domingo, 8 de julho de 2018

Gente fora do mapa


O que aconteceu

Dia desses fiquei a meditar longamente acerca do que minha geração, quando ainda em seu alvorecer, viu e ouviu sobre o nosso país.

Comecei lembrando a inauguração da hidrelétrica de Itaipu. Não poucas vezes ouvi, naqueles dias, pronunciamentos inflamados no sentido de que tratava-se de um “elefante branco”, uma “obra faraônica”. Em sala de aula, um meu professor nos ensinou tratar-se de um absurdo, pois ele tinha em mãos cálculos sérios garantindo que o Brasil não teria problemas com energia para os próximos dois séculos. Vendo, hoje, o meu país importando energia elétrica do Uruguai e da Argentina, e bem assim sofrendo “apagões” constantes, fico a me perguntar: o que aconteceu?



Fomos testemunhas da aurora do álcool combustível – e bem assim da inumerável quantidade de críticas a ele dirigidas. Diante de um projeto pioneiro a nível mundial, foi o próprio povo brasileiro, instigado por alguns, a desacreditá-lo. Contemplando, hoje, o meu país importando etanol dos EUA, fico a me perguntar: o que aconteceu?

Recordo-me, enquanto fascinado pela tecnologia, das tantas iniciativas buscando o desenvolvimento de computadores genuinamente nacionais – e bem assim daqueles que as sabotaram, sob o argumento de que era melhor importá-los a preços módicos. Mirando o meu país, em pleno século XXI ainda um mero “montador” de prosaicas calculadoras de bolso, incapaz de fabricar um único “chip” que seja, fico a me perguntar: o que aconteceu?

Guardo na memória os tantos empreendimentos que buscavam o desenvolver de uma indústria automobilística genuinamente nacional – todos eles desmoralizados pelos censores de plantão, até que fracassassem. Assistindo ao desfile de veículos e caminhões importados ou produzidos por empresas transnacionais, percebo que um país de dimensões continentais optou por construir rodovias e não desenvolver sua indústria automobilística! E fico a me perguntar: o que aconteceu?

Envelheci. E vi os Salvadores da Pátria a trombetearem que o Pré-Sal seria comercialmente inviável ainda durante décadas – havia, pois, que se entregá-lo a estrangeiros. Vendo que, tão logo entregue, passou a produzir petróleo como nunca, fico a me perguntar: o que aconteceu?

Contemplo, com a alma em lágrimas, a bandeira do meu pobre país. E fico a exclamar: o que aconteceu?

Pedro Valls Feu Rosa

Nem Cristo assim sofreu...



Chega a dar pena as coisas que ele (Neymar) sofre
Edu Gaspar coordenador da seleção brasileira

Triste sina do país com suas sete Constituições

Existe outro país que tenha vivido sob a égide de sete Constituições em apenas 194 anos? Essa proeza distingue o Brasil no cenário internacional, pois sua primeira Carta Magna foi outorgada em 1824, seguida de outras, após a Proclamação da República, em 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, sem resolver a desigualdade social, os desequilíbrios regionais, a dependência tecnológica, o analfabetismo e o mandonismo oligárquico. Apresentamos ainda vergonhosos índices de qualidade de vida, mesmo quando se toma a América Latina como referência.

Houve muitas crises políticas e duas ditaduras ao longo do século XX; portanto, queríamos reordenamento institucional quando elegemos, no dia 15 de novembro de 1986, 49 senadores e 487 deputados federais com poderes de constituintes, junto às atribuições tradicionais de legisladores. Tomaram posse no dia 1º de fevereiro de 1987, formando logo a Comissão de Sistematização da Constituição, sob a liderança de Ulysses Guimarães, tendo como relator Bernardo Cabral e sub-relator, Nelson Jobim.


O presidente José Sarney tinha nomeado por decreto, no dia 18 de julho de 1985, a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, formada por 50 juristas e intelectuais, sob a liderança de Affonso Arinos, para elaborar um anteprojeto. Ele não foi acatado pelos constituintes, mas inspirou muitas propostas apresentadas por comissões e subcomissões ao plenário.

Não podíamos continuar com a Carta de 1967 e os resíduos do AI-5, mas o momento não era favorável para reestruturar o Estado brasileiro, porque o Plano Cruzado esvaía-se, incrementando a inflação; o país declarava moratória, parlamentares de esquerda impunham seus ideais, e o presidente Sarney negociava tudo, distribuindo a mancheias canais de TV e rádio, além de outros favores, alheio à austeridade fiscal. Os conchavos corriam em todos os sentidos. Estávamos inebriados da promessa de consolidação do poder civil, cancelamento definitivo da censura nas comunicações, eleição direta para presidente e garantias fundamentais dos indivíduos e da sociedade.

O resultado foi um texto longo, detalhista e recheado de diferentes desejos, permitindo, posteriormente, muitos cruzamentos de filigranas para interpretação subjetiva quanto à constitucionalidade de novas leis e dos julgamentos de ilicitude de agentes públicos ou qualquer cidadão. A promulgação da Carta ocorreu no dia 5 de outubro de 1988, com determinação de que ela seria revista cinco anos depois. O empenho não se concretizou na medida necessária, diante da hiperinflação alimentada por mais dois inglórios planos econômicos, em 1989 e 1990. Houve também alteração da geopolítica com a queda do Muro de Berlim e fragmentação do bloco socialista; o impeachment do presidente Fernando Collor; a morte do deputado Ulysses Guimarães, em 1992; e a confirmação do presidencialismo com o plebiscito de 21 de abril de 1993.

