofascista assume contornos próprios. Aqui, ela opera como uma articulação mais profunda entre a masculinidade enquanto regime de poder, o capitalismo extrativista e a exploração da natureza e seus povos. A dominação da natureza, neste contexto, não é apenas prática econômica, mas uma tecnologia de controle territorial e social, impulsionada pelo agronegócio, que funciona como expressão da lógica produtivista e extrativista, transformando a destruição ambiental em um símbolo de afirmação supremacista e masculinista.
O ecofascismo à moda brasileira, portanto, consolida-se não só pela política, mas pela captura dos desejos frustrados em uma sociedade precarizada, oferecendo ordem, potência e pertencimento por meio da exploração violenta da terra e dos corpos que dela dependem. A conexão entre o agronegócio e a extrema-direita não é recente, antes mesmo da ascensão de Jair Bolsonaro (PL), o setor já liderava ataques às políticas de reforma agrária e às alianças com o Estado para desarticular os movimentos sociais. No entanto, é a partir do governo Bolsonaro que essas alianças se fortalecem, consolidando-se e se institucionalizando por meio da aprovação de projetos como o marco temporal e o “pacote do veneno”.
Em verdade, o governo Bolsonaro não apenas fortaleceu uma nova direita brasileira – em que pautas ultraneoliberais e autoritarismo se mesclam – como também consolidou um ecossistema cultural que se expressa na figura do “homem do agro”: um arquétipo masculinizado, armado, viril e produtor. Essa estética de força e controle territorial não é apenas retórica, ela opera como dispositivo de poder simbólico e material, articulando desejo, identidade e violência. O ressentimento, antes sustentáculo afetivo da extrema-direita, cede lugar a uma performatividade bélica e produtivista, que naturaliza a devastação como ato de soberania. A imbricação entre a masculinidade como regime de poder e o capitalismo gore movimenta uma economia libidinal, através da mobilização dos desejos e dos corpos para essa nova zona de engajamento.
Nesse rearranjo, o agronegócio atua como aparelho ideológico de dominação, produzindo uma masculinidade branca, cristã hegemônica que se afirma pela violência contra a natureza e seus povos. Essa estética, sustentada por símbolos como o chapéu de cowboy, o rifle, trator, e até mesmo motosserra, performa uma promessa de pertencimento diante da precariedade social e subjetiva. Não por acaso, supremacistas como Trump, Milei e Bolsonaro apresentam discursos que enaltecem o “plano motosserra”. Bolsonaro se autointitulou como “capitão motosserra”, já Milei frequentemente aparecia em comícios portando um motosserra. Em fevereiro deste ano, Musk, convocado a reduzir o tamanho do governo trumpista, apareceu no palco da Conferência de Ação Política Conservadora em National Harbor, com a motosserra que ganhou de Milei, cujo slogan gravado no instrumento registrava “Viva la libertad, carajo”.
O agronegócio também desempenhou um papel crucial no financiamento de movimentos golpistas, como há muito tempo denuncia o site de olho nos ruralistas, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff – também chamado de “Agrogolpe”-, onde mais de 50% dos votos favoráveis vieram da Bancada Ruralista, além da admissão/recusa da abertura de processos contra o ex-presidente Michel Temer, e campanhas eleitorais, incluindo a de Bolsonaro, que recebeu R$1,2 milhão de reais de 4 fazendeiros nas últimas eleições presidenciais. Já, em relação à intentona golpista do 8 de janeiro, especula-se através das investigações realizadas pela Polícia Federal que empresários do setor foram citados como financiadores dos atos golpistas, evidenciando o vínculo entre os interesses econômicos do agronegócio e os ataques à democracia.
É por meio desta aliança entre o agronegócio e os interesses da extrema direita que a exploração de territórios e seus povos é executada, mesmo diante da emergência climática, evidenciada por mudanças drásticas de temperatura, alternando entre períodos de grandes secas e chuvas intensas. Essas alterações extremas, provocadas pela intensificação do aquecimento global causado pela atuação de atores poderosos (Estados e corporações ligadas ao agronegócio), resultaram em inundações devastadoras que causaram danos ao redor do mundo, destruindo casas e vidas humanas e mais-que-humanas. Um exemplo recente ocorreu no Rio Grande do Sul, onde as enchentes de 2024 afetaram 95% dos municípios do estado, resultando em prejuízos estimados em R$ 88,9 bilhões, com impactos significativos nos setores produtivo, social, infraestrutura e meio ambiente. As chuvas intensas causaram 183 mortes e deixaram 27 pessoas desaparecidas. Além disso, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, com milhares de desabrigadas e danos extensivos à infraestrutura local.
