terça-feira, 24 de março de 2015

O lado bom da crise

A crise é boa. Nada melhor do que uma crise para nos dar a sensação de que a vida muda, que a história anda, que a barra pesa. A crise nos tira o sono e nos faz alertas. A crise nos faz importantes, nós, a opinião pública, nós, o “povo”, nós, os ex-babacas que viviam na sombra, na modorra e que de repente saíram batendo panelas nas ruas. Na crise no Brasil, a política fica visível para a população. A crise nos lembra a maldição chinesa: “que você viva em tempos interessantes” – por “tempos interessantes” se entenderia uma época de calamidade, guerras e instabilidade. A crise é boa porque acabaram as antigas crises cegas, radiofônicas, anos 50. Hoje, as crises são online, na internet, nos celulares, com todas as roubalheiras ao vivo, imediatas, na velocidade da luz. A crise é uma aula, quase um videogame. A crise é um thriller em nossas vidas. A crise nos permite ver a verdade. Mas como, se todos mentem o tempo todo? A crise nos ensina a ver a verdade de cabeça para baixo, nos ensina que a verdade é o contrário de tudo que dizem os depoentes, testemunhas e réus. A verdade está em tudo que os políticos negam.

A crise é boa para conhecer tipos humanos. Temos de tudo – uma galeria de personas, de máscaras, de bonecos de engonço, temos um reality show sobre o Brasil, temos o desfile de caras, de bocas, de mãos trêmulas, temos as vaidades na fogueira, os clamores de honradez, os falsos testemunhos, a lama debaixo das dignidades, temos os intestinos, os nós nas tripas, os miasmas que nos envenenam, sujeiras escorrendo pelas frestas da lei.


E tudo vai diplomando o povo em ciência política. A crise é boa para acabar com a crença de que um operário tem uma aura de santidade e mostra que, para ser presidente, tem, sim, que estudar e ter competência. E nos mostra também o mal que um sujeito egoísta e deslumbrado pode fazer a um país.

A crise nos mostra que o crime político não é um defeito, mas uma instituição. A crise nos espanta: como um partido consegue esquecer qualquer resquício de grandeza e contaminar as instituições? A crise nos ensina o horror do narcisismo totalitário. A crise nos ensina que os velhos “revolucionários” ficaram iguais aos piores políticos oligárquicos – ambos trabalham na sombra, na dissimulação, no cabresto dos militantes. A crise nos lembra que a burrice é uma “força da natureza’, como os ciclones e terremotos. Crise também é cultura. A crise é Brecht, Shakespeare e revista “Caras”. A crise acabou com a mistificação de que o PT era o partido dos “puros”, como muitos intelectuais acreditaram e continuam acreditando, com a fé inquebrantável do “mesmo assim” – quebraram a Petrobras e o país, mas, “mesmo assim”, continuam acreditando, como religiosos: “Credo quia absurdum” (Creio mesmo sendo absurdo). A crise nos mostra que o petismo maculou as ideias de uma verdadeira esquerda no país, sequestraram as palavras, a linguagem romântica d’antanho. A crise prova que a velha esquerda ancorada no petismo não tem programa, nem projeto; tem um sonho que vira pesadelo. A crise acaba com os fins justificando os meios. A crise acaba com o “futuro” e nos traz o doce, o essencial presente. A crise nos ensina que ninguém se define apenas como “companheiros”, “comandantes”, “aventureiros”, “guerreiros do povo brasileiro”, pois as pessoas são compulsivas, agressivas, invejosas, narcisistas, fracassadas e com problemas sexuais. A crise nos ensina mais Freud do que Marx. A crise ensina que revolução no país tem de ser administrativa, e não de ruptura e utopia.

A “contemporaneidade”, esse “faz-tudo” do novo vocabulário, inventou a “utopia da distopia”. Nada como uma boa distopia para saciar nossa fome de certezas. A crise ensina que não adianta mostrar apenas os horrores da miséria dos desvalidos; a verdadeira miséria está nos intestinos da própria política.

