domingo, 8 de julho de 2018

Haverá novo presidente, mas de que República?

O naufrágio do Titanic, dizem os otimistas, seria hoje evitável com um bom radar. Para aceitar essa afirmação é necessário pressupor um comandante, um piloto e vários especialistas ocupados, de forma organizada e eficiente, com suas funções. Como esse pressuposto nem sempre é realista, a insegurança envolve mais que a possível presença de um iceberg à frente e, nos piores casos, de nevoeiro. É esse o caso do Brasil, neste momento. Fala-se muito do cenário enevoado e da incerteza quanto à orientação do próximo presidente. O jogo eleitoral continua indefinido, as propostas são obscuras e as poucas indicações conhecidas são, em boa parte, assustadoras. Incerteza política é uma referência quase inevitável quando se discute como ficarão a partir de 2019 as finanças públicas, a pauta de reformas, a inflação, as políticas de câmbio e de juros e as condições de crescimento econômico. Também as perspectivas de prazo mais curto são obscuras. A agenda de reformas está empacada e o Congresso pouco deverá produzir neste semestre, mas nem a execução orçamentária deste ano é previsível. Quem pode hoje apostar, por exemplo, em qualquer receita derivada de concessões e privatizações? Mas o detalhe mais perigosamente obscuro é outro. Antes do fim do ano os brasileiros elegerão um novo presidente da República - mas de que República? Quais são de fato e como operam as suas instituições e como se exercem os poderes do Estado?

A tão citada insegurança jurídica, apontada como um dos entraves ao investimento produtivo, à eficiência e ao crescimento econômico do Brasil, está vinculada a essa questão. Já não se trata só da incerteza quanto à aplicação das normas ou da mudança frequente de regras. O quadro piorou e hoje é difícil saber quem decide sobre isto ou aquilo.

Segundo a Constituição federal, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Na concepção original, esses Poderes são atributos e funções do Estado, formas de manifestação de sua soberania. Essas funções foram divididas, na modernidade, entre órgãos especializados e complementares. Não se pode pensar a independência sem levar em conta a exigência de harmonia, embora esse detalhe seja frequentemente esquecido no Brasil. Nos Estados Unidos fala-se normalmente em “ramos do governo” (branches of government). Isso expressa de modo mais claro a ideia de complementaridade.

No Brasil há pelo menos duas distorções desse modelo. A noção de independência sobrepõe-se às de harmonia e de complementaridade. Só há um Tesouro Nacional, fonte de recursos para os Três Poderes. Mas parlamentares e chefes do Judiciário tendem a agir como se o Executivo fosse o único responsável pela saúde financeira do Estado. Despesas são reivindicadas e aprovadas por lei sem consideração de seus efeitos sobre o balanço fiscal. Projetos enviados pelo Executivo são distorcidos para atender a interesses particulares de congressistas ou de sua clientela, como ocorreu com as últimas propostas de refinanciamento de dívidas tributárias (Refis) ou com a tentativa de reoneração da folha de salários de cinco dezenas de setores.

Uma distorção muito mais grave é a crescente desorganização institucional. Como se decidem o rumo e a velocidade do navio? Quem resolve cada detalhe da navegação? Uma confusão desse tipo bastaria, provavelmente, para levar a um desastre, mesmo com um radar. Houve negligência no Titanic, porque a tripulação havia recebido alertas de outros navios sobre icebergs. Mas pelo menos a divisão de funções era clara.

No Brasil, nem o rumo do navio está bem definido, nem se sabe com segurança quem toma decisões sobre grandes temas. No primeiro dos 42 documentos com propostas entregues aos candidatos, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) chama a atenção para problemas de insegurança jurídica e governança.

Segundo o texto, “a insegurança origina-se em ações dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e dos órgãos de controle”. É “produto do processo de elaboração de leis, alterações, execuções, controles e interpretações”. Mencionam-se também “o crescente desequilíbrio na efetivação do princípio da independência e harmonia entre os poderes”.

A quem cabe definir as políticas de investimento e desinvestimento de uma estatal de capital aberto, como a Petrobrás, com acionistas dentro e fora do Brasil? São decisões típicas de negócios, mas no Brasil o assunto pode ficar na dependência do Judiciário. Como se definem fatores estratégicos para o Estado e para o desenvolvimento? O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, publicou no fim de junho um artigo sobre soberania e sobre o risco de privatização de “ativos estratégicos”. Alguma atenção à História - política, militar e econômica - ajuda a perceber como evoluem as noções de fatores estratégicos. Estará certo o presidente Donald Trump ao proteger comercialmente a siderurgia em nome da segurança? A venda de refinarias pela Petrobrás porá em risco a soberania? Além disso, tem sentido discutir esses temas com critérios da década de 1950?

Mesmo se o ministro Lewandowski tivesse algo contemporâneo e relevante a dizer sobre esses assuntos, ainda caberia perguntar se um membro de uma Corte Suprema deve interferir no debate sobre estratégia econômica. Terão as suas convicções algum peso na forma de interpretar a lei?

Juízes, assim como procuradores, são quase sempre, nas democracias mais consolidadas, figuras discretas e raramente envolvidas em debates políticos. Legisladores, nesses países, costumam dar alguma atenção às condições financeiras do Estado. O Executivo dificilmente inventa de um dia para outro aberrações como o cartel do frete. Com alguma ordem institucional, o navio funciona de modo mais previsível. Segurança institucional pode ser apenas uma base para o jogo, mas é indispensável.
Rolf Kuntz

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