quarta-feira, 10 de abril de 2019

Banco Mundial pede à América Latina que fortaleça redes de proteção social contra a crise

Em “tempos desafiadores” para a economia latino-americana, os países da região devem prestar especial atenção aos mais pobres. É imprescindível que os Governos impulsionem planos de proteção social que moderem o impacto da desaceleração dos indicadores e permitam manter no futuro o terreno ganho na luta contra a pobreza durante os períodos de bonança. Estas são as conclusões do último relatório semestral regional do Banco Mundial, intitulado Como o Ciclo Econômico Afeta os Indicadores Sociais na América Latina e Caribe? – Quando os Sonhos Enfrentam a Realidade, que foi apresentado no final da semana passada.

O cenário econômico não é alentador para a América Latina, e o desafio da pobreza aumenta, segundo o Banco Mundial. “As expectativas iniciais de crescimento em 2018 não foram cumpridas, e as projeções para 2019 se deterioraram. A região cresceu 0,7% em 2018. As principais razões para esse fraco crescimento em 2018 são uma contração de 2,5% na Argentina, a lenta recuperação do Brasil logo depois da recessão de 2015 e 2016, o crescimento anêmico do México devido à incerteza política e o colapso da economia venezuelana”, diz o Banco Mundial, alertando que “o escasso crescimento econômico está tendo um impacto previsível nos indicadores sociais”. Deixando de lado a Venezuela, o caso mais dramático foi o do Brasil, que “experimentou um aumento da pobreza monetária de aproximadamente três pontos percentuais entre 2014 e 2017”. O dado brasileiro é especialmente relevante porque o país representa um terço da população da região.


A pobreza, portanto, precisa estar na agenda política e econômica dos Governos, onde os planos de contenção não abundam. “Os programas sociais que ajudam a absorver o impacto das crises econômicas são comuns nos países desenvolvidos, mas não estão suficientemente difundidos nesta parte do mundo”, disse Carlos Végh, economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe. “Esta é uma agenda social pendente na região para assegurar que aqueles que recentemente escaparam da pobreza não deem nenhum passo atrás”, acrescenta.

Végh se refere aos milhões de latino-americanos que saíram da pobreza durante a chamada Década de Ouro das matérias primas (2003-2013), uma etapa onde os indicadores sociais melhoraram notavelmente. A pobreza monetária, medida sobre a base de uma renda de até 5,50 dólares (21,30 reais) por dia por pessoa, passou de 42,2% em 2003 para 23,4% em 2014. A pergunta do Banco Mundial agora é: “Que proporção da queda foi permanente, e que proporção foi transitória?” “A importância relativa da redução permanente frente à redução temporária da pobreza tem implicações cruciais para medir a verdadeira magnitude da redução na pobreza e quão duradoura será, e as políticas públicas que podem ser implementadas para obter reduções permanentes na pobreza ao invés de temporárias”, afirma o relatório.

O Banco Mundial dedica especial atenção à necessidade de medições comparáveis para que haja um combate sério à pobreza. Os analistas que comemoraram as reduções da pobreza durante as fases econômicas expansivas “obteriam conclusões muito diferentes se avaliassem a mudança da pobreza durante um ciclo econômico completo (ou seja, auge e recessão)”, diz o relatório. “A importância do componente cíclico nos indicadores sociais se magnifica no caso dos mercados emergentes sujeitos a grandes choques externos. Todos estes choques são de natureza cíclica, por isso tenderão a amplificar os ciclos econômicos dos mercados emergentes e, por sua vez, os componentes transitórios dos indicadores sociais”, acrescenta o Banco Mundial. Por isso, insiste em que são necessárias políticas distributivas de fôlego prolongado. O Banco reconhece, contudo, que durante a Década de Ouro a América Latina avançou muito nesse sentido.

Os Governos de esquerda que dominaram a política regional impulsionaram programas de ajuda que agora conseguiram moderar o impacto da crise. O mais notável foi o programa Bolsa Família no Brasil, que condicionou a ajuda ao cumprimento de certos critérios de saúde e educação que ficaram nas mãos dos beneficiários. Entretanto, o exemplo não se estende a toda a região.

“Em tempos desafiadores para a economia, é mais importante que nunca que os países façam as reformas necessárias para impulsionar um crescimento sustentável e inclusivo. Não podemos dar como consumadas as conquistas recentes na redução da pobreza e devemos redobrar os esforços para consolidá-los e aproveitá-los”, disse Axel van Trotsenburg, vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe. Trata-se, em todo caso, de que em tempos de bonança os países possam “controlar de alguma forma os efeitos cíclicos sobre a pobreza antes de comemorar qualquer feito como permanente”. O desafio se torna especialmente complexo quando a tempestade aumenta.

