O governo Bolsonaro fracassou. Um ano e meio depois, o Ministério da Educação recomeça pela terceira vez e agora fala em Estado laico, a Saúde está cercada de mortos de uma pandemia que não sabe enfrentar, na política externa o Brasil virou um país pária, a agricultura paga a conta dos crimes no meio ambiente. A ideia de governar com truques na mídia social terminou em páginas desativadas e uma investigação no Supremo. A economia não entregou o que prometeu e vive agora das promessas do ministro que declama as mesmas histórias sem relação com os fatos e números. E os militares? Ah, os militares são um caso à parte.
Oficiais generais se deixaram usar por um ex-militar, que nunca se destacou nas tropas, enfrentou a justiça militar por mau comportamento e teve uma carreira medíocre como deputado. Hoje estão no pior dos mundos: as tropas executam com denodo as missões recebidas, mas os comandos as colocaram como sócias de um desastre. As Forças Armadas jamais poderiam ter se misturado a um governo que fomenta o ódio e a divisão do país. Elas pertencem ao Estado, têm compromisso com a união, e recuperavam o prestígio perdido na ditadura. Hoje voltam a sofrer desgaste e deveriam ouvir as palavras fortes do ministro Gilmar Mendes como conselho para que batam em retirada.
Bolsonaro vendeu ilusões na campanha. Acreditou quem escolheu a cegueira deliberada. Falou em combater a corrupção, mas sabia o que acontecia em seu gabinete e no de seus filhos. Sendo falsa a promessa, o que restaria a Bolsonaro fazer? O que tem feito. Desidratou o pacote de Moro, tentou interferir na Polícia Federal, escolheu um procurador-geral com a missão de desmontar a Lava-Jato e fazer do Ministério Público um braço do executivo.
Os grotescos erros no meio ambiente levaram a economia a um enorme risco e o governo a um contorcionismo. O vice-presidente tem que consertar o que Ricardo Salles fez. Salles acabou com o Fundo Amazônia, Mourão tenta recriá-lo. Salles prestigiou madeireiros e grileiros, Mourão avisa que as tropas ficarão na Amazônia combatendo o desmatamento. Salles enfraqueceu Ibama e ICMbio, e Mourão disse que terá que fortalecer os órgãos. Salles é um papagaio, repete o que ouve sem entender o significado. Fala de bioeconomia, cujo sentido não captou.
Fala em regularização fundiária, que está paralisada. O governo Bolsonaro entregou seis títulos de terra. Em 2014, a presidente Dilma entregou nove mil. Essa comparação é o exemplo mais claro do fiasco. Em setembro de 2019, o governo fez uma reunião com garimpeiros no Planalto. Presentes, Salles, Onyx e Heleno. A “Época”, pela Lei de Acesso à Informação, soube quem estava presente. Havia entre os garimpeiros alguns réus. Um deles por usar cianeto, produto altamento tóxico, e por receptação de ouro ilegal, outro por invasão na Terra Ianomami. Mourão, agora, diz que é difícil tirar os garimpeiros do território dos Ianomami.
O projeto na educação era brigar com o fantasma de Paulo Freire e outras alucinações. Paralisou o Ministério. O ministro Milton Ribeiro chegou prometendo respeitar o Estado laico. Se o fizer, estará seguindo a Constituição. Mas pode desagradar as tais alas do presidente.
Se Eduardo Pazuello sair do Ministério da Saúde trará alívio ao Exército. Mas esse é apenas o problema formal. Na saúde os brasileiros sofrem o resultado do mais trágico fracasso de Bolsonaro. Ele segue agarrado à sua cloroquina, enquanto o país chega a dois milhões de infectados e mais de 77 mil mortos. Não há uma política federal de saúde. Bolsonaro é o comandante da desinformação no meio da pandemia, e o general, seu fiel soldado.
A economia não entregou a agenda liberal que Paulo Guedes ofereceu para preencher o programa vazio de Bolsonaro. A pandemia nos levou à pior recessão da história, e o ministro segue repetindo o discurso que decorou.
Sim, o governo fracassou até aqui. Em algumas áreas tenta recuar, em outras persiste no erro. Nesse inverno das nossas dores, o presidente passeia entre emas pensando em como sobreviver nos próximos dois anos e ser reeleito. Mas para que ele quer governar? Para favorecer seu clã, para espalhar armas, para demolir instituições, para agredir a imprensa que não o bajula, para resolver o recalque de uma pífia carreira militar mandando em generais.
