quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Brasil predador

 


Ele é o golpe

A receita para o desmonte da democracia por Jair Bolsonaro, de infiltrar-se nos poderes para miná-los e dominá-los, está-lhe saindo melhor do que ele esperava.

O Executivo nunca foi problema. Como presidente, ele já lhe pertencia, bastando-lhe desmontar o aparelhamento anterior e instalar o seu —o que tem sido feito à custa até dos quadros mais neutros e técnicos, substituídos por jagunços estranhos às funções. É um desastre para o país, mas, para Bolsonaro, e daí?

O Legislativo, por sua vez, pode ser comprado —como ele bem sabe por ter feito parte dele durante 30 anos— e efetivamente já o foi, com a distribuição de cargos e verbas. Cargos e verbas, aliás, com que, aproveitando o carrinho entre as gôndolas, Bolsonaro tirou também o Exército da prateleira e o jogou no meio das margarinas.



Por fim, o poder mais resistente, o Judiciário, logo estará igualmente sob seu controle, com as nomeações de mais alguns togados decisivos e a adesão de outros. Nesse caso, o interesse de Bolsonaro não é mais blindar-se contra as investigações sobre as promíscuas negociatas de seus filhos, mulheres, ex-mulheres, noras e mães uns dos outros. O que lhe importa agora é garantir-se nas várias instâncias da lei em suas investidas contra a Constituição.

Para isto, Bolsonaro conta com o acoelhamento definitivo do Supremo —o mesmo que, num vídeo, ele comparou às hienas, invadiu seu recinto com uma galera, omitiu-se quando um de seus filhos ameaçou mandar um soldado e um cabo para fechá-lo, protegeu os terroristas que dispararam contra o seu prédio e apoiou um esbirro que chamou os ministros de “vagabundos”. O que falta ainda? Só mesmo Bolsonaro, em pessoa, sair à noite, munido de spray, e pichar-lhe a fachada.

Ou não mais. A historiadora Lilia Schwarcz disse esta semana no programa de TV “Roda Viva” que Bolsonaro já não precisa dar o golpe —“Ele é o golpe”.

Que país seria esse?

O que a administração republicana de Trump fez nesses quatro anos foi desmantelar o governo de maneira sistemática.

As agências que supostamente fiscalizam o país foram destroçadas. Temos uma Agência de Proteção Ambiental que reverteu regulações, porque o governo agora fomenta a contaminação. Temos uma secretária da Educação (cargo equivalente ao de um ministro brasileiro) que não acredita em escolas públicas, uma secretária do Trabalho que vai contra os interesses dos trabalhadores, um Departamento de Estado que tem postos vagos ao redor do mundo, um Departamento de Justiça que se converteu em ferramenta de Trump e dos republicanos.

Mais quatro anos disso e acredito que não sobrará nada. Absolutamente nada. E nos tornaremos um país autoritário, algo que acredito que ninguém poderia imaginar que seria possível quatro anos atrás.

Mas estamos indo muito rápido nessa direção.
Paul Auster, escritor norte-americano autor de vários best-sellers como Timbuktu, O Livro das Ilusões, A Noite do Oráculo e A Música do Acaso

O carioca parece gostar de ser enganado

O teleférico do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi inaugurado em 2011. Uma nova era havia começado, dizia-se na época. A promessa era de que, com a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos chegando, a cidade finalmente se tornaria mais moderna. Deixaria de ser relativamente provinciana, para se tornar uma metrópole. Com melhor transporte público, mais segurança, menos pobreza e menos poluição.

O teleférico custou R$ 253 milhões. E, ainda que houvesse problemas mais urgentes no complexo de favelas (como saneamento básico), ele facilitou a vida de milhares de moradores. Transportava, em média, 10 mil pessoas por dia, nas 152 gôndolas que percorriam seis estações. Mas em setembro de 2016 – poucos dias após o fim dos Jogos Olímpicos – o teleférico teve suas atividades suspensas. O motivo alegado foi de que o equipamento passaria por uma manutenção que levaria meio ano e que estava faltando uma peça que viria do estrangeiro.

Mas o teleférico nunca mais voltou a funcionar, e está desde então apodrecendo e enferrujando. As estações estão abandonadas, viraram casa para pombos e outros animais, como pude ver durante uma visita ao Alemão. Foram R$ 253 milhões de dinheiro de impostos pagos pelos cidadãos jogados pelo ralo.

O teleférico do Morro da Providência, no Centro do Rio, custou R$ 76 milhões e foi inaugurado em 2014, durante a Copa do Mundo. Funcionou durante dois anos, até que, em dezembro de 2016, apenas quatro meses após o fim dos Jogos Olímpicos, o contrato para a administração do teleférico venceu e não foi renovado. Desde então, as gôndolas estão paradas, e não há previsão de que a operação seja retomada. Foram R$ 76 milhões de impostos pelo ralo.



