sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Brasil na guilhotina


Quem paga essa conta

Todos os brasileiros, exceto os diretamente beneficiados pela medida, serão de alguma forma prejudicados pela decisão do presidente Michel Temer de conceder o aumento salarial pedido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – que se aplicará a outros membros do Poder Judiciário – e estendido, em outras proporções, para todo o funcionalismo ativo e inativo do Executivo federal. Para cobrir o aumento dos gastos do Judiciário e do custo da folha de pessoal do Executivo, outros itens de despesa terão de sofrer cortes, e isso deverá afetar programas sociais, como o Bolsa Família, e sobretudo os investimentos em obras de reforma, melhoria e expansão de serviços públicos.


A séria crise fiscal que ameaça a continuidade desses serviços seria aliviada no início do mandato do próximo presidente da República caso a correção da folha de salários da União tivesse sido adiada de 2019 para 2020, como se previa. Com a concordância de Temer em manter em 2019 os reajustes para o funcionalismo, como medida compensatória à concessão do aumento pedido por todos os integrantes do Supremo, a folha de pagamento do funcionalismo da União acumulará um crescimento real, isto é, descontada a inflação, de 13,7% entre 2017 e 2019. Para o Tesouro, isso representa gastos adicionais de R$ 38,1 bilhões só com a folha de vencimentos.

No caso dos ministros do STF, cujos vencimentos representam o teto da remuneração no setor público e hoje estão fixados em R$ 33.763,00, o limite pode chegar a R$ 39.293,32. O acordo entre o Executivo e o STF para a concessão desse aumento inclui a extinção do chamado auxílio-moradia, que eleva os vencimentos dos juízes em cerca de R$ 4,3 mil. O custo do acerto será de R$ 4,1 bilhões por ano para a União e para os Estados, de acordo com cálculos das consultorias da área de orçamento da Câmara e do Senado.

São números que retratam ganhos para uma parcela ínfima de brasileiros cuja situação contrasta de maneira dramática com a vivida por 27,6 milhões de cidadãos aos quais falta trabalho, e consequentemente renda. Eles compõem o contingente de pessoas subutilizadas aferido pela mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE. São pessoas que estão desempregadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas ou estão disponíveis para trabalhar, se houver oportunidade. São, por isso, as que mais dependem de serviços prestados pelo poder público.

Como mostrou reportagem do Estado, no ano passado, os funcionários públicos, que em média ganham bem mais do que os empregados do setor privado, tiveram aumento de 6,5% acima da inflação; neste ano, o ganho real é estimado em 2,3%. Já o rendimento médio dos trabalhadores ocupados no trimestre encerrado em julho aumentou apenas 0,8% em um ano, segundo a Pnad Contínua. A massa de salários cresceu 2,0%, puxada pelo aumento do número de pessoas trabalhando.

A lenta recuperação da atividade econômica resulta em crescimento modesto da arrecadação, razão pela qual o aumento do custo de pessoal decorrente da tibieza com que o governo Temer tratou da questão nos últimos dias exigirá cortes de outros itens. Sem o reajuste do funcionalismo, haveria uma folga de R$ 6,8 bilhões para equilibrar as contas no próximo exercício. Essa folga se desfez. O impacto exato dos gastos adicionais ainda será discutido hoje no Palácio do Planalto, em reunião na qual serão definidos os números finais do projeto de lei do Orçamento da União para 2019. O projeto tem de ser enviado hoje mesmo ao Congresso.

É muito provável que os cortes se concentrem nos investimentos, inclusive em obras incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento. No ano passado, o governo federal destinou R$ 45,7 bilhões para investimentos. No primeiro semestre deste ano, o montante alcançou R$ 21,2 bilhões. É possível que em 2019 os investimentos fiquem em cerca de R$ 35 bilhões. É pouco para um país em que o setor público é responsável por boa parte da infraestrutura, cuja oferta e cuja qualidade são insuficientes. Benefícios sociais também poderão se reduzidos.

Retoque de 'Deus'


Toda uma biblioteca de Direito apenas para melhorar quase nada os dez mandamentos
Millôr Fernandes

Professor Unrat

A coluna Fatos, regularmente publicada nesta VEJA digital, também é cultura. Só de vez em quando, claro, e sempre em doses moderadas, pois artigos escritos por jornalistas raramente farão muito mal a alguém se ficarem nos limites da leitura ligeira. 

É o que será tentado nas linhas abaixo, levando-se em conta que certas obras de primeira classe podem ajudar na compreensão do presente ─ no caso, uma cena particular da aflitiva disputa eleitoral pela Presidência da República que está aí. 

Trata-se de comparar O Anjo Azul, um dos momentos mais festejados na história do cinema universal, e a inédita candidatura por default, como se diz no português de hoje, do professor Fernando Haddad. 

O filme, um símbolo pungente da Alemanha a caminho da catástrofe, lançado em 1930 e inspirado na obra de Heinrich Mann, narra a tragédia humana do professor Unrat ─ um impecável educador cuja vida entra em decadência e acaba em ruínas, na miséria, na sarjeta e na cadeia.

A desgraça de Unrat é o resultado de uma paixão alucinada por Lola-Lola, uma dançarina de cabaré, “O Anjo Azul”, que em dois anos de convívio destrói a sua reputação, suas finanças e o seu amor próprio. 


De homem respeitado e temido, ele se transforma num palhaço, serviçal de Lola e sua trupe de companheiros suspeitos, e desliza progressivamente para a humilhação, a loucura e a delinquência. 

Haddad, na sua atual aventura política, lembra o professor que liquida a sua honra a serviço de Lola-Lola. 

Anulou a própria personalidade, e assumiu publicamente o papel de pano de estopa de um ex-presidente da República que está na cadeia ─ e se mostra disposto a qualquer extremo para escapar à punição dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro a que foi condenado. 

Haddad é o candidato do PT na vida real, pois o seu líder está impedido pela Lei da Ficha Limpa de disputar a eleição. Mas não pode dizer que é candidato enquanto o chefe não mandar ─ coisa que, nos seus cálculos, deve demorar o máximo possível de tempo para lhe render o máximo possível de lucro na vida pessoal.

Ninguém está dizendo aqui que a comparação é entre o caráter do professor Unrat e o caráter de Haddad. Unrat, no fundo, não era um homem bom, e tinha uma inclinação fatal para a vida torta. Haddad, ao contrário, manteve até agora uma postura de integridade, respeito às leis e boa educação em sua vida pública e pessoal ─ justamente o oposto do que tem sido há anos a conduta exibida pelo grande líder. 

Mas ao aceitar na frente de todo mundo o papel de objeto inanimado, sem vontade própria e disposto a tudo para servir aos interesses de um homem que pensa unicamente em si mesmo, Haddad está descendo ladeira abaixo, como no tango de Gardel. Tornou-se um cúmplice integral do grupo de arruaceiros que está no comando do partido. 

É o instrumento-chave da tentativa de sabotar a eleição com a farsa do “duplo cenário”, da litigação judiciária de má fé, da “intervenção da ONU”, da foto do não-candidato na urna eletrônica e tudo o mais que possa fraudar o processo eleitoral com a produção de desordem. 

Enfim, ao oferecer-se como voluntário para a posição de “poste”, está contribuindo diretamente para destruir o futuro de seu partido. Cuesta Abajoacaba mal, é claro, como a história do “Anjo Azul”. 

No tango, o homem apaixonado fala do amor de sua vida ─ que era como un sol de primavera, mi esperanza, mi pasión … 

Mas as ilusões terminam, e ahora, cuesta abajo en mi rodada, como diz, o amante lamenta ter acabado triste en la pendiente, solitário y ya vencido. O que lhe sobra é o sonho con el tiempo viejo que hoy lloro, y que nunca volvera. Está bom assim ou precisa mais, em matéria de tristeza? Está bom assim.

A era da mentira

Para começar, vamos combinar que fake news é só uma versão gourmet da boa e velha mentira. Afinal, o que mais uma notícia deliberadamente falsa poderia ser?

O governo Trump não inventou a mentira nem as fake news, mas fez delas sua linguagem e prática política. Sua secretária de Imprensa, confrontada com fatos irrefutáveis, manteve a sua versão oficial como “verdade alternativa”. O que virá depois?

Antigamente, as mentiras tinham pernas curtas, eram logo descobertas, mas hoje elas podem ser repetidas e amplificadas até se tornarem verdade, como sonhava Goebbels comandando a máquina de propaganda nazista. Mas Goebbels era modesto, falava em mentira mil vezes repetida, jamais ousaria imaginar milhões de repetições até a fake news virar verdade. Imaginem Goebbels com internet.