(Europa) havia começado a cimentar o simulacro, a propagar a hipocrisia como tática, uma hipocrisia às vezes chamada poder; outras vezes, revolução; outras, abundância; e outras, igualdade. O viver nesse longo fingimento acabou confirmando que nossa situação é acessória, e que trabalhamos com verdadeiro afinco na grande e estrepitosa mentira
Que os mortos possam julgar os vivos não é um absurdo. O que nos educa para cenas desse tipo, naturalmente, é a arte, uma forma extraordinária de conhecimento. E aqui ressurge a lembrança do “incidente” imaginado por Érico Veríssimo na sua fictícia Antares. Uma greve de coveiros faz com que se acumulem os insepultos. E são esses mortos sem sepultura que retornam, exigindo providências para poderem enfim descansar. Revisitam parentes e amigos, testemunham discussões e conflitos embaraçosos, até ocuparem a praça da cidadezinha, onde encenam um duro juízo sobre a mediocridade e a vileza que desgraçadamente puderam constatar entre aqueles que assombraram com sua volta fantástica.
Deixamos para trás a ditadura, em cuja atmosfera, na arrojada ficção de Veríssimo, se quis cancelar da memória o “incidente”, e já há três décadas vivemos o mais longo período democrático da História republicana. Nesta pandemia, contudo, os mortos ao redor parecem reatualizar a incômoda alegoria. É que eles são em número muito maior do que se poderia esperar de um país cuidadoso com seus cidadãos, mesmo que esta seja uma catástrofe sanitária sem paralelo desde 1918 e, nascida na globalização, se tenha espalhado feito rastilho de pólvora, cobrando pesadíssimo tributo, em especial das populações do Brasil e dos Estados Unidos, os líderes mundiais na contagem de corpos.
Não são poucas as dessemelhanças entre os dois países-contintente. A riqueza e o poderio americano, de alcance global, contrastam com o tamanho menor da nossa economia e sua projeção externa obviamente mais contida. Paradigma do capitalismo liberal – que às vezes, para o bem e para o mal, tentamos reproduzir, rasgando nossa certidão “ibérica” de nascimento –, os Estados Unidos conseguem mobilizar mais recursos científicos, apesar de se contarem entre os heróis brasileiros sanitaristas da altura de um Oswaldo Cruz ou de um Vital Brasil, que nos legaram uma tradição valorosa de pesquisadores e instituições. Sobretudo, apesar da nossa abissal desigualdade, temos o SUS, que, como se diz com precisão, é a barreira que nos separa da barbárie e nos diferencia da medicina privada dos americanos.
A semelhança conjuntural entre as duas Repúblicas consiste na ação de dois mandatários singularmente afins em estilo, métodos e propósitos. Uma afinidade buscada conscientemente pela figura menor – pelo “Trump latino-americano” – até o ponto da caricatura. Figuras da cisão e da cizânia, desmentem a noção de que o governante, uma vez eleito, representa todos os governados, compondo e mediando os mais diversos interesses, ainda que, legitimamente, busque dar um rumo de acordo com a vontade majoritária que expressa. Externamente, ostentam particularismo nacional similar. Como se vê quase todo dia, os Estados Unidos retiram-se barulhentamente do mundo que eles próprios contribuíram para construir durante “o século norte-americano”; já o Brasil demite-se da liderança regional, afasta-se por motivos rasos dos seus vizinhos e amigos naturais, fazendo tudo para apagar os traços mais atraentes do soft power delineado por gerações de políticos, diplomatas e artistas. Dois desastres cuja proporção ainda nos deixa atônitos.
Natural que, nestes termos, ambos os governantes sejam, rigorosamente, os responsáveis pelo rotundo fracasso da resposta dos respectivos países à pandemia. Não importa que o vírus tenha vindo de Wuhan e que, a princípio, a autocracia chinesa, como é inerente às autocracias, tenha também querido cancelar a má novidade. O fato é que o vírus, de índole “globalista”, constitui ameaça generalizada, sem mencionar que outros mais hão de vir, até como efeito provável do desmatamento – e aí já estamos falando de corda em casa de enforcado. Uma situação-limite que exigiria dos Estados Unidos a liderança do capitalismo democrático; do Brasil, o reforço da Federação, da coesão social e a articulação de um discurso público orientado para a solidariedade, particularmente com os mais frágeis.
