“Isso que fizeram foi um desrespeito total. Essa doação de roupas… O povo Yanomami não é mendigo. Pula-pula? Não precisamos de pula-pula. Provocaram aglomeração! A ação do governo foi muito errada”, disse à coluna Junior Hekurari Yanomâmi, presidente do Condisi-Y (Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Yekuana). “Precisamos de apoio do governo é para conter a covid-19, que está entrando, espalhando nas aldeias.”
Localizadas e encaminhadas pela coluna, fotografias dessas atividades deixaram perplexos três dos principais antropólogos que atuaram ou atuam na região. Um disse ter ficado “muito chocado”, outra viu “múltiplos desrespeitos” aos indígenas e a terceira comentou que as imagens revelam “a arrogância da colonização”.
Até a noite desta quinta-feira (16) haviam sido registrados 280 casos de covid-19 entre os Yanomamis, dos quais 136 dentro do território (ou 49% do total), segundo o conselho. Quatro mortes foram confirmadas e mais três estão sob suspeita.
A chamada “ação social” ocorreu nos pelotões de Surucucu e Auaris nos dias próximos da viagem que o Ministério da Defesa organizou de Brasília para a terra indígena Yanomami com servidores do Ministério da Saúde e cerca de 20 jornalistas. O voo gerou muita polêmica porque, além de o governo não ter considerado o momento crítico da pandemia, os militares levaram 66 mil comprimidos de cloroquina despachados pela Saúde — afirmam que é para combate à malária e que todos os viajantes foram submetidos a exames prévios.
A coluna procurou o Ministério da Defesa, por e-mail e por telefone, para uma manifestação desde a tarde de terça-feira (14), mas não houve resposta até o fechamento deste texto. A coluna indagou, entre outros pontos, se as atividades exibidas nas redes sociais das mulheres dos militares tinham sido previamente informadas ou se tinham recebido o aval dos militares.
Sobre a viagem do final de junho ao território indígena, a Defesa divulgou um texto, no dia 2 de julho, sobre a entrevista coletiva concedida no pelotão de Surucucu pelo ministro Fernando Azevedo. “Trouxemos cerca de quatro toneladas de materiais de saúde para atender a comunidade local. O governo está preocupado com a saúde do brasileiro”, disse o ministro, segundo o ministério. O órgão informou que era uma atuação integrada entre Forças Armadas, Secretaria Especial de Saúde Indígena, Funai e outros órgãos governamentais.
Mulheres de militares postaram fotografias e comentários nas redes sociais sobre a “ação social”. Uma das fotos, no Instagram, mostra uma mulher não indígena, que diz morar no pelotão desde abril e casada com um militar, fazendo maquiagem no rosto de uma indígena no PEF (Pelotão Especial de Fronteira) Auaris. Outras indígenas parecem aguardar sua vez de atendimento.
A mulher escreveu: “Hoje foi o nosso Aciso [Ação Cívico-Social] com os indígenas aqui no PEF e produzimos as mulheres e elas ficaram como elas falam na língua delas ‘wekoonekatojo’ ou ‘taitha’ (toíta), que quer dizer bonita”. A postagem foi curtida por 116 pessoas.
Foi montada uma bancada para distribuição de roupas. As imagens mostram mulheres indígenas seminuas escolhendo a doação. Em diversos pontos do território Yanomâmi, os indígenas vivem nus ou seminus, com adereços pelo corpo.
Outra mulher de um militar escreveu “o que aconteceu aqui no pelotão Sucururu” no dia 25 de junho. “Tudo começou com um comentário do sargento daqui do PEF sobre arrecadar agasalhos para nossos indígenas e isso me despertou a vontade de ir além e pedir não só agasalhos, mas sim roupas e cobertas também”.Professora emérita da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora sênior do CNPq, a antropóloga Alcida Rita Ramos fez trabalhos de campos com os Yanomamis de 1968 a 2005 e é considerada uma das principais estudiosas sobre o povo. A pedido da coluna, ela olhou as várias fotografias divulgadas pelas mulheres dos militares em redes sociais.
“O que vejo nessas fotos é um múltiplo desrespeito aos Yanomami e uma arrogância burguesa de dar arrepios”, disse a professora.
Ela separou os problemas em quatro blocos. “Primeiro, mais grave, manusear objetos, os cabelos, as unhas das indígenas, usando instrumentos cortantes, sem qualquer preocupação com contágio, incorrendo em séria infração, se não mesmo crime.”
Em segundo lugar, “achar que as indígenas ‘merecem’ se apresentar com a estética das ‘brancas’, como se elas mesmas não tivessem a sua própria e muito celebrada estética”.
Um terceiro ponto levantado pela pesquisadora é “disfarçar proselitismo religioso com desenhos infantis, expondo as crianças indígenas aos efeitos ilegais do missionismo”.
