sábado, 20 de junho de 2020

Pensamento do Dia


Fim da linha para Queiroz. Fim da linha para o presidente?

O cerco fechou para o presidente Jair Bolsonaro. Fabrício Queiroz é a chave para o passado nebuloso da sua família, uma bola de boliche capaz de fazer strike em seu Governo. Atinge desde a primeira-dama Michele Bolsonaro, brindada com um cheque de 24.000 reais de Queiroz, até as ramificações milicianas dos Bolsonaro, que estão na mira das investigações no Rio de Janeiro. De cara, o presidente se desmoralizou por completo quando Queiroz foi descoberto no sítio do advogado Frederick Wassef, de estreita relação da família Bolsonaro. Na posse do ministro Fabio Faria, da Comunicação nesta quarta, lá estava Wassef. Seu trânsito pelo Palácio do Planalto ou Alvorada era constante. Ele, o primeiro a defender o presidente de acusações, escondia Queiroz há um ano. Tudo nas barbas de seus ministros militares, que erguem a bandeira da lei e da ordem do Brasil.


Bolsonaro procurou ocultar seu passado quando assumiu o Governo. Queiroz foi exonerado do gabinete de Flavio no dia 15 de outubro de 2018, a duas semanas do segundo turno da eleição, quando Bolsonaro seria confirmado presidente. Sabe-se hoje, a partir do depoimento do empresário Paulo Marinho, que os Bolsonaro souberam antecipadamente que Queiroz era alvo de escrutínio da Justiça. Um delegado simpatizante do então candidato ultradireita vazou a um emissário de Flavio os rumos das investigações sobre rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio.

O ex-PM, amigo do presidente, que acompanhou Flavio por anos como assessor —pagando até a mensalidade escolar das filhas do então deputado, hoje senador— já estava orientado a driblar a Justiça a partir de então. Faltou a vários depoimentos marcados no Ministério Público do Rio de Janeiro para falar sobre as suspeitas de rachadinha. Depois, desapareceu.

Neutralizado o passado, o presidente Bolsonaro acreditou manter o controle total do presente para não resgatar assombrações de rachadinhas e funcionários fantasmas, encarnadas por Queiroz. Com a máquina pública nas mãos, logrou marcar sua narrativa e se descolar de Queiroz. Jactava-se reiteradas vezes que não havia uma denúncia sequer sobre corrupção em seu Governo. Que só se preocupava com a família, e os bons costumes, acreditando piamente na própria invenção que fez de si mesmo. Um homem austero e neoliberal, de gostos simples, chinelo no pé e camiseta de time. A cara do povão.

Mas o excesso de confiança cega. A reunião ministerial de 22 de abril deste ano deixa claro que ele estava interessadíssimo em ter informações privilegiadas sobre o rumo de investigações que pudessem atingir seus filhos. Não contava com a falta de lealdade a seu projeto do agora ex-ministro Sergio Moro.

Apostou então na teoria da perseguição. Gritou e humilhou jornalistas que, segundo ele, só queriam inventar mentiras sobre ele. No dia 22 de maio, quando o vídeo da reunião se tornou público por ordem do Supremo, insinuou que queriam chantageá-lo, deixando escapar que tinha informações paralelas sobre andamentos de ações policiais. “[Havia] Possibilidade de busca e apreensão na casa de filhos meus, onde provas seriam plantadas. Levantei [essa informação] porque graças a Deus tenho amigos na polícia civil e na polícia militar no Rio de Janeiro que [me contaram o que] estava sendo armado para cima de mim”, disse um esbaforido presidente, em Brasília.

O fracasso da sua gestão da pandemia foi lhe tirando apoio popular. Resiste una parcela de 30% de eleitores, que acreditam piamente nesse personagem e até engoliram sua aproximação com o Centrão, renegado desde o início do Governo. Ergueram bandeiras contra o Congresso e o STF em nome de proteger seu presidente. Vale até intervenção militar para afastar os inimigos do presidente. Mas muitos de seus porta-vozes tiveram baixas com o inquérito das fake news no Supremo Tribunal.

Mas o novo Bolsonaro encontrou hoje o velho Bolsonaro. Queiroz volta à baila, um dia após um procurador do Ministério Público do Rio apontar uma série de indícios que apontam que Flavio Bolsonaro lavou dinheiro na compra de 19 imóveis desde 2003. Movimentações atípicas mostram lucros extraordinários nessas operações. O MP vê relação dessas compras de imóveis com o dinheiro da rachadinha. Em outra frente, o MP vê conexões das rachadinhas financiando empreendimentos imobiliários da milícia, com ajuda de uma dobradinha entre Queiroz e Adriano da Nóbrega, que também recebia parte das rachadinhas de Flavio, segundo as investigações.