Trump e Bolsonaro, ao contrário, esmeram-se no “economicismo”, exatamente à maneira do marxismo vulgar que apregoam detestar. Opõem a preservação de vidas e a de empregos, sabotam a ciência e as informações, mesmo provisórias, que ela tem gerado no calor da hora. Conseguiram inserir o uso de máscaras e a distância social no repertório das tais guerras de cultura, que dividem, enfraquecem e esgotam seus desatinados combatentes. E assim terminaram por se colocar, e aos seus países, sob suspeição geral: não é mais incomum ver Estados Unidos e Brasil associados sob o rótulo de “párias” ambientais e sanitários.
Na ficção de Veríssimo, uma certa “operação borracha” é montada para apagar o abalo causado pelos mortos sobre os vivos, subvertendo a rotina destes à luz do evento inesperado. Mas Antares, literariamente poderosa, era pequena e os mortos no coreto da praça eram poucos. Agora os corpos se empilham e, mais até do que no tempo do grande romancista, não será possível contar nenhuma história ingênua sobre eles.
Tudo indica que o atual governo deixará o Brasil em situação pior do que recebeu. A culpa não será da herança nem da epidemia, mas de seu obscurantismo, reacionarismo e falta de empatia. Bolsonaro olha o mundo por retrovisor embaçado, com raiva do passado e sem projeto para o futuro. Basta citar sua crença em mitos e narrativas sem comprovação científica; sua obsessão por ideias ultrapassadas, tanto as que adota quanto as que ele combate. Sua negação da realidade e da ciência, ao lado da falta de empatia, é o fator determinante para agravar a falta de coesão e rumo que enfrentamos há muitos anos.
Lamentavelmente, o negacionismo não é apenas dele e de seus seguidores. Muitas das lideranças na oposição também negam a realidade. Acreditam que estatal é sinônimo de público; que o Estado é sempre comprometido com justiça social, com eficiência e sem corrupção. Não enxergam que cada estatal tem também interesses próprios de políticos, servidores e dirigentes, às vezes opostos aos do público. Negam a realidade da corrupção, visível em malas com dinheiro, contas em santuários fiscais, propinas devolvidas. Veem a realidade como desejam que ela seja e divulgam as narrativas que lhes interessam.
Há momentos em que, para enfrentar catástrofes ou para executar projetos, governos responsáveis e solidários gastam mais do que arrecadam. Para isto, tomam empréstimos ou emitem moeda, mas sem negar que o déficit será cobrado depois por juros altos, aumento de impostos ou por desvalorização da moeda, com a desestruturação da economia e sacrifícios sobretudo para os pobres. Mas, enquanto bolsonaristas acreditam que a Terra é plana, oposicionistas acreditam que o Tesouro público é elástico, com dinheiro ilimitado. Outros confiam na lógica temerária de que os empréstimos ou emissões de moeda induzirão crescimento de produção que aumentará a arrecadação na dimensão necessária para cobrir déficits.
Negam também a realidade política ao optarem pelo acomodamento populista de aumentar gastos em uma prioridade sem sacrificar outras. Defendem que é possível fazer Copa e Olimpíada sem usar recursos que poderiam ir para educação e saúde; escondem que distribuir renda significa tirá-la de algum lado; negam que a gratuidade sempre é paga por alguém; e que aumentar gastos sociais exige reduzir subsídios e privilégios em outros setores; tratam privilégios como se fossem direitos; consideram que a vontade solidária não precisa respeitar a realidade.
Entre líderes e intelectuais progressistas, muitos negam os impactos das grandes transformações mundiais e seus impactos no Brasil: globalização, robótica, inteligência artificial, elevação na esperança de vida, redução na taxa de natalidade, limites ecológicos ao crescimento. Não percebem que, para construir progresso e justiça, a nova realidade do mundo exige reformar leis e regras da época em que a economia era nacional e a produção, manual. Tampouco enxergam que conhecimento e confiança são fatores determinantes da economia moderna. Por isso, não tomam a educação de qualidade para todos como o vetor do progresso e da justiça social; nem a estabilidade jurídica e monetária como os alicerces. Negam que o Brasil tem um sistema de apartação social no qual os trabalhadores sindicalizados do setor moderno não têm necessariamente interesse econômico, nem solidariedade política com os pobres excluídos. Não percebem que o equilíbrio ecológico vai exigir um novo modelo civilizatório que reduza padrões de consumo e substitua o PIB como indicador de progresso.