Pesquisa recente da London University demonstrou que o ato de mentir provoca uma forte atividade na região do cérebro associada à emoção. Quando rouba ou mente em seu próprio benefício, você se sente mal. Mas quando continua mentindo, esse sentimento desaparece, e você está mais disposto a mentir novamente. “A mentira é como uma bola de neve; quanto mais rola, mais cresce”, dizia Martinho Lutero.

Ou, como disse Lula, com autoridade, “a desgraça da mentira é que quem conta uma mentira passa a vida inteira mentindo para justificar a primeira mentira”. Quem há de desmenti-lo?

Sim, todo mundo mente; uns mais, outros menos; uns bem, outros mal; o problema é quando você começa a mentir para si mesmo — e acreditar. No caso, os psicanalistas dizem que é inútil qualquer psicanálise.

As eleições são o apogeu da era da mentira no país que nacionalizou a máxima de Descartes para “minto, logo existo”. Ainda ouviremos um candidato dizer, parafraseando Tim Maia, “não roubo, não levo propina e nem caixa 2, mas às vezes minto um pouquinho”.

Quando lhe diziam que os fatos contrariavam a sua versão, Nelson Rodrigues mandava na lata: então pior para os fatos.

Pensamento do Dia

Tomasz Alen Kopera

Por que a queda do desemprego pode esconder uma má notícia

Em meio a 12,9 milhões de pessoas que buscam emprego no Brasil, Larissa Silva Deloste, de 21 anos, pegou o ônibus esta semana, em São Paulo, e pensou: "Dessa vez tem que dar certo". Ela estava a caminho da "20ª ou 30ª entrevista" em 2018.

Em outro ponto da cidade, Gustavo Dias da Costa, de 19 anos, cadastrou o currículo em um site, olhou os classificados do jornal e saiu às ruas "onde tem bastante comércio", de novo, à procura de placas de "estamos contratando" para funções como vendedor.

Dados divulgados hoje pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o batalhão de trabalhadores desocupados - os que estão, como eles, nessa peregrinação - caiu no país, e o contingente dos que estão ocupados aumentou.

O movimento foi registrado entre maio e julho, após três anos seguidos de alta do desemprego nesse mesmo período.

Entre fevereiro e abril deste ano - o intervalo que oferece o panorama mais atual da situação esmiuçada por estado, faixas de escolaridade e grupos de idade da população - o recuo no índice já era percebido. Mas, apesar dos números positivos, outros dados mostram que o cenário está longe de uma melhora.

Nesta reportagem, a BBC News Brasil explica os motivos e por que o momento ainda é ruim - particularmente para os jovens, que representam 40% da população que acabou desistindo de encontrar trabalho.

Se o momento atual do mercado de trabalho brasileiro fosse resumido em uma palavra, o coordenador de emprego e renda do IBGE, Cimar Azeredo, escolheria "crítico". E diria também que "não está bom para ninguém".

Os dados do IBGE divulgados nesta quinta, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, a Pnad Contínua, mostram 12,9 milhões de brasileiros como desocupados ou desempregados - grupo definido como o que segue em busca de emprego.

Essa multidão, identificada entre maio e julho, é 4,1% menor que a existente no período que engloba os três meses anteriores e 3,4% inferior à registrada em igual trimestre do ano passado. Mas isso pode não refletir algo tão positivo.

"Há uma desestrutura muito forte, ou seja, uma entrada de informalidade bastante agressiva", disse Azeredo, em entrevista à BBC News Brasil ontem, quando analisou informações que já haviam sido publicadas neste mês pelo órgão indicando números parecidos.

Na pesquisa mais recente, com dados apenas nacionais, 458 mil pessoas que estavam na fila do desemprego saíram dessa estatística, em comparação com 2017, mas fizeram isso não porque foram gerados novos empregos na economia, mas principalmente porque, de tanto esperar que isso acontecesse e de procurar vaga sem encontrar, desistiram - entrando numa outra estatística da pesquisa, a do desalento.

Outro grupo, por sua vez, acabou se vendo sem alternativas ou quis empreender, mas migrarando sobretudo para atividades informais, como empregadas sem carteira assinada ou com negócios por conta própria que não oferecem direitos como aposentadoria, auxílio-doença ou seguro-desemprego.

"Eu acho que a situação é bastante critica em função principalmente da quantidade de postos de trabalho com carteira assinada que o Brasil perdeu. Haja vista a importância que tem a carteira de trabalho para o o trabalhador brasileiro, principalmente o de baixa renda, essa queda na carteira vem de forma constante, sem nenhuma recuperação desde o início da crise, em 2014. Isso é grave", analisa o coordenador.

"O desemprego em queda é, na verdade, o aumento do desalento", acrescenta. "O Brasil nunca teve tanto desalento quanto agora."

Quanto às carteiras assinadas, foram quase 3,7 milhões de perdas, numa comparação entre o terceiro trimestre e igual período de 2014, ano em que a economia ainda crescia, complementa o professor emérito do instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Saboia.

"Com a crise econômica, (o mercado de trabalho) piorou bastante a partir de 2015. Desde então, tem tido grandes dificuldades para mostrar alguma recuperação, pois a economia está praticamente estagnada", observa Saboia, "ressaltando que o desemprego permanece elevado e a informalidade também nunca esteve tão alta".

Outros dados que os especialistas apontam como alarmantes são os dos chamados trabalhadores sub-ocupados, ou subutilizados - aqueles que estão trabalhando menos de 40 horas e querem trabalhar mais. "Essa medida subiu, ou seja, o desemprego caiu, mas a quantidade de pessoas subutilizadas no Brasil também aumentou", analisou Azeredo em entrevista nesta semana.

Banalidade que não dá manchete



Os jornais noticiam tudo, menos uma coisa tão banal que ninguém se lembra: a vida
Rubem Braga

Boatos, rumores e 'fake news'

No início da década de 60 do século passado surgiu um boato sinistro sobre um falso funcionário da Companhia de Gás de Moscou. O assassino da MosGaz, como era conhecido, tocava a campainha de apartamentos onde havia crianças sozinhas, declarava que vinha examinar um vazamento, entrava e assassinava.

A notícia tinha um fundo de verdade – houve mesmo um assassino do gás –, mas suas ações foram restritas a alguns casos, que não saíram em jornal algum, mesmo porque a imprensa soviética não publicava notícias policiais. Esse silêncio da imprensa não impediu que o terror se multiplicasse, boca a boca, por gerações de mães e crianças, tornando-se o que se chamava de lenda urbana, antecessora das fake news disseminadas pela internet.

Há quem acredite que a ampliação do boato da MosGaz se devesse a condições específicas da União Soviética. Como não se publicavam notícias policiais, não seria possível desmenti-las sem mencioná-las. Ficou assim demonstrado, pelo menos, que ignorar o assunto não é uma boa medida. Sem desmentidos, o boato se reproduz como uma célula cancerosa. Por essa razão não há quem duvide da utilidade dos serviços que se multiplicam atualmente para verificar a eventual veracidade das notícias.


A questão, no entanto, é complexa e os próprios desmentidos apresentam riscos. O primeiro dos quais é serem ineficazes. Um dos boatos mais vigorosos e incontroláveis surgiu na mesma época na cidade francesa de Orléans. Em certas lojas de moda, o assoalho das cabines de provas apresentava um alçapão destinado a capturar mocinhas. Quando o alçapão se abria, elas caíam num quarto secreto onde eram drogadas para acordarem mais tarde algemadas no porão de um navio com destino a um bordel de Buenos Aires.

Quem negasse a relação entre as lojas e o tráfico de brancas, como fizeram de imediato policiais e jornalistas, era imediatamente acusado de se deixar subornar pela máfia dos lojistas. Um livro escrito por Edgar Morin chamava a atenção para o fato de o boato atribuir as misteriosas lojas a comerciantes judeus, o que não é de estranhar, pois como se sabe desde a Idade Média judeus são vítimas dos piores rumores, como, por exemplo, de roubar recém-nascidos para sacrificar em suas missas negras.

É óbvio que os judeus não são as únicas vítimas dos rumores. Um dos mais curiosos e persistentes teve início também na França, na mesma época, com um sujeito acometido por uma dor de dentes. O dentista que o atendeu revelou que o problema era causado por um ossinho de rato que ficara preso entre dois dentes. “É o quarto caso neste mês”, comentara o dentista. Todos frequentavam restaurantes chineses.

No Brasil tivemos um caso especialmente lamentável. Em março de 1994, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, donos da Escola Base, destinada à educação infantil, foram acusados de pedofilia num concerto de mentiras que envolveu policiais, membros do Ministério Público e vários jornais. Antes que o casal fosse inteiramente inocentado, a Escola Base já havia sido depredada por vândalos.

