quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Bem que vocês tentaram

Dó que eu tenho do ônibus que se esforça em ser desagradável. Faz o possível, capricha no barulho, na cadeira quebrada, no solavanco em cada troca de marcha, até faz entrar um cidadão que vende aos berros umas capinhas para celular bem mixurucas. Passa no vermelho e quase atropela o cidadão ali que cometia (o sonso) a imprudência de atravessar na faixa de pedestre.

Posso imaginar o desânimo do político que desviou a verba do hospital. Tanta dedicação em nos abater, tirando o tão pouco de quem não tem nada. “Ah, com essa foto da minha turma farreando em Paris com dinheiro público, ao lado daquela do velhinho na maca no corredor do hospital, eu amargo o dia de qualquer um.”

Toda manhã, o flanelinha acorda com fé e determinação. Quem não se animaria com a perspectiva de irritar uns vinte, pedindo uma grana para tomar conta do carro em uma rua pública. Não foi fácil atingir o exato ponto entre a atitude simpática, o sorrisinho pretensamente inocente, enquanto deixa claro ao freguês que, se não pagar adiantado, ele que não se responsabiliza por um arranhão na lataria.

O sujeito que decide as manchetes do jornal, então, está ciente de sua responsabilidade: deixar as maiores letras para as piores notícias. Ocupar os espaços com o que aconteceu de mais acusador à espécie humana. É preciso mostrar ao cidadão desde cedo. Se este não lê jornal, pôr na rádio, na televisão, espalhar nos vagões do metrô, instruir taxistas e o atendente da padaria.

Tanto que o radar se esmera em multar escondido, que a luz insiste em faltar, a tampa se recusa a abrir, com que dedicação o pastor grita na rádio, e no entanto o cidadão chega em casa e algumas contas a pagar atrasadas ainda tentam heroicamente um último tapa na cara.

A Voz do Brasil. O pé torcido no buraco da rua. A rúcula no dente. Os siriris que descem da luz do poste para se enfiar pela gola da camisa. O desprezo da moça. O telefone que lhe tirou do banho e era engano. O futebolzinho do Santos. Belas tentativas.

Aprecio o esforço de todos. E lamento, mesmo, de coração, se depois de tanto coice eu abra a porta e dê de cara com Maria e ela me abra o sorriso mais doce e limpo do mundo. Que as impressionantes tentativas de estragar meu dia, plim, sumam, evaporem, feito o encontro da fome com a banana, da brasa com a chuva, da esperança com o tapa, da bolha com o alfinete.

O sorriso de Maria. Com essa eles não contavam.
Cássio Zanatta

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