O terraplanismo não resiste à observação, mas as narrativas de nossos segregacionistas são convincentes e sedutoras, até que ocorram desastres. Por isso, o obscurantismo bolsonarista ameaça poucos anos e passa, o obscurantismo na oposição poderá ameaçar a coesão e o rumo por décadas.Cristovam Buarque
Uma “ação social” feita por mulheres de militares na Terra Indígena Yanomami no final de junho incluiu maquiagem no rosto de mulheres indígenas, pintura de unhas, distribuição de roupas para famílias que vivem seminuas por costume e tradição, e estímulo à aglomeração de crianças, sem máscaras. Elas ficaram próximas num pula-pula, em fila para distribuição de doces e numa recreação.
“Isso que fizeram foi um desrespeito total. Essa doação de roupas… O povo Yanomami não é mendigo. Pula-pula? Não precisamos de pula-pula. Provocaram aglomeração! A ação do governo foi muito errada”, disse à coluna Junior Hekurari Yanomâmi, presidente do Condisi-Y (Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Yekuana). “Precisamos de apoio do governo é para conter a covid-19, que está entrando, espalhando nas aldeias.”
Localizadas e encaminhadas pela coluna, fotografias dessas atividades deixaram perplexos três dos principais antropólogos que atuaram ou atuam na região. Um disse ter ficado “muito chocado”, outra viu “múltiplos desrespeitos” aos indígenas e a terceira comentou que as imagens revelam “a arrogância da colonização”.
Até a noite desta quinta-feira (16) haviam sido registrados 280 casos de covid-19 entre os Yanomamis, dos quais 136 dentro do território (ou 49% do total), segundo o conselho. Quatro mortes foram confirmadas e mais três estão sob suspeita.
A chamada “ação social” ocorreu nos pelotões de Surucucu e Auaris nos dias próximos da viagem que o Ministério da Defesa organizou de Brasília para a terra indígena Yanomami com servidores do Ministério da Saúde e cerca de 20 jornalistas. O voo gerou muita polêmica porque, além de o governo não ter considerado o momento crítico da pandemia, os militares levaram 66 mil comprimidos de cloroquina despachados pela Saúde — afirmam que é para combate à malária e que todos os viajantes foram submetidos a exames prévios.
A coluna procurou o Ministério da Defesa, por e-mail e por telefone, para uma manifestação desde a tarde de terça-feira (14), mas não houve resposta até o fechamento deste texto. A coluna indagou, entre outros pontos, se as atividades exibidas nas redes sociais das mulheres dos militares tinham sido previamente informadas ou se tinham recebido o aval dos militares.
Sobre a viagem do final de junho ao território indígena, a Defesa divulgou um texto, no dia 2 de julho, sobre a entrevista coletiva concedida no pelotão de Surucucu pelo ministro Fernando Azevedo. “Trouxemos cerca de quatro toneladas de materiais de saúde para atender a comunidade local. O governo está preocupado com a saúde do brasileiro”, disse o ministro, segundo o ministério. O órgão informou que era uma atuação integrada entre Forças Armadas, Secretaria Especial de Saúde Indígena, Funai e outros órgãos governamentais.
Mulheres de militares postaram fotografias e comentários nas redes sociais sobre a “ação social”. Uma das fotos, no Instagram, mostra uma mulher não indígena, que diz morar no pelotão desde abril e casada com um militar, fazendo maquiagem no rosto de uma indígena no PEF (Pelotão Especial de Fronteira) Auaris. Outras indígenas parecem aguardar sua vez de atendimento.
A mulher escreveu: “Hoje foi o nosso Aciso [Ação Cívico-Social] com os indígenas aqui no PEF e produzimos as mulheres e elas ficaram como elas falam na língua delas ‘wekoonekatojo’ ou ‘taitha’ (toíta), que quer dizer bonita”. A postagem foi curtida por 116 pessoas.
Foi montada uma bancada para distribuição de roupas. As imagens mostram mulheres indígenas seminuas escolhendo a doação. Em diversos pontos do território Yanomâmi, os indígenas vivem nus ou seminus, com adereços pelo corpo.
Outra mulher de um militar escreveu “o que aconteceu aqui no pelotão Sucururu” no dia 25 de junho. “Tudo começou com um comentário do sargento daqui do PEF sobre arrecadar agasalhos para nossos indígenas e isso me despertou a vontade de ir além e pedir não só agasalhos, mas sim roupas e cobertas também”.Professora emérita da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora sênior do CNPq, a antropóloga Alcida Rita Ramos fez trabalhos de campos com os Yanomamis de 1968 a 2005 e é considerada uma das principais estudiosas sobre o povo. A pedido da coluna, ela olhou as várias fotografias divulgadas pelas mulheres dos militares em redes sociais.