Um dos boatos recorrentes na periferia das grandes cidades brasileiras dá conta de uma Kombi pilotada por um palhaço, que atrai crianças para roubar seus rins. Dias mais tarde os cadáveres são encontrados em terrenos baldios com um corte por onde foram retirados os órgãos. A impossibilidade médica de iniciar um transplante com um doador escolhido ao acaso por um palhaço no interior de uma Kombi não impede a persistência da história de terror.

Os exemplos apontados acima bastam para que se note a dificuldade da tarefa da grande imprensa na sua luta contra as fake news. Para desfazer uma fake news é preciso mencioná-la e se a correção não for feita com muita habilidade corre-se o risco de tentar apagar o fogo com gasolina. Leitores de fake news costumam sacar palavras isoladas, à procura de qualquer coisa que venha confirmar opiniões preconcebidas. Se algo parece contrariá-los, buscam desconsiderar a argumentação afirmando que “não há fumaça sem fogo” ou que o desmentido foi escrito por alguém vendido a grupos interessados.

Esse contra-argumento tem sido muito usado em anúncios de drogas miraculosas à base de plantas capazes de fazer qualquer pessoa perder oito quilos em duas semanas, sem dieta. Afirmam que a fórmula permanece em segredo pela pressão dos médicos, temerosos da concorrência. De maneira análoga, quem desmente o boato de que vacina tríplice provoca aumento do número de casos de autismo se vê acusado de cúmplice dos laboratórios multinacionais. Há casos extremos em que um desmentido mal-intencionado serve para criar um boato do nada. Conta-se que um jornalista de um tabloide de escândalos inglês telefonou para a esposa de um político influente para perguntar se seu marido era homossexual. Ante a negativa veemente, publicou a manchete: Fulana de tal, indignada: ‘Meu marido não é homossexual!’.

Na impossibilidade de desmentir individualmente todas as fake news, procura-se alertar o público para checar a verossimilhança e a origem das notícias.

Um passeio pela internet revela, por exemplo, que os australianos não existem realmente: são robôs. A descoberta foi divulgada por uma conferência organizada em Londres pela International Flat Earth Society, fundada em 1956, que como o nome indica reúne pessoas que acreditam que a Terra é plana.

Casos como esses são fáceis de descartar, mas há também notícias com todas as características de fake news que se revelam verdadeiras. As primeiras histórias sobre famílias judias, homens, mulheres e crianças, levadas para câmaras de gás em campos de extermínio foram recebidas por muitas pessoas cultas e bem-intencionada através do mundo com o descrédito merecido pela propaganda de guerra. Na vanguarda das artes e das ciências, a Alemanha de Goethe nunca poderia permitir bestialidades dessa ordem. No entanto, era tudo verdade.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Escolhas de risco

Outro dia sonhei que, em visita à aldeia tupinambá, fui convidado a almoçar pelo cacique Cunhambebe, sem perceber que, numa fase antropofágica, ele planejava me incluir no cardápio. Já sonhei também que fui jantar no restaurante do encouraçado Potemkin. Quem viu o filme de Eisenstein, de 1925, sabe que a comida do Potemkin era tão incomível e cheia de bichos que provocou uma revolta popular na Rússia de 1905.

E imagine-se com sua namorada no Motel Bates. O dito motel é aquele de “Psicose”, o filme de Hitchcock, de 1960, em que o gerente, um tarado vestido de mulher, assassina quem se hospeda nele. Outro pesadelo: suponha-se na Vila Rica (MG) de 1792 com uma súbita dor de dentes. O único dentista à mão é um rapaz simpático e prestativo, mas que só sabe fazer extrações, o Joaquim José.


E por aí vai. Essas situações se referem a riscos que podemos correr por desinformação ou erro de cálculo. Tome alguns dos atuais candidatos à Presidência. Conhecendo-os como políticos, como seria se os contratássemos nas profissões que originalmente exerceram?

Ciro Gomes, por exemplo, era advogado. Sempre fez tudo para perder suas causas — e conseguiu. Henrique Meirelles formou-se em engenharia, mas o único setor que o interessava nos edifícios em que trabalhou era o cofre. E Geraldo Alckmin já foi médico. Sua especialidade era a anestesiologia. Continua a praticá-la, só que como político —seus discursos são sedações quase fatais.

O pitoresco Cabo Daciolo foi bombeiro até outro dia, mas não o chame em caso de incêndio —seu negócio era liderar greves da categoria. Já Jair Bolsonaro é político há 29 anos, mas diz-se, até hoje, membro das Forças Armadas, das quais quase foi expulso. E Lula, igualmente, ainda se apresenta como torneiro mecânico, embora não veja uma chave de rosca há quase 50 anos. Pensando bem, a eles só resta mesmo tentar a Presidência.

O podre não olha estrelas

(…) O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso, que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e caprichosos?
Fiódor Dostoiévski, "Noites Brancas"

A farra dos sindicatos

A julgar pela grave denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o grupo político que passou a atuar no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) a partir de 2016 - “sob influência do PTB e do SD” -, o órgão foi tomado por uma “organização criminosa” disposta a “fazer negociações ilícitas de registros sindicais”. O grupo é acusado de “vender” registros sindicais para entidades dispostas a pagar propina para escapar da “burocracia existente” na Secretaria de Relações do Trabalho.

“Os elementos probatórios reunidos no inquérito indicaram que representantes das entidades sindicais ingressam no esquema criminoso em razão da burocracia existente na Secretaria de Relações do Trabalho, que dificulta - e muitas vezes impede - a obtenção de registro àqueles que se recusam a ofertar a contrapartida ilícita que lhes era exigida”, destacou a PGR.

Na denúncia de 91 páginas, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, detalha o funcionamento da suposta “organização criminosa”, dividida por ela em cinco “núcleos”, quatro dos quais são objeto da peça acusatória: “administrativo”, “sindical”, “político” e “captador”. No total, foram denunciadas 26 pessoas, incluindo o ex-ministro Helton Yomura, o presidente do PTB, Roberto Jefferson, os deputados federais Jovair Arantes (PTB-GO), Cristiane Brasil (PTB-RJ), Paulinho da Força (SD-SP), Wilson Santiago Filho (PTB-PB) e Nelson Marquezelli (PTB-SP) e outros. São acusados de integrar o chamado “núcleo político”, que seria o núcleo responsável por “indicar e manter os integrantes do núcleo administrativo (que aceleravam a tramitação dos processos de registro) em suas funções comissionadas” no MTE.

A denúncia foi oferecida ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Edson Fachin, e baseou-se em provas colhidas no âmbito da Operação Registro Espúrio, além de informações e outras provas oferecidas por um ex-funcionário do MTE que celebrou um acordo de colaboração premiada com a PGR.

Hoje, o Brasil tem cerca de 17,2 mil sindicatos registrados, 70% representando interesses dos trabalhadores e os outros 30%, dos empregadores. São sindicatos demais, em número que desafia o bom senso. Só em 2006, durante o governo do ex-presidente Lula da Silva, o MTE autorizou o registro de 9.382 entidades sindicais, mais da metade do atual número. Ou seja, a farra dos sindicatos é um problema antigo e revela uma “cultura sindicalista” que, entre outras razões, parece destinada a absorver tantos recursos quanto possível, seja da União, seja dos trabalhadores.

Em 2016, antes, portanto, do início da vigência da Lei n.º 13.467/2017, que instituiu a chamada reforma trabalhista, os sindicatos de empregados e empregadores movimentaram, no total, cerca de R$ 3,5 bilhões. Desde novembro de 2017, quando a lei entrou em vigor, a arrecadação dos sindicatos vem caindo substancialmente com o fim do chamado imposto sindical, obrigando os sindicatos a adotar duros ajustes fiscais e a rever suas formas de atuação, antes amparadas por uma fonte inesgotável de recursos financeiros.

Foi esta torrente de dinheiro fácil que alimentou ao longo dos anos a proliferação dos sindicatos no País, muitos deles bem distantes da proteção dos interesses dos trabalhadores. Alguns foram transformados em apêndices de partidos políticos. Não foi por outra razão que o fim da contribuição sindical obrigatória - uma excrescência já no nome -, foi uma das inovações benfazejas trazidas pela Lei n.º 13.467/2017.

Em países como os Estados Unidos, França e Reino Unido, com grande tradição de lutas sindicais, há pouco mais do que uma centena de sindicatos. Na Argentina, são cerca de 90. Não é razoável supor que os números de categorias profissionais e interesses laborais a serem resguardados naqueles países são tão menores do que os que existem aqui. Caso seja recebida pelo STF, a denúncia oferecida pela PGR contra o grupo político acusado de delinquir no MTE poderá ajudar o País a entender a brutal discrepância.