A crise nos mostra que existem fascistas de direita e de esquerda, que a verdadeira esquerda está em tudo que é profundo e que a direita está em tudo que é superficial – logo, o PT é de direita.
A crise nos revela que o país (e a vida) é mais complexo do que a divisão “opressores e oprimidos” e que o capitalismo não é uma pessoa malvada para conscientemente nos destruir; capitalismo não é um regime político – é um modo de produção.

A crise nos ensinou que a corrupção de hoje não é um pecado contra a lei de Deus – é um sistema, uma ferramenta de trabalho. A crise nos mostra que não há mais inocentes em Brasília – todos são cúmplices. E aprendemos que, mesmo com terríveis expectativas para 2015, as ruas provaram que a história é intempestiva (Nietzsche) e marcha no escuro quando nós dormimos. A crise nos lembra a frase de Baudrillard tão citada por mim: “O comunismo hoje desintegrado tornou-se viral, capaz de contaminar o mundo inteiro, não através da ideologia nem do seu modelo de funcionamento, mas através do seu modelo de des-funcionamento e de desestruturação da vida social”, vide o estrago do PT e o novo eixo do mal da América Latina. A crise está abrindo nossos olhos.

Ouso dizer que por vielas escuras e mal frequentadas a crise fará bem ao Brasil. A crise também é útil porque nos dá uma porrada na cara para deixarmos de ser bestas.

Cofre blindado ou caixa preta?

Nunca antes na História deste país, houve um tesoureiro de ferro. João Vaccari Neto, tesoureiro do PT, também conhecido na gangue do Petrolão como “Moch”, virou réu em mais um processo. Ainda assim a malta petista continua insistindo na defesa do responsável pelo dinheiro partidário.

Estranha-se uma blindagem tão grande, nunca aplicada a Delúbio Soares, condenado e que cumpre pena pelo Mensalão. Delúbio foi o antecessor de Vaccari, mas no processo nunca foi revelado que teria um codinome para atuar na clandestinidade. Também o PT nunca fez tanta defesa assim do tesoureiro, que inclusive deixou o partido.

Por que Vaccari merece tanta consideração? A resposta é que não passa de uma caixa preta do alto escalão. Até por que, apesar de réu, não está junto com outros na penitenciária.

Falou o inglês!

 

Quando os homens são puros, as leis são desnecessárias; quando são corruptos, as leis são inúteis
Benjamin Disraeli (1804-1881) 

O jeito cangaceiro de ser


O jornalista Hélio Fernandes, que dirigiu o combativo jornal “Tribuna da Imprensa”, destacou-se com seu texto corajoso e de permanente oposição aos regimes militares. Foi o jornalista mais vezes preso e exilado, teve a sede de seu jornal empastelada, sofreu ameaças, mas nunca se intimidou ou se calou. Paralelo à sua determinação com foco na crítica à ditadura, ele era também um olho vigilante da postura de políticos, parlamentares e executivos. Certa vez escreveu uma crônica dizendo que metade da Câmara Municipal do Rio de Janeiro era de ladrões. Interpelado judicialmente pela Casa, foi obrigado a retratar-se em artigo no mesmo jornal, com espaço e destaque iguais àquele entendido como ofensivo aos nobres edis. Respondeu na “Tribuna”: “esclarecendo a opinião desse articulista e cumprindo determinação judicial, como o fim de retratar-me, afirmo que metade da Câmara Municipal do Rio de Janeiro não é de ladrões”. Não desdisse, mas a edilidade deu-se por satisfeita e encerrou-se o assunto.

Na semana passada, teve fim a rápida e desastrada passagem do ministro Cid Gomes pelo ministério de Dilma. A família Gomes, exitosa nas urnas para o comando do Ceará, não é um primor nas ideias e muito menos na forma de expressá-las. Lembram um estilo cangaceiro de relacionarem-se. Ciro, seu padrinho e irmão, também ferrenho defensor da polêmica obra de transposição das águas do Rio São Francisco para irrigar o Nordeste, traz na sua biografia marcas notáveis. Uma delas, quando perguntado se a atriz Patrícia Pilar teria sido ouvida na concepção do programa de governo com o qual pretendia chegar à Presidência da República, retrucou: “ela apenas dorme comigo”. Uma pérola, um doce de companheiro. Colheu nas urnas a admiração das eleitoras.