No cenário global, o Brasil ocupa a sexta posição entre os maiores emissores de gases de efeito estufa. Enquanto a indústria de combustíveis fósseis é o principal vilão nas discussões climáticas globais, aqui o agronegócio lidera as emissões, especialmente devido ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado brasileiro, e à criação intensiva de gado. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG), 74% das emissões brasileiras estão diretamente ligadas ao setor.
As redes sociais, por sua vez, tornaram-se o terreno fértil para a disseminação de desinformação ambiental e climática, com o apoio direto de líderes globais da extrema-direita. A pressão crescente pela flexibilização de políticas de controle nas grandes plataformas contribui para amplificar discursos de ódio e narrativas negacionistas sobre o clima. Apesar disso, entretanto, o negacionismo não é algo novo, mas um resquício do colonialismo que ganha força no projeto político da extrema-direita ao promover a destruição humana e ambiental. Essa lógica reflete o desprezo pelo saber e pelas múltiplas existências, que se infiltram nos mais variados setores e grupos da sociedade.
Como diz Ailton Krenak “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”.
A citação de Krenak revela como a lógica colonial e capitalista destrói não apenas territórios e vidas, mas também sentidos, experiências e sonhos. Essa “humanidade zumbi”, que rejeita a diversidade e a vitalidade da existência é a mesma que impulsiona a guerra colonial contra a natureza, promovida pela extrema-direita em aliança com o agronegócio e grandes corporações. Essa é uma luta desigual, que despreza saberes ancestrais, territórios e diferenças, criminalizando, perseguindo e atacando os verdadeiros defensores da vida.
É por isso que o conceito de “guerra colonial contra a natureza”, inspirado na expressão de Eliane Brum, se torna tão importante neste estado atual de coisas. A palavra colonial situa a forma pela qual a destruição massiva da natureza e seus povos são mobilizados pelos interesses econômicos dos atores poderosos. Quando falamos em natureza, ratificamos a ideia de que ela está interconectada e integrada aos povos e seus territórios, sem os quais ela não poderá se manter em pé, e, consequentemente, manter as possibilidades de vida e existência na Terra em pé.
Nesta guerra, os principais “inimigos” a serem combatidos são os grupos que contrariam a lógica do capitalismo neoliberal e de mercantilização da natureza, todos aqueles e aquelas que lutam pela proteção das florestas, rios, montanhas, árvores e animais. Sem eles, não há futuro para o planeta. Em tempos de emergência climática, resistir a essa lógica colonial é um passo fundamental para reimaginar formas mais justas de coexistir no planeta, enfrentando os negacionismos, e lutando contra a continuidade da exploração de seres humanos e mais que humanos.
O ecofascismo ganha espaço à medida que o colapso ambiental é reconhecido por segmentos da extrema-direita como uma oportunidade de reorganizar a sociedade sob lógicas autoritárias. Combinando discursos ambientalistas com manifestações racistas e nacionalistas, o ecofascismo se manifesta por meio da proposição de políticas que tratam da preservação dos recursos naturais — compreendida aqui segundo o discurso neoliberal da “economia verde”, “capitalismo verde” e “desenvolvimento sustentável” —, mas apenas para seu “grupo referente”: masculinista, rico e branco. Isso ocorre em detrimento da inclusão de pessoas racializadas, mulheres, corpos dissidentes e pessoas LGBTQIAPN+. Nesse contexto, a emergência climática é instrumentalizada para justificar restrições migratórias e negar a responsabilidade histórica dos países mais ricos nas emissões de carbono.
A ascensão da extrema-direita na última década é um fenômeno global, especialmente nas democracias ocidentais. Esses movimentos compartilham características como a construção de um “Outro” – um inimigo a ser combatido – e a defesa de ideias masculinistas e supremacistas brancas. Por outro lado, existem características específicas deste avanço no contexto brasileiro, onde a extrema-direita emerge a partir de um histórico que combina a consolidação de um liberalismo escravocrata, regimes autoritários recorrentes e o pacto das elites em torno da branquitude. Essa herança molda os valores da extrema-direita brasileira, que identifica como inimiga dos povos originários, comunidades tradicionais, mulheres, movimentos sociais, pessoas negras e LGBTQIAPN+.