Predominaram, depois disso, as emendas constitucionais, que têm fomentado a instabilidade institucional de uma nação sofrida, atrasada e sem rumo.

Haverá novo presidente, mas de que República?

O naufrágio do Titanic, dizem os otimistas, seria hoje evitável com um bom radar. Para aceitar essa afirmação é necessário pressupor um comandante, um piloto e vários especialistas ocupados, de forma organizada e eficiente, com suas funções. Como esse pressuposto nem sempre é realista, a insegurança envolve mais que a possível presença de um iceberg à frente e, nos piores casos, de nevoeiro. É esse o caso do Brasil, neste momento. Fala-se muito do cenário enevoado e da incerteza quanto à orientação do próximo presidente. O jogo eleitoral continua indefinido, as propostas são obscuras e as poucas indicações conhecidas são, em boa parte, assustadoras. Incerteza política é uma referência quase inevitável quando se discute como ficarão a partir de 2019 as finanças públicas, a pauta de reformas, a inflação, as políticas de câmbio e de juros e as condições de crescimento econômico. Também as perspectivas de prazo mais curto são obscuras. A agenda de reformas está empacada e o Congresso pouco deverá produzir neste semestre, mas nem a execução orçamentária deste ano é previsível. Quem pode hoje apostar, por exemplo, em qualquer receita derivada de concessões e privatizações? Mas o detalhe mais perigosamente obscuro é outro. Antes do fim do ano os brasileiros elegerão um novo presidente da República - mas de que República? Quais são de fato e como operam as suas instituições e como se exercem os poderes do Estado?

A tão citada insegurança jurídica, apontada como um dos entraves ao investimento produtivo, à eficiência e ao crescimento econômico do Brasil, está vinculada a essa questão. Já não se trata só da incerteza quanto à aplicação das normas ou da mudança frequente de regras. O quadro piorou e hoje é difícil saber quem decide sobre isto ou aquilo.

Segundo a Constituição federal, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Na concepção original, esses Poderes são atributos e funções do Estado, formas de manifestação de sua soberania. Essas funções foram divididas, na modernidade, entre órgãos especializados e complementares. Não se pode pensar a independência sem levar em conta a exigência de harmonia, embora esse detalhe seja frequentemente esquecido no Brasil. Nos Estados Unidos fala-se normalmente em “ramos do governo” (branches of government). Isso expressa de modo mais claro a ideia de complementaridade.

No Brasil há pelo menos duas distorções desse modelo. A noção de independência sobrepõe-se às de harmonia e de complementaridade. Só há um Tesouro Nacional, fonte de recursos para os Três Poderes. Mas parlamentares e chefes do Judiciário tendem a agir como se o Executivo fosse o único responsável pela saúde financeira do Estado. Despesas são reivindicadas e aprovadas por lei sem consideração de seus efeitos sobre o balanço fiscal. Projetos enviados pelo Executivo são distorcidos para atender a interesses particulares de congressistas ou de sua clientela, como ocorreu com as últimas propostas de refinanciamento de dívidas tributárias (Refis) ou com a tentativa de reoneração da folha de salários de cinco dezenas de setores.

Uma distorção muito mais grave é a crescente desorganização institucional. Como se decidem o rumo e a velocidade do navio? Quem resolve cada detalhe da navegação? Uma confusão desse tipo bastaria, provavelmente, para levar a um desastre, mesmo com um radar. Houve negligência no Titanic, porque a tripulação havia recebido alertas de outros navios sobre icebergs. Mas pelo menos a divisão de funções era clara.

No Brasil, nem o rumo do navio está bem definido, nem se sabe com segurança quem toma decisões sobre grandes temas. No primeiro dos 42 documentos com propostas entregues aos candidatos, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) chama a atenção para problemas de insegurança jurídica e governança.

Segundo o texto, “a insegurança origina-se em ações dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e dos órgãos de controle”. É “produto do processo de elaboração de leis, alterações, execuções, controles e interpretações”. Mencionam-se também “o crescente desequilíbrio na efetivação do princípio da independência e harmonia entre os poderes”.

A quem cabe definir as políticas de investimento e desinvestimento de uma estatal de capital aberto, como a Petrobrás, com acionistas dentro e fora do Brasil? São decisões típicas de negócios, mas no Brasil o assunto pode ficar na dependência do Judiciário. Como se definem fatores estratégicos para o Estado e para o desenvolvimento? O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, publicou no fim de junho um artigo sobre soberania e sobre o risco de privatização de “ativos estratégicos”. Alguma atenção à História - política, militar e econômica - ajuda a perceber como evoluem as noções de fatores estratégicos. Estará certo o presidente Donald Trump ao proteger comercialmente a siderurgia em nome da segurança? A venda de refinarias pela Petrobrás porá em risco a soberania? Além disso, tem sentido discutir esses temas com critérios da década de 1950?

Mesmo se o ministro Lewandowski tivesse algo contemporâneo e relevante a dizer sobre esses assuntos, ainda caberia perguntar se um membro de uma Corte Suprema deve interferir no debate sobre estratégia econômica. Terão as suas convicções algum peso na forma de interpretar a lei?

Juízes, assim como procuradores, são quase sempre, nas democracias mais consolidadas, figuras discretas e raramente envolvidas em debates políticos. Legisladores, nesses países, costumam dar alguma atenção às condições financeiras do Estado. O Executivo dificilmente inventa de um dia para outro aberrações como o cartel do frete. Com alguma ordem institucional, o navio funciona de modo mais previsível. Segurança institucional pode ser apenas uma base para o jogo, mas é indispensável.
Rolf Kuntz