Um Chirac, rápido

Na eleição presidencial de 2002, pela primeira vez na história recente do país, um candidato da extrema direita chegou perto do poder na França. Com a esquerda dividida, como sempre, e com a reação crescente à invasão de imigrantes, como agora, só Jacques Chirac, disputando sua reeleição, teve mais votos do que Jean-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional. Poucos votos mais. E foram os dois para um segundo turno em que uma vitória de Le Pen não parecia fora de propósito. Seu eleitorado – a França “profunda”, racista, antissemita, xenófoba, marginalizada pela globalização – continuava o mesmo e não mudaria seus conceitos e preconceitos – ou seu voto.

Mas aí a França acordou. Olhou em volta, esfregou os olhos, e disse a frase fatídica: “Pera aí um pouquinho”. Como se sabe, “pera aí um pouquinho” é a frase que tradicionalmente precede tomadas de consciência e epifanias. Nosso francês exemplar – digamos que se chame Pierre, para facilitar – talvez um eleitor do Jospin, socialista, terceiro mais votado no primeiro turno, se deu conta que antes de mais nada era preciso evitar que Le Pen se elegesse. Pierre poderia ser comunista, anarquista, zen-budista, odiar o Chirac, não importava. Só um Chirac vencedor impediria que a França fosse governada por um fascista declarado.


Chirac cumpriu sua função histórica. Derrotou Le Pen de goleada no segundo turno e lavou a alma da França – ou, vá lá, deu uma esfregada até a eleição seguinte, do Sarkozy. Venceu porque, como o nosso Pierre, muita gente se uniu, não a favor dele, mas contra o Le Pen. Simpatizei com Chirac depois que me contaram que ele teve um caso com a Claudia Cardinale. Ter um caso com a Claudia Cardinale me parece recompensa justa pelo que Chirac fez pela França. Ele mereceu.

Pensando em votar em branco, votar no Ratinho ou anular o voto? Pera aí um pouquinho. Escolha o mais Chirac dos candidatos e vote nele. O Le Pen nós já temos.

Sessão Nostalgia

Dá para explicar a crise do Brasil em duas frases?

O e-mail veio de um amigo, um conhecido jornalista americano: “O que está acontecendo com o Brasil? É o apocalipse? Você consegue esclarecer e explicar em duas frases?”.

Eu olhei, mudo, para meu computador. Duas páginas, tudo bem. Mas duas frases? Lembrei uma velha citação, algumas vezes atribuída ao filósofo do século XVII Blaise Pascal: “Se eu tivesse mais tempo, eu teria escrito uma carta mais curta”.


Talvez de forma previsível, pensei primeiro em corrupção. Se meu amigo — com uma consciência global, mas não um cara que acompanha a América do Sul — se preocupou com o Brasil, foi por causa do horror único da crise atual: a pior recessão de sua história moderna — sem recuperação real e significativa até agora —, um presidente com percentual de 3% de aprovação, metade da classe política na cadeia ou sob acusação e por aí vai. O escândalo da Operação Lava Jato tem os superlativos exigidos para explicar essa bagunça: o maior caso de corrupção já detectado não apenas no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, de acordo com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Bilhões de dólares em multa, grandes projetos de construção abandonados. O caso surgiu em 2014, no mesmo período em que a economia começou a ruir. Certamente eu poderia começar minha resposta aqui.

Mas, espera aí. A corrupção poderia realmente ser usada em um resumo de duas frases sobre o que aflige o Brasil? Porque, embora a corrupção seja inquestionavelmente ruim, a maioria das evidências — empíricas ou não — sugere que ela esteja dentro da média pelos padrões globais. O índice anual de percepção da corrupção da Transparência Internacional põe o Brasil em 96º lugar entre 180 países, nível comparável aos da Índia, da China e do Kuwait. Esses países não continuam a crescer apesar dos bilhões de dólares que estão sendo desviados?

Talvez o problema seja mais amplo, pensei. Lembrei a frase que eu ouvi 10 mil vezes durante meus anos de São Paulo. “Ah, este país seria muito bom se tivéssemos políticos melhores.” Nenhuma dúvida: Fernando Collor, Eduardo Cunha e Sérgio Cabral — para tirar três nomes da cartola — não eram com certeza as melhores pessoas que o Brasil tinha a oferecer. Mas a Lava Jato também não nos mostrou que parcelas do setor privado eram tão podres quanto os larápios de Brasília? E, me perdoem, amigos brasileiros, a criminalidade não é claramente um enorme problema em toda a sociedade? Em um país com 60 mil homicídios por ano? Só São Paulo tem pelo menos 530 furtos por dia. Um estudo sugeriu que o país perde sete vezes mais recursos com sonegação de impostos do que com a corrupção. Culpar os políticos, como se eles fossem alienígenas em relação ao restante da sociedade, sempre me pareceu uma desculpa — você ouve esse refrão não apenas no Brasil, mas na Argentina, no México e, sim, nos Estados Unidos. Sempre soa oco.

Talvez esse seja o ponto — não se espera que posições de liderança se destinem a pessoas comuns. Eu conheci muitos brasileiros incríveis ao longo dos anos — honestos, compassivos, educados, modernos. Com algumas notáveis exceções, eles não buscam as posições que podem ter os impactos mais positivos — no governo ou no setor privado. Eu poderia citar uma variedade de razões para isso: a sensação generalizada de que tanto os políticos quanto os grandes negócios são um “jogo sujo”, regras eleitorais e financiamento de campanha que protegem os titulares dos cargos — o que fica evidente nestas eleições — e, talvez, uma falta de coesão e responsabilidade cívica em um país com um abismo tão grande entre ricos e pobres.

Veja como Joaquim Barbosa e Luciano Huck recusaram boas chances de se tornar presidente neste ano ao decidirem que o esforço não valia a pena. Eu conheço meia dúzia de brasileiros de minha idade — tenho 40 anos — que preferiram não aproveitar a oportunidade de concorrer a uma cadeira no Congresso, balbuciando alguma coisa sobre 2022 ser um momento melhor. Em contraste, alguns outros países que conheço bem na América Latina — Colômbia vem à mente, assim como o Chile e a atual geração na Argentina — tiveram sucesso em atrair muitos dos melhores e mais brilhantes para posições reais de poder. Sua evidente ausência no Brasil — essa falta de alinhamento entre os melhores da sociedade e os papéis mais importantes de liderança — é realmente incomum. Não apenas na política, mas em outras áreas.

OK. Isso parecia satisfatório — pelo menos para uma das minhas frases.

Para a segunda, eu fui para os livros de história. Qualquer discussão profunda dos problemas do Brasil tem de começar com a desigualdade — as injustiças colossais que começaram com a colonização, que foram pioradas pela escravidão e continuaram nos anos seguintes. A maioria dos rankings coloca o Brasil em algum lugar entre os 15 ou 20 países mais desiguais do mundo, e essa não é definitivamente uma lista em que você queira estar — inclui a África do Sul, o Haiti, a República Centro-Africana e outras. A desigualdade tem sido apontada como um combustível da criminalidade e um empecilho ao crescimento econômico, entre muitos outros males. Também desestabiliza as democracias, já que a maioria está perpetuamente insatisfeita com sua posição relativa na sociedade e tende a hostilizar as urnas.

Mas, novamente, vamos ser honestos — o mundo está cheio de países que superaram suas cargas históricas, seja de guerra, pobreza, ódio étnico ou alguma outra coisa. Países malsucedidos ficam presos a seu passado; os bons resolvem seus problemas. Nós sabemos basicamente o que perpetua a desigualdade no Brasil: não somente a educação, mas uma rede de privilégios e proteções que assegura que os ricos permaneçam ricos e que transforma num inferno a vida dos que tentam competir com eles. O Brasil continua a ser um dos lugares mais difíceis para criar empresas — classificado em 176º entre 190 países nessa categoria pelo Banco Mundial. Continua a ser a economia importante mais fechada das Américas, graças às tarifas e aos subsídios que protegem os magnatas da competição estrangeira — e obrigam os brasileiros a comprar seus produtos ou a voar para a Flórida para comprar coisas melhores. É um país que cobra alguns dos mais elevados impostos da América Latina, para que políticos, generais e alguns juízes possam desfrutar de privilégios inéditos até mesmo na Europa, e onde funcionários públicos podem se aposentar confortavelmente no alto de seus 55 anos.

De fato, existem mil truques que tornam o empreendedorismo difícil e garantem que o pobre permaneça pobre. Nenhum deles é, do ponto de vista técnico, tão difícil de mudar. O que falta é vontade política para isso.