Paisagem brasileira


Os ideólogos venceram

Uma leitura apressada pode nos induzir ao erro de considerar a nomeação do novo ministro da Educação, o economista Abraham Weintraub, como uma troca de seis por meia dúzia. Se o seu antecessor Ricardo Vélez oscilava entre pragmáticos e ideológicos conforme os ventos sopravam, o novo titular da pasta é um puro-sangue. Ascendeu ao cargo porque o presidente arbitrou a briga visceral no MEC em favor dos ideológicos.

O ministro Weintraub é bem mais do que um Vélez não-caricato. Tem alma olavista e foi bancado pelo que há de mais ideológico no clã dos Bolsonaro, o filho Eduardo. Ao lado do seu irmão, Arthur Weintraub, foi um dos primeiros a embarcar na nau bolsonarista, quando muitos não acreditavam na vitória. Assume o MEC com uma prioridade muito bem definida: levar adiante a guerra cultural contra o marxismo, que na visão do próprio presidente é a mãe de todos os males da Educação.



Se dúvidas ainda haviam, o ministro se encarregou de dirimi-las ao dizer que trabalhará conectado “às convicções do governo Bolsonaro, que tem uma ideologia clara”. É também profundamente esclarecedor o vídeo da palestra dos irmãos Abraham e Arthur Weintraub na Cúpula Conservadora das Américas, realizada em dezembro do ano passado, na qual o hoje ministro diz que é preciso vencer o marxismo cultural a partir dos ensinamentos de Olavo de Carvalho, levando a guerra às universidades.

Durante a palestra, seu irmão cospe toda vez que fala a palavra USP, num desrespeito àquela que é considerada internacionalmente como a melhor instituição do ensino superior do país.
O problema do MEC deixa de ser a falta de um norte e passa ser a existência de um eixo que aprofundará o desastre educacional. As universidades serão tratadas como bunkers da esquerda, inteiramente contaminados pelo “vírus do comunismo”, para usar uma expressão do novo ministro. Os professores, em vez de parceiros, serão estigmatizados sob a suspeita de serem agentes propagadores do “gramscismo cultural”.

Com isso, há o risco de o ensino básico ficar em segundo plano, pois a missão recebida pelo novo ministro, diretamente do presidente, foi a de dobrar a aposta no enfrentamento dos “problemas morais e ideológicos da Educação”. No radar da guerra ideológica entram a Base Nacional Curricular Comum, que pode passar. A fazer parte da nova redefinição para adaptá-la à “ideologia clara” do governo, e o Conselho Nacional de Educação, este sob a suspeita de ser um antro do marxismo cultural. Na mesma mira estarão os livros didáticos e a prova do Enem, objetos de críticas constantes do núcleo duro do bolsonarismo.

Bolsonaro desequilibrou a balança em favor dos ideológicos, impondo a mais drástica derrota do grupo dos militares nesse início de governo. Se a correlação de forças permitir eles serão expurgados do MEC, inclusive o secretário-executivo, o tenente-brigadeiro Ricardo Machado Vieira. Se satisfaz à sua ala anti-establishment, capitaneada pelo triunvirato Olavo de Carvalho, Filipe Martins e Eduardo Bolsonaro, o presidente cria novos contenciosos, compra briga com quem não devia. Espanta possíveis aliados que poderiam vitaminar sua base aliada no Congresso, mas não o fazem por aversão à agenda ideológica.

A opção pela guerra cultural é uma resposta enviesada e equivocada aos exageros cometidos nos governos lulopetistas. O fato é que a alternativa ao direcionamento de esquerda não deveria ser o “direita volver”.

Ambos são nefastos à Educação. E suas vítimas serão milhões de alunos espalhados Brasil afora.

Arrogância

Não é verdade? Um meneio com a cabeça, um passo para a esquerda ou para a direita e passamos de pessoas sábias, decentes e leais a todos arrogantes
Paul Harding, "A restauração das horas"

Cem dias jogados no lixo

E no centésimo dia do seu governo, por mais que possa dizer o contrário, o presidente Jair Bolsonaro pouco tem a comemorar.

Se até aqui há algo de original neste governo é o fato de que dispensa oposição. Ele detém o monopólio da oposição.

A oposição conhecida como tal ainda padece da surra que levou nas eleições do ano passado e se ocupa em lamber suas feridas.