Nóbrega foi assassinado em fevereiro durante uma operação policial na Bahia. Queiroz também teme o mesmo destino. Nóbrega é vinculado ao esquema que executou Marielle Franco e Anderson Gomes. E Queiroz, a chave oculta para essas relações obscuras da família Bolsonaro. O quebra-cabeça vai ganhando forma, num momento em que o Judiciário está atento a cada passo do presidente e seus aliados. Os militares, por sua vez, devem marcar cada vez mais distância de um presidente radiativo. O desgaste do seu Governo é certo, quando tem pouco capital político para se resguardar. Para alguns, este 18 de junho marca o início do fim do Governo Bolsonaro. É inegável que o presidente está num beco sem saída. Só falta saber quanto tempo o Brasil resiste com ele nessa armadilha.

O vermelho e o negro

Os militares não podiam ter seus quartéis dentro dos perímetros da Roma antiga. Anos de mau convívio ensinaram a sociedade civil romana a manter os generais e suas legiões longe do poder, ou das tentações do poder. Não adiantou muito: foram os generais e suas legiões que fizeram história enquanto os tribunos faziam discursos. Roma antiga nos legou grandes peças de oratória contra a promiscuidade indesejada de políticos e militares que acabaram sendo hinos à hipocrisia. O papel dos militares num tempo de paz, portanto, é uma discussão que precede Roma, precede qualquer sociedade minimamente organizada e também precede a hipocrisia.

O que fazer com um poder armado quando ele não é necessário? Ou quando fazer guerra não é mais sua atribuição principal, mas ele mantém seu garbo e suas verbas? O romancista francês Stendhal, na sua obra mais importante, O Vermelho e o Negro, que não tem nada a ver com as cores anarquistas ou com as cores do Flamengo, escreveu sobre os dois caminhos que um jovem indeciso, lançando-se no conturbado mundo da Europa pós-napoleônica, deveria contemplar para ter uma carreira respeitável.

A escolha era entre o vermelho da Igreja, e o negro do Exército. Em nenhum momento da narrativa o protagonista de Stendhal revela uma vocação religiosa ou atração pela vida militar. Ele talvez seja o primeiro personagem da literatura a fazer uma escolha fria entre instituições que perderam o sentido, pensando só na sua carreira e inaugurando o herói moderno.

Desde a Roma antiga, desde antes da Roma antiga, desde antes do antes do antes, o que fazer com um poder armado num tempo de paz? Se ele não é o poder moderador que pretende ser, mas o ministro Fux diz que não é, o que é então? Julien Sorel, o personagem de Stendhal, escolhe o sacerdócio, mas não renuncia às mulheres e acaba guilhotinado. Se tivesse escolhido a farda teria uma bela carreira militar e acabaria, provavelmente, reformado em vez de decapitado. E teria tempo para meditar sobre o papel das forças armadas através dos tempos, desde as primeiras cavernas.

A verdade

Não nos enganemos.
Não termos o que dizer
É tudo que temos. 

Raul Drewnick 

Numa das mais deprimentes noites da história do Maracanã, o futebol foi detalhe

Um dos argumentos a favor da volta dos jogos tratava da possibilidade de criar uma bolha de segurança em torno dos profissionais envolvidos nas partidas. Poderosa, a tal bolha. É capaz até de isolar o futebol do mundo ao seu redor, do senso de realidade, de qualquer gota de sensibilidade e empatia. Por alguns momentos, o Flamengo x Bangu jogado no Maracanã pareceu um exercício de gente disposta a provar que o drama que o Brasil atravessa não lhes diz respeito.


Em meio a tanto açodamento para fazer a roda girar, este Flamengo x Bangu foi marcado com pouco mais de 48 horas de antecedência e confirmado de véspera. Mas houve tempo para cumprir todos os compromissos comerciais: as placas de publicidade reluziam, o pórtico do Campeonato Carioca que aguarda os times estava em seu lugar antes do jogo... Mas não sobrou lugar, fosse ao redor do campo, fosse nas arquibancadas vazias, para qualquer referência às famílias enlutadas. Tampouco, por incrível que pareça, aos profissionais de saúde que se expõem ao risco e se submetem a uma maratona com alto custo físico e mental para tentar salvar vidas. Nem os uniformes dos times, com seus tantos patrocinadores, preservaram um lugar para a solidariedade ou um sinal de luto — só o Bangu carregava uma fita na manga da camisa. Toda a noite pareceu planejada como uma desconcertante frieza.