O nefasto episódio que motivou a demissão de Cid foi a expressão de que o Congresso brasileiro tinha em sua composição mais de quatrocentos achacadores. Foi o bastante para que o presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha, longe, longe, quilometricamente distante, da figura a quem se poderia atribuir tal pecha, tal vício ou imperfeição de caráter, comemorasse a deposição de Cid. Bem feito para o ex-ministro, que falou demais.

Não falou todavia que o governo a quem servia como Ministro da Educação, numa Pátria Educadora, mas com verbas contingenciadas, tem 39 ministérios, 128 autarquias e 140 empresas estatais, para abrigar apadrinhados, acolher conchavos e calar eventuais opositores. Não falou Cid Gomes que os encargos (juros) de sustentação da dívida pública, exorbitantemente cobrados pelos bancos ao tesouro representam em um mês apenas tudo que o orçamento nacional destina aos programas sociais. Não falou que o Congresso está sentado em cima da agenda de reformas que poderiam mudar nossa história política, econômica e social. Exemplos a que poderia alterar a lastimável composição da Câmara e do Senado, de improdutiva realidade, ambos. A reforma que reduziria em número expressivo esse debochado estoque de partidos, muitos deles instituições criadas unicamente para preencher cargos de confiança e conseguir favores.

Na folha de pagamentos da União, há 114 mil cargos de confiança. A reforma fiscal, que reduziria impostos que hoje são desperdiçados pela ineficiência do poder público e a corrupção. A reforma trabalhista, necessária para proteger o trabalhador e seu trabalho e não ser o incentivo a que hoje assistimos de uma juventude que busca emprego sem compromisso, como se fosse possível alargarmos o contingente dos que pagam para que outros, muitas vezes com condições, não produzam nem sequer o próprio sustento.

O Brasil é muito viável. Temos que acreditar nisso todos os dias. E trabalhar para tal, cobrar, brigar e indignar-se. 

Resta esperar

A forma não substitui o conteúdo, da mesma maneira que o adjetivo não pode entrar no lugar do substantivo. Nos dois casos, ambos se completam e até se complementam. A presidente da República editou, por exemplo, medidas provisórias que reduzem direitos trabalhistas em vigor. Sem discutir ainda o mérito de tais questões, comprova-se que as posições da candidata na campanha eleitoral não coincidem com os posicionamentos da presidente. Por isso mesmo, torna-se difícil articular-se sua aprovação, sobretudo pelo reflexo negativo que apresentaram através da voz das ruas. Pois uma coisa é falar sobre intenções, outra coisa é confirmá-las na prática.

As dificuldades maiores do Planalto, portanto, não começam e terminam nos diálogos com o Parlamento, mas se desenvolvem atravessando o campo das reações populares e deságuam no mar de impossibilidades. As manifestações populares tornam-se cada vez mais importantes e decisivas no encaminhamento das decisões políticas. Assim, a substituição de Mercadante apresenta um peso relativo na sequência de insucessos que se projetou ao longo de apenas dois meses e meio. Não foi a única causa, embora tenha ele reunido em torno de si fortes ondas de reação contrárias. Entretanto, a entrada em cena de Lula modificou o quadro existente em Brasília para que ele se reflita nas ruas melhor do que está acontecendo até agora. Conseguirá? Vamos esperar os fatos que vão surgir. 

Pedro do Coutto

O outono do PT

Há que se ter uma certa grandeza, mesmo no pecado,e o PT não foi elegante nem nisso
Temos que reconhecer: chegamos ao fim de uma era. O PT vive seu outono. Melhor voltar para o pátio da fábrica onde nasceu e de onde nunca deveria ter saído.

Há que se ter uma certa grandeza, mesmo no pecado (o desejo de poder é o pecado máximo de toda a política), e o PT se revelou incapaz até de pecar com elegância.

Este outono do PT não se deve apenas às manifestações contra seu governo. Essas manifestações, diferentes das patrocinadas pelo "PT e Associados", manifestações com todos os tiques de política de cabresto e mazelas sindicalistas (passeata chapa branca), trazem algo de novo para o cenário, que deixa o "PT e Associados" em pânico. A tendência é a elevação da violência por parte da militância.