“O que vejo nessas fotos é um múltiplo desrespeito aos Yanomami e uma arrogância burguesa de dar arrepios”, disse a professora.
Ela separou os problemas em quatro blocos. “Primeiro, mais grave, manusear objetos, os cabelos, as unhas das indígenas, usando instrumentos cortantes, sem qualquer preocupação com contágio, incorrendo em séria infração, se não mesmo crime.”
Em segundo lugar, “achar que as indígenas ‘merecem’ se apresentar com a estética das ‘brancas’, como se elas mesmas não tivessem a sua própria e muito celebrada estética”.
Um terceiro ponto levantado pela pesquisadora é “disfarçar proselitismo religioso com desenhos infantis, expondo as crianças indígenas aos efeitos ilegais do missionismo”.
Por fim, “impingir brinquedos a crianças, sem terem o mínimo conhecimento do que é ser criança indígena e quais são os padrões locais de jogos infantis”.
Imagens mostram crianças aglomeradas, sem máscara, conversando com adultos também sem máscaras durante o que seria uma recreação com papel e lápis colorido. É possível ver, nas folhas, o desenho de um homem barbudo, pairando entre nuvens, como se fosse Deus ou Jesus Cristo, para ser colorido.
Na hora de receber doces, as crianças fizeram uma fila sem máscara e sem distanciamento. Depois posaram para fotos também sem máscaras e reunidos na frente do pelotão. Mesma aglomeração ocorreu na hora da brincadeira em um pula-pula.
Júnior Hekurari Yanomâmi, do conselho de saúde indígena, disse que nenhuma dessas atividades era uma necessidade para os Yanomamis. “Não houve um diálogo. Simplesmente pararam lá no aeroporto de Boa Vista e vieram para as aldeias. Isso durante a pandemia. Depois de uns nove dias que eles saíram, passou para 48 casos de covid em Waikás. Tinha três casos antes. Em Auaris, já temos um caso. Estamos muito preocupados.”
O antropólogo francês Bruce Albert trabalha desde os anos 1970 com os yanomâmis, tendo participado da coalizão CCPY (Comissão Pró-Yanomami), que resultou na homologação da demarcação da terra indígena durante o governo Fernando Collor (1990-1992). Ele é coautor, com o líder Yanomami Davi Kopenawa, do livro “A Queda do Céu” (Companhia das Letras, 2015).
Ele também olhou as postagens das mulheres dos militares a pedido da coluna. “Fiquei muito chocado com as fotos. Além de uma irresponsável falta de observância da regras de distanciamento físico no trato com uma população indígena particularmente vulnerável na pandemia, vejo também nas fotos um tremendo desrespeito à cultura e à dignidade das mulheres Y.”
“Esposas de militares num posto isolado brincam de ‘ação social’ com mulheres Yanomami colocadas em posição subalterna de objetos da sua ‘generosidade’ estética condescendente de mulheres brancas donas dos cânones de beleza dominantes (‘civilizada’). Assim, atrás dessa pseudo ‘ação social’ esconde-se um racismo crasso cujas raízes históricas remetem ao Brasil colonial. Destas cenas ressurgem, de fato, as imagens das ‘escravas de estimação’ do tempo da colônia”, disse o antropólogo.
Sílvia Maria Ferreira Guimarães, mestre e doutora em antropologia pela UnB (Universidade de Brasília), professora do programa de pós-graduação em ciências e tecnologias em saúde, disse que é possível ver “a arrogância dessa colonização, achando que ela é tudo que todos desejam. O problema se acirra quando recai mais intensamente sobre as crianças”.
Deixando de lado o episódio da “ação social”, há nuances na relação dos indígenas com o pelotão militar. Os militares do pelotão, conta a antropóloga, “ficam naquela área deles, eles fazem trocas com os Sanöma [subgrupo Yanomami], os Sanöma gostam, às vezes apreciam as comidas dos ‘brancos’ com essas trocas (arroz, café, açúcar)”.
A antropóloga conta que um técnico em enfermagem Yanomami recentemente lhe disse que “os garimpeiros não vão até Auaris por causa do pelotão que está lá”. “O pelotão cumpre essa ação de coibir o garimpo em Auaris. Eu acho que eles [militares] e missionários estão de certa forma sob controle dos Sanöma, que manejam a presença dessas pessoas, para as trocas, que os Sanöma apreciam muito. O garimpo não, já entra na violência. O problema dos missionários é o foco nas crianças, com suas escolas e o tipo de ação cotidiana perigosa que podem fazer.”