Uma eleição presidencial seria, normalmente, uma oportunidade para sair da crise e entrar em um caminho novo e promissor. Mas, sentado aqui hoje, acredito que dificilmente algum dos candidatos que estão concorrendo em outubro tenha condições de enfrentar os problemas reais do país — seja por não ter as ideias certas, seja porque parece incapaz de conseguir apoio no Congresso e na sociedade para fazê-lo. E isso, creio eu, é o que torna o momento atual no Brasil tão asfixiante — e tão único do ponto de vista global.

Assim, esta foi a resposta para meu amigo: “Muitos privilégios idiotas para a elite. Falta de bons líderes”.
Brian Winter 

Mudanças climáticas ameaçam valor nutricional de alimentos

Centenas de milhões de pessoas podem vir a desenvolver deficiências nutricionais devido ao aumento dos níveis de CO2 na atmosfera, aponta um estudo publicado nesta semana pela revista Nature Climate Change.

Pesquisadores da Escola de Saúde Pública T.H. Chan, de Harvard, estimam que, a menos que as emissões de carbono sejam drasticamente reduzidas nas próximas décadas, 175 milhões de pessoas podem adquirir deficiência de zinco e 122 milhões de proteína até 2050.

Além disso, 1,4 bilhão de mulheres em idade fértil e crianças menores de cinco anos podem perder 4% de sua ingestão de ferro, o que eleva o risco de anemia.


O estudo soma-se a um crescente número de artigos que mostram que mudanças ambientais, como a escassez de água e o aumento de temperaturas e de níveis de dióxido de carbono, estão afetando a qualidade nutricional e a produção de legumes, verduras e arroz.

Pesquisas mostraram que as concentrações de proteína, ferro e zinco são significativamente mais baixas em culturas mantidas em ambientes onde os níveis de CO2 são maiores que os de culturas cultivadas sob as condições atmosféricas atuais. Cientistas do clima preveem que, se não restringirmos nossas emissões, a concentração de CO2 pode mais que dobrar até 2100.

Com base em um banco de dados GENuS (Global Expanded Nutrient Supply), que estima o impacto de uma menor ingestão de nutrientes na saúde de habitantes de 151 países diferentes, os autores do estudo divulgado nesta semana examinaram quais regiões do mundo sofrerão o impacto da perda de nutrientes em culturas básicas, como arroz, trigo e batatas.

Os mais prejudicados, assim como na maioria dos aspectos das mudanças climáticas, são os países de baixa renda, diz Samuel Myers, coautor do estudo e diretor da Planetary Health Alliance, em Harvard.

"A descoberta é mais importante para quem está próximo de um limiar de deficiência nutricional e conta com tais culturas alimentares para obter uma parte significativa de um nutriente específico de sua dieta", afirma Myers.

Culturas como arroz e trigo são a principal fonte de alimento para mais de 3 bilhões de pessoas em todo o mundo. Muitos que não têm condições de pagar por uma dieta diversificada dependem desses grãos básicos para a maioria de suas calorias.

São essas pessoas, com "baixa diversidade alimentar" e "pouca comida de origem animal" – muitas vezes ricas em zinco, ferro e proteína – que sofrerão mais com o declínio da nutrição das safras, completa Myers.

O país que deverá arcar com o maior fardo é a Índia, que, segundo os pesquisadores, terá um adicional de 50 milhões de pessoas com deficiência de zinco; 38 milhões, de proteínas, e 502 milhões de mulheres e crianças vulneráveis a doenças associadas à deficiência de ferro até meados do século.

O dióxido de carbono é essencial para o crescimento das plantas, mas, em excesso, pode ser problemático. Embora a ciência por trás da fisiologia vegetal seja "complexa", segundo Myers, acredita-se que concentrações mais altas de dióxido de carbono possam fazer com que grãos como trigo e arroz produzam mais carboidratos, como amidos e glicose, à custa de nutrientes como proteína, zinco e ferro.

"Ainda não entendemos realmente por que isso está acontecendo, mas achamos que é muito mais complicado do que um simples 'efeito de diluição de carboidratos'. O que sabemos é que, em condições de concentrações mais altas de CO2, as safras se tornam menos nutritivas", diz Myers.

Atualmente, cerca de 2 bilhões de pessoas já vivem com deficiências nutricionais no mundo todo. Isso, além dos aproximadamente 815 milhões que não têm acesso a alimentos nutritivos o suficiente e das 1,5 milhão de mortes a cada ano ligadas à baixa ingestão de vegetais.

Se nada for feito, uma redução nos nutrientes devido à mudança climática pode intensificar um "problema já grave" de desnutrição, afirma Kristie Ebi, professora de saúde global da Universidade de Washington.

A falta de ferro pode resultar em anemia por deficiência de ferro, o que, segundo Ebi, "pode levar a complicações graves, como insuficiência cardíaca e atrasos no desenvolvimento de crianças". Já a deficiência de zinco pode levar a "uma perda de apetite e do olfato, problemas de cicatrização e danos ao sistema imunológico".

"O zinco também ajuda no crescimento e no desenvolvimento, e é por isso que a ingestão suficiente de alimentos é importante para mulheres grávidas e crianças em fase de crescimento", aponta Ebi.

Segundo cientistas, não é apenas o mundo em desenvolvimento que sofrerá as consequências de uma redução no valor nutricional dos alimentos básicos. Os resultados do estudo divulgado nesta semana trazem implicações alarmantes para a saúde pública e a segurança alimentar em todo o mundo. De acordo com Ebi, as mudanças têm o "potencial de afetar a todos".

Uma dieta diversificada, que inclua carne, grãos, frutas e verduras, geralmente é suficiente para fornecer vitaminas, micronutrientes e proteínas. Mas, como Ebi aponta, "tal dieta pode estar fora do alcance das populações pobres em todos os países".

Decisões diárias, enfatiza Myers, como a forma como aquecemos nossas casas, o que comemos, como nos movimentamos, o que escolhemos comprar, estão, na verdade, tornando nossos alimentos menos nutritivos e tendo um impacto sobre a saúde de outras populações e de gerações futuras.

"Precisamos entender que nossas ações estão colocando as pessoas mais vulneráveis do mundo em perigo", conclui.
Deutsche Welle

A eleição totêmica

O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo
Sigmund Freud, em Totem e Tabu
Imaginemos a condenação de um adorado líder nacional que sofreu um processo administrado com celeridade atípica, a toque de caixa. Imaginemos que esse homem forje uma oportunidade espetacular para discursar em público, momentos antes de se entregar aos que farão cumprir a sentença. De posse da palavra, diz que seu crime não está no mal que causou, pois não causou nenhum. Sua eloquência comove os presentes. Se sofrerá punição, assegura, só a sofrerá por ter feito o bem ao povo. Ele se vê como um revolucionário. Está seguro de que a História reconhecerá seu valor. Acusa os juízes de estarem a serviço de ordens espúrias e inconfessáveis. Adverte que a imprensa deixou de cumprir o seu papel de relatar os fatos, pois foi silenciada pelo poder. Avisa a seus carrascos que podem tentar, mas não conseguirão apagá-lo da vida nacional, pois ele não é mais um homem comum. Diz que suplantou a condição humana e atingiu outra dimensão.

Estamos falando, como o improvável leitor já há de ter notado, do francês Georges Jacques Danton (1759-1794). Em termos menos vagos, falamos aqui do personagem Danton tal como foi retratado no filme que leva seu nome, Danton, o Processo da Revolução, uma produção de 1983 que envolveu três países, França, Polônia e Alemanha, sob a direção do polonês Andrzej Wajda. Baseado em fatos e pronunciamentos registrados pelos historiadores, o filme reconstitui os dias em que o tribunal revolucionário em Paris condenou à guilhotina o exuberante orador e expoente maior da Revolução Francesa. Numa cena especialmente dramática, Danton se encontra no tribunal. Sabe que não terá escapatória. A farsa judicial é flagrante. Ele protesta e ganha a palavra. No grito. Reclama dos policiais que impediram um jornalista de tomar notas. Começa a falar.

“Por que é preciso me matar? Só eu posso responder. Devo morrer porque sou sincero. Devo morrer porque digo a verdade. Devo morrer porque assusto. Eis as razões que levam ao assassinato de um homem honesto”.

Como não adianta mais recorrer aos fatos, apela para o sobrenatural, como alguém que se visse transfigurado em mito: “Eu não desaparecerei. Não! Eu falo! E falarei até o fim! Pois sou imortal! Sou imortal, porque sou o povo! O povo está comigo!”.

À beira de perder o pescoço, Georges Danton inventou a própria imortalidade. Era o que lhe restava. Apesar da retórica triunfalista, faleceu no dia 5 de abril de 1794, aos 34 anos de idade. Não consta que depois de morto se tenha manifestado magicamente para conduzir os cidadãos franceses. Mesmo assim, naqueles dias, e por muitos anos, o Danton morto teve quase o mesmo encanto que o Danton vivo.