Enquanto nos EUA e na Europa o “Outro” a ser enfrentado é frequentemente representado pelo imigrante – figura que ameaça a estabilidade econômica e cultural ao ser percebida como parasitária ao Estado de bem-estar e portadora de valores incompatíveis com as democracias ocidentais -, no Brasil, a ascensão ecofascista assume contornos próprios. Aqui, ela opera como uma articulação mais profunda entre a masculinidade enquanto regime de poder, o capitalismo extrativista e a exploração da natureza e seus povos. A dominação da natureza, neste contexto, não é apenas prática econômica, mas uma tecnologia de controle territorial e social, impulsionada pelo agronegócio, que funciona como expressão da lógica produtivista e extrativista, transformando a destruição ambiental em um símbolo de afirmação supremacista e masculinista.
O ecofascismo à moda brasileira, portanto, consolida-se não só pela política, mas pela captura dos desejos frustrados em uma sociedade precarizada, oferecendo ordem, potência e pertencimento por meio da exploração violenta da terra e dos corpos que dela dependem. A conexão entre o agronegócio e a extrema-direita não é recente, antes mesmo da ascensão de Jair Bolsonaro (PL), o setor já liderava ataques às políticas de reforma agrária e às alianças com o Estado para desarticular os movimentos sociais. No entanto, é a partir do governo Bolsonaro que essas alianças se fortalecem, consolidando-se e se institucionalizando por meio da aprovação de projetos como o marco temporal e o “pacote do veneno”.
Em verdade, o governo Bolsonaro não apenas fortaleceu uma nova direita brasileira – em que pautas ultraneoliberais e autoritarismo se mesclam – como também consolidou um ecossistema cultural que se expressa na figura do “homem do agro”: um arquétipo masculinizado, armado, viril e produtor. Essa estética de força e controle territorial não é apenas retórica, ela opera como dispositivo de poder simbólico e material, articulando desejo, identidade e violência. O ressentimento, antes sustentáculo afetivo da extrema-direita, cede lugar a uma performatividade bélica e produtivista, que naturaliza a devastação como ato de soberania. A imbricação entre a masculinidade como regime de poder e o capitalismo gore movimenta uma economia libidinal, através da mobilização dos desejos e dos corpos para essa nova zona de engajamento.
Nesse rearranjo, o agronegócio atua como aparelho ideológico de dominação, produzindo uma masculinidade branca, cristã hegemônica que se afirma pela violência contra a natureza e seus povos. Essa estética, sustentada por símbolos como o chapéu de cowboy, o rifle, trator, e até mesmo motosserra, performa uma promessa de pertencimento diante da precariedade social e subjetiva. Não por acaso, supremacistas como Trump, Milei e Bolsonaro apresentam discursos que enaltecem o “plano motosserra”. Bolsonaro se autointitulou como “capitão motosserra”, já Milei frequentemente aparecia em comícios portando um motosserra. Em fevereiro deste ano, Musk, convocado a reduzir o tamanho do governo trumpista, apareceu no palco da Conferência de Ação Política Conservadora em National Harbor, com a motosserra que ganhou de Milei, cujo slogan gravado no instrumento registrava “Viva la libertad, carajo”.
O agronegócio também desempenhou um papel crucial no financiamento de movimentos golpistas, como há muito tempo denuncia o site de olho nos ruralistas, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff – também chamado de “Agrogolpe”-, onde mais de 50% dos votos favoráveis vieram da Bancada Ruralista, além da admissão/recusa da abertura de processos contra o ex-presidente Michel Temer, e campanhas eleitorais, incluindo a de Bolsonaro, que recebeu R$1,2 milhão de reais de 4 fazendeiros nas últimas eleições presidenciais. Já, em relação à intentona golpista do 8 de janeiro, especula-se através das investigações realizadas pela Polícia Federal que empresários do setor foram citados como financiadores dos atos golpistas, evidenciando o vínculo entre os interesses econômicos do agronegócio e os ataques à democracia.