O Brasil perdeu o medo do PT e da esquerdinha pseudo. As pessoas descobriram que o mal-estar com essa turminha não é coisa de "gente do mal" (não é coisa de gente do mal, é coisa de gente bem informada), como a turminha pseudo diz, mas sim que somaram 2 + 2 e deu 4: o PT é incompetente para governar. Afundou quase tudo em que tocou, seja municipal, estadual ou federal (e a Petrobras). Mas essa morte do PT significa mais do que o fim de um partido que será esquecido em cem anos.

O fim do PT significa que o ciclo pós-ditadura se fechou. No momento pós-ditadura, a esquerda detinha a reserva de virtude política e moral, assim como de toda a crítica política e social. Ainda que a história já tivesse provado que todos os regimes de esquerda quebram a economia (como o PT quebrou a nossa) ou destroem a democracia (como os setores mais militantes do partido gostariam de fazê-lo).

Vide o caso mais recente e mais próximo, a Venezuela: economia destruída (e com petróleo!) e democracia encerrada de uma vez por todas. Como será que nossa diplomacia, ridícula como quase tudo que o governo do PT toca, reagirá ao fato de ele, Maduro, ter se dado plenos poderes para matar e torturar em nome do socialismo?

Resta pouco espaço para o governo. A tendência é que a presidente fale apenas a portas fechadas para plateias seletas por medo de tomar mais uma panelada. Com a economia em frangalhos, fica difícil para a presidente enterrar o petrolão em consumo, como seu antecessor o fez durante o escândalo do mensalão.

Quando as pessoas estão felizes comprando é fácil fazer vista grossa à corrupção. Quando o bolso esvazia, o saco fica cheio.

Dizer que a corrupção da Petrobras nada tem a ver com o partido no poder é piada. A ganância do novo rico (o PT) aqui mostra seus dentes: querendo enriquecer rápido, meteu os pés pelas mãos e com isso sacrificou a imagem de redentor que o partido tinha para grande parte da classe média. Ele ainda detém o controle de parte da população mais pobre (como a Arena no final da ditadura), mas logo perderá esse trunfo.

É verdade que ainda muitos professores, estudantes, artistas, jornalistas e intelectuais permanecem sob a esfera de influência da "estrela mentirosa". Mas isso também vai passar na hora em que muitos deles perderem o medo de serem chamados de "reacionários". Reacionário hoje é quem se fecha ao fato de que a história andou e as pessoas já não têm mais medo do PT e da sua turminha.

Infelizmente, o governo, diante da história que arromba a porta, parece um grupo de náufragos num barquinho, fugindo da traição que perpetrou, xingando a água, dizendo que as ondas são fascistas e que a tempestade é mal-intencionada.

Não, quem discorda hoje do governo federal não é gente "fascista", é gente que viu que o projeto do PT para o Brasil acabou. É gente educada, bem preparada, autônoma e que está de saco cheio do tatibitate do PT. Sem líderes significativos, sem propostas que criem a credibilidade necessária para sair da lama, a melhor coisa que o PT pode fazer é pedir licença e sair de cena.

Não acho que haja justificativa (ainda) para o impeachment, e devemos preservar as instituições. Mas a água passa debaixo da ponte. Quatro anos é tempo bastante para se afogar na vergonha. E, aí, a humildade será mesmo essencial, não? Sim, mas o PT é pura empáfia.

Luiz Felipe Pondé

Para limpar a sujeira governamental



Se na história bíblica as corruptas cidades de Sodoma e Gomorra foram aniquiladas porque Deus não encontrou nelas sete homens justos, é certo que, apesar de tanta corrupção, há no Brasil não sete, mas milhões de brasileiros com as mãos e a consciência ainda limpas. Eles terminarão por devolver inclusive internacionalmente o respeito que este grande país merece. E o farão com seus protestos, com sua rejeição a uma classe política que parece ter se tornado indigna de ser guia do país. E com gestos de honradez pessoal como o do meu taxista mulato de São Paulo.