O espaço reservado a ela por enquanto foi totalmente ocupado pelo governo. Ele é seu principal adversário. E à sua cabeça, Bolsonaro.


O ex-presidente Fernando Henrique notabilizou-se por desinflar as crises que batiam à porta do seu gabinete. Lula, também.

A exemplo de Dilma Rousseff, mas talvez muito mais do que ela, Bolsonaro faz justamente o contrário. Infla as crises. Ele é a crise.

Dois ministros foram decapitados, quatro secretários-gerais de ministérios e dois presidentes da Agência de Promoção das Exportações.

O novo ministro da Educação tomou posse dizendo que governará para todos. Em seguida, disse que demitirá quem pisar fora da linha.

Saiu da Educação um discípulo do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, o guru do clã Bolsonaro. Entrou outro.

Segue o governo dividido em três grupos: o dos militares, o ideológico de extrema direita, e o dos técnicos.

Os militares tentam apagar os incêndios provocados pelo capitão e sua turma ideologizada que nega ser ideológica.

Os técnicos tentam trabalhar – e à falta de um projeto verdadeiramente de governo, orientam-se pelo próprio faro.

A política externa foi entregue aos cuidados de um ministro que não se envergonha de dizer que é trumpista. É também incompetente.

O presidente da República mais viaja do que governa e dá a impressão de que trabalha pouco, e sem gosto.

O Congresso aprovará a reforma da Previdência. Mas não a reforma dos sonhos do ministro Paulo Guedes. Longe disso.

A maioria dos políticos pensa assim: se Bolsonaro os trata mal quando mais precisa deles, imagine depois se deixar de precisar?

Portanto, nada de lhe dar o que pede. Bolsonaro deve ser alimentado com pouca coisa e mantido sob rédea curta.

Se a receita serve para a reforma, servirá também para o pacote de medidas contra o crime do ministro Sérgio Moro, da Justiça.
A má vontade com o que Moro pede será maior porque Moro é Moro. Ninguém mais do que ele demonizou a política.

A não ser que mude de ideia, Bolsonaro celebrará seus 100 dias de governo com o anúncio do 13º salário para o Bolsa Família.

Para quem diz que programas sociais não tiram ninguém da miséria, o anúncio só prova que Bolsonaro não sabe o que fala.

Quartel não tem algemas

O general Leônidas Pires Gonçalves comandou o Exército de 1985 a 1990. Foi um daqueles chefes militares que viram de tudo. Em 1945, estava na cena da deposição de Getúlio Vargas. Em 1961, na escuta dos telefonemas de João Goulart durante a crise da renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, viu quando o general Costa e Silva começou a emparedar o marechal Castelo Branco. Em 1984, foi um dos generais que garantiram a eleição de Tancredo Neves. Como ministro do Exército de José Sarney, manteve a disciplina na tropa, inclusive quando enquadrou o jovem capitão Jair Bolsonaro, que emergia como uma espécie de liderança sindical militar.

Leônidas ensinava: “Quartel não tem algemas”.

Ele era o ministro do Exército em 1988, quando mandou uma tropa para desocupar a usina de Volta Redonda, ocupada por grevistas, e morreram três operários. Passaram-se 31 anos, e uma patrulha do Exército disparou 80 tiros contra o carro que conduzia uma família e matou o motorista.


“Quartel não tem algemas”, os soldados não são profissionais treinados para operações policiais, e quando acontece uma dessas tragédias, quem vai para a frigideira são recrutas, um sargento ou, no máximo, um jovem oficial. Em menos de 24 horas, o comando do Exército prendeu dez militares envolvidos na fuzilaria do Rio. A informação inicial, falsa, de que a patrulha respondeu a “injusta agressão”, foi substituída pelo “compromisso com a transparência”.

Há épocas em que as eternas vivandeiras pedem aos militares que façam isso ou aquilo. A ideia de botar a tropa nas ruas do Rio podia parecer “golpe de mestre”, mas é apenas a criação de novos problemas. Passa o tempo, as vivandeiras vestem as camisetas da ocasião e mandam a conta para os quartéis.

Jair Bolsonaro entrou no Palácio do Planalto com um discurso popular de defesa da lei e da ordem, confundindo-se com as Forças Armadas. Há dias o presidente disse que “nasci para ser militar”. Só ele pode falar da própria vocação mas, de cadete a capitão, foi militar durante 14 de seus 64 anos de vida e deixou a carreira marcado por 15 dias de prisão por indisciplina. Daí em diante, Bolsonaro foi parlamentar por 29 anos. Parece mais precisa a avaliação de seu vice, Hamilton Mourão, para quem ele é “mais político do que militar”.

