sábado, 19 de outubro de 2019

Brasil da desigualdade


Antes que acabe

Uma das obras-primas do escritor Henry James é a novela "A Fera na Selva". Mas quem esteve para valer na selva foi o irmão dele, William James, que aos 23 anos visitou a Amazônia e ficou encantado com a região. Em 1865, ele percorreu o Brasil como membro da expedição Thayer e, em cartas para a família, discordou frontalmente de seu professor racista e escravista, Louis Agassiz, revelando enorme simpatia pelos povos do Alto Solimões:


"Os índios que vi até agora são ótimas pessoas, de uma linda cor acastanhada, com cabelos lindos e finos. Suas peles são secas e limpas, eles transpiram muito pouco. No fim das contas, acredito que eles são mais bem-apessoados que os negros e os brancos", escreveu o futuro filósofo. Adão no Éden, ele chegou a flertar com uma nativa: "Ah, Jesuína, Jesuína, minha rainha da floresta, minha flor do trópico, por que não pude fazer-me a vós inteligível?".

Lembrei de William James ao saber que a Amazônia está desbancando o Rio, as Cataratas do Iguaçu e as praias do Nordeste (estas agora tomadas por manchas de óleo) como destino preferido dos estrangeiros. Um tipo de visitante interessado na "porra da árvore" (copyright Jair Messias) e que viaja estimulado pelo slogan "venha, antes que acabe".

No mais, as notícias do setor não são boas. É o que uma reportagem da revista Piauí classifica de "efeito Bolsonaro" (como se a bagunça interna não bastasse). Os turistas, sobretudo estudantes europeus, estão fugindo do país, incomodados com a não preservação do meio ambiente.

Com tantos e tão prestimosos embaixadores do turismo - o cantor Amado Batista, o pintor Romero Britto, o lutador de jiu-jitsu Renzo Gracie (que chamou Emmanuel Macron, o presidente francês, de "franga"), o apresentador Ratinho e o ex-craque Ronaldinho Gaúcho (que teve o passaporte apreendido por crime ambiental) -, além de um ministro submergido no laranjal, como isso foi acontecer?

'É um desastre o que está acontecendo no Brasil'

Em meio aos corredores e estandes coloridos da Feira do Livro de Frankfurt, destaque para as imagens em preto e branco de um brasileiro. Laureado com o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão deste ano, uma das mais renomadas distinções literárias da Alemanha, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, 75 anos, falou a jornalistas durante o evento nesta sexta-feira, refletindo sobre seu trabalho e manifestando preocupação com a situação do Brasil sob o presidente Jair Bolsonaro.

A organização do prêmio ressaltou que a homenagem a Salgado deve-se não só a seu trabalho focado em imagens do cotidiano de pessoas menos favorecidas – como imigrantes, refugiados e moradores de regiões em que o meio ambiente está ameaçado, caso dos povos indígenas na Amazônia –, mas também pelo fato de tomar ações práticas, como a fundação do Instituto Terra.

Por meio do instituto, Salgado e a mulher, Lélia, já fizeram o plantio de mais de 2,5 milhões de mudas de árvores em uma área de cerca de 700 hectares que pertencia aos pais dele, na região do Vale do Rio Doce, entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

Salgado receberá o prêmio numa cerimônia na igreja Paulskirche, em Frankfurt, neste domingo, quando se encerra a Feira do Livro.

"Para mim, foi uma grande surpresa [receber o prêmio]. É muito especial. Estou orgulhoso, porque o prêmio leva 'paz' em seu nome. E precisamos de tanta paz. A situação no meu país está tão difícil. Tão difícil para os indígenas. Por isso, significa muito para mim receber este prêmio", disse Salgado, em inglês.

Amazônia, Sebastião Salgado
Ao anunciar o prêmio para Salgado, a Federação do Comércio Livreiro afirmou que, com suas fotografias, ele promove a "justiça e paz sociais" e confere urgência ao "debate mundial sobre a proteção da natureza e do clima".

Seu mais recente projeto chama-se Amazônia. Com imagens de povo indígenas e animais da região, o projeto deve ser lançado em livros e exposições no Brasil e no exterior a partir de 2021.

"É um desastre o que está acontecendo no Brasil, não apenas nas florestas, mas sim em toda a sociedade. Governos de direita e de esquerda respeitam as instituições. Mas quando há o extremo, como a extrema direita, isso não é respeitado. Estamos destruindo instituições que levaram anos para ser construídas", afirmou o fotógrafo, referindo-se a órgãos como a Funai e o Ibama.

Em seguida, ele criticou o projeto de flexibilização para o porte de armas de fogo no país, uma das principais políticas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro, e também a redução dos incentivos à cultura.

"O Brasil se tornou um país violento. Se cada um tiver uma arma na mão, vai ficar ainda pior", disse. "A cultura também tem sido um desastre. Investimentos têm sido cortados. Esse governo é um desastre, mas, ao mesmo tempo, vem perdendo poder. Temos esperança de que ele não chegue ao fim [do mandato]. No entanto, se chegar, temos que lutar para que não seja reeleito", disse.

Questionado sobre o que poderia ser feito para apaziguar o conflito envolvendo terras indígenas e o agronegócio, Salgado foi direto: "Pressionar. Temos que pressionar o máximo possível. E pedir ajuda, inclusive da Alemanha. Temos que fazer essa pressão, e isso pode funcionar", complementou.

Ao comentar seu trabalho realizado ao longo das últimas décadas, focado em questões humanitárias como o genocídio em Ruanda e crises de refugiados, Salgado fez questão de salientar que procura enxergar a dignidade acima da estética. Em todos os continentes.

"Não há diferença de beleza. Há beleza em todos os continentes, não apenas estética, mas sim de dignidade. E a dignidade está em todo o lugar. Vocês, que vivem na França, na Alemanha, vivem na exceção. Eu venho de um país subdesenvolvido, e é preciso mostrar a realidade do mundo. As pessoas precisam ter direitos iguais", afirmou.