Foi certamente uma das mais deprimentes noites da história do Maracanã. A noite do futebol a qualquer custo para satisfazer interesses comerciais e tramas políticas poderosas. Não parecia importar, sequer, que, no hospital de campanha montado no interior do complexo do estádio, a poucos metros do campo, morreram duas das 274 pessoas vitimadas ontem, dia do jogo, pela Covid-19.

Tudo parecia fora de lugar. A chegada dos times coincidiu com a troca de turno dos funcionários do hospital. Incomparável, neste momento, a importância da missão de uns e de outros. Por outro lado, é importante registrar que o entorno do Maracanã não deixava dúvidas: o futebol é apenas uma das faces de uma cidade que decretou por conta própria o fim da pandemia. Ciclovia cheia, pequenas aglomerações, gente sem máscara e um pequeno grupo reunido para ver o ônibus do Flamengo chegar. O Rio saiu da quarentena e o futebol pegou carona por conveniência.

A única referência à maior tragédia do país em um século foi o protocolar minuto de silêncio, que interrompeu a música de boate do sistema de som do Maracanã. Uma vez respeitado, voltou à total vigência a lei segundo a qual o futebol não tem tempo para dramas que extrapolem o seu universo. Nem o racismo teve vez. Não houve jogador de joelhos ou qualquer outra menção à luta global cotra o preconceito e a opressão.

O homem branco português afinal é mestiço

É sempre bom lembrar que, assim como a Democracia, a conquista dos direitos humanos nunca é definitiva – deve ser uma luta constante. O racismo, a xenofobia, a homofobia e a violência de género são pensamentos e ações cada vez com mais visibilidade e razão de conflitualidades nas sociedades atuais – e Portugal não é exceção.

O relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância sobre Portugal merece ser lido com muita atenção, pois o país não fica muito bem na ‘fotografia’.

Vejamos algumas reflexões com base neste documento:

-Âmbito legislativo: é preciso criar (e aplicar) leis criminalizando (no Código Penal) a expressão pública da ideologia racista. Ironicamente, Portugal tem no Parlamento um deputado – em franca ascensão política, sinal de que há milhares de portugueses que pensam como ele – com intervenções declaradamente racistas, principalmente contra a comunidade cigana. Além disso, o líder do maior partido da oposição afirma sem corar que não há racismo em Portugal.

– Alto Comissariado para as Migrações: maior e melhor atuação, nomeadamente com campanhas direcionadas aos grupos de imigrantes que mais sofrem discriminação, informando sobre os seus direitos como cidadãos e indicando os organismos públicos onde podem fazer as denúncias.

– Forças de segurança. É sempre um tema polémico. Em primeiro lugar, é preciso desconstruir a (falsa) ideia de que a Polícia (enquanto instituição) é racista; o correto é admitir que há policiais racistas. É um pequeno grupo, mas os seus atos discriminatórios e de violência – principalmente contra os negros – tem um impacto muito grande na perceção (negativa) que a sociedade tem da atuação das forças de segurança. Para alterar essa situação, são necessárias algumas mudanças: política de tolerância zero, punindo severamente os agentes que cometem atos racistas; formação inicial e contínua dos agentes, nomeadamente sobre multiculturalidade e Direitos Humanos; intensificar o diálogo e a cooperação com os grupos mais expostos ao racismo e à intolerância.

– Educação: melhorar o acesso à educação, aumentando a taxa de escolaridade, nomeadamente dos alunos de meios carenciados, imigrantes pobres e ciganos, grupos que mais sofrem o processo de exclusão social. A educação deve formar as crianças e jovens dentro dos princípios de respeito pela diversidade. É importante notar que o racismo não é herdado geneticamente – é um construto social, é um comportamento, é um processo de aprendizagem, nos contextos familiar e escolar.

– Habitação: melhorar efetivamente as péssimas condições dos bairros degradados, sem condições mínimas de habitabilidade, locais onde vivem maioritariamente pobres, imigrantes, população de origem africana e ciganos. Esses locais não podem servir apenas para (algumas) autoridades e altos representantes do Estado e do governo, em ocasiões de conflito e/ou na altura do Natal, irem tirar ‘selfies’, levando atrás os holofotes da televisão.

Para terminar, uma mensagem especial aos ‘brancos racistas portugueses’, aos que defendem uma hierarquização dos indivíduos com base nas suas diferenças físicas e comportamentais herdadas. Do ponto de vista biológico-genético e antropológico, não existem ‘raças’, apenas uma gama enorme de variações de traços físicos entre os seres humanos. O ‘branco’ não existe: a formação étnico-racial da nação portuguesa é resultado de um profundo processo de miscigenação de diferentes povos. O ‘branco’ português é, na verdade, um mestiço.
Donizete Rodrigues, sociólogo da Universidade da Beira Interior