O general Mourão formulou uma perigosa profecia: “Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”

Isso não deve acontecer. Primeiro, porque as Forças Armadas não são o governo. Há cerca de cem militares na nova administração, mas quase todos estão na reserva, inclusive Mourão. Apesar de poucas manifestações impróprias durante a campanha eleitoral, nos quartéis prevaleceram a disciplina e o silêncio. Três dos quatro comandantes do Exército deste século não disseram uma única palavra. Ganha um fim de semana em Caracas a vivandeira que lembrar os nomes desses generais.

Nenhuma conta pode ir para as Forças Armadas, a menos que se trapaceie o jogo, coisa que ocorreu no ocaso da ditadura, quando o andar de cima vestiu camisetas amarelas, foi para a campanha das Diretas e jogou o entulho do regime na porta dos quartéis.

Quem namora a ideia da expansão das atribuições dos militares sonha com impasses, talvez um conflito com o Congresso. Nesse sonho, “se o governo falhar”, as Forças Armadas ficariam com a conta. A conta será do governo. Os militares, calados, estão na mesa ao lado.

Brasil acima de tudo


Flerte de Bolsonaro com a reeleição é aberração

Jair Bolsonaro precisa socorrer Jair Bolsonaro. Num instante em que ostenta a pior avaliação já atribuída a um presidente em início de mandato desde a redemocratização, o capitão decidiu atravessar no seu próprio caminho uma nova pedra. Essa pedra se chama reeleição. "A pressão está muito grande para que, se eu estiver bem, que me candidate à reeleição", disse Bolsonaro em entrevista ao repórter Augusto Nunes.

Na recentíssima campanha eleitoral, Bolsonaro jurou que não disputaria um segundo mandato. Agora, reafirma que a reeleição tem sido "péssima" para o país, pois os governantes "se endividam, fazem barbaridade, dão cambalhota" para se reeleger. Mas Bolsonaro já não cogita pegar em lanças pelo fim da reeleição. Alega que não cabe a ele, mas ao Congresso promover uma reforma que apague a reeleição do ordenamento jurídico.



Bolsonaro levou o debate sobre a reeleição para o pântano das ambiguidades, o habitat preferido de certos políticos. Nesse pântano, o capitão executa uma coreografia enfadonha. Ele parece ser e não ser ao mesmo tempo. Afirma que se pensasse em reeleição faria uma reforma previdenciária "light". Mas realça que "está muito grande" a pressão para que concorra novamente.

Em condições normais, seria apenas constrangedor assistir a um presidente que acabou de se eleger com a promessa de ser o coveiro de velhos hábitos políticos comprometendo o seu governo com uma disputa pelo Poder que, além de prematura, pode ser paralisante. Quando isso ocorre no aniversário de 100 dias de uma Presidência decepcionante, o constrangimento descamba para a aberração.

Político que não ambiciona o Poder vira alvo. Mas político que só ambiciona o Poder erra o alvo. A única ambição que Bolsonaro deveria ter no momento é a ambição de trabalhar.

O Exército não pode voltar a sujar as mãos matando inocentes na rua

Fez bem a cúpula do Exército ao prender em flagrante, sem esperar, 10 dos 12 militares que na tarde do domingo alvejaram com 80 disparos de fuzil um carro onde viajava uma família inteira, com uma criança de 7 anos e uma menina de 12. O tiroteio acabou com a vida do músico Evaldo Rosa dos Santos e podia ter culminado no massacre de uma família inteira, em Guadalupe, área pobre da Zona Norte do Rio. O pequeno, filho do assassinado, continua gritando desconsolando: “O que fizeram com meu pai!”.

O Exército vive no Brasil um momento delicado e de algum modo decisivo. Com a chegada do ultradireitista capitão reformado Jair Bolsonaro à Presidência da República, entrou com força no novo Governo, com um terço dos ministros e um total de 103 militares em cargos importantes da administração. É algo inédito desde os tempos da ditadura.