Por fim, “impingir brinquedos a crianças, sem terem o mínimo conhecimento do que é ser criança indígena e quais são os padrões locais de jogos infantis”.
Imagens mostram crianças aglomeradas, sem máscara, conversando com adultos também sem máscaras durante o que seria uma recreação com papel e lápis colorido. É possível ver, nas folhas, o desenho de um homem barbudo, pairando entre nuvens, como se fosse Deus ou Jesus Cristo, para ser colorido.
Na hora de receber doces, as crianças fizeram uma fila sem máscara e sem distanciamento. Depois posaram para fotos também sem máscaras e reunidos na frente do pelotão. Mesma aglomeração ocorreu na hora da brincadeira em um pula-pula.
Júnior Hekurari Yanomâmi, do conselho de saúde indígena, disse que nenhuma dessas atividades era uma necessidade para os Yanomamis. “Não houve um diálogo. Simplesmente pararam lá no aeroporto de Boa Vista e vieram para as aldeias. Isso durante a pandemia. Depois de uns nove dias que eles saíram, passou para 48 casos de covid em Waikás. Tinha três casos antes. Em Auaris, já temos um caso. Estamos muito preocupados.”
O antropólogo francês Bruce Albert trabalha desde os anos 1970 com os yanomâmis, tendo participado da coalizão CCPY (Comissão Pró-Yanomami), que resultou na homologação da demarcação da terra indígena durante o governo Fernando Collor (1990-1992). Ele é coautor, com o líder Yanomami Davi Kopenawa, do livro “A Queda do Céu” (Companhia das Letras, 2015).
Ele também olhou as postagens das mulheres dos militares a pedido da coluna. “Fiquei muito chocado com as fotos. Além de uma irresponsável falta de observância da regras de distanciamento físico no trato com uma população indígena particularmente vulnerável na pandemia, vejo também nas fotos um tremendo desrespeito à cultura e à dignidade das mulheres Y.”
“Esposas de militares num posto isolado brincam de ‘ação social’ com mulheres Yanomami colocadas em posição subalterna de objetos da sua ‘generosidade’ estética condescendente de mulheres brancas donas dos cânones de beleza dominantes (‘civilizada’). Assim, atrás dessa pseudo ‘ação social’ esconde-se um racismo crasso cujas raízes históricas remetem ao Brasil colonial. Destas cenas ressurgem, de fato, as imagens das ‘escravas de estimação’ do tempo da colônia”, disse o antropólogo.
Sílvia Maria Ferreira Guimarães, mestre e doutora em antropologia pela UnB (Universidade de Brasília), professora do programa de pós-graduação em ciências e tecnologias em saúde, disse que é possível ver “a arrogância dessa colonização, achando que ela é tudo que todos desejam. O problema se acirra quando recai mais intensamente sobre as crianças”.
Deixando de lado o episódio da “ação social”, há nuances na relação dos indígenas com o pelotão militar. Os militares do pelotão, conta a antropóloga, “ficam naquela área deles, eles fazem trocas com os Sanöma [subgrupo Yanomami], os Sanöma gostam, às vezes apreciam as comidas dos ‘brancos’ com essas trocas (arroz, café, açúcar)”.
A antropóloga conta que um técnico em enfermagem Yanomami recentemente lhe disse que “os garimpeiros não vão até Auaris por causa do pelotão que está lá”. “O pelotão cumpre essa ação de coibir o garimpo em Auaris. Eu acho que eles [militares] e missionários estão de certa forma sob controle dos Sanöma, que manejam a presença dessas pessoas, para as trocas, que os Sanöma apreciam muito. O garimpo não, já entra na violência. O problema dos missionários é o foco nas crianças, com suas escolas e o tipo de ação cotidiana perigosa que podem fazer.”
A mulher escreveu: “Hoje foi o nosso Aciso [Ação Cívico-Social] com os indígenas aqui no PEF e produzimos as mulheres e elas ficaram como elas falam na língua delas ‘wekoonekatojo’ ou ‘taitha’ (toíta), que quer dizer bonita”. A postagem foi curtida por 116 pessoas.
Foi montada uma bancada para distribuição de roupas. As imagens mostram mulheres indígenas seminuas escolhendo a doação. Em diversos pontos do território Yanomâmi, os indígenas vivem nus ou seminus, com adereços pelo corpo.
Outra mulher de um militar escreveu “o que aconteceu aqui no pelotão Sucururu” no dia 25 de junho. “Tudo começou com um comentário do sargento daqui do PEF sobre arrecadar agasalhos para nossos indígenas e isso me despertou a vontade de ir além e pedir não só agasalhos, mas sim roupas e cobertas também”.Professora emérita da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora sênior do CNPq, a antropóloga Alcida Rita Ramos fez trabalhos de campos com os Yanomamis de 1968 a 2005 e é considerada uma das principais estudiosas sobre o povo. A pedido da coluna, ela olhou as várias fotografias divulgadas pelas mulheres dos militares em redes sociais.