O fotógrafo afirmou que o trabalho documental exige concentração e saúde. Devido à cobertura da guerra civil que culminou no genocídio em Ruanda – no qual estima-se que 800 mil pessoas tenham morrido em apenas quatro meses, entre abril e julho de 1994 –, adoeceu por causa do estresse das cenas que presenciou.

"Tive muitos pesadelos. Fiquei doente por isso. Mas era preciso ir. É preciso ir quando isso é o seu trabalho e a sua responsabilidade", disse.

Depois disso, decidiu parar por um tempo. E comentou que seguiu para o mesmo local em que a seleção alemã de futebol ficou hospedada no Brasil, na Copa do Mundo de 2014, em uma praia localizada a 45 minutos de Porto Seguro, no sul da Bahia.

"Junto com a Lélia, fiquei lá três meses e me recuperei. Mas é claro que isso [o trabalho] me afeta. Para mim, a real inteligência humana é a capacidade de adaptação. Quando você vai contar histórias, o primeiro, o segundo e o terceiro dias são difíceis. Mas, a partir do décimo, aquilo se torna o seu escritório, com seus amigos, com as pessoas com quem você trabalha e cria relações. Isso se torna a sua vida", enfatizou.
Deutsche Welle 

Choro sobre o óleo derramado

Há três semanas ando pelas praias do Nordeste e não consigo chegar a uma conclusão sobre esse desastre. Foi relativamente fácil seguir os efeitos da mancha, no sentido norte-sul, observar seus efeitos na areia e nos seres marinhos. No entanto, é muito complicado seguir a mancha para trás, em busca de suas origens. Satélites americanos foram usados para isso e não encontraram rastros. Parece que a mancha engana satélites.

Baseado em fotos postas à disposição pelos europeus, pesquisadores da Universidade da Bahia chegaram a ver o que poderia ser uma nova mancha de 22 quilômetros quadrados a caminho da costa baiana. Essa possibilidade foi desmentida. O Ibama sobrevoou a região e não a viu. Chegou a supor que os pesquisadores se tivessem enganado, pois havia nuvens dificultando a visibilidade. A técnica usada para calcular a mancha baseia-se na rugosidade da água. A região apontada como problemática era lisa, chata. A suposição era de que o óleo dominasse a superfície.

Os americanos, ao afirmarem não ter conseguido rastrear a mancha, confirmam indiretamente a ideia de que o óleo, mais pesado, afunda e navega numa camada inferior.

Minha experiência induz a uma comparação com o desastre na Galícia, que cobri em 2003. Um petroleiro chamado Prestige derramou 770 mil toneladas de óleo na costa da Espanha. A Galícia, região cruzada por petroleiros mal equipados e semiclandestinos, já conhecera outros vazamentos.

Pode ser que isso esteja acontecendo com navios que saem da Venezuela, de onde veio o petróleo vazado. Pressionados pelas sanções americanas, fazem de tudo para escoar a produção, que, de modo geral, vai para a Índia e a China.

Barris de rejeitos foram encontrados nas praias com inscrições da Shell. Pesquisadores dizem que rejeitos e óleo derramado na praia são a mesma substância. A Marinha discorda. A Shell também desmente.


Tudo isso se passa com relativo desinteresse nacional. Deputados e senadores foram ao Vaticano e deram as costas para as praias manchadas. O próprio Bolsonaro acusou esquerda, ONU e ONGs de ocultarem o desastre por a origem do óleo ser a Venezuela.

Além de denunciar a esquerda, Bolsonaro pouco fez. Em Sergipe foi preciso uma determinação judicial para que protegessem a foz dos Rios São Francisco, Sergipe, Vaza Barris e Real, entre outros.

Embora possa haver um componente político no relativo desinteresse, vejo outras razões para ele. Há muita atenção para certos biomas, como a Amazônia, pois são vistos como decisivos para as mudanças climáticas. Ignoram-se em grande escala o papel dos oceanos e a importância das correntes marinhas no aquecimento do planeta. Num encontro internacional realizado na Inglaterra, alguns cientistas chegaram a dizer que as correntes marinhas e sua dinâmica é que iam determinar a irreversibilidade do aquecimento global.

Uma semana antes do desastre comecei a ler o livro de Rachel Carson sobre o litoral. Além de excelente escritora, Rachel Carson dedicou-se à zoologia marinha. A riqueza biológica do litoral é descrita por ela com detalhes, desde caranguejos do tamanho da unha do polegar a seres maiores, passando por medusas, nereidas, uma paisagem visual e verbalmente encantadora. Na medida em que conseguirmos transmitir a riqueza da vida oceânica, talvez o interesse aumente.

Na Galícia, em 2003, vi muitos voluntários limpando as praias. Neste desastre no Nordeste também houve movimento, crianças em Alagoas, artistas na Bahia, todos empenhados em tirar a sujeira da praia. Discussão política, requerimentos, comissões, enfim, todo o zum-zum em torno de um desastre tem o seu papel. Usar uma pá e sujar os pés é mais eficaz.

Assim como na Galícia, estamos diante de um problema internacional. Como controlar os navios bandalhas que enganam a fiscalização e descumprem normas de segurança?

Se o desastre foi mesmo provocado por um petroleiro, o que me parece mais lógico, o Brasil teria de acionar mecanismos internacionais de controle. Não fazer nada implica esperar um novo desastre, que fatalmente virá.

Ainda não sabemos o impacto real do óleo derramado. Temos as praias como alvo porque sua limpeza é essencial para o turismo. Mas há os manguezais e o consumo de crustáceos e moluscos tem um grande papel na dieta da população litorânea. Aí se joga também um jogo mais difícil: limpar os mangues demanda técnica e roupa especial. Ainda assim, é difícil.

Fico pensando num peixe-boi que é acompanhado pela Fundação de Mamíferos Aquáticos. Chama-se Astro e nada agora entre a Praia do Coqueiro e Mangue Seco, na Bahia. Astro é tão tranquilo quanto à presença humana que foi atropelado por barcos 13 vezes. Depois de escapar com vida dessas trombadas, enfrenta um novo momento. O equipamento que o monitora está coberto de óleo. Ele parece que segue bem.