Há quem já o descreva como um “governo militar” que chega ao poder pelos canais da democracia, o que não impede que, se esse governo fracassar, arrastará consigo a credibilidade do Exército. Algo que já começa a aparecer como possível, dada a queda vertical de popularidade de Bolsonaro em apenas 100 dias de governo. Nenhum outro presidente da democracia tinha visto seu prestígio desabar tão radicalmente em tão pouco tempo. Brincadeira ou não, não há dúvida de que os militares enxertados no Governo não gostaram da afirmação de Bolsonaro aos jornalistas: “Não nasci para ser presidente”. Mais ainda, contou que “nunca podia imaginar chegar a tanto”. Com essa baixa autoestima, que encerra o medo de não estar à altura do cargo, não é estranho que os militares, de quem se diz que passaram a “tutelar” o presidente, se sintam a cada dia mais preocupados.

Isso é ainda mais grave no momento em que 60% dos brasileiros, segundo a última pesquisa Datafolha, veem com bons olhos a presença dos militares no governo. Daí a que o Exército tenha a última palavra caso a Presidência entre em uma zona de perigo vai muito pouco.

Por isso o episódio sangrento do domingo, em que se envolveram 12 militares que atacaram com 80 disparos um carro com pessoas humildes e inocentes, que iam felizes comemorar uma festa de família, está sendo analisado como algo sintomático, possível fruto de uma política incrustada no Governo de caça aos bandidos a qualquer custo, sob o lema de que ”bandido bom é bandido morto”. Algo que contradiz a legislação das grandes democracias, onde as forças da ordem são castigadas sempre que fica demonstrado que um delinquente foi assassinado quando podia ser detido vivo. No Brasil, além disso, não existe a pena de morte. E aqui não importa se os exterminados afinal eram ou não bandidos.

Está sendo criado um clima, com o pretexto de exterminar a violência urbana, de que vale tudo, que nenhuma vida deve ser poupada se isso contribuir para a eliminação do perigo. As pessoas não contam. O caráter sagrado da dignidade humana, o maior valor da criação, é negado e pisoteado com desprezo. Matar vira um jogo. Não é mais obra da psicopatia. É o que a filósofa alemã Hannah Arendt cunhou em sua famosa obra A Banalidade do Mal. Segundo ela, uma das maiores analistas do Holocausto judaico, não é preciso ser psicopata para perpetrar um crime, por mais grave e monstruoso que seja. Basta entrar no que ela chama “a engrenagem do totalitarismo” para justificar tudo, como fizeram os criminosos do nazismo. Eles só cumpriam ordens, eram peças do sistema.

É algo que, de algum modo, começamos a ver no Brasil no âmbito da luta contra a violência. Não importam os meios usados, não interessa a verdade dos fatos, nem as leis que regem a convivência e colocam a defesa do inocente acima de tudo. Interessa ser fiéis à ideia, à ideologia. A pessoa como fim em si mesma deixa de existir. Prevalece a obediência ao sistema. Todo o resto são números, fichas, como nos campos de extermínio.

Se essa filosofia de combate à violência e de fidelidade ao sistema totalitário — neste caso ao novo Governo extremista de Bolsonaro — acabar contagiando o Exército, o problema do Brasil poderia atingir extremos que ainda não imaginamos. Não se pode esquecer, embora a legião de bolsonaristas tente negar, que foi o Exército que manteve durante 20 anos o país sob um regime de exceção no qual o sangue correu e as torturas se multiplicaram. Goste-se ou não, foi um regime totalitário, onde, como no pensamento de Arendt, tudo estava permitido, sem sentir remorso, porque o indivíduo era apenas a peça de um sistema que assim lhe pedia. Era preciso obedecer. Explica-se assim a falta de remorso dos verdugos da ditadura e sua incapacidade de pedirem perdão.

O Exército brasileiro tem consciência dos anos de chumbo e de terror, cujo 55º aniversário não quis celebrar. Prefere esquecer o sangue derramado de então. Quer, com sua presença democrática no Governo, redimir-se de suas atrocidades passadas. Se assim for, deve continuar contendo a mão de quem sente saudades dos tempos de horror e medo. Porque, além disso, a sociedade brasileira hoje, até a sua parcela mais humilde, tomou consciência de sua dignidade e grita contra a violência gratuita. Basta recordar as palavras bradadas por um dos presentes ao lado do carro alvejado no domingo no Rio: “Olhem o que esses filhos de puta fizeram. Nós somos trabalhadores, vocês são assassinos”.

Os militares brasileiros, que tentam se redimir de um passado em que mancharam o país de sangue e morte, não podem deixar de refletir e de se assustar com o fato de gente trabalhadora e anônima desta vez não ter medo de chamá-los de “assassinos” à luz do sol.
Juan Arias

O futuro do passado já mudou irremediavelmente

Houve um tempo em que as pessoas mais românticas - ou mais organizadas -- voltavam de viagem com grandes envelopes cheios de lembranças: passagens de trem e de avião, bilhetes de metrô, entradas de cinema e de museu, folhetos, embalagens de balinhas e de chocolates, programas de teatro, contas de restaurantes e de compras variadas, recortes de jornais e de revistas. A viagem continuava em casa, quando esses papeizinhos todos eram amorosamente colados em álbuns junto com as melhores fotos do tour .

