Toda manhã, o flanelinha acorda com fé e determinação. Quem não se animaria com a perspectiva de irritar uns vinte, pedindo uma grana para tomar conta do carro em uma rua pública. Não foi fácil atingir o exato ponto entre a atitude simpática, o sorrisinho pretensamente inocente, enquanto deixa claro ao freguês que, se não pagar adiantado, ele que não se responsabiliza por um arranhão na lataria.
O sujeito que decide as manchetes do jornal, então, está ciente de sua responsabilidade: deixar as maiores letras para as piores notícias. Ocupar os espaços com o que aconteceu de mais acusador à espécie humana. É preciso mostrar ao cidadão desde cedo. Se este não lê jornal, pôr na rádio, na televisão, espalhar nos vagões do metrô, instruir taxistas e o atendente da padaria.
Tanto que o radar se esmera em multar escondido, que a luz insiste em faltar, a tampa se recusa a abrir, com que dedicação o pastor grita na rádio, e no entanto o cidadão chega em casa e algumas contas a pagar atrasadas ainda tentam heroicamente um último tapa na cara.
A Voz do Brasil. O pé torcido no buraco da rua. A rúcula no dente. Os siriris que descem da luz do poste para se enfiar pela gola da camisa. O desprezo da moça. O telefone que lhe tirou do banho e era engano. O futebolzinho do Santos. Belas tentativas.
Aprecio o esforço de todos. E lamento, mesmo, de coração, se depois de tanto coice eu abra a porta e dê de cara com Maria e ela me abra o sorriso mais doce e limpo do mundo. Que as impressionantes tentativas de estragar meu dia, plim, sumam, evaporem, feito o encontro da fome com a banana, da brasa com a chuva, da esperança com o tapa, da bolha com o alfinete.
O sorriso de Maria. Com essa eles não contavam.
Cássio Zanatta
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