A ciclovia Tim Maia foi inaugurada em janeiro de 2016. Custou R$ 45 milhões e tem o nome do músico que escreveu a canção Do Leme ao Pontal. Mas por essa ciclovia não se chega nem à metade do caminho, porque, três meses após a abertura, um pedaço dela desabou e matou duas pessoas. O motivo: negligência, erro de cálculo, corrupção. Em fevereiro e em abril de 2019, outras partes da ciclovia desmoronaram.

Responsável pela construção era a empreiteira Concremat. Ela foi fundada e era presidida, respectivamente, pelo avô e pelo tio do então secretário municipal de Turismo do Rio, Antônio Pedro Figueira de Mello. O Ministério Público denunciou 16 pessoas por homicídio culposo, sendo nove funcionários da Geo-Rio, empresa da prefeitura responsável pelo projeto da ciclovia. Em fevereiro de 2018, um dos citados foi nomeado presidente da RioUrbe pelo prefeito Marcelo Crivella.

Hoje, a ciclovia Tim Maia está interditada em grande parte. Mesmo assim alguns ciclistas continuam a usá-la. Quando eu fui de bicicleta do Aterro do Flamengo até a Barra de Tijuca, trocando várias vezes entre a ciclovia e a rua, reparei vários trechos em São Conrado e na Barra depredados e perigosos. Mas ninguém parece ligar.

A ciclovia e os teleféricos já cumpriram o papel deles: encher os bolsos de políticos, funcionários e empreiteiras. O Rio não tem memória, o Rio não tem cura, o Rio está condenado a cometer os mesmos erros para sempre.

E para que não haja engano: isso é um problema especificamente carioca (ou brasileiro). Há outras cidades com teleféricos na América Latina, como La Paz (Bolívia), Medellín (Colômbia) e Santo Domingo (na pequena República Dominicana). Lá as gôndolas funcionam desde a inauguração e transportam milhares de pessoas, principalmente pobres, todos os dias. Nenhuma dessas cidades é rica. A diferença é que a classe política lá é menos podre e inescrupulosa.

Posso dar vários outros exemplos. Tem o caso da Baía de Guanabara, que virou sinônimo de poluição e de desperdício de dinheiro público. Nos últimos 24 anos, foram gastos mais que 2,5 bilhões de reais para "tentar” a despoluição. Mas até hoje, no Rio de Janeiro, menos de 47% do esgoto coletado é tratado. O governo estima que ainda serão necessários 12 bilhões de reais para concluir a limpeza. Seria para rir, se não fosse para chorar.

Outros exemplos de falta de respeito das elites para com os cidadãos: a Cedae, que abastece a população do Rio com água contaminada com esgoto doméstico e poluição industrial. Esgoto doméstico tem alta quantidade de fezes. Mesmo assim, a Cedae cobra um valor mais alto pela água do que muitos fornecedores na Alemanha, onde a água da torneira é potável.

O preço da eletricidade no Rio é aproximadamente o mesmo que na Alemanha. A diferença é que na Alemanha a eletricidade nunca cai – diferentemente do que ocorre aqui em casa, quando chove ou venta um pouco mais forte. Nunca o fornecedor de eletricidade me concedeu uma redução de preço por essas quedas de luz, muito menos pagou qualquer compensação nas vezes em que tive que passar a noite à luz das velas.

Meu provedor de internet também não se importa se o meu sinal cai de vez em quando, especialmente com o mau tempo. A empresa cobra uma multa se eu pagar minha conta com atraso, mas não me oferece um desconto se eu ficar sem internet por várias horas. Minhas medições também mostraram que minha velocidade de internet flutua consideravelmente e raramente atinge constantemente o nível prometido (e pelo qual eu pago).

Parece que os cariocas gostam de ser enganados. Eles consideram normal a corrupção, a fraude e um serviço ruim, mas caro. Atualmente, ninguém representa melhor as estruturas podres do Rio do que Marcelo Crivella, ainda prefeito da cidade. Ele paga capangas com dinheiro dos impostos para assediar, insultar e ameaçar os cidadãos em frente a hospitais públicos. Estes são métodos conhecidos de ditaduras e máfias.

O que em cidades normais levaria a revoltas populares, processos judiciais e demissões, o carioca aceita dando de ombros – e reelege os mesmos senhores e senhoras nas próximas eleições.

Mas nem todos os cidadãos são igualmente atingidos pela calamidade pública. Os ricos se abrigam num mundo privado que não tem mais nada a ver com a realidade da maioria das pessoas: compram boa educação, saúde, segurança e conforto, sem se importar com assuntos públicos. Eles podem até se beneficiar das máquinas mafiosas que redistribuem o dinheiro dos impostos de baixo para cima.