A pandemia acentuou nossa desigualdade social, que aparece em termos de gênero, já que as mulheres negras carregam o piano nas costas. Muitas delas são empregadas domésticas, que estão pagando preço alto nas relações com as patroas para trabalhar de forma escrava na pandemia.
A desigualdade de gênero também aparece no aumento da violência contra a mulher e no feminicídio. Os negros pagam a conta da violência policial que, paradoxalmente, aumentou em tempos de isolamento. Há menos movimento na rua. Quem estão matando? Os pobres que precisam trabalhar.
Toda essa coisa do brasileiro boa gente e cheio de alegria foi altamente afetada pelas consequências trágicas da pandemia por essas razões. O brasileiro hoje, diante do mundo, aparece como um ser violento, xenófobo, agressivo, racista, homofóbico, ressentido. Essa é a imagem do Brasil no exterior. Vamos pagar um preço alto no futuro.
O general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo e coordenador político da Presidência, antecipou em um ano e meio a sua passagem do serviço ativo para a reserva remunerada das Forças Armadas. Parece pouca coisa, mas essa antecipação da aposentadoria tem enorme significado político. Para entender a importância do gesto, é preciso atrasar o relógio até o dia 20 de março de 1964.
O marechal Castello Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército, assinou neste dia uma circular endereçada aos seus comandados. Anotou no texto que "os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas garantir os Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei". Acrescentou: "Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos".
Em 2018, numa conjuntura em que uma legião de eleitores queria evitar a volta do PT ao poder, 57,7 milhões de brasileiros enviaram para o Planalto Jair Bolsonaro, um capitão que deixou o Exército por indisciplina, e Hamilton Mourão, um general da reserva que perdeu o posto de comandante militar da região Sul por ter feito um discurso político durante o governo Dilma Rousseff. Essa dupla cercou-se de generais. Formou-se no Planalto a "ala militar".
De repente, os generais começaram a frequentar o noticiário articulando, opinando, participando de manifestações, dando caneladas no Congresso e no Judiciário. Como as Forças Armadas não se confundem com escola de samba, tornou-se essencial deixar claro que os generais que comandam escrivaninhas como alegorias do governo não falam pelos quartéis.
Com sua aposentadoria, Luiz Ramos se iguala aos outros generais do Planalto, que já haviam passado para a reserva. Isso atenua o problema. Mas não resolve totalmente. As Forças Armadas já corriam o risco de se associar àquilo que o general Santos Cruz, demitido no ano passado num embate com a chamada ala ideológica da escola de samba bolsonarista, chamava de "show de besteiras" do governo Bolsonaro.
Hoje, além das besteiras, há a desastrosa gestão da crise do coronavírus, que Bolsonaro executa por meio de Eduardo Pazuello, um general da ativa improvisado como ministro da Saúde. Tornou-se vital demonstrar que os quarteis não se confundem com o governo. Bolsonaro passa. As Forças Armadas ficam.
Haja terra para cobrir o buraco em que se encontra um país que nem se livrara ainda da recessão pré-pandemia. Como preencher a gigantesca lacuna, agravada pela crise econômica que se arrasta desde 2015 e cujos recursos têm sido desviados para combater a pandemia? Se a terra para tapar o buraco mexer no bolso dos consumidores na forma de um imposto como a CPMF, conforme propõe o ministro Paulo Guedes, a vaca vai para o brejo, inviabilizando a escada de candidatos comprometidos com o status quo.
O país se encontra em recessão. São apenas 83,7 milhões de brasileiros ocupados de um total de 170 milhões em condições de trabalhar. Alguém terá de pagar a conta, enquanto a população empobrece em razão da pandemia. O vírus inaugura a casa dos 2 milhões de contaminados.
O governo está diante de um impasse: arrumar recursos para honrar tarefas em áreas fundamentais como saúde e educação e, ao mesmo tempo, socorrer os contingentes carentes. O auxílio emergencial será passageiro e, segundo Guedes, não há caixa para bancar a fortaleza social. O que fazer?
Será difícil que a ajuda chegue nas localidades em condições normais. E não será recebida com festa pelas populações que vão às urnas em 15 de novembro. Tudo será abalado pela pandemia. As margens necessitadas, sem a rede social, tendem a despejar sua revolta em quem mexe no caldeirão da crise e no desemprego.
A seguir, emergirá o vulcão das classes médias, indignadas com corrupção, roubalheira, má gestão dos serviços públicos, a relação entre autoridade pública e endemoniados. Essas classes, com maior capacidade de expressão e liderança, arrastam turbas dispostas a mudar o feitio da política.