É por meio desta aliança entre o agronegócio e os interesses da extrema direita que a exploração de territórios e seus povos é executada, mesmo diante da emergência climática, evidenciada por mudanças drásticas de temperatura, alternando entre períodos de grandes secas e chuvas intensas. Essas alterações extremas, provocadas pela intensificação do aquecimento global causado pela atuação de atores poderosos (Estados e corporações ligadas ao agronegócio), resultaram em inundações devastadoras que causaram danos ao redor do mundo, destruindo casas e vidas humanas e mais-que-humanas. Um exemplo recente ocorreu no Rio Grande do Sul, onde as enchentes de 2024 afetaram 95% dos municípios do estado, resultando em prejuízos estimados em R$ 88,9 bilhões, com impactos significativos nos setores produtivo, social, infraestrutura e meio ambiente. As chuvas intensas causaram 183 mortes e deixaram 27 pessoas desaparecidas. Além disso, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, com milhares de desabrigadas e danos extensivos à infraestrutura local.
No cenário global, o Brasil ocupa a sexta posição entre os maiores emissores de gases de efeito estufa. Enquanto a indústria de combustíveis fósseis é o principal vilão nas discussões climáticas globais, aqui o agronegócio lidera as emissões, especialmente devido ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado brasileiro, e à criação intensiva de gado. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG), 74% das emissões brasileiras estão diretamente ligadas ao setor.
As redes sociais, por sua vez, tornaram-se o terreno fértil para a disseminação de desinformação ambiental e climática, com o apoio direto de líderes globais da extrema-direita. A pressão crescente pela flexibilização de políticas de controle nas grandes plataformas contribui para amplificar discursos de ódio e narrativas negacionistas sobre o clima. Apesar disso, entretanto, o negacionismo não é algo novo, mas um resquício do colonialismo que ganha força no projeto político da extrema-direita ao promover a destruição humana e ambiental. Essa lógica reflete o desprezo pelo saber e pelas múltiplas existências, que se infiltram nos mais variados setores e grupos da sociedade.
Como diz Ailton Krenak “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”.
A citação de Krenak revela como a lógica colonial e capitalista destrói não apenas territórios e vidas, mas também sentidos, experiências e sonhos. Essa “humanidade zumbi”, que rejeita a diversidade e a vitalidade da existência é a mesma que impulsiona a guerra colonial contra a natureza, promovida pela extrema-direita em aliança com o agronegócio e grandes corporações. Essa é uma luta desigual, que despreza saberes ancestrais, territórios e diferenças, criminalizando, perseguindo e atacando os verdadeiros defensores da vida.
É por isso que o conceito de “guerra colonial contra a natureza”, inspirado na expressão de Eliane Brum, se torna tão importante neste estado atual de coisas. A palavra colonial situa a forma pela qual a destruição massiva da natureza e seus povos são mobilizados pelos interesses econômicos dos atores poderosos. Quando falamos em natureza, ratificamos a ideia de que ela está interconectada e integrada aos povos e seus territórios, sem os quais ela não poderá se manter em pé, e, consequentemente, manter as possibilidades de vida e existência na Terra em pé.
Nesta guerra, os principais “inimigos” a serem combatidos são os grupos que contrariam a lógica do capitalismo neoliberal e de mercantilização da natureza, todos aqueles e aquelas que lutam pela proteção das florestas, rios, montanhas, árvores e animais. Sem eles, não há futuro para o planeta. Em tempos de emergência climática, resistir a essa lógica colonial é um passo fundamental para reimaginar formas mais justas de coexistir no planeta, enfrentando os negacionismos, e lutando contra a continuidade da exploração de seres humanos e mais que humanos.
Inteligência planetária: melhor que a artificial
Desde que surgiu na Terra, o ser humano tem sido um agente poderoso de transformação do meio em que vive. Durante mais de 99% de seu tempo neste planeta, buscava adaptar o meio para satisfazer suas necessidades de alimentação, abrigo, convívio e segurança. No tempo restante o atendimento destas necessidades foi substituído pela tentativa de satisfazer desejos criados pela propaganda para alcançar outro objetivo: o lucro. Com isso, alterou-se a relação do ser humano com os demais seres vivos com quem dividimos essa nossa única casa.
A inteligência artificial – IA vem prometendo gerar novas benesses, assim como, em 1776, Adam Smith vaticinou que a busca do lucro privado levaria bem-estar à toda a comunidade. Não tivesse ele advertido que prováveis conluios e a formação de monopólios alterariam tal resultado, teria errado feio, pois ainda hoje, dois séculos e meio mais tarde, 80% da comunidade humana não vive, apenas aguenta, com menos de US$10,00 por dia! Menos que do aumento populacional, a degradação dos únicos meios de que dispomos para sobreviver – água, ar e solo – decorre de a busca do lucro privado ter se tornado mais importante que a solidariedade, que o atendimento das necessidades de alimentação, abrigo e convivência de todos. Temos, pois, que alterar profundamente a nossa economia, nossos hábitos e desejos, se quisermos sobreviver como espécie.