Aceitação do inaceitável

Aceitar explicações insatisfatórias pode ser conveniente. Evita o trabalho e o desastre de consertar erros do presente e do passado. Mas perpetua e multiplica os problemas

Do jeito que vai, não sobra razão para otimismo. O desfile aparentemente eterno de fatos inaceitáveis praticados por gente esquisita não cansa de desandar em show de horror. A realidade se revela em sua mais dura pele.


O cheiro é sempre ruim. Tão ruim que a gente pode acabar se acostumando. E talvez esteja aí o maior perigo. A tentação de ceder ao cansaço e aceitar ao inaceitável é forte. Pouparia indignação, energia, desgaste emocional. Mas confundiria noções muito diferentes.

Frequência não é normalidade. O número de vezes em que ações inaceitáveis são praticadas não as faz mais aceitáveis. Não as torna normais. Não as transforma em exemplo a ser seguido. Não as torna normal. Delitos são delitos. Apenas isso.

O passado também não justifica o futuro. Talvez o explique. Mas somente isso. Justificar ações presentes baseadas nos padrões passados, na melhor das hipóteses, projeta no futuro os vícios do passado sem corrigi-los. Na pior hipótese, elimina a responsabilidade ao transferi-la a outras épocas e pessoas. E, sem responsabilidade, acaba o maior incentivo para boa conduta.

Práticas aceitas podem ser de fato, práticas inaceitáveis. Espalhar lama por todos os lados não resulta na purificação dos enlameados. Gera ou revela apenas que a sujeira é grande. O que todo mundo faz não é necessariamente o certo. O tamanho da multidão que pratica delitos não é atenuante.

São explicações que mascaram o cheiro ruim. Mas não os eliminam. Anestesiam os sentidos na esperança de que seja passageiro. Ignora sem a eliminação da fonte, o cheiro continuará existindo. Narizes insensíveis colaboram para a aceitação de padrões inferiores. E futuro pior.

Ao fim e ao cabo, aceitar explicações insatisfatórias pode ser conveniente no curto prazo. Evita o trabalho e o desastre de consertar os erros do presente e do passado. Mas perpetua e multiplica os problemas. Torna o inaceitável em norma. Transforma o otimismo em coisa de quem ainda não soube das noticias.

Pacote de Dilma é a favor da corrupção

As medidas de combate à corrupção anunciadas pela presidente da República dia 18 aprofundam ainda mais a falta de credibilidade do governo, tanto no plano nacional quanto no exterior.

Em decorrência da devastadora corrupção que se alastrou no governo federal, o Brasil, outrora país emergente, hoje sofre um desprestígio no mundo parecido com os tempos da inflação galopante e dos calotes internacionais dos anos 1980.

Dilma fez careta do dentinho para Eduardo Cunha


O pacote anticorrupção, solenemente anunciado pela presidente, insere-se nesse quadro melancólico, pois não é crível que um governo marcado e devastado pela prática generalizada de apropriação de recursos públicos em benefício dos partidos no poder venha, agora, colocar-se na posição de combatente do mal que ele mesmo diariamente pratica.

Nesse quadro patético, as propostas legislativas são mais do mesmo, pois o crime do caixa 2 está previsto no vigente Código Eleitoral, de 1965, no artigo 350. Quanto ao dramático confisco de bens dos corruptos, a matéria está plenamente contemplada na lei vigente de Improbidade Administrativa, de 1992, artigos 9º, 12 e 16. As demais “providências” legislativas da presidente são objeto de projetos de lei em curso no Congresso, razão pela qual nada de novo foi traduzido pelo alardeado pacote.

Quanto ao decreto que “regulamenta” a Lei Anticorrupção, ressalta desde logo tratar-se de um monstrengo que visa, sob todas as formas possíveis, a promover a anistia ampla, geral e irrestrita das empreiteiras e fornecedoras envolvidas na Operação Lava Jato, procurando mesmo imunizá-las a qualquer outra conduta corruptiva que tenham praticado fora do âmbito da Petrobrás e ainda não reveladas.