Mas, sem dúvida, a vida no mar, que é o berço da própria vida, tornou-se uma aventura perigosa. O transporte clandestino de combustível é um tema que merece cuidado especial. Tende a produzir desastres.

Inúmeras vezes, entre Boa Vista e Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, parei para documentar os destroços de carros incendiados. Em geral eram de pequenos contrabandistas fugindo da polícia.

Não adianta apenas criticar a esquerda e as ONGs que cuidam mais dos biomas que estão na moda. Ou culpar a esquerda, que levou anos para descobrir o verde e possivelmente levará séculos para ver o azul.

O transporte marítimo de petróleo depende de um controle internacional das embarcações. O Brasil foi vítima. Precisa fazer algo, caso contrário as possibilidades de novo desastre aumentam. O oceano que deixaremos para as novas gerações nunca mais será o que encontramos. Mesmo assim, é preciso resistir.

Quanto tempo desperdiçado

Margaret Atwood — a consagrada romancista canadense, recém-agraciada com o Booker Prize e popularizada como autora do livro em que se baseia a série “The Handmaid’s Tale” — tem uma frase inspirada sobre o tempo, que dá o que pensar sobre o avanço do programa de reformas do governo Bolsonaro: “As areias do tempo são movediças... quanto nelas pode desaparecer sem deixar vestígio”. (“The sands of time are quicksands... so much can sink into them without a trace”)

Tendo se recusado a montar uma base parlamentar sólida, o Planalto descobre aos poucos quão problemática tem se mostrado essa impensada decisão. Além de ter de enfrentar dificuldades óbvias, relativas à aprovação de projetos de seu interesse e ao bloqueio de iniciativas parlamentares a que se opõe, o governo vem sendo obrigado a se conformar com prazos de tramitação excessivamente dilatados, ao sabor das prioridades e dos caprichos do Congresso.

A reforma da Previdência, que parecia praticamente aprovada em meados do ano, continua a se arrastar no Senado. Com sorte, será aprovada, afinal, na semana que vem, já a dois meses do recesso parlamentar de final de ano. E não houve só morosidade. Houve desfiguração.



Mudanças perfeitamente defensáveis no abono salarial, já aprovadas na Câmara, acabaram alteradas no Senado. Num momento em que o Planalto parecia menos preocupado com a tramitação da reforma previdenciária do que com que a aprovação do nome do novo embaixador do Brasil em Washington, a articulação política do governo nem mesmo zelou para que todos os senadores contrários às alterações participassem da votação em que a questão foi decidida. A incúria decepou nada menos que um décimo do valor da melhora fiscal que a reforma poderá propiciar, em dez anos.

O pior é que a tramitação da reforma no Senado só foi possível mediante pagamento de vultoso pedágio, na forma de aprovação prévia de participações generosas de estados e municípios nos recursos que advirão do leilão de excedentes da área de cessão onerosa do pré-sal. Como se temia, a ideia de que o acesso a tais recursos ficaria vinculado à aprovação de reformas fiscais nos governos subnacionais não subsistiu. Tendo acenado, desavisadamente, com a possibilidade de farta distribuição desses recursos aos estados e municípios, o governo, sem capacidade de bloqueio no Congresso, não teve como resistir às pressões por distribuição imediata e incondicional dos resultados do leilão aos governos subnacionais.

É, portanto, de mãos vazias, sem os recursos fiscais oriundos do pré-sal para oferecer, que o governo se prepara para, afinal, desencadear reformas pendentes que deverão afetar em grande medida estados e municípios. O que agora se noticia é que a reforma tributária ficaria para o ano que vem. Por ora, a prioridade teria passado a ser o esforço de flexibilização dos orçamentos dos três níveis de governo, sob o lema “desvincular, desindexar e desobrigar”, que o Ministério da Economia insiste em rotular de Novo Pacto Federativo.

A prioridade pode até fazer sentido. O problema, mais uma vez, é o timing. Com base no que se viu nos últimos meses, é difícil que uma reforma de tamanha complexidade possa ser concluída, ou pelo menos aprovada em uma das Casas do Congresso, até o recesso parlamentar. O que significa que a fase mais crítica do esforço de flexibilização dos orçamentos dos três níveis de governo terá lugar a partir de fevereiro de 2020, quando a mobilização do Congresso com as eleições municipais já terá tornado bem mais difícil a aprovação das medidas requeridas.

Sobram evidências de que a mobilização do Congresso com as eleições municipais do ano que vem deverá se mostrar especialmente precoce. Basta ter em mente a batalha campal que já vem sendo travada entre a família Bolsonaro e o presidente do PSL, Luciano Bivar, pelo controle dos R$ 350 milhões de recursos públicos com que contará o partido na disputa eleitoral de 2020. Um embate que poderá deixar o apoio do governo no Congresso ainda mais precário.
Rogério Furquim Werneck

Imagem do Brasil


Patota de caciques

De fato, a briga entre Jair Bolsonaro e Luciano Bivar é por causa da dinheirama a que terá direito o PSL a partir do ano que vem. Da parte do presidente e família, porém, não é só isso. Trata-se do controle do mais vantajoso dos cartórios em que se transformaram os partidos políticos no Brasil, com raras e pontuais exceções.

Bivar alugou, mas não transferiu a propriedade da legenda para Bolsonaro & Filhos, e aí reside o x de uma velha questão na qual, no entanto, ainda não tínhamos visto um presidente da República se envolver tão aberta e displicentemente. Essa é a única novidade nesse caso, que reúne os ingredientes da lamentável história recente dos partidos: domínio de caciques, inchaço artificial proporcionado pela conquista do poder, trato obscuro do dinheiro público, serventia como cabides de empregos, zero debate político-doutrinário.