Palavras semelhantes se ouviram de Sócrates, no ano 399 antes de Cristo, quando, aos 70 anos de idade, foi condenado pela assembleia em Atenas a tomar cicuta. Prenunciou que a História reconheceria a injustiça que a Justiça da pólis armou contra ele. Talvez tivesse razão.

Muitos tentaram enveredar pela mesma oratória, às vezes com êxito e outras vezes, não. “A História me absolverá”, declarou um jovem Fidel Castro, em 1953, ao ser julgado e condenado pelo ataque contra os quartéis de La Moncada e Carlos Manuel de Cespedes, em Santiago de Cuba. Passados mais de 60 anos, a dúvida se agrava: absolverá mesmo?

Passemos agora ao Brasil. Há poucos meses Luiz Inácio Lula da Silva, prestes a se entregar às autoridades que o levariam ao cárcere, discursou às portas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Declarou que se tinha transformado numa “ideia”. Traduzindo: não era mais um ser humano comum. Naqueles dias, suas palavras foram comparadas à carta-testamento de Getúlio Vargas - outro que proclamou estar prestes a entrar para a História -, mas, aí, a analogia talvez não dê conta do que se passa. Por intuição ou aconselhamento, Lula filiou-se menos à tradição populista, embora não a dispense, e mais à tradição da política que almeja elevar-se à ordem das representações míticas.

O buraco, portanto, é mais acima. A exemplo de Danton, o ex-presidente falou como quem se sente maior do que a pena que lhe deram. Danton imaginava que sobreviveria à guilhotina. Lula profetizou que seu corpo político não caberia dentro de uma cela de cadeia e que, mesmo preso, subsistiria atuante.

Muito já se disse - e muito ainda se vai dizer - acerca dos mitos em geral. Seria ocioso e despropositado dissecar esse conceito aqui. Mas um dos traços desse conceito merece ser lembrado: trata-se da desconexão entre a inexistência material do mito e os efeitos reais, incontestáveis, que ele gera no mundo das pessoas de carne e osso. O mito inexiste e, não obstante, atua sobre a realidade. Vemos isso todos os dias nas religiões, na cultura, nas crenças populares e, para o bem e para o mal, vemos isso também na política.

Logo após a prisão de Lula, escrevi um pequeno artigo para o jornal O Globo (A Justiça obscura e sua tragédia, 25 de janeiro, pág. 10) em que afirmei: “Agora, o Lula condenado vai brilhar mais que o Lula candidato”. Acho que eu não estava de todo errado. Um político encarcerado, condenado em segunda instância, impedido de ser candidato segundo a legislação vigente, poderá receber os votos por meio de um símbolo que se ponha em seu lugar. Temos aí um candidato que não existe juridicamente - e que será votado por meio de outro que encarne a “ideia” Lula.

Bem sei que a palavra mito é meio arroz de festa, qualquer um a invoca, sem a menor cerimônia, até mesmo nas eleições em curso. Mas que diferença isso faz? Na nossa mitologia meio mequetrefe, meio rastaquera, o candidato que lidera as pesquisas, posto para fora do pleito por força da legalidade eleitoral (as bases legais da democracia se afunilam como o buraco de uma agulha), receberá votos mesmo assim. Teremos uma eleição totêmica.

Brasil precavido


Dinheiro, tem. Mas tudo comprometido

O próximo presidente vai gastar muito dinheiro – algo em torno de R$ 1,4 trilhão. Essa espantosa despesa consta da Lei de Diretrizes Orçamentárias, já aprovada pelo Congresso, e que será a base do projeto de orçamento federal para 2019 – o qual, aliás, será encaminhado amanhã ao Legislativo.

Olhando o dinheiro, muitos candidatos se encantam. E os candidatos liberais se encantam mais ainda quando verificam que a União dispõe de estatais e imóveis. Já pensaram? Vendem-se ativos, paga-se dívida e tome gastos sociais e investimentos.

Pura ilusão. O presidente vai mesmo gastar aquele trilhão e tanto, mas não vai decidir onde e como.

Começando pelo orçamento, conforme os parâmetros da LDO. A maior parcela vai obrigatoriamente para benefícios do INSS, nada menos que R$ 635 bilhões. Depois, vem a folha de salários e encargos do funcionalismo, com R$ 322 bilhões. Em seguida, a conta de despesas sociais, como o benefício de prestação continuada. Mais R$ 225 bilhões. Somando essas três rubricas, já se foi a parcela de 83,5% do gasto total.

Há ainda despesas que podem ser remanejadas aqui e ali, mas têm que ser feitas, por determinação constitucional, em educação e saúde. Isso leva mais R$ 135 bilhões.

Tudo somado e subtraído, daquela espantosa cifra inicial sobra para o próximo presidente decidir onde gastar a mixaria de R$ 98 bilhões, algo como 7% da despesa total. E para todo o funcionamento da máquina e investimentos.

É verdade, que na parte das receitas, tem um dinheiro bom – R$ 303 bilhões – que são renúncias fiscais, ou dispensa do pagamento de impostos para diversos setores e empresas. É tentador: cancelem-se algumas isenções e aparecem mais alguns bilhões.

Verdade, mas as isenções não caíram do céu. Foram colocadas no orçamento por lobbies políticos e econômicos bastante poderosos, que continuam todos por aí. Não será fácil eliminá-las, tudo dependendo de negociações no Congresso. Dirão: o presidente recém-eleito vem com muita força. Mas os deputados e senadores também estarão carregados de votos novos.

Deve-se notar ainda que todas as despesas previstas para 2019 na LDO registram aumentos em relação a este ano. Há, por exemplo, reajustes salariais para diversas categorias, inclusive para juízes. A conta de aposentadorias continua subindo.

Há candidatos falando em introduzir o orçamento de base zero. Significa eliminar todas as vinculações e regras obrigatórias. Bacana, mas depende de um amplo conjunto de emendas constitucionais e centenas de leis.

E o dinheiro das privatizações e imóveis? De fato, há estatais que valem dinheiro, como a Petrobras e o Banco do Brasil, não por acaso aquelas cuja venda tem mais restrição política, ideológica e de poderosas corporações.

E os imóveis? No balanço patrimonial da União aparece uma fortuna, pouco mais de R$ 1 trilhão, com a observação de que muitos imóveis podem estar subavaliados.

Todo governante novo – por novo entendendo-se aquele que nunca esteve no poder federal – começa com essa expectativa, de fazer caixa com a alienação de imóveis.

Mas quando se olha a coisa no detalhe, o quadro muda bastante. Nesse trilhão e tanto, encontram-se: parques, reservas, quarteis das Forças Armadas, prédios de repartições e escolas, os tais palácios, residências, como o Alvorada ou o Jaburu, e até estradas. É verdade que se poderia vender a luxuosa residência do vice-presidente, o Jaburu, já que o vice não faz nada, a não ser política ou politicagem. Mas quem o compraria? Daria um hotel? Sem condição.

Cita-se muito como um bom ativo o velho prédio do Ministério da Fazenda, no centro do Rio. De novo, quem compraria um edifício deteriorado, precisando de reformas, num momento em que sobram prédios comerciais?

Todos admitem que há problemas nas contas públicas. Já é um avanço. O próximo passo é admitir que a crise fiscal é muito grave, urgente e, pois, sem soluções simples. Há dois pontos aqui: primeiro, o candidato entender o tamanho da encrenca; segundo, mostrar isso ao eleitorado e convencê-lo que não há solução fácil.

Não se respeita sem-vergonha

Quando os que comandam perdem a vergonha, os que obedecem perdem o respeito
Georg Lichtenberg

Temer abre cofres e aperta o botão de 'dane-se'

Ao assumir o trono, Temer prometia tirar as contas públicas do vermelho. Falava em “recolocar o país nos trilhos”. A quatro meses do fim do mandato, comanda um trem fantasma. Entregará ao sucessor, entre outras almas penadas, uma cratera fiscal de R$ 139 bilhões para 2019.

Com os cofres no osso, Temer desistiu de congelar os reajustes salariais do funcionalismo. Pior: aceitou incluir no Orçamento do ano que vem o aumento dos contracheques do Judiciário.


Caótico, o governo Temer promoveu, nas pegadas do impeachment de Dilma Rousseff, uma farra salarial. Numa madrugada de junho de 2016, sob aplausos do Planalto, a Câmara aprovou 14 projetos com aumentos para 38 carreiras de Estado. Dizia-se na época que os mimos —mais de R$ 50 bilhões até 2019— tinham sido negociados por Dilma e já estavam computados no rombo fiscal.