Em março deste ano, o prefeito do Rio, Crivella, prometeu reabrir a ciclovia Tim Maia dentro de seis meses. Mas é provável que virará mais um monumento carioca para o desperdício de dinheiro público. O governador afastado do Rio, Wilson Witzel, disse que colocaria o teleférico do Complexo do Alemão novamente em funcionamento nos primeiros 180 dias de seu mandato. Isso foi há mais de 600 dias. Bem vindo à cidade das promessas vazias.
Philipp Lichterbeck

Desigualdades e desacertos

Informações recém-divulgadas da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE sinalizam pequenos avanços e recuos do SUS — e a persistência do fosso entre quem mais precisa de cuidados e o acesso. Os dados são essenciais para diagnosticar a situação de saúde, captar tendências e orientar as políticas públicas. Entre os dois inquéritos, realizados com intervalo de seis anos, a cobertura para atendimento médico cresceu: era 71,2% em 2013 e passou para 76% em 2019. No mesmo período, o total de pacientes internados aumentou de 6% para 6,6%, revelando pequeno aumento na capacidade do sistema.

 Mas persistem desigualdades nas chances de realizar determinados procedimentos odontológicos e médicos. Em 2019, a proporção de consulta com dentista foi de 36% para quem se situa na menor faixa (menos de um quarto de salário mínimo) e 76% para pessoas da classe mais alta de renda (acima de cinco salários mínimos). A oportunidade para realizar internações e cirurgias foi duas a três vezes maior para quem está vinculado a planos privados de saúde. Consequentemente, o padrão do atendimento na rede hospitalar do SUS difere do organizado pelo setor privado; o público tem maior proporção de casos clínicos, e a assistência suplementar, de pacientes cirúrgicos. 

Os inquéritos sobre saúde realizados pelo IBGE também permitem avaliar o desempenho de políticas públicas específicas. Houve incremento no cadastramento dos domicílios pelas equipes de saúde da família; contudo as visitas de agentes comunitários diminuíram. Os programas públicos de acesso a medicamentos permitiram que 30,5% dos atendidos pelo SUS em 2019 obtivessem ao menos um dos medicamentos prescritos. Esse panorama da aquisição de remédios fica mais bem delineado pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). As despesas com remédios pesam 4% no bolso das famílias com menor renda e representam 1,4% para as que contam com orçamentos maiores. O conjunto de dados fornecidos pelas pesquisas oficiais contém evidências sólidas para orientar decisões sobre prioridades e investimentos públicos.


 Entretanto essas relevantes informações são pouco consultadas pelas autoridades políticas. Basta dedicar um olhar ligeiro às pesquisas para verificar o porquê das imensas filas para cirurgia no SUS, bem como o alcance e as limitações da efetividade de equipes de saúde da família e cobertura de medicamentos. 

Ideias apresentadas como geniais, definitivas, como as organizações sociais, mostraram-se frágeis para superar desigualdades exigentes de políticas que incidam sobre a formação e alocação de recursos humanos, a oferta de serviços e os gastos com saúde. É pura falácia propor “zerar filas”, “ampliar horários de atendimento” sem considerar a precarização dos vínculos dos profissionais de saúde e a diferença entre os valores de remuneração do SUS e dos planos de saúde. Enquanto médicos e enfermeiros tiveram reconhecimento e aumento de salário na maioria dos países, o projeto de reforma administrativa apresentado pelo governo prevê a contratação provisória e salários baixos para os servidores públicos do Poder Executivo, incluindo aqueles que estão na linha de frente do enfrentamento da Covid-19. O crescente gasto direto com saúde, considerado catastrófico, parece não preocupar o governo federal. Em agosto, o ministro da Economia cogitou restringir o acesso ao programa Farmácia Popular para viabilizar o financiamento do Renda Brasil. Retrocedeu, mas insiste no corte de despesas para o SUS.

Ao longo da história houve governos que conferiram maior destaque à saúde e aqueles que levaram adiante políticas incrementais. Essa trajetória, intercalada pela inscrição do SUS na Constituição de 1988, nos assegurou sucesso no controle de riscos e doenças. 

O cancelamento da saúde como política governamental, na gestão Bolsonaro, é um fato inédito. A macabra cerimônia de glorificação da cloroquina “Vencendo a Covid”, no mês passado, e a ausência dos mortos pela pandemia no discurso presidencial no Dia da Independência afirmam o empenho do governo contra a “sombra dos comunistas” e a radical indiferença perante doentes e mortes. Ao contrário de Juscelino Kubitschek, reconhecido pela dedicação para reverter a acepção nacional e internacional do “Brasil, país doente”, o atual presidente será lembrado pela insensibilidade ao sofrimento causado pelas doenças e ao combate a espectros.