Nesse sentido a economia puxa a política. Comparemos a economia com a locomotiva. Se emperrar ou patinar, criará balbúrdia e revolta nos passageiros, sinalizando nas urnas um voto a favor de um candidato que encarne sua indignação. Oportuno lembrar a equação com a qual tento explicar a índole das massas, a partir de quatro instintos avocados por Pavlov. Dois voltados para a sobrevivência/conservação do indivíduo e dois ligados à preservação da espécie: o combativo, o nutritivo, o sexual e o paternal.
Os dois primeiros explicam o sentido de sobrevivência do ser humano, contra as intempéries da natureza, ameaças de outra pessoa e por boas condições de vida. O segundo apela para a comida e insumos necessários à vida. Os dois últimos abrigam a preservação da espécie, o sexo (perpetuação) e o paternal/maternal (amor, carinho, amizade, solidariedade). Valho-me do segundo, o nutritivo, para compor a equação que cai bem na política: BO+BA+CO+CA = BOlso cheio, BArriga satisfeita, COração agradecido e CAbeça mandando votar no protagonista que ajuda a encher a geladeira.
O teste das urnas passa pela equação acima. Os altos figurões da administração – Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, governadores e prefeitos – estão no comando da locomotiva. Vale para hoje e para 2022. Se a locomotiva for uma Maria Fumaça bem antiga e parar no caminho, os passageiros só terão uma alternativa: virar as costas a candidatos sem lenha e andar a pé até a próxima estação.
Com base em preconceitos, a sociedade quer definir qual pobre merece receber auxílio do Estado, segundo a avaliação da socióloga Letícia Bartholo, especialista em programas de transferência de renda. É aí, diz a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que moram as armadilhas do debate sobre programas de combate à pobreza.
"É um tom moralizante que caracteriza a sociedade brasileira e por isso está presente em todos os setores. É você, baseado num preconceito sobre os pobres, definir qual é o pobre meritório, que faz jus ao amparo do Estado, e qual é o pobre não meritório", diz. "Não podemos fazer política de combate à pobreza com os olhos da riqueza."
A discussão sobre programas de combate à pobreza no Brasil aumentou depois que a crise gerada pela pandemia do coronavírus levou o governo a criar o auxílio emergencial para proteger a população mais vulnerável.
A equipe do presidente Jair Bolsonaro tem falado com mais frequência sobre uma ampliação do programa Bolsa Família. Embora não tenha apresentado formalmente uma proposta, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o novo programa chamará Renda Brasil, reunirá programas sociais existentes e terá valor mais alto do que o Bolsa Família.
O Bolsa Família hoje atende 14,2 milhões de famílias, com benefício que varia em função da renda, do número de pessoas na família e idade delas. O valor pago é, em média, de R$ 188, segundo dados de junho de 2020.
Em entrevista à BBC News Brasil, Bartholo, que foi secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania de 2012 a 2016, explica quais são os principais eixos que devem ser levados em conta na hora desenhar ou reformar um programa de transferência de renda e analisa o que considera armadilhas. Veja, a seguir, os principais pontos:
Ao se pensar em um novo programa de transferência de renda ou na ampliação do Bolsa Família, deve-se levar em conta três eixos, segundo Bartholo.
O primeiro é a definição do público: quem vai fazer jus ao benefício. Ela diz que, aí, é necessário considerar a dinâmica da pobreza no Brasil. "A população pobre é formada em grande parte por pessoas que entram e saem da pobreza com muita facilidade", diz.
Para ilustrar esse caráter volátil da renda dos mais pobres no Brasil, a socióloga aponta que, considerando cinco trimestres, 65% da população brasileira enfrenta ao menos um trimestre com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo.
O segundo eixo é a definição do valor do benefício, que deve ser calculado, nas palavras dela, para ser "efetivamente impactante" na redução da pobreza.
E o terceiro ponto, diz ela, é dar segurança à população em relação ao benefício: garantir que ele não será retirado de forma abrupta e que ele será atualizado de forma periódica.
"O programa deve ter uma atualização monetária das linhas de pobreza e valores de benefício. Essa atualização deve ser periódica, coisa que ainda não temos no Bolsa Família, que tem suas atualizações feitas de forma discricionária."
Bartholo diz que esse debate deve incluir não só economistas, mas também especialistas em pobreza e desigualdade e em assistência social, saúde e educação que vêm acompanhando a articulação do Bolsa Família com essas áreas ao longo dos últimos anos.