É o que se vê em agremiações com cheiro, cara e jeito de balcão para compra e venda de interesses privativos de seus donos e respectivos donatários. É o que Jair Bolsonaro está cansado de ver em sua vida política, pois já passou por oito delas, ocupa a nona e se prepara para integrar a décima.

Com a diferença de que agora é presidente e se crê merecedor de ter a sua, na qual possa ser ele o mandatário supremo. Já mostrou sinal disso durante a campanha nas exigências negadas por vários partidos antes de dar com os costados no PSL, mediante tratativas substantivas com o esperto negociante Luciano Bivar, e voltou ao assunto logo no início do governo, em fevereiro, quando os filhos andaram acenando a um partido ainda em fase de criação com a legenda da velha UDN.

A briga se estendeu pelo terreno da Justiça, teve a participação da Polícia Federal e ganha novos personagens no Congresso com a entrada em cena de integrantes do chamado Centrão já preocupados com essa história de contestação do poder e com a possibilidade de afastamento da atual direção do PSL. Querem criar umas regrinhas para dificultar isso. É a patota dos caciques se movimentando em causa própria.

O lobby desse pessoal atuará em favor da manutenção de Bivar. Não por amor, mas por interesse. Aberto um flanco desse tamanho amanhã ou depois, estariam os demais morubixabas partidários submetidos ao mesmo risco. Donde gente experiente no ramo aposta que Bolsonaro perde a parada e Bivar fica com a maioria dos 53 deputados e com a gorda verba destinada ao PSL em 2020: 359,1 milhões de reais resultantes da soma dos 113,9 milhões do fundo partidário e dos 245,2 milhões do fundo eleitoral.

Outra desvantagem de Jair Bolsonaro nesse embate é o potencial desgaste das negociações com um novo partido agora que está sentado numa cadeira sobre a qual reluz o maior refletor do país. Uma coisa é negociar nos bastidores ainda como obscuro deputado, outra é fazer isso no Palácio do Planalto sob a estreita vigilância da nação.

O presidente dá a entender que briga por moralidade no trato de verbas públicas, mas não pronuncia palavra em prol de mudanças que retirem o caráter cartorial dos feudos a que de maneira imprópria damos o nome de partidos de representação política.

Neste ritmo, só vão sobrar os filhos

Não está fácil acompanhar a série de barracos do bolsonarismo. No capítulo de ontem, o líder do PSL na Câmara, Delegado Waldir, chamou o presidente de “vagabundo” e prometeu “implodir” o governo. Antes disso, impôs mais uma derrota humilhante ao Planalto.

Com a caneta Bic no bolso e o telefone na mão, Jair Bolsonaro tentou derrubar o deputado do cargo. Queria trocá-lo pelo filho Eduardo, cuja indicação a embaixador está mais fritada que um hambúrguer. Recém-alçado do baixo clero, Waldir organizou o contragolpe parlamentar. Mobilizou a tropa de insatisfeitos e destronou o príncipe herdeiro.

Irritado, o presidente destituiu a líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann. A deputada preferiu apoiar o delegado a bater continência para o capitão. Sentindo-se traída, ela acusou o governo de comandar uma “milícia digital”, reclamou de “ingratidão” e prometeu revanche.

O dia ainda teve outros revezes para o Planalto. Bolsonaro foi gravado por um aliado quando articulava a favor do herdeiro. Em reunião da bancada do PSL, o chefe da principal comissão da Câmara resumiu o clima de ressentimento. “A gente foi tratado que nem cachorro desde que ele ganhou a eleição”. Ele é o presidente da República, um político que passou 28 anos na Câmara e não aprendeu a comandar nem o próprio gabinete.

Os bolsonaristas arrependidos já conheciam todos os defeitos do capitão. Só não esperavam ser rifados tão cedo, em nome de um projeto político que ninguém sabe dizer qual é. No Congresso, a impressão geral é de que o presidente só pensa em proteger os próprios filhos. Para isso, não hesita em sacrificar velhos amigos e articuladores da campanha.

Desde que tomou posse, Bolsonaro torpedeou todos os aliados que se esforçavam para defendê-lo. Do discreto Santos Cruz à histriônica Joice, todos foram largados à própria sorte. Neste ritmo, só vão sobrar o Zero Um, o Zero Dois e o Zero Três —e enquanto eles não brigarem de vez entre si.

Nova fase do governo Bolsonaro

A briga fratricida no PSL e a provável aprovação da reforma da Previdência marcam o fim da primeira fase do governo Bolsonaro. O que virá daqui para diante será uma tentativa de reorganização dos grupos políticos e uma desaceleração da maior parte da agenda de políticas públicas dependente do Congresso, ao menos até o fim das eleições municipais. O presidente vai procurar construir uma base política e social que permita, no mínimo, uma segunda parte de mandato sem sobressaltos e, no máximo, a reeleição. Os demais vão querer se fortalecer para reduzir ainda mais a força do Executivo federal e, quem sabe, assumir o poder em 2022.

A primeira fase do governo não foi uma lua de mel tranquila, tal qual tiveram outros governantes, como FHC e Lula. Houve muitos conflitos com a classe política, com líderes estrangeiros e com setores da sociedade civil. A governabilidade também foi complicada, com o Congresso ganhando um inédito protagonismo e derrotando por algumas vezes o Executivo, inclusive em questões estratégicas. Ademais, a popularidade presidencial caiu bastante - Bolsonaro tem o pior nível entre os presidentes de primeiro mandato desde a redemocratização. Mas, mesmo com todos esses furacões, foram aprovadas medidas difíceis e cerca de um terço da população ainda o apoia.

Só que os atores políticos se preparam agora para uma nova fase, embalada pelas possíveis mudanças de posições e de poder que podem advir das eleições municipais. O primeiro a entrar nessa nova etapa do jogo foi o próprio presidente da República. A disputa no PSL sinaliza que Bolsonaro quer montar uma estrutura mais confiável e totalmente dominada por ele para o pleito de 2020, bem como para a segunda parte do mandato. Cabe lembrar que, para chegar ao poder, o bolsonarismo esteve umbilicalmente ligado a políticos tradicionais, como o laranjal da campanha está revelando.