Nos Estados Unidos, a partir desse hábito, criou-se todo um universo comercial multicolorido, com papelarias especializadas vendendo adesivos, folhas estampadas, etiquetas, acessórios, papéis artesanais. Em fins dos anos 1990, o scrapbooking virou febre, especialmente entre adolescentes.

É uma ironia imaginar que, naquele exato momento, a tecnologia também começava a se popularizar: em breve, a fotografia tradicional, em papel, seria apenas um retrato na parede.


O scrapbooking , porém, não morreu. É bonito e atraente demais para isso. Papelarias continuam vendendo material e, paralelamente, há milhões de páginas e de imagens para imprimir online.

Mas os dias de febre passaram. A própria natureza das nossas lembranças está mudando. No outro dia, Peter Funt lembrou, no "The New York Times", que tíquetes para antigos jogos de baseball valem milhares de dólares -- mas já não há mais tíquetes no nosso universo digital, em que a entrada para o estádio (e a passagem de avião e o bilhete do metrô) estão em códigos QR no celular.

Temos uma quantidade de material para memória muito maior do que jamais tivemos, porque as nossas mínimas conversas - "Traz pão quando vier para casa!" - estão armazenadas no WhatsApp, e fazemos centenas de fotos por dia, mas na verdade é como se nada existisse para além do momento da sua criação. Muita coisa se perde, de fato, por um ou outro motivo técnico, mas desde que o backup em nuvem se tornou automático, isso já não é uma preocupação.

O que ameaça a lembrança dos dados que geramos e que recebemos é o seu volume descomunal: o Google já é capaz de encontrar fotos de animais de estimação pelos seus nomes, mas não há máquinas de busca nem inteligência artificial que consigam desencavar vagas recordações.

A última cena de "Indiana Jones e os caçadores da arca perdida" mostra a Arca da Aliança sendo fechada num caixote de madeira, que é guardado entre milhares de outros caixotes de madeira iguais, armazenados em pilhas num remoto depósito do governo: naquele momento, temos certeza absoluta de que lá ela jamais será encontrada, nunca, em tempo algum... ainda que esteja em perfeita segurança.

Nossos emails e fotos estão em perfeita segurança na nuvem, e em tese estão à nossa disposição quando precisamos deles -- mas a questão é que nem só de precisão se fazem as lembranças. Elas tinham o hábito de morar em gavetas e em álbuns e de nos assaltar inesperadamente. Continuarão fazendo isso por mais algum tempo, enquanto as últimas gerações que cresceram num mundo analógico ainda andarem sobre a Terra, mas o futuro do passado já mudou irremediavelmente.

Postais cariocas




Não passou

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a tua mão, nossas mãos -
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estamos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.
Carlos Drummond de Andrade

Crônica de uma aberração

Passaram os primeiros cem dias do governo Jair Bolsonaro, e uma coisa está clara: o Brasil não virou uma ditadura, como alguns esquerdistas temiam. Essa é a boa notícia. A má notícia é: esse governo não teria condições para estabelecer uma ditadura nem que quisesse. Mas, de alguma forma, isso também é bom.

O governo age de maneira confusa, aparenta incompetência, lembra João e Maria perdidos na floresta. Muitos de seus planos parecem ter apenas uma motivação: o velho, o suposto "socialismo", precisa ser demolido – não à toa Bolsonaro chama sua eleição de "revolução". Mas não está claro o que se quer construir na realidade.

Esse governo não tem ideias. Não tem projetos. Não tem planos. Percorre em meandros a monotonia de seu radicalismo de direita. Quase que diariamente, ouve-se quaisquer anúncios semicozidos. Até mesmo a reforma do super-herói da Justiça, Sergio Moro, parece ter surgido num processo de copia-e-cola.

Sem falar nas púberes provocações do clã Bolsonaro pelas redes sociais. Em vez de governar, brinca-se com fogo. Mas o que há de esperar de um presidente cujo único projeto é acabar com um socialismo que não existe e não existia no Brasil? Bolsonaro parece cada vez mais um Dom Quixote. Luta contra moinhos de vento que, nos delírios dele, confunde com gigantes.

