domingo, 14 de outubro de 2018

Brasil Verde


O mito positivista

No cavalo de pau dado pela campanha do PT, em razão da inviabilidade do projeto de “democracia popular”, que foi derrotado no primeiro turno, o candidato à Presidência Fernando Haddad deveria procurar nos seus alfarrábios um velho livro de Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852. Talvez o professor de ciência política da Universidade de São Paulo, que virou clone do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, encontre uma explicação para o que aconteceu em 7 de outubro. O “cretinismo parlamentar” desgraçou boa parte da elite política da Câmara e, principalmente, do Senado; o “transformismo” de seu partido fez do antipetismo uma força eleitoral avassaladora a favor de Jair Bolsonaro (PSL), protagonista de uma possível “restauração conservadora”, tal qual “o lunático Luís Napoleão, com meia dúzia de oficiais desconhecidos e cheios de dívidas”, nas palavras de Friedrich Engels, em carta ao seu amigo Marx.

Ao estudar a história da França entre a Revolução de fevereiro de 1848, que pôs fim à monarquia constitucional de Luís Felipe, e a Comuna de Paris, de 1871, Marx conceituou o “bonapartismo”, que até hoje gera controvérsias entre acadêmicos de esquerda, porque seria um meio-termo entre a “democracia burguesa” e o “fascismo”. Durante a ditadura militar, aqui no Brasil, provocou muita polêmica entre intelectuais e militantes de oposição, que se dividiam entre os que caracterizavam o regime como fascista, por causa do terrorismo político de Estado, e os que rejeitavam essa caracterização, porque não havia um partido de massas como na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. A essência do bonapartismo é a autonomia do Estado em relação às classes sociais e a existência de um líder político carismático e populista.

O chefe de Estado concentra um poder desproporcional em relação ao Legislativo e ao Judiciário, promove a centralização política em relação aos demais níveis de poder. Para governar, apoia-se na burocracia e nas Forças Armadas; suprime liberdades e reprime com violência a oposição e os movimentos sociais. Luís Bonaparte eliminou o Parlamento e tentou restabelecer o Império, mas tudo não passou de uma farsa. Por isso, o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 foi chamado de 18 Brumário por Marx, numa alusão ao golpe de Estado de Napoleão Bonaparte de 9 de novembro de 1799 (18 brumário no calendário da Revolução Francesa), que resultou no fim da Primeira República, proclamada em 1792, e no Consulado, que logo se transformaria no Império de Napoleão. Luís Bonaparte derrubou a república burguesa e instaurou o Segundo Império (1851-1870), no qual se proclamou Napoleão 3º, com a ambição de restaurar a obra de Napoleão 1º, seu suposto tio.


O projeto “bonapartista” subjacente no discurso de Bolsonaro, como a “democracia popular” de Haddad, pode ter sido derrotado no primeiro turno. Propostas de elaboração de uma Constituição por notáveis, a ser submetida a um referendo popular, e de alteração da composição do Supremo Tribunal Federal (STF), que ferem frontalmente a atual Constituição, já foram descartadas. Para vencer, Bolsonaro está sendo obrigado a desdizer não somente seus auxiliares, como Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda e do Planejamento, e o vice, general Hamilton Mourão, mas principalmente a si próprio. Sobram declarações e episódios que podem lhe tirar a vitória, se não forem renegados. O tema da violência, que catapultou sua candidatura, virou uma faca de dois gumes, porque a narrativa do duro combate ao crime organizado também alimenta a radicalização política e ideológica de seus partidários contra os adversários.

O Brasil já teve três presidentes militares eleitos: Floriano Peixoto (1991-1894); Hermes da Fonseca (1910-1914); e Eurico Gaspar Dutra (1945-1950). Foram duros com a oposição, especialmente Floriano, o “Marechal de Ferro”, que governou a maior parte do tempo com o país em Estado de Sítio. Ao concluir o mandato, todos entregaram o poder a presidentes civis. Durante o regime militar, o militar que permaneceu mais tempo no poder foi João Figueiredo, que governou por seis anos, perdeu a própria sucessão e devolveu o poder aos civis, com a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral. Getúlio Vargas, que foi ditador por 15 anos, presidente eleito, encerrou a carreira com um tiro no próprio peito. Não é fácil ser ditador no Brasil.

Na política brasileira, nunca o poder central teve tão pouca influência nas eleições. Os destinos do país estão sendo decididos pela sociedade, num pleito democrático, com ampla liberdade. A alternância de poder e o direito ao dissenso estão assegurados. O projeto político de Bolsonaro tangencia o velho positivismo da Escola Militar da Praia Vermelha e o castilhismo gaúcho, que são incompatíveis com nossa democracia. A atual Constituição, nosso mais valioso ativo democrático, só pode ser modificada pelo Congresso, que representa todos os eleitores, não apenas uma maioria eventual, caso do presidente eleito. Por isso, qualquer que seja o resultado das urnas, é melhor aceitar o resultado, com espírito autocrítico, para não repetir os erros no futuro. E respeitar a vontade popular.

