segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Auxílio Brasil


 

Alguma novidade ou mais do mesmo?

Sempre temo aborrecer meus leitores, e não é para menos, pois tenho cansativamente martelado três teclas: a estagnação econômica, cujos efeitos de médio prazo nunca aparecem no debate político; o imperativo de uma reforma política, sem a qual não iremos a parte alguma; e a necessidade de defender a democracia contra certas tendências autocráticas recentes, esforço esse que, felizmente, agora apareceu, e com o devido vigor.

O que me leva a retomar hoje esses temas é evidentemente a campanha eleitoral. Outubro está logo ali à frente. Ouviremos alguma novidade ou só mais do mesmo? Os dois candidatos que lideram as pesquisas e outros que possam subir têm consciência do que nos espera se permanecermos neste marasmo? Sabem que o mundo inteiro crescerá menos e terá inflação mais alta nos próximos dois anos? Percebem que estamos aprisionados na “armadilha do baixo crescimento”, que condenará uma geração inteira à mesma mediocridade, se não for superada o quanto antes?


Estou ciente de que o leitor está cansado de indagações; quer respostas. Mas a mim cabe perguntar se algum dos candidatos gastou ou pretende gastar pelo menos uma noite estudando os problemas mais graves que nos afligem. Tenho de perguntar porque, como reza o ditado, de onde menos se espera é que não sai nada mesmo. O Congresso, por exemplo, brindou-nos durante o mês de julho com duas pérolas: o “estado de emergência”, que a Constituição desconhece, a fim de turbinar com mais R$ 41 bilhões a campanha do sr. Bolsonaro; e o “orçamento secreto”, este obviamente inútil para a governabilidade, mas notável como contribuição à comicidade nacional.

Faço-lhes uma confissão. Foi quase por acidente que resolvi repetir hoje provocações que venho fazendo já há algum tempo. Espiando meio a esmo minha estante, detive-me no livro Preparing for the Twenty-First Century (Preparando-se para o século 21), do economista americano Paul Kennedy. Trata-se de um abrangente estudo sobre as grandes mudanças que estão transformando o mundo, que certamente trarão coisas boas, mas também graves ameaças, sobretudo para os países mais vulneráveis. Detalhe: o livro foi publicado em 1993. Isso mesmo: 1993! Vinte e nove anos antes da música cacofônica que, salvo melhor juízo, seremos forçados a ouvir nos próximos dois meses.

Nas três ou quatro curtas passagens que dedica à América Latina, Paul Kennedy revela ser uma alma caridosa. Ao mencionar o Brasil e a Argentina (página 206), por exemplo, ele escreve que um obstáculo à recuperação econômica é o precário (“unimpressive”) desempenho do sistema educacional. “Isso não se deve a uma falta de escolas e universidades, como em certas partes da África. Muitos países latino-americanos têm amplos sistemas de educação pública, dezenas de universidades e altas taxas de alfabetização. O Brasil, por exemplo, tem 68 universidades; a Argentina, 41. O problema real são o descaso e a falta de investimento” (esta, mais na Argentina). Esse trecho permite-nos cogitar que não foi propriamente uma caridade de alma o que levou Kennedy a fazer tal avaliação, e sim o fato de o haver escrito quase 30 anos atrás. Realmente, ele não poderia ter antevisto para que serviria o prédio do Ministério da Educação no governo Bolsonaro, no qual várias coisas parecem ter acontecido, menos políticas educacionais sérias.

Serei breve no tocante à reforma política, pois a esta altura ninguém supõe que um milagre dessa ordem possa acontecer num governo notoriamente populista – como será o de Lula ou o de Bolsonaro, se o favoritismo deles nas pesquisas se confirmar. O que podemos afirmar com certeza é que algumas pérolas serão servidas aos jornalistas, como todo ano acontece. Outro dia, o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, referiu-se a um tema sobre o qual deve ter meditado por anos a fio: as excelências do “semipresidencialismo” francês. Fosse eu uma alma malévola, insinuaria que a inclinação gaulesa de Sua Excelência deve ser o “semi”, pois é certo que nós, brasileiros, somos meio aristotélicos, sempre achamos que a virtude, o equilíbrio, a moderação, enfim, todas as coisas boas devem ser procuradas no meio.