Os Bolsonaro percebem que o projeto deles é vazio (eles têm um instinto político brutal). Para desviar a atenção, criam conflitos nas redes sociais. Xingam, agridem e fazem barulho. Mas essa tática funciona só durante um tempo limitado, e "o deserto das ideias" desse governo já fica óbvio para quem entende que política é mais que gritaria e slogan de campanha.

Por isso, esse governo (que foi tão aplaudido pela direita moderada) agora não dá náuseas apenas à esquerda, mas também aos conservadores que percebem que o projeto bolsonarista é de destruição, e não de construção. Exemplos:

Escreve Merval Pereira: "O que não dá para minimizar é a bagunça em que o governo está metido. A cada vez que o presidente Bolsonaro abre a boca, uma crise se avizinha."

Rachel Sheherazade tuita: "Bolsonaro viajou pra Israel. Mourão assume a Presidência. Como cidadã me sinto mais segura com o general Mourão no comando da lojinha!"

Ricardo Noblat chama o chanceler Araújo "com todo respeito" de "um idiota".

E Reinaldo Azevedo constata: "Se continuar a fazer bobagem e se perder as condições políticas de governar, hoje precárias, cai, sim! Os crimes de responsabilidade já foram cometidos."

Fazer baderna, todo mundo consegue. Mas governar, assumir responsabilidades, mediar, é algo para profissionais; é para adultos, pessoas equilibradas, com empatia e caráter. Nessa enumeração, não são exatamente os Bolsonaro que vêm à cabeça.

A sempre perspicaz Eliane Brum escreve: "Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais."

Numa frase: Bolsonaro governa contra o Brasil. Por razões ideológicas, se distancia da China, o parceiro comercial mais importante do Brasil, e se joga nos braços do presidente americano Trump feito um amante. Ninguém sabe o que o Brasil vai lucrar indo para a cama com os EUA, um dos seus principais rivais econômicos (soja, milho, laranjas, etanol, etc.).

Mas o presidente simplesmente gosta de Donald Trump. Os americanos, que não são ingênuos, simplesmente passaram a perna em Bolsonaro. O brasileiro conseguiu ainda desmerecer seu ministro das Relações Exteriores por ter preferido levar seu filho, que não ocupa nenhum cargo no governo brasileiro, para a conversa com Trump na Casa Branca.

Bolsonaro consegue a façanha de comprar briga com todo mundo ao mesmo tempo. A determinação de comemorar o golpe militar de 1964 não irritou apenas esquerdistas e conservadores moderados, mas também os militares que obviamente não sabiam dos planos. Nos Estados Unidos, ele acusou imigrantes brasileiros de "não ter boas intenções". Em Israel, ofendeu palestinos e causou meneios de cabeça entre os israelenses. Também irritou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de quem ele precisa, na verdade, para realizar seus projetos. Por causa de todo esse jardim de infância, seu "superministro" Paulo Guedes já falou em renunciar.

Ou seja, não é à toa que o guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho, aconselhe Bolsonaro a só governar com seu clã a partir de agora. Todos os outros, segundo Olavo de Carvalho, são traidores e deveriam "tomar no c*" (seu xingamento preferido). Dá para notar que o vice-presidente Hamilton Mourão também estaria entre os traidores.

É absurdo e triste constatar: mas esse governo, que se acha na missão quase-religiosa de "salvar a pátria", é tão violento, infantil, estúpido e desorganizado que os militares até estão parecendo uma opção melhor.
Philipp Lichterbeck

Bolsonaro tem razão

Enfim, sou capaz de concordar sem avarentas restrições ou manhosas adversativas com o presidente Jair Bolsonaro. Nosso acordo é mútuo e pleno de verdade. Ouso dizer: mais do que concordar com ele, ele concorda comigo. Não nos conhecemos, mas estamos em sintonia.

Num gesto de invulgar nobreza, afirmou sobre si o que eu sempre afirmei sobre ele: não nasceu para ser presidente, não faz ideia do que está fazendo no posto, não sabia que os problemas eram tantos e tamanhos. Que lhe desculpemos as caneladas, ele pede. Não é do ramo.


Antes tarde do que nunca, embora não precisasse demorar tanto. Tivesse reconhecido um pouquinho mais cedo sua dificuldade de dominar uma bola e ninguém teria incomodado ninguém: nem ele ao governo, nem o governo a ele. No fundo, de acordo com sua declaração, quem não votou em Bolsonaro lhe fez mesmo um favor. Não precisa agradecer, presidente, eu compreendo suas aflições. Também são minhas.