Assim, o atual governo, na esteira dos três últimos que o precederam, demonstra que no Brasil ainda impera a república das empreiteiras, embora estas já estejam muito combalidas, em decorrência da firme atuação da Polícia Federal, do Ministério Público, da Justiça Federal, do STJ e do STF.

O referido “decreto regulamentador” da Presidência demonstra, às escancaras, a firme determinação do governo de proteger as empresas que com ele contratam, mantendo os mesmos termos viciados no futuro.

Ao invés de concentrar a competência de processar as referidas empresas corruptas na Controladoria-Geral da União, o decreto outorga esse poder aos ministros do Estado (pasmem!), que são, desde 2003, os principais atores da prática de corrupção no Brasil.

Só do último governo três deles estão sob investigação no STF e dez outros já haviam sido flagrados em atos de corrupção, só no ano de 2011. São essas as “autoridades” que vão processar as empreiteiras. Pode-se imaginar o nível de corrupção que vai surgir dessa “competência ministerial”.

Será um novo núcleo de propinas, de tráfico de influência, de advocacia administrativa e de prevaricação. Surge um novo negócio de corrupção jamais imaginado, para grande proveito dos titulares de 39 pastas e dos partidos que os indicaram.

Não bastasse, a eventual condenação das empreiteiras pelo “ministro competente” pode ser objeto de “reconsideração” com efeito suspensivo, o que encarece ainda mais o comércio de favores ilícitos que será gerado por essa instância administrativa. A Lei Anticorrupção não fala de instância de reconsideração.

Também o decreto presidencial de 18/3 cria a figura da “investigação preliminar sigilosa”, anterior à instalação do chamado Processo Administrativo de Responsabilização. Eis aí outro foco de corrupção, pois de suas conclusões secretas pode decorrer o arquivamento do pedido de instalação do processo.

Esse novo produto de corrupção obviamente não está previsto na Lei Anticorrupção de 2013 que a presidente resolveu agora “regulamentar”. Essa lei, aliás, não comporta nenhuma regulamentação, na medida em que é autoaplicável a partir de 29/1/2014, abrangendo todos os crimes continuados de corrupção, caso dos listados na Lava Jato.

Mas não para aí o “regulamento presidencial”. Em cinco artigos propositadamente confusos, o diploma do Executivo limita a multa a 5% sobre o faturamento do último exercício das empresas corruptas. A Lei Anticorrupção, todavia, fala em até 20%. Derroga, portanto, o “ato presidencial” a Lei Anticorrupção também nesse aspecto.

Ademais, os cálculos de aplicação dessas multas com teto quatro vezes reduzido são propositadamente de alta complexidade para permitir que as empreiteiras consigam suspender e, em seguida, anular no Judiciário as decisões condenatórias que muito raramente os ilibados ministros de Estado lhes aplicarão.

Outro aspecto absurdo do “regulamento presidencial” é a tentativa de alijamento do Ministério Público das iniciativas de responsabilizar judicialmente as empresas corruptas, buscando outorgar essa competência de propositura de ação civil pública de reparação de danos a órgãos jurídicos da própria administração federal. Essa tentativa é risível.

Inúmeras outras manobras de absolvição plena das empreiteiras estão espalhadas ao longo texto do decreto de 19 de março.

Por outro lado, o próprio decreto reproduz a impossibilidade de firmar acordos de leniência a não ser com a primeira empreiteira componente do cartel que opera na Petrobrás.

Diante desse impasse, socorre-se o decreto do regime de conformidade (compliance), que é um dos fatores que passam a propiciar a anistia das empreiteiras.

Se elas instituírem o regime de conformidade poderão, inclusive, ser absolvidas sem o pagamento de nenhuma multa, o que é absolutamente contrário ao texto da Lei Anticorrupção.

Seria como alguém que praticou latrocínio deixar de ser condenado a 30 anos de prisão só porque fez profissão de fé numa igreja pentecostal prometendo seguir, a partir de agora, os ensinamentos da Bíblia Sagrada.

Por todo esse absurdo, a cidadania pede socorro ao Ministério Público para que requeira imediatamente ao Judiciário a anulação desse regulamento espúrio que procura derrogar, revogar, neutralizar e tornar letra morta a Lei Anticorrupção.

Modesto Carvalhosa