Quem observar atentamente a estrutura política brasileira logo concluirá que atingimos a quadratura do círculo. No que concerne ao Executivo, parece que consagramos ad aeternum nossa teratológica combinação do presidencialismo com o populismo. São irmãos siameses, amarrados um ao outro por uma crença deveras infantil: a de que um Executivo unipessoal e crescentemente autocrático imprime consistência e legitimidade ao Estado. Com sua recente descoberta não-constitucional do “estado de emergência”, o Senado decidiu que transferências de renda não precisam ter limite e que não há mal algum em violar as regras do jogo eleitoral às vésperas de um pleito presidencial. Fugindo um pouco ao seu estilo, o senador José Serra se referiu a essa histórica decisão como uma prova de que, finalmente, o Senado se dera conta de que existe fome no Brasil.

Hoje como ontem

Nas eleições de 2018, produzi neste espaço alguns textos que, embora ingênuos e quase nunca agressivos, acabaram provocando reações diversas e adversas, sendo algumas bastante ameaçadoras. Hoje, quatro anos depois, releio esses artigos e fico pensando em como tudo piorou tanto. Fico pensando em como se comportam hoje os que me ameaçaram em 2018 por quase nada. Será que devo até me esconder deles?

No último daqueles textos antigos, eu escrevia amedrontado: “Pense bem no que você vai fazer no próximo fim de semana. Quer dizer, pense bem em como você vai votar no domingo, em quem e por quê.” E eu acrescentava que “não gostaria que o Brasil passasse por um recuo político e ético como o que está sendo prometido pelo provável vencedor e seus apoiadores.” Não deu outra.


Mas não era disso que eu queria falar. Outros jornalistas, escritores e palpiteiros, sobretudo no mundo digital em que tudo pode, estavam e estão fazendo isso com muito mais talento, argumento, empenho e sabedoria. O que eu queria e ainda quero falar é dos quatro anos que se seguirão ao resultado eleitoral de outubro. Durante os próximos quatro anos, um dos dois reinará sobre a população brasileira e é de seu comportamento que devemos cuidar. E para isso precisamos nos preparar.

E aí eu escrevia o que vale até hoje e valerá sempre: “Em primeiríssimo lugar, exigindo que o vencedor respeite a Constituição que nós todos, expressa ou implicitamente, juramos respeitar. Governar sem observar respeito à Constituição é como viver numa selva em que só a violência e o acaso decidem o que deve acontecer.”

Não se trata de mera formalidade que os governantes tratarão de interpretar ao sabor de seus interesses políticos e administrativos. Mas de uma necessidade sem a qual não saberemos como nos mover, as regras sob as quais o país sobrevive com alguma dignidade, identidade e unidade de propósitos, um conjunto de condições sem as quais nada faz sentido, sem as quais não saberemos nunca onde fica o gol adversário e mesmo o nosso. Não levá-la em consideração é declarar-se perdedor antes de o jogo começar.

A cultura do povo que a Constituição deve representar é a soma de seus hábitos e costumes, dos meios que, ao longo do tempo, escolheu para viver. Mas não apenas o jeito majoritário de viver e sim todas as formas que, mesmo minoritárias, não signifiquem prejuízo para o outro.

A verdadeira democracia é aquela que garante à maioria a liderança da sociedade e reconhece o direito das minorias se manifestar e viver do jeito que julgar mais apropriado, saudável e conveniente sem fazer mal a ninguém. Se no discurso dominante não houver pelo menos uma pequena probabilidade de o contrário estar certo, ele será sempre um discurso autoritário que não serve a nosso progresso material e espiritual.

Futuro só com moral e conhecimento

A ciência na nossa época tem funções sociais, econômicas e políticas, e por mais distante que o próprio trabalho possa estar da aplicação técnica, é um elo na cadeia de ações e decisões que determinam o destino da raça humana.

Nossa esperança se baseia na união de dois poderes espirituais: a consciência moral da inaceitabilidade de uma guerra degenerada no assassinato em massa dos indefesos e o conhecimento racional da incompatibilidade da guerra tecnológica com a sobrevivência da raça humana
Max Born

Deus não vota, Michelle!

Ao voltar para casa no início da semana, vi um adesivo verde-amarelo no vidro de trás de um carro de preço médio, longe de ser luxuoso. Aproximei-me no sinal e li: “Deus, Pátria, Família e Liberdade”. Fiquei espantado com a novidade no trânsito. A frase, no estilo da antiga TFP (Tradição, Família e Propriedade), identifica o motorista com o famigerado Jair Bolsonaro. No domingo, uma motociata em apoio ao ex-capitão passou pela Conde de Bonfim, na Tijuca, entre gritos de protesto (Fora Bolsonaro!) e também de apoio. No andar de baixo do meu prédio, uma vizinha berrou: “Deus está com Bolsonaro!”. Não sou de bater-boca, mas rebati na hora: “Não seja herege. Deus não vota!”. E fez-se silêncio.