Agora, Bolsonaro quer fazer três mudanças: livrar-se do lado “sujo” do PSL, marcar mais claramente o viés conservador de seu grupo e ter uma máquina política capaz de enfraquecer seus principais adversários.


Seguindo essa linha de raciocínio, o primeiro passo envolve afastar-se de boa parte dos aliados pesselistas, tentando criar a imagem de um “bolsonarismo purificado” em outro partido ou na recuperação do domínio do PSL. Além disso, o presidente e seus principais aliados pretendem dar uma feição ideológica mais nítida ao seu grupo, intitulado por eles de posição conservadora. Para além das crenças, está aqui em jogo um projeto que busca conquistar eleitores no campo dos valores, algo que será ainda mais estratégico caso as políticas públicas federais tenham um resultado fraco.

E a última tentativa de “aggiornamento” do bolsonarismo está em construir uma máquina política, e não só de redes sociais, para dar suporte à luta contra seus adversários atuais e os prováveis. Neste sentido, as eleições municipais são muito importantes para Bolsonaro, que quer ter soldados fiéis no comando de várias cidades brasileiras. Sem essa guarida, o presidente terá dificuldades políticas em lugares estratégicos, como o Nordeste, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e mesmo o Sul do país, o que poderá, num primeiro momento, afetar o humor dos parlamentares e, num segundo momento, o dos eleitores em 2022.

O plano bolsonarista tem bastante lógica política, porém, não será tão fácil executá-lo. Em primeiro lugar, devido às contradições internas desse movimento. Que a liderança do PSL é clientelista e algo mais todo mundo sabe. Isso não quer dizer que os bolsonaristas “de raiz” sejam anjos da política. E com o acirramento do conflito entre os “amigos”, agora vão aparecer mais podres da família Bolsonaro e seus mais fiéis aliados. Os assessores do tipo Queiroz vão pulular pela imprensa nos próximos dias.

A luta partidária, ademais, vai passar pelo dinheiro do fundo partidário. O PSL já tem direito a centenas de milhões de reais. E quem comandará esses recursos, fundamentais para a disputa local por todo o país será o presidente do partido e seus asseclas. A saída dos bolsonaristas do partido não afetará esse aspecto. É preciso saber quem financiará o bolsonarismo no pleito municipal, quando, ao contrário de 2018, os holofotes estarão todos voltados para investigar de onde vem o dinheiro para financiar as redes sociais e outros gastos de campanha, inclusive o olhar de um TSE pressionado como nunca pelo STF.

O segundo obstáculo que se coloca à estratégia bolsonarista está na reorganização das outras forças políticas. Depois de perderem a eleição de 2018, serem chamados de velha politica e jogados na sarjeta pelos discursos do presidente, os principais partidos agora estão numa situação melhor. Antes de mais nada, porque o posicionamento contrário ao radicalismo bolsonarista congrega dois terços do eleitorado. Afora isso, os resultados das políticas federais ainda não engrenaram e isso pode aumentar a insatisfação popular - quem souber capitalizar isso ao seu favor terá grandes chances nas eleições municipais.

Olhando cada parte do espectro partidário, a esquerda provavelmente continuará forte no Nordeste e terá chances em algumas capitais importantes. Ela poderá ser ainda mais forte se for capaz de fazer alianças em colégios eleitorais estratégicos. Mas aqui entra a grande dúvida: se com um governo marcado por características tão contrárias às visões esquerdistas - quando não aos próprios valores democráticos - as esquerdas continuam batendo boca em entrevistas pela imprensa, será que eleições locais vão unificá-las?

Os partidos mais ao centro estão loucos para se descolar do bolsonarismo e aproveitar um momento em que a economia dificilmente estará a todo vapor. Cabe lembrar que o PT e outras agremiações mais centristas, como o PSDB, o DEM, o MDB e o PP terão bastante dinheiro público para fazer a campanha, afora terem já uma capilaridade grande pelas cidades do país. São mais profissionais em campanhas locais e podem se beneficiar do amadorismo e das brigas viscerais nas hostes mais conservadoras.

No fundo, estas legendas centristas e mesmo as de centro-esquerda já não sentem tanto o efeito 2013 - o grito contra o sistema partidário - e nem o bolsonarismo parece tão inovador hoje para grande parte do eleitorado. Mas isso não quer dizer que o caminho será róseo. Provavelmente o eleitorado não vai querer tanta novidade como em 2018, por conta das decepções em vários lugares, mas também não perdoará quem estiver fortemente ligado à corrupção e afins. Quem poderá se beneficiar desse cenário?

É muito cedo para dar uma resposta a esta pergunta. O que se pode dizer é que gradativamente os principais partidos do Congresso tentarão criar uma identidade própria frente ao bolsonarismo, procurando se posicionar para a eleição de 2020. A velocidade e a intensidade desse processo dependerão de três coisas. A primeira é a liderança do presidente da República nos próximos meses, especialmente o efeito de suas palavras e ações na opinião pública, no Congresso, no STF e nos atores internacionais. Quanto mais ele se isolar, mais rápido e intenso será a mudança em direção a posições contrárias ao governo, com efeitos negativos para as decisões governamentais e na implementação das políticas públicas.

O segundo aspecto diz respeito ao desempenho econômico. Se a economia não decolar, e isso passa pelos indicadores e também pelo pulso das ruas (a percepção das pessoas), os políticos vão se distanciar mais do presidente e usarão o pleito municipal como palanque contra o governo. Mas se a economia ganhar força no fim do primeiro semestre, Bolsonaro poderá no mínimo diminuir o ímpeto de seus críticos ou dividi-los. De todo modo, não se espera uma situação similar à do Plano Real ou do auge do lulismo em 2010. O quanto e de que maneira a economia poderá afetar o humor dos eleitores? Inflação baixa é bom, mas desemprego é mais potente na definição do voto.
As outras políticas públicas federais também serão objeto de debate.