O Papa Francisco bem sabia disso e nos advertiu, seja com sua encíclica Laudato Si, seja com o lançamento da “Economia de Francisco”, que seria uma que não deixaria ninguém para trás.
A IA está sendo desenvolvida com o objetivo de gerar lucros para os grandes monopólios que têm dinheiro para desenvolvê-la. Quanto mais poderosas forem, maiores os riscos de tais sistemas buscarem objetivos próprios, distintos daqueles que orientaram os humanos na quase totalidade do seu tempo na Terra. As consequências da possível “independência” de máquinas com capacidades sobre-humanas são debatidas e temidas nos mais diversos locais e ocasiões.
Enquanto isso, uma análise isenta mostra que há muitas décadas já somos conduzidos, de fato, por sistemas artificias inteligentes, que têm objetivos próprios que não são a busca por bem-estar para todos: tais sistemas chamam-se “corporações”, que dominam a economia, a política, a cultura, as eleições, o esporte e muito mais; são sistemas cuja principal responsabilidade, segundo Milton Friedmam, é aumentar seus lucros! Apesar dos frequentes modismos que atribuem às empresas outros objetivos, no fundo sua gestão busca aumentar os lucros e, se não o fizerem, será substituída. Nessa busca vale, com frequência, subornar e guerrear, pois elas também dominam as máquinas de fazer guerra.
A verdadeira inteligência, no entanto, é a inteligência planetária, uma que leve em conta a necessidade de todos os elementos – rios, florestas, mangues, mares, solos, ar, geleiras, …- de cujo bem-estar depende o bem-estar dos humanos. O objetivo central tem de ser ampliar o bem-estar, e não esperar que este decorra do aumento do PIB!
A inteligência artificial – IA vem prometendo gerar novas benesses, assim como, em 1776, Adam Smith vaticinou que a busca do lucro privado levaria bem-estar à toda a comunidade. Não tivesse ele advertido que prováveis conluios e a formação de monopólios alterariam tal resultado, teria errado feio, pois ainda hoje, dois séculos e meio mais tarde, 80% da comunidade humana não vive, apenas aguenta, com menos de US$10,00 por dia! Menos que do aumento populacional, a degradação dos únicos meios de que dispomos para sobreviver – água, ar e solo – decorre de a busca do lucro privado ter se tornado mais importante que a solidariedade, que o atendimento das necessidades de alimentação, abrigo e convivência de todos. Temos, pois, que alterar profundamente a nossa economia, nossos hábitos e desejos, se quisermos sobreviver como espécie.
O Papa Francisco bem sabia disso e nos advertiu, seja com sua encíclica Laudato Si, seja com o lançamento da “Economia de Francisco”, que seria uma que não deixaria ninguém para trás.
A IA está sendo desenvolvida com o objetivo de gerar lucros para os grandes monopólios que têm dinheiro para desenvolvê-la. Quanto mais poderosas forem, maiores os riscos de tais sistemas buscarem objetivos próprios, distintos daqueles que orientaram os humanos na quase totalidade do seu tempo na Terra. As consequências da possível “independência” de máquinas com capacidades sobre-humanas são debatidas e temidas nos mais diversos locais e ocasiões.
Enquanto isso, uma análise isenta mostra que há muitas décadas já somos conduzidos, de fato, por sistemas artificias inteligentes, que têm objetivos próprios que não são a busca por bem-estar para todos: tais sistemas chamam-se “corporações”, que dominam a economia, a política, a cultura, as eleições, o esporte e muito mais; são sistemas cuja principal responsabilidade, segundo Milton Friedmam, é aumentar seus lucros! Apesar dos frequentes modismos que atribuem às empresas outros objetivos, no fundo sua gestão busca aumentar os lucros e, se não o fizerem, será substituída. Nessa busca vale, com frequência, subornar e guerrear, pois elas também dominam as máquinas de fazer guerra.
A verdadeira inteligência, no entanto, é a inteligência planetária, uma que leve em conta a necessidade de todos os elementos – rios, florestas, mangues, mares, solos, ar, geleiras, …- de cujo bem-estar depende o bem-estar dos humanos. O objetivo central tem de ser ampliar o bem-estar, e não esperar que este decorra do aumento do PIB!
Assinar:
Postagens (Atom)