Em artigo publicado em junho, ela e outros três especialistas no assunto (Luis Henrique Paiva, Rodrigo Orair e Pedro H. G. Ferreira de Souza) defendem que seja adotado um programa temporário de transferência de renda (12 a 18 meses), como uma transição do auxílio emergencial para um formato permanente. Eles argumentam que isso permitiria aliar a urgência do tema com a necessidade de debate.
Fazer uma mudança muito rápida, segundo os autores, "é correr o sério risco de substituir um programa de reconhecido êxito como o Bolsa Família por algo mal desenhado e com implementação de baixa qualidade".
Questionada sobre quais deveriam ser os parâmetros para um novo benefício, a pesquisadora defende que seja, pelo menos, um benefício mensal de no mínimo R$ 100 para cada indivíduo com renda familiar mensal de até meio salário mínimo per capita, sem limite de pessoas na família.
Quão maior teria que ser o orçamento em relação ao do Bolsa Família hoje para acomodar essa proposta? Ela diz que pelo menos quatro vezes.
O grande problema, geralmente apontado pela equipe econômica, é como arcar com novas despesas em um orçamento já considerado apertado.
Bartholo diz que a discussão de ampliação do benefício deve vir vinculada ao debate da reforma tributária. E reconhece que, além disso, provavelmente teria que haver uma revisão do teto de gastos, que é o mecanismo aprovado em 2016 que prevê que o gasto máximo que o governo pode ter é calculado com base no orçamento do ano anterior, corrigido pela inflação.
Um ponto que Bartholo destaca como uma grande armadilha, quando se trata de um programa com foco na população mais vulnerável, é o pensamento de que tudo deve migrar para o digital.
"Muitas vezes se fala, por exemplo, que o mundo é digital. 'Vamos fazer de forma digital'. Aí você pergunta: para quem o mundo é digital? Será que no interior do Brasil o mundo é digital como pensamos aqui de Brasília? Num país onde praticamente 70 milhões de adultos não completarem o ensino médio? E só conseguimos suplantar isso indo até o local, conversando com a população, ou no mínimo conversando com quem está de fato em comunicação constante com essa população."
Esse contato com os beneficiários dos programas sociais é feito pela rede de assistência social nos municípios brasileiros: 8 mil centros de referência atendem praticamente 70 milhões de pessoas vulneráveis à pobreza.
Da forma como funciona hoje, é nesses locais que essas pessoas fazem seu cadastro, se informam e são acompanhadas. "Para elas, esse encontro cara a cara com o poder público faz toda a diferença", diz a pesquisadora.
Bartholo avalia que, "se hoje o Bolsa Família conta com toda esta rede de atendimento e tem qualidade reconhecida mundialmente, é porque optou por fortalecer as redes de assistência locais".
"Construir um programa de transferência de renda baseado completamente no acesso digital pelas pessoas e centralizado no nível federal será, sem dúvida, um retrocesso e um bom passo para o fracasso."
Bartholo publicou em julho outro artigo com os sociólogos Pedro H. G. Ferreira de Souza, e Luis Henrique Paiva e o economista Rodrigo Orair que aponta que outra armadilha nesse debate está em acreditar que recursos poupados com os chamados pentes-finos (a análise de quem recebe benefício sem ter direito) seriam suficientes para construir um programa de transferência de renda realmente efetivo na superação da pobreza. Eles apontam que não bastaria apenas um "choque de gestão" para a política se tornar mais eficiente e efetiva — embora, claro, seja dever do Estado fazer esse controle e corrigir eventuais erros.
E o argumento recorrente no Brasil de que benefícios como o Bolsa Família podem acomodar as pessoas e eventualmente desestimular a busca por trabalho?
Bartholo diz que essa colocação não se sustenta e também a define como armadilha. Ela afirma que estudos com base em resultados do Bolsa Família demonstram que beneficiários do Bolsa Família, comparados a pessoas do mesmo perfil não atendidas, têm mais acesso ao mercado de trabalho formal.
"Do ponto de vista das pesquisas quantitativas sabemos que beneficiários do Bolsa Família não deixam de buscar inserção no mercado de trabalho formal. E os estudos qualitativos, principalmente aqueles feitos com mães beneficiárias do programa, é que o benefício fez com que elas pudessem achar que a miséria não era mais uma sina, que a miséria não é um destino, que os filhos e elas podem ter um novo futuro. Isso é você sair de uma condição de resignação completa e ir para um patamar de cidadania, em que tem expectativa de que as coisas podem mudar."