No pleito municipal, temáticas como educação, saúde, transporte, moradia e segurança costumam ganhar um lugar cativo. Aparentemente há uma tentativa de substituir o frágil desempenho dessas políticas, algo que poderia ser justificado pela falta de dinheiro, por um discurso baseado em valores. Que porcentagem de eleitores trocará a falta de vaga em hospital ou de moradia por um país mais cristão e moralista?

O governo Bolsonaro II iniciou-se e há muitas perguntas de difícil resposta no presente momento. O que se sabe é que quanto mais dificuldades o presidente tiver nas eleições municipais, mais a segunda parte do mandato será complicada. Mais do que ganhar de lavada, o bolsonarismo precisará obter um tamanho eleitoral que permita uma boa defesa. E do outro lado, o crescimento dos contrários ao governo, que são de múltiplos tipos, só terá maior dimensão se conseguirem, após o pleito de 2020, fazer alianças, parcerias e projetos conjuntos de país.

Uma última observação: o maior risco do dia seguinte das eleições municipais é o bolsonarismo continuar seu discurso refratário às instituições. Daí que o equilíbrio de poderes, em sentido amplo, ainda é o melhor antídoto para atravessar as várias fases pelas quais o governo Bolsonaro deverá passar.
Fernando Abrucio

Cria corvos

“Cria cuervos que te sacarán los ojos” ("crie corvos e eles te arrancarão os olhos") é um velho provérbio espanhol. A citação inspirou a obra-prima do cineasta Carlos Saura, que se passa em pleno franquismo. Aqui, porém, tem mais a ver com a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e seu partido, o PSL, que ameaça implodir a legenda, quiçá o próprio governo, se o líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), nesse caso, fosse levado a sério. A sua ameaça vazou em gravação divulgada à imprensa, como vazara antes uma declaração do presidente da República articulando a substituição do líder por seu filho, deputado Eduardo Bolsonaro (SP) — aquele mesmo que o pai pretendia nomear embaixador do Brasil nos Estados Unidos — numa reunião no Palácio do Planalto com 20 deputados da legenda.

A crise começou com uma declaração de Bolsonaro de que o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), estaria queimado, evoluiu para um questionamento sobre a transparência da gestão e uma ação de busca e apreensão da Polícia Federal na casa e no escritório do cacique da legenda. Fechou a semana com uma mudança na liderança do governo no Congresso, a destituição da deputada Joice Hasselmann (SP), que foi substituída pelo senador Eduardo Gomes (MDB-TO), e a fracassada tentativa de destituição do líder da bancada na Câmara, por meio de duas listas cujas assinaturas não atingiram o número de deputados necessários para o reconhecimento da Mesa.


Nesse bafafá, além dos vazamentos de conversas gravadas sem autorização, houve muito disse-me-disse e articulações de bastidor para destituir os filhos do presidente Bolsonaro do comando da legenda no Rio de Janeiro, no caso, o senador Flávio Bolsonaro, e em São Paulo, o deputado Eduardo Bolsonaro. No fim da tarde, Delegado Waldir tentava minimizar as próprias ameaças: “É uma fala num momento de emoção, né? É uma fala quando você percebe a ingratidão. Tenho que buscar as palavras”, disse. Ao encontrá-las, a emenda foi pior do que o soneto: “Nós somos Bolsonaro. Nós somos que nem mulher traída. Apanha, não é? Mas, mesmo assim, ela volta ao aconchego”.

A crise de Bolsonaro com seu partido parece reprise de outros momentos da história, em que presidentes eleitos numa onda antissistêmica, por pequenos partidos, sem uma base sólida no Congresso, acabaram interrompendo o mandato: Jânio Quadros, eleito pelo PTN, que renunciou em 1961, sonhando com a volta nos braços do povo, e Fernando Collor de Mello, eleito pelo PRN, que também renunciou, mas para evitar um impeachment. Ambos tiveram comportamentos histriônicos na Presidência, foram eleitos com uma narrativa de combate à corrupção, numa onda populista de direita. Os contextos, porém, eram diferentes. A eleição de Jânio foi pautada pela Guerra Fria; a de Collor, pela modernização do país após a redemocratização.

O mais impressionante na crise de Bolsonaro com o PSL é que a disputa não tem nada a ver com os grandes temas em discussão no Congresso, nem mesmo com a polarização política direita versus esquerda protagonizada pelo presidente da República. É o varejo do varejo da política partidária que a move. Bolsonaro considera todos os parlamentares do PSL caudatários de seu próprio prestígio, porque foram eleitos pela base bolsonarista, que descarregou votos nos candidatos proporcionais que o apoiavam. Nesse aspecto, está cheio de razão. Ocorre que os parlamentares pensam diferente, descobriram seu próprio poder na convivência com outros líderes e bancadas partidárias, querem mais espaço no governo e não abrem mão de seu quinhão na partilha dos recursos dos fundos partidário e eleitoral.

Bolsonaro não desistiu de remover Delegado Valdir. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (GO), continua as articulações para fazer de Eduardo Bolsonaro (SP) o novo líder da bancada. A briga tem muito a ver com o posicionamento da legenda em relação às eleições municipais do próximo ano. Bolsonaro quer indicar os candidatos apoiados pelo PSL, principalmente nas capitais. A experiência mostra que esse tipo de envolvimento direto do presidente da República nas eleições não costuma dar muito certo. Nacionalizar as eleições municipais não é a tendência dos eleitores, mesmo nas grandes metrópoles. Foram raros os momentos em que isso aconteceu, como na eleição de Luiza Erundina, então no PT, à Prefeitura de São Paulo, em 1988, durante o governo José Sarney.

O maior problema é que a disputa ocorre num momento em que o governo está sem agenda no Congresso. A aprovação da reforma da Previdência deverá ser concluída na próxima quarta-feira, no Senado. Com o engavetamento da reforma tributária, o governo não sabe ainda o que fazer em termos de iniciativa legislativa. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ontem, negociava uma pauta com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), mas foi atropelado pela crise entre seu chefe e seus correligionários. Não fossem o DEM e o MDB, principalmente, o governo estaria no sal, sem a menor governabilidade.