Fiz essa introdução porque me espanta a desenvoltura com que a primeira-dama Michelle Bolsonaro anda por aí com seu discurso messiânico — dizem que é pentecostal — misturando política com religião. Tudo começou no lançamento da candidatura do marido, no Maracanãzinho, quando ela afirmou, entre dezenas de améns e exaltações ao Senhor, que Bolsonaro “é o escolhido de Deus para governar o Brasil”.

Segundo ela,“Deus tem promessas para o Brasil e todas as promessas irão se cumprir. Enquanto existir esse joelhinho aqui, as promessas de Deus irão se cumprir”. Em meio às demonstrações de fé e religiosidade, Michelle só não nos revelou quando se deu sua conversa com Deus a respeito da política brasileira. E muito menos forneceu maiores detalhes sobre a declaração de voto do todo-poderoso. Vai ver que ela está ouvindo vozes por aí.

Nos últimos dias Michelle prosseguiu com sua pregação radical e enviezada. Numa madrugada, levou grupo de amigos e amigas para benzer o Palácio do Planalto. E no domingo, diante culto evangélico em Belo Horizonte, afirmou que antes do governo Bolsonaro, o Planalto era “consagrado a demônios”. Disse ela: “Podem me chamar de fanática, podem me chamar de louca. Eu vou continuar louvando nosso Deus. Vou continuar orando (…) porque, por muitos anos, por muito tempo, aquele lugar foi consagrado a demônios. Planalto consagrado a demônios. E, hoje, consagrado ao Senhor Jesus”.

Cá entre nós, ou Michelle Bolsonaro é ingênua ou está enlouquecida mesmo. Seu discurso bate de frente com a realidade e com a própria fé cristã. Como sabem, mesmo os que não acreditam em Deus, uma das peças mais belas no Novo Testamento é o Sermão das Montanhas de Jesus Cristo. Lá está dito para quem tem ouvidos para ouvir: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia;

Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”.

Portanto, um imenso fosso separa as ações (ou a inação) de Bolsonaro do que está escrito no Evangelho. Bolsonaro prega o ódio e é impiedoso. Jamais mostrou um pingo de solidariedade aos milhões de brasileiros e brasileiras que têm fome e sede de justiça. Jamais pisou num hospital para consolar doentes acometidos pela Covid-19. Em seu mandato, jamais pisou numa comunidade ou num bairro de periferia. Bolsonaro é o antipovo. Não tem nada a ver com a justiça e a liberdade. Sua visão de família é misógina e ultraconservadora. Seu patriotismo é o do último refúgio dos canalhas, como disse Samuel Johnson.

Ontem, Michelle voltou a atacar o ex-presidente Lula por ter participado de cerimônia de uma religião de matriz africana. Compartilhou o vídeo e comentou: “Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!”. Novamente, mostrou que anda muito confusa. Ninguém criticou a primeira-dama por “falar de Deus”. Inaceitável é o fato de ela atribuir ao todo-poderoso preferência pela candidatura de seu inominável marido. Mas, desta vez, ela recebeu resposta à altura da socióloga Rosângela da Silva, a Janja, mulher do ex-presidente Lula. Nas redes sociais, Janja lembrou a Michelle que “Deus é sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, respeito”. A Frente Inter-Religiosa Dom Paulo Evaristo Arns também pediu que Michelle “se retrate dentro dos princípios do amor ao próximo que afirma professar”.

Ao misturar alhos com bugalhos e falar de visões e demônios, Michelle Bolsonaro parece mesmo fora de si. Fanática ou louca, como ela mesmo diz. Fico aqui pensando em Lady Macbeth, quando viu o reinado do marido chegar ao fim. Vendo fantasmas dos inimigos mortos pelo usurpador, ela enlouqueceu. Mas eu não desejo o mesmo final trágico para Michelle. Espero, sinceramente, que ela tenha saúde para acompanhar a tarefa árdua de reconstruir o Brasil após o terrível mandato do seu marido. O ex-presidente Lula terá um grande desafio pela frente. Repor o Brasil nos eixos vai exigir energia e tempo. Amém!