A crise é boa para conhecer tipos humanos. Temos de tudo – uma galeria de personas, de máscaras, de bonecos de engonço, temos um reality show sobre o Brasil, temos o desfile de caras, de bocas, de mãos trêmulas, temos as vaidades na fogueira, os clamores de honradez, os falsos testemunhos, a lama debaixo das dignidades, temos os intestinos, os nós nas tripas, os miasmas que nos envenenam, sujeiras escorrendo pelas frestas da lei.
E tudo vai diplomando o povo em ciência política. A crise é boa para acabar com a crença de que um operário tem uma aura de santidade e mostra que, para ser presidente, tem, sim, que estudar e ter competência. E nos mostra também o mal que um sujeito egoísta e deslumbrado pode fazer a um país.
A crise nos mostra que o crime político não é um defeito, mas uma instituição. A crise nos espanta: como um partido consegue esquecer qualquer resquício de grandeza e contaminar as instituições? A crise nos ensina o horror do narcisismo totalitário. A crise nos ensina que os velhos “revolucionários” ficaram iguais aos piores políticos oligárquicos – ambos trabalham na sombra, na dissimulação, no cabresto dos militantes. A crise nos lembra que a burrice é uma “força da natureza’, como os ciclones e terremotos. Crise também é cultura. A crise é Brecht, Shakespeare e revista “Caras”. A crise acabou com a mistificação de que o PT era o partido dos “puros”, como muitos intelectuais acreditaram e continuam acreditando, com a fé inquebrantável do “mesmo assim” – quebraram a Petrobras e o país, mas, “mesmo assim”, continuam acreditando, como religiosos: “Credo quia absurdum” (Creio mesmo sendo absurdo). A crise nos mostra que o petismo maculou as ideias de uma verdadeira esquerda no país, sequestraram as palavras, a linguagem romântica d’antanho. A crise prova que a velha esquerda ancorada no petismo não tem programa, nem projeto; tem um sonho que vira pesadelo. A crise acaba com os fins justificando os meios. A crise acaba com o “futuro” e nos traz o doce, o essencial presente. A crise nos ensina que ninguém se define apenas como “companheiros”, “comandantes”, “aventureiros”, “guerreiros do povo brasileiro”, pois as pessoas são compulsivas, agressivas, invejosas, narcisistas, fracassadas e com problemas sexuais. A crise nos ensina mais Freud do que Marx. A crise ensina que revolução no país tem de ser administrativa, e não de ruptura e utopia.
A “contemporaneidade”, esse “faz-tudo” do novo vocabulário, inventou a “utopia da distopia”. Nada como uma boa distopia para saciar nossa fome de certezas. A crise ensina que não adianta mostrar apenas os horrores da miséria dos desvalidos; a verdadeira miséria está nos intestinos da própria política.
A crise nos mostra que existem fascistas de direita e de esquerda, que a verdadeira esquerda está em tudo que é profundo e que a direita está em tudo que é superficial – logo, o PT é de direita.
A crise nos revela que o país (e a vida) é mais complexo do que a divisão “opressores e oprimidos” e que o capitalismo não é uma pessoa malvada para conscientemente nos destruir; capitalismo não é um regime político – é um modo de produção.
A crise nos ensinou que a corrupção de hoje não é um pecado contra a lei de Deus – é um sistema, uma ferramenta de trabalho. A crise nos mostra que não há mais inocentes em Brasília – todos são cúmplices. E aprendemos que, mesmo com terríveis expectativas para 2015, as ruas provaram que a história é intempestiva (Nietzsche) e marcha no escuro quando nós dormimos. A crise nos lembra a frase de Baudrillard tão citada por mim: “O comunismo hoje desintegrado tornou-se viral, capaz de contaminar o mundo inteiro, não através da ideologia nem do seu modelo de funcionamento, mas através do seu modelo de des-funcionamento e de desestruturação da vida social”, vide o estrago do PT e o novo eixo do mal da América Latina. A crise está abrindo nossos olhos.
Ouso dizer que por vielas escuras e mal frequentadas a crise fará bem ao Brasil. A crise também é útil porque nos dá uma porrada na cara para deixarmos de ser bestas.