Pensamento do Dia


Bolsonaro encosta a 'nova política' no velho MDB

Na campanha presidencial, Jair Bolsonaro tratou a política como se fosse a segunda profissão mais antiga do mundo. Na Presidência da República, Bolsonaro se esforça para demonstrar que ela se parece muito com a primeira. Candidato, Bolsonaro vendeu-se como opção antissistema. Presidente, o capitão acerta-se com o MDB, um partido sistêmico o bastante para ser a favor de tudo ou absolutamente contra qualquer outra coisa, desde que suas pulsões vitais sejam atendidas.

Em meio ao arranca-rabo com o PSL, Bolsonaro decidiu destituir a ex-amiga Joice Hasselmann do posto de líder do governo no Congresso. Substituiu a correligionária pelo senador Eduardo Gomes (MDB-TO). O novo preposto do presidente no Legislativo fará dobradinha com o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), líder do governo no Senado.

Eduardo Gomes é vinculado a um personagem notório: o multi-investigado Renan Calheiros (MDB-AL), adepto da operação Abafa a Jato, entusiasta do "Lula Livre". Fernando Bezerra, egresso do Partido Socialista Brasileiro (PSB), é um antigo apoiador de Lula. Serviu ao governo de Dilma Rousseff como ministro da Integração Nacional. Tornou-se cliente de caderneta da Lava Jato. No mês passado, recebeu a visita dos rapazes da Polícia Federal, numa batida de busca e apreensão que recolheu material para processo em que é acusado de desviar R$ 5,4 milhões.



A serventia de Gomes e Bezerra para Bolsonaro está associada mais à sobrevivência política do que à articulação de reformas modernizantes. Num instante em que o desalinho de Bolsonaro faz soar nos subterrâneos do Congresso uma pergunta incômoda — "Será que ele termina o mandato?" —, a dupla de emedebistas oferece ao capitão canais de acesso aos nichos mais arcaicos do Legislativo, sobretudo às legendas do centrão.

A preocupação com o centrão não é banal. Foi sobretudo graças à junção dos interesses desse grupo com os do MDB de Michel Temer que Dilma Rousseff foi mandada para casa mais cedo. Eduardo Gomes exerceu três mandatos de deputado federal antes de virar senador.

Gomes conheceu Bolsonaro nos fundões do baixo clero da Câmara. Até janeiro de 2019, integrava os quadros de uma das principais legendas do centrão: o Solidariedade, partido do deputado Paulinho da Força. Ingressou no MDB a convite e sob apadrinhamento de Renan Calheiros.

E quanto às reformas econômicas? Bem, numa de suas primeiras manifestações como líder, Eduardo Gomes avisou que, concluída a reforma da Previdência no Senado, o governo vai se concentrar na aprovação do Orçamento de 2020. As demais reformas —administrativa, tributária e ajustes no pacto federativo, por exemplo— ficarão para o ano que vem. Um ano de eleições municipais, que tende a ser pouco produtivo no Congresso.

A exemplo do sapo de Guimarães Rosa, não é por boniteza, mas por precisão que Bolsonaro encosta sua "nova política" no velho e bom MDB. Embora seja declinante, a popularidade do presidente ainda roça os 30%. As ruas não roncam pelo vice Hamilton Mourão. Entretanto, como a economia demora a reagir, Bolsonaro toma suas precauções. Com 28 anos de experiência parlamentar, o presidente já não se importa de tornar a política, segunda profissão mais antiga do mundo, mais parecida com a primeira.

Haja chinelo

Se o homem faz de si mesmo um verme, ele não deve se queixar quando é pisado
Immanuel Kant

Clima, prioridade do FMI

Furacões, secas, degelo e outros males ligados à mudança climática são assuntos para bancos centrais e Ministérios de Finanças? Nada mais natural que uma resposta positiva, a julgar pelas posições defendidas no Fundo Monetário Internacional (FMI), nesta semana, por dirigentes da instituição e participantes de pelo menos 16 debates sobre temas ambientais. Dois grandes alertas marcaram as apresentações de técnicos e diretores da instituição, nos últimos dias. O primeiro, de maior impacto imediato para os formuladores de política, veio no estilo tradicional: a economia global está em desaceleração, riscos financeiros se acumulam e é preciso agir para evitar um desastre. O segundo indicou uma visão renovada, e mais ampla, da política econômica: “Ministros de Finanças devem ter papel central na promoção e na implementação de políticas fiscais para deter a mudança climática”, disse o diretor do Departamento de Assuntos Fiscais do FMI, Vítor Gaspar.


Estará o Fundo, execrado tantas vezes como um dos símbolos mais hediondos do capitalismo, contaminado pela esquerda? Terá sido enfim subjugado pela influência da China, uma das fontes do “climatismo”, como já asseguraram o presidente Donald Trump e seu devoto Jair Bolsonaro? Se esse for o caso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá acertado ao desistir, em cima da hora, de participar da assembleia anual do FMI e do Banco Mundial. As alegadas prioridades internas podem ter sido apenas uma desculpa diplomática.

Para centenas de milhões de outras pessoas, a ampliação da pauta do FMI, de fato iniciada há anos, pode ser estimulante, sem prejuízo da melhor tradição. Quem se deleita com números, contas públicas, crise, crescimento e emprego evita perder as entrevistas de Vítor Gaspar. Ele dirige há anos o Departamento de Assuntos Fiscais do FMI e uma de suas tarefas é supervisionar o Monitor Fiscal, um relatório semestral sobre o estado das contas públicas, as políticas de receitas e despesas e seus efeitos sobre a economia. A informação é de alta qualidade e as questões centrais são normalmente tratadas com vigor.