A equipe econômica tentava agora levar ao freezer o pedaço do reajuste dos servidores previsto para o ano que vem. Coisa de R$ 6,9 bilhões. Temer parecia concordar. Mas decidiu tratar uma verba pública inexistente como se fosse dinheiro grátis. Liberou os reajustes sob o argumento de que cabe ao sucessor evitar o descarrilamento do trem fantasma. Michel Temer apertou o botão de “dane-se”.

A crise por que passa o país está provocando medo aos brasileiros

Jamais perderei a esperança em nosso país. Hoje, porém, como jornalista ou como advogado (ou cultor respeitoso do direito nas horas vagas) e, mais que tudo, como admirador, desde muito jovem, da ciência (e da atividade) política, tenho medo só de pensar no que possa acontecer a todos nós depois das eleições gerais no próximo mês de outubro. Corremos o risco de perder uma oportunidade de ouro para mudanças profundas em nossa máquina estatal. A crise é grave e angustiante. Após a conquista do real e do respiro que lhe deu parte do primeiro governo Lula, o país piorou muito. Sinto que a bomba – política, econômica e social –, que vem sendo armada e está prestes a explodir sobre nós, se o país não for socorrido com desprendimento e competência (um milagre?), poderá nos levar a uma situação ainda pior.

Nossos políticos, em sua maioria, esqueceram-se de que política, além de arte, é ciência. É meio ou ponte indispensável à consolidação do regime democrático. A polarização irracional entre duas correntes radicais – uma à esquerda, outra à direta –, já admitida por alguns analistas, submete o país, que é muito maior do que qualquer ideologia, a terrível humilhação. O messianismo que envolve a candidatura do ex-presidente Lula, que, no final, fatalmente, será substituído pelo ex-prefeito Fernando Haddad, e o evidente voluntarismo que caracteriza a candidatura do ex-capitão e deputado Jair Bolsonaro, cujo eleitorado, em grande parte, talvez seja mais perigoso do que o próprio candidato, servirão, apenas, para aprofundar nosso caos político.

As sabatinas a que foram submetidos os candidatos a presidente, já tarde da noite, no programa “Eleições”, da TV Globo, pelo menos aos que as assistiram, nos encheram de dúvidas e mais dúvidas.

Entre curioso, ansioso e atento, assisti, também, no mesmo programa (ambos, aliás, coordenados pela jornalista Míriam Leitão), às sabatinas feitas aos assessores econômicos Guilherme Melo (o mais jovem), do PT; Mauro Benevides, do PDT; Pérsio Arida, do PSDB; Paulo Guedes, do PSL; e Eduardo Giannetti da Fonseca, da Rede. Todos eles são profissionais competentes e muito bem-formados.

Todos eles conhecem nossa incerteza fiscal. O Orçamento de 2019, que estará no Congresso nesta semana, prevê um déficit de R$ 139 bilhões com despesas de pessoal e da Previdência. O representante de Bolsonaro não tem medo disso e fala em liquidá-lo em um ano; os de Alckmin, Ciro e Marina, em dois; o do PT, pelo que entendi, deseja voltar à “nova matriz econômica” de Dilma Rousseff, que quebrou o país. Nenhum deles, todavia, sabe como alcançar tal proeza.

Uma coisa é certa, leitor: a democracia está em perigo, e as eleições deste ano serão diferentes de todas as outras. O Supremo Tribunal Federal (STF), outrora guardião e esperança da nação brasileira, enfrenta críticas severas, algumas procedentes. Sobre os Poderes Executivos e Legislativos (estaduais e municipais), só há o que lamentar. A desmoralização é maior ainda. E o Poder Judiciário, hein?!

Eis, então, uma ideia doida, mas talvez salvadora: por que os assessores dos candidatos, que divergem pouco acerca da crise, não se unem para definir um só projeto para ser posto em prática pelo próximo presidente, seja ele quem for? Não seria um bom caminho? Não estaria na hora de se pensar, até mesmo como legítima defesa, no país como um todo? Por onde andam, afinal, os construtores de pontes? Ou estarei doido?
Acílio Lara Resende

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Pensamento do Dia

Sebastien Thibault

Bem que vocês tentaram

Dó que eu tenho do ônibus que se esforça em ser desagradável. Faz o possível, capricha no barulho, na cadeira quebrada, no solavanco em cada troca de marcha, até faz entrar um cidadão que vende aos berros umas capinhas para celular bem mixurucas. Passa no vermelho e quase atropela o cidadão ali que cometia (o sonso) a imprudência de atravessar na faixa de pedestre.

Posso imaginar o desânimo do político que desviou a verba do hospital. Tanta dedicação em nos abater, tirando o tão pouco de quem não tem nada. “Ah, com essa foto da minha turma farreando em Paris com dinheiro público, ao lado daquela do velhinho na maca no corredor do hospital, eu amargo o dia de qualquer um.”

Toda manhã, o flanelinha acorda com fé e determinação. Quem não se animaria com a perspectiva de irritar uns vinte, pedindo uma grana para tomar conta do carro em uma rua pública. Não foi fácil atingir o exato ponto entre a atitude simpática, o sorrisinho pretensamente inocente, enquanto deixa claro ao freguês que, se não pagar adiantado, ele que não se responsabiliza por um arranhão na lataria.

O sujeito que decide as manchetes do jornal, então, está ciente de sua responsabilidade: deixar as maiores letras para as piores notícias. Ocupar os espaços com o que aconteceu de mais acusador à espécie humana. É preciso mostrar ao cidadão desde cedo. Se este não lê jornal, pôr na rádio, na televisão, espalhar nos vagões do metrô, instruir taxistas e o atendente da padaria.

Tanto que o radar se esmera em multar escondido, que a luz insiste em faltar, a tampa se recusa a abrir, com que dedicação o pastor grita na rádio, e no entanto o cidadão chega em casa e algumas contas a pagar atrasadas ainda tentam heroicamente um último tapa na cara.

A Voz do Brasil. O pé torcido no buraco da rua. A rúcula no dente. Os siriris que descem da luz do poste para se enfiar pela gola da camisa. O desprezo da moça. O telefone que lhe tirou do banho e era engano. O futebolzinho do Santos. Belas tentativas.

Aprecio o esforço de todos. E lamento, mesmo, de coração, se depois de tanto coice eu abra a porta e dê de cara com Maria e ela me abra o sorriso mais doce e limpo do mundo. Que as impressionantes tentativas de estragar meu dia, plim, sumam, evaporem, feito o encontro da fome com a banana, da brasa com a chuva, da esperança com o tapa, da bolha com o alfinete.

O sorriso de Maria. Com essa eles não contavam.
Cássio Zanatta

Eleição confirma decadência

O sucesso de Bolsonaro é proporcional à decadência do sistema político. A dúvida é se o candidato conseguirá amplificar o discurso para além do cercadinho em que está confinado o seu rebanho.

(...) O diabo é que as pesquisas informam que o capitão está bem posto nos nichos mais escolarizados e endinheirados do eleitorado. Nesse universo, há muita gente que está tão ocupada fazendo a história que não consegue compreendê-la. Há pessoas que querem virar a página de qualquer jeito. Nem que seja para trás. O cardápio de candidatos estimula a autoflagelação

Companheiros golpistas

Para alguns candidatos será constrangedor e difícil explicar. Para milhões de eleitores vai ser quase impossível entender as próximas cenas da campanha eleitoral.

O primeiro capítulo vai ao ar na sexta-feira, quando começa propaganda política no rádio e na televisão. Nesse dia, por coincidência, se completam dois anos do último impeachment (em três décadas de democracia, o país já derrubou metade dos quatro presidentes que chegaram ao Planalto pelo voto direto).

Em vários estados o eleitor será surpreendido com o desfile do PT de Dilma e Lula abraçado aos “golpistas” do MDB de Michel Temer. Foram parceiros no poder por 12 anos e sete meses, até o impeachment de Dilma.


Atravessaram os últimos 24 meses em histeria na Câmara e no Senado. Todo dia, gastavam hora e meia nos plenários injuriando-se como “ladrões” e “corruptos” — não necessariamente nessa ordem. Houve parlamentar petista que fez 350 discursos de ataques aos “golpistas”, dois terços do Legislativo.

Agora, o PT está de novo entrelaçado ao MDB de Temer, ao PR de Valdemar Costa Neto, ao PP de Ciro Nogueira, ao PTB de Roberto Jefferson, ao PSD de Gilberto Kassab, ao SD de Paulinho da Força, ao DEM de Rodrigo Maia e ao PSB dos Arraes. Por milagre eleitoral, todos voltaram a ser bons companheiros.

Pelos antigos sócios, em nove estados os petistas renegaram o PCdoB, seu mais fiel e permanente aliado. Esse partido precisa de bancada em nove estados (ou 1,5% dos votos válidos no país) para se manter no mapa político.