“O que vejo nessas fotos é um múltiplo desrespeito aos Yanomami e uma arrogância burguesa de dar arrepios”, disse a professora.
Ela separou os problemas em quatro blocos. “Primeiro, mais grave, manusear objetos, os cabelos, as unhas das indígenas, usando instrumentos cortantes, sem qualquer preocupação com contágio, incorrendo em séria infração, se não mesmo crime.”
Em segundo lugar, “achar que as indígenas ‘merecem’ se apresentar com a estética das ‘brancas’, como se elas mesmas não tivessem a sua própria e muito celebrada estética”.
Um terceiro ponto levantado pela pesquisadora é “disfarçar proselitismo religioso com desenhos infantis, expondo as crianças indígenas aos efeitos ilegais do missionismo”.
Por fim, “impingir brinquedos a crianças, sem terem o mínimo conhecimento do que é ser criança indígena e quais são os padrões locais de jogos infantis”.
Imagens mostram crianças aglomeradas, sem máscara, conversando com adultos também sem máscaras durante o que seria uma recreação com papel e lápis colorido. É possível ver, nas folhas, o desenho de um homem barbudo, pairando entre nuvens, como se fosse Deus ou Jesus Cristo, para ser colorido.
Na hora de receber doces, as crianças fizeram uma fila sem máscara e sem distanciamento. Depois posaram para fotos também sem máscaras e reunidos na frente do pelotão. Mesma aglomeração ocorreu na hora da brincadeira em um pula-pula.
Júnior Hekurari Yanomâmi, do conselho de saúde indígena, disse que nenhuma dessas atividades era uma necessidade para os Yanomamis. “Não houve um diálogo. Simplesmente pararam lá no aeroporto de Boa Vista e vieram para as aldeias. Isso durante a pandemia. Depois de uns nove dias que eles saíram, passou para 48 casos de covid em Waikás. Tinha três casos antes. Em Auaris, já temos um caso. Estamos muito preocupados.”
O antropólogo francês Bruce Albert trabalha desde os anos 1970 com os yanomâmis, tendo participado da coalizão CCPY (Comissão Pró-Yanomami), que resultou na homologação da demarcação da terra indígena durante o governo Fernando Collor (1990-1992). Ele é coautor, com o líder Yanomami Davi Kopenawa, do livro “A Queda do Céu” (Companhia das Letras, 2015).
Ele também olhou as postagens das mulheres dos militares a pedido da coluna. “Fiquei muito chocado com as fotos. Além de uma irresponsável falta de observância da regras de distanciamento físico no trato com uma população indígena particularmente vulnerável na pandemia, vejo também nas fotos um tremendo desrespeito à cultura e à dignidade das mulheres Y.”
“Esposas de militares num posto isolado brincam de ‘ação social’ com mulheres Yanomami colocadas em posição subalterna de objetos da sua ‘generosidade’ estética condescendente de mulheres brancas donas dos cânones de beleza dominantes (‘civilizada’). Assim, atrás dessa pseudo ‘ação social’ esconde-se um racismo crasso cujas raízes históricas remetem ao Brasil colonial. Destas cenas ressurgem, de fato, as imagens das ‘escravas de estimação’ do tempo da colônia”, disse o antropólogo.
Sílvia Maria Ferreira Guimarães, mestre e doutora em antropologia pela UnB (Universidade de Brasília), professora do programa de pós-graduação em ciências e tecnologias em saúde, disse que é possível ver “a arrogância dessa colonização, achando que ela é tudo que todos desejam. O problema se acirra quando recai mais intensamente sobre as crianças”.
Deixando de lado o episódio da “ação social”, há nuances na relação dos indígenas com o pelotão militar. Os militares do pelotão, conta a antropóloga, “ficam naquela área deles, eles fazem trocas com os Sanöma [subgrupo Yanomami], os Sanöma gostam, às vezes apreciam as comidas dos ‘brancos’ com essas trocas (arroz, café, açúcar)”.
A antropóloga conta que um técnico em enfermagem Yanomami recentemente lhe disse que “os garimpeiros não vão até Auaris por causa do pelotão que está lá”. “O pelotão cumpre essa ação de coibir o garimpo em Auaris. Eu acho que eles [militares] e missionários estão de certa forma sob controle dos Sanöma, que manejam a presença dessas pessoas, para as trocas, que os Sanöma apreciam muito. O garimpo não, já entra na violência. O problema dos missionários é o foco nas crianças, com suas escolas e o tipo de ação cotidiana perigosa que podem fazer.”
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