Neste ano, sua apresentação incluiu dois apelos. Para animar a atividade e prevenir um novo tombo é hora de usar estímulos fiscais, porque os incentivos monetários, até com juros negativos, chegaram ao limite. A outra convocação veio fora do formato tradicional. O aquecimento global é uma ameaça clara e presente, as ações e compromissos foram até agora insuficientes e, quanto mais se esperar, maiores serão os danos e perdas de vida. Para conter o aquecimento em 2% ou menos, dentro dos limites considerados seguros pela ciência, será preciso fazer mais para limitar as emissões de carbono.

A solução mais evidente, segundo o estudo apresentado por Vítor Gaspar, é uma tributação eficaz, calculada para encarecer as emissões e facilitar a transição para uma nova economia, com padrões ambientais mais saudáveis e sustentáveis. Nos principais países emissores a taxação poderia crescer rapidamente e atingir US$ 75 por tonelada de carbono em 2030. Seriam afetados, entre outros, o preço da gasolina e as tarifas de eletricidade. Isso dependeria das características de cada país. Tributar, no entanto, seria só uma parte das ações.

Os governos poderiam, por exemplo, compensar o aumento desses custos com a diminuição de outros impostos. Poderiam criar compensações para as famílias mais pobres. Deveriam, de modo geral, investir parte do dinheiro arrecadado em programas de transição para a nova economia. Os planos deveriam incluir assistência aos trabalhadores mais afetados pela mudança energética.

Ameaça clara e presente foi a primeira noção usada para a abordagem do tema no Monitor Fiscal. Com outro vocabulário, o tema foi usado pela nova diretora-gerente do Fundo, Kristalina Georgieva, para mostrar a importância econômica da questão climática: “No FMI sempre olhamos para riscos e essa categoria de risco tem de ser absolutamente central para nosso trabalho. (…) A transição de uma economia de alto para uma de baixo carbono não é tarefa trivial e temos a responsabilidade de cuidar da compreensão desses riscos, de classificá-los e – mais importante – de apresentar políticas para geri-los”. No FMI, o calendário indica o século 21. E no Palácio do Planalto?

E se as manchas de petróleo nas praias do Nordeste fossem um aviso dos deuses?

As misteriosas manchas escuras que estão sujando as belas praias do Nordeste do Brasil, cuja origem ainda é desconhecida, podem ser mais do que resíduos de petróleo lançados ao mar. Poderiam ser também um aviso dos deuses neste momento em que o Governo brasileiro tem uma política desastrosa de defesa do meio ambiente.

Não sei se existem deuses e demônios, mas a linguagem se alimenta de símbolos. E essas manchas pretas também poderiam ser um alerta da decadência política, social e humana que o país está enfrentando. Um território todo ele rico em reservas de todo tipo e pobre em líderes que poderiam transformá-lo em fonte de riqueza para acabar com uma pobreza que asfixia todo o país e especialmente o Nordeste, se excetuarmos a pequena dinastia do dinheiro fácil e dos privilégios de seus governantes, às vezes únicos no mundo das democracias ocidentais.

Antes que as misteriosas manchas de petróleo infestassem cada vez mais as praias nordestinas, o governo Bolsonaro, com sua política de exclusão, seus escarceis autoritários e racistas, já tinha sujado a imagem do país no exterior. O Brasil acabou provocando vergonha no mundo livre, que pergunta assombrado o que está acontecendo com um país que já foi um sonho feliz para tantos estrangeiros. Hoje são os brasileiros que gostariam de deixar um país do qual um dia se disse que Deus havia nascido nele.

O Nordeste do Brasil, com a face cristalina de seus mares e rios, cuja beleza e doçura do clima são proverbiais no mundo, não está sofrendo apenas um desastre ambiental. É também uma catástrofe para sua já frágil economia, para seus milhares de pescadores cujo peixe, única fonte de subsistência, ninguém quer comprar por medo de que possa estar contaminado. Pode ser uma catástrofe para o turismo, um dos mais prósperos do país.

O Nordeste do Brasil é acusado injustamente de ser, com sua indolência, a causa de seu atraso econômico. Ao contrário, como afirmam os especialistas em economia, está demonstrando ser uma das regiões com maior desejo de empreender e se libertar de seu atraso atávico, e não como resultado do saque da política atrasada e corrupta de seus caciques.

O Nordeste está de luto e os governantes calam e olham para outro lado. Que eu saiba, o presidente da República, que já ofendeu os nordestinos com sua linguagem racista, não fez o gesto de ir ao local dessa nova catástrofe ambiental para consolar os trabalhadores que a estão sofrendo.

Nem sabemos ainda de onde vêm essas guirlandas negras misteriosas e ameaçadoras. Afinal, isso afeta o território mais pobre do país que carrega o estigma injusto de ser o culpado de sua pobreza. Se isso tivesse acontecido no Brasil rico, os políticos já estariam correndo para lá para derramar lágrimas de crocodilo.

O Brasil e seu exército de evangélicos querem levantar um grande museu da Bíblia na capital do país. O que se precisa neste momento é um profeta como os do Antigo Testamento, que explicasse que essas manchas de óleo, como feridas negras em nosso rosto, podem conter um aviso dos deuses. Como o foram as terríveis pragas do Egito com as quais Deus puniu o faraó para que deixasse Moisés tirar seu povo da escravidão para levá-lo à liberdade.

Hoje existe um poder no Brasil preocupado principalmente com o crescimento da minoria rica e privilegiada do país. Esquecem que na pirâmide que o representa, a grande base é composta por milhões de trabalhadores para os quais as novas leis e projetos que o Governo está aprovando os empurra ainda mais para um estado de escravidão disfarçado de liberdade, enquanto reduz direitos daqueles que mais precisariam vê-los ampliados.

Os deuses, com a praga negra que aflige os nordestinos, que toda vez que os visitei me surpreenderam e me emocionaram com a delicadeza elegante e alegre de seu trato, poderiam estar avisando que ou os faraós que os governam se esforçam para devolver as liberdades das quais estão sendo despojados e os preconceitos com os quais estão sendo ofendidos, ou novas pragas piores poderiam continuar atormentando todo o país.
Juan Arias