Foi preciso ordem judicial para obrigar o PT do Amazonas a não deixar desamparada a senadora comunista Vanessa Graziottin (PCdoB), isolada na batalha pela reeleição. Em Pernambuco, aniquilou uma candidatura própria (Marília Arraes) para apoiar a reeleição de um “golpista”, o governador do PSB em Pernambuco (Paulo Câmara).

Razão tinha o poeta Drummond, quando dizia que uma eleição é feita para corrigir o erro do pleito anterior, mesmo que o agrave.

A dignidade nacional frente à ideologia do conflito

Como entender esse sentimento de inferioridade, de desapreço em relação a nós mesmos, sendo herdeiros de uma história e de uma cultura tão ricas? Qual a causa desse rastejar em culpas e remorsos, como se ser brasileiro equivalesse a viver num estuário de vilanias e maldições?

A visão negativa a que me refiro iniciou com a propaganda republicana. No entanto, nada fez tanto estrago à nação quanto o discurso esquerdista ao suscitar conflitos sem os quais sua ação política entra em coma.

É como se a história do Brasil fosse uma reportagem de horrores que começa com genocídio indígena e escravidão. A partir disso não tem mais cura nem conserto. Ora, qual país não registra páginas escuras em seus anais? Qual não viveu ou criou situações assim? Não conheço outro, contudo, que as traga de modo permanente à luz para repudiar suas origens desde o Descobrimento, injuriar a identidade nacional e desprezar a própria dignidade. Desconheço estupidez análoga em outro lugar planeta!

São ideias difundidas por supostos estudiosos dos temas nacionais que se aborrecem com o fato de nosso povoamento haver transcorrido no período histórico correspondente ao absolutismo monárquico. Deprime-os a maldição de que o mercantilismo fosse o sistema econômico então vigente. Incomoda-os saber que no século XVI foi levado o último toco de pau-brasil, sem o qual fomos obrigados a sobreviver até hoje. Atribuem nossas dificuldades financeiras ao ouro arrancado de nossas entranhas (uma exploração privada, sobre a qual a Coroa cobrava 20% de imposto) e que gerou desenvolvimento econômico e social em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

De fato, a Coroa portuguesa entre os séculos XVI e XIX não regia uma economia de livre mercado, não era uma monarquia constitucional, nem uma “democracia popular”, nem era “politicamente correta”! Ora pombas, que coisa mais anacrônica!

Prefiro outro modo de ver a história. Prefiro valorizar a riqueza cultural de que somos herdeiros, enriquecida pelo aporte das varias etnias que aqui se agregaram. Nessa herança, valorizo o idioma que falamos. Ele resulta de laboriosa construção no tempo e lança raízes na Península Ibérica desde que, vitorioso na 3ª Guerra Púnica, o Império Romano conquistou a região e criou a província Lusitânia. Não fosse isso, falaríamos o idioma púnico de Cartago, ou o germânico dos suevos, ou o gótico dos visigodos. A história do nosso belo idioma também é nossa e tem tudo a ver com a cultura e a identidade nacional.

A religião é parte integrante da cultura dos povos em todas as civilizações. Não há povo sem religião. Parte valiosa de nossa identidade, então, está fornecida pelo cristianismo aqui aportado de múltiplas formas pelos nossos povoadores. É igualmente longo, procede de Roma e vive momentos decisivos na Ibéria do século VI, o processo de conversão daqueles povos ao cristianismo. Também é nossa essa história.

A ideologia do conflito, revolucionária, precisa destruir a base cultural das sociedades ocidentais cristãs. Tanto quanto Marx viu a religião como ópio do povo, seus seguidores percebem que precisam destruir a cultura do Ocidente. Para isso trabalhou a Escola de Frankfurt e para isso opera parcela expressiva do mundo acadêmico brasileiro.

Como parte dessa estratégia perversa, enquanto outros povos se orgulham de sua nacionalidade, cultuam seus grandes vultos, enfeitam suas cidades com monumentos que os exibem à memória e reverência de sucessivas gerações, aqui eles são escondidos. Quantos monumentos a Bonifácio? Frei Caneca? Nabuco? D. Pedro II? Isabel? Mauá? Rio Branco? Caxias? Patrocínio? Rui? Quantos estudantes brasileiros conseguiriam escrever cinco linhas sobre qualquer deles?

Se não vemos dignidade em nossa história, dificilmente a veremos em nós e muito mais dificilmente a veremos nos outros. Seremos grotescos pichadores de nós mesmos. Tenho orgulho das minhas raízes como brasileiro. É a política do tempo presente que me constrange.
Percival Puggina

Paisagem brasileira

Lagoa Rodrigo de Freitas (1939), Galdino Gutmann Bicho

Não falo mais nada

Bem mesmo fez um amigo meu, grande articulista e cronista. Tirou férias. Largou a caneta, não está batucando nas pretinhas, saiu fora, só volta depois das eleições e isso só depois do segundo turno. Ele tem lá suas razões pessoais, mas na geral a coisa está difícil. Não quero brigar com ninguém – até porque, acreditem, nenhum desses que nos disputam vale qualquer aborrecimento

Como vocês estão se virando nesse tempo estranho que estamos passando? Como têm mantido a paz com quem se relacionam? Tenho ficado bem quietinha aqui no meu canto. Redes sociais, leio tudo, tenho conhecidos e amigos do mais amplo espectro da política, que nunca fui de misturar opinião política e amizade por ser uma combinação explosiva.

Não opino. Mas leio. E nunca li tantas bobagens, conspirações, mentiras, argumentos vergonhosos, comentários vis, absurdos, como agora, vindo de todos os lados. Nem naquele tempo. Mas na época não tinha tantas redes sociais, tanto entrelaçamento. Nem tanto ódio entre as pessoas. Estávamos praticamente todos no mesmo campo de batalha.

Eu temia isso, e o que eu temia aconteceu. Outro dia sai e encontrei queridos amigos, verdadeiramente, pessoas que conheço das priscas eras quando também eu acreditei em certos líderes que queriam mudar o país, melhorar as desigualdades, proteger os trabalhadores, que juravam ética e luta pelo bem-estar dos cidadãos num país rico, orgulhoso, em crescimento, e principalmente em sintonia com o mundo cada vez mais globalizado. O sonho. O Éden. 

(Só para esclarecer: participei da fundação do PT, de onde me mandei logo que os primeiros sinais de desvio apareceram e não demoraram muito, fui da Anistia, participei de movimento estudantil – enfim, minha ficha na vida e no DOPS é grande: sou do Bem! Mas não sou do A nem do B, e acho mesmo que não estamos com sorte para escolher dessa lista.)


Tudo ia correndo bem na conversa até que as quatro letrinhas apareceram: L-u-l-a. Do nada, ouvi pasma uma declaração romântica, apaixonada, cega, religiosa, de uma fé absurda, seja nele, seja aliás em qualquer outro ser humano, já que todos viemos ao mundo com fortes defeitos de fábrica. Meus olhos que já são grandes aumentaram. Minha boca secou. E agora? Minha opinião seria a última coisa que gostariam de ouvir naquele momento e de nada mudaria – só criaria uma tensão desnecessária. Se o povo não mudou até agora, após dois processos gigantescos e rumorosos, mensalão, lava Jato, julgado e rejulgado, listas de petistas presos ou em vias de, gravações, marcas de batom em malas, bolsinhas, cuecas e calcinhas não vou ser eu a reorientá-los, modestamente falando. Nem quero, não adiantaria mesmo.

Me fiz de morta, de Cleópatra, e sai andando, como se nada tivesse escutado. Feliz porque acho que consegui controlar as emoções do meu rosto, que transparecem com muita facilidade.

Mas descobri o que acontece: ficam tanto tempo caçando tucanos, essa espécie já tão démodé, que não veem que o inimigo – de todos, o pior, antiquado e inadequado, o mais perigoso, velho de ideias e ações, ventríloquo de milico – é o lado para o qual deviam ser apontadas todas as forças contrárias. Obrigação de todos nós, que estudamos; é um dever que temos.

Só que não quero magoar e perder amigos. Principalmente os que tendem para o lado esquerdo do coração; os que acham que o Bolsonaro é solução já não faço tanta questão de manter, se vierem para cima de mim – aliás, tenho tido de decepar uns e outros. Desculpem, mas a ignorância mata. Já matou e feriu muita gente minha.

Para terminar: eleições passam. Mas pelo menos em minha memória ficarão bem claras a índole e a lista dos que para se sentirem em cima da carne seca comemoram a morte de pessoas e empresas, jornalistas que atacam a… imprensa! especialmente porque nela não têm ou tiveram lugar, e os que fazem de conta que não estão ganhando nada para passar o dia inteirinho no bombardeio.

Marli Gonçalves