Não pensem vocês que ele está de brincadeira. Ele fala a sério, mortalmente a sério. Catapultado ao imaginário nacional diretamente dos programas de humor e entretenimento, Bolsonaro parece ter proposto candidatura com a certeza de que não corria risco nenhum de ser eleito, como adolescente que vai à rua procurar emprego temendo encontrar emprego.

Pois encontrou emprego.

Nós ficamos espantados.

Ele ficou espantado.

Irmanados no espanto, temos aí um inconveniente país com o qual lidar.

A prova de que Bolsonaro tem razão e fala a verdade é que nunca soube explicar de que se trata, afinal de contas, essa treta de governar. Quando lhe perguntavam sobre Previdência, ele remetia ao Paulo Guedes. Saúde? Falem com o Paulo Guedes. Privatizações? Guedes. Infraestrutura? Vão logo ao inferno ou ao Instituto Millenium.

Para quem insistia, tinha uma resposta na ponta da retórica: um presidente não precisa, e nem se quisesse conseguiria, saber tudo sobre todos os assuntos. O que é verdade. Contudo, é também verdade que um presidente carece de saber algo mais do que os nomes das pessoas e o número das respetivas salas. Precisa perceber algo de gestão, de princípios elementares de administração, de movimentos básicos do xadrez político.

Ele tem mostrado que sabe? Mistérios.

O affair Velez Rodriguez é mais eloquente que um Socrates na praça. O colombiano putativamente conhecedor de pensamento brasileiro foi escolhido não pelo presidente, que o ignorava, mas por aqueles que o presidente escolheu. Disseram a ele que o historiador de filosofia sabia tudo o que o presidente não sabia.

A fé move montanhas e nomeia ministros, sabemos todos.

Em três meses, o ministério com segundo maior orçamento e complexidade sem igual está à deriva. Sem planos, sem metas, sem projetos. O ministro, que fazia ponta de morto-vivo há semanas, foi demitido. Garanto que a culpa não é minha; não sou Charles Xavier nem Magneto, e o poder do meu pensamento negativo não chega a tanto. O fato é que quem o indicou já tinha se apressado a desindicar, quem viu fez de conta que não viu, quem sabia garante que não sabe do que estão falando.

Jair Bolsonaro afirmou que não nasceu para ser presidente. Finalmente está coberto, sufocado, soterrado de razão.

Oitenta tiros e nenhum tuíte


Desde a tarde de domingo, Jair Bolsonaro deu uma entrevista, fez dois discursos e publicou 17 tuítes. O presidente fez autopropaganda, atacou a imprensa, criticou um instituto de pesquisas e debochou dos antecessores. Só não comentou a morte de Evaldo Rosa, metralhado pelo Exército quando levava a família para um chá de bebê.

O carro dirigido pelo músico tinha a bordo duas crianças, uma mulher e um idoso. Os soldados abriram fogo sem aviso. Acertaram ao menos 80 tiros de fuzil.

Depois de morto, Evaldo foi vítima de outro assassinato. Desta vez, de reputação. Em nota, o Comando Militar do Leste chamou ele e o sogro de “criminosos”. Os dois foram acusados de atirar contra os militares, que teriam respondido à “injusta agressão”. “Como resultado, um dos assaltantes foi a óbito no local”, concluiu o CML.

Apesar dos desmentidos de testemunhas e da Polícia Civil, o Exército sustentou a falsa versão até a manhã de segunda. Finalmente, admitiu “inconsistências” e informou que dez homens foram presos em flagrante. Eles serão julgados na Justiça Militar.

O falante Bolsonaro não se manifestou nem para consolar a viúva. O ministro Sergio Moro evitou dizer se o caso envolveria “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O governador Wilson Witzel lavou as mãos. “Não me cabe fazer juízo de valor”, declarou.


O silêncio das autoridades soa como aval à escalada de mortes em ações policiais no país. Em 2017, foram 5.012, um salto de 19% em relação ao ano anterior. Fuzilado por engano, Evaldo se enquadrava no perfil mais comum das vítimas: 99% eram homens e 76% eram negros, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A retórica do “tiro na cabecinha” e a falta de punição por excessos servem como licença para novas mortes. O crime de Guadalupe poderia marcar uma virada, mas os políticos não parecem empenhados em fazer sua parte.

Depois de nomear mais um polemista de direita para o Ministério da Educação, Bolsonaro deveria atualizar seu slogan de campanha. Agora é “Ideologia acima de tudo, Olavo acima de todos”.