Perigo é a pizza estar estragada

A democracia brasileira corre zero risco. As instituições democráticas no Brasil são muito sólidas. Meu receio não é nem que o próximo presidente possa diminuir o poder das instituições de controle — como o Poder Judiciário, o Ministério Público, os tribunais de Contas, a imprensa livre e independente —, mas a reação da sociedade ao perceber que o governo possa atentar contra essas instituições.

Existe um alinhamento grande entre essas instituições de controle e a preferência do eleitorado. Quando a população percebe essas instituições em risco, a sociedade pega fogo. Eu temo as reações da sociedade às potenciais ameaças a essas instituições num eventual governo Bolsonaro ou Haddad. Mas, não, a democracia brasileira não está em risco. Pelo contrário: a democracia está mais firme do que nunca
Carlos Pereira (FGV)

Visões e previsões do futuro

Com a eclosão dos debates, a deterioração das relações pessoais e explosão dos ânimos neste segundo turno, além da polarização política normal há também divergência quanto as perspectivas do país. Uma parte das pessoas avalia a situação como grave-gravíssima, com risco ao sistema democrático. Outra, enxerga nisso tudo um grande exagero, as instituições estariam sólidas e o sistema de pesos e contrapesos nacional é inume qualquer que seja o resultado da eleição.

O caminho, como sempre, se fará andando, sem saber ao certo aonde levará. A incerteza é a coisa mais certa entre todas as coisas no Brasil. O otimismo é sempre melhor e cai bem aos ouvidos, desperta suspiros de alívio e chama a compartilhamentos. Já o pessimismo é desagradável; obriga a pensar e pede contenção, moderação para que sua cisma não se efetive como profecia auto realizável. Ao pessimista sempre valerá a pena estar errado. Já o otimista, quando erra, vê à sua frente as armadilhas da imprevidência ajudou a montar.

Mas, enfim, há que se admitir que os otimistas deste tempo brasileiro trazem uma boa notícia e, de certo modo, dizem tudo o que se quer ouvir: nada de ruim ocorrerá e a vida seguirá seu rumo, seja quem for o próximo presidente, sobretudo, no cenário Jair Bolsonaro. É bom viver nesse conforto. O cidadão lê e vai dormir pacificado. Quem não gosta de sentir o futuro em calma, a paz ou pelo menos a segurança de conflitos contornáveis pelos mecanismos da democracia representativa e das instituições de controle? Não haveria, assim, lugar melhor para criar os filhos.

A má notícia é que esse grupo tem errado sistematicamente, embora não reconheça e nem reavalie tudo o que disseram seus membros no passado.

Primeiro, acreditaram que o impeachment seria um passeio, atribuindo quase que exclusivamente à Dilma Rousseff os males do sistema político. Apostaram na capacidade e na experiência do hoje esquecido Michel Temer, o craque do meio-de-campo do Congresso Nacional. Secundado por raposas do PMDB, como Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Romero Jucá, Wellington Moreira Franco e Eliseu Padilha, nesta visão, o governo controlaria o Parlamento, aprovaria as reformas e selaria um grande acordo, “com supremo e com tudo”.

Esse mesmo grupo se animou com João Doria, após sua vitória na eleição paulistana, em 2016. O gestor não político revolucionaria a política nacional, um Emmanuel Macron tropical, lembram? Tudo o que fazia havia as luzes dos gênios, até mesmo na arrogância. Declarar guerra ao PT, o cachorro morto de então, ou atropelar o padrinho, Geraldo Alckmin, era tão “corajoso”, quanto inevitável quebra de ovos para fazer o omeletes na eleição presidencial.

O fracasso do ex-prefeito os levou a considerar as chances de Henrique Meirelles. Afinal a qualidade dos membros de sua equipe econômica, técnicos independentes da política, levaria a economia à acelerada recuperação. Diziam que, em maio deste ano, o Brasil estaria “bombando”.

Superada a fase ilusória, contentaram-se ao ver Geraldo Alckmin se cercar do Centrão. O magnífico tempo de TV asseguraria a vitória eleitoral ao tucano e, assim, a realização do mercado. Com Lula na prisão, o PT estaria morto. Jair Bolsonaro não passaria de uma espécie de Celso Russomano nacional, que derreteria tão logo começasse a campanha.

É claro que, hoje, tudo se explica pelo inexplicável: cisnes negros teriam invadido o país. A delação/armação de Joesley Batista e a facada que quase liquidou Jair Bolsonaro são muletas para qualquer tombo. Não saibam que no Brasil dos últimos anos não há cisnes brancos? Aqui todos os marrecos e assemelhados são mesmo pretos.

Para o grupo chamado pessimista, nada seria exatamente assim, ou pelo menos faltava evidências, para além da torcida, de que pudesse vir a ser assim. As desventuras em série desautorizavam o otimismo e o fundo do poço aqui é só figura de linguagem, pois não há fundo. O Brasil gigante adormecido não estaria definitivamente fadado ao sucesso e à glória — a única “glória” que deu foi mesmo na evocação do Cabo Daciolo.

O fato é que há espaço para dúvidas e receios: o favorito na disputa presidencial, Jair Bolsonaro, à parte do discurso de seus entusiastas, é indiscutivelmente uma novidade da qual se sabe muito pouco quase nada. Em se tratando de Bolsonaro, o que pode ser previsto ou imaginado? Por não haver experiência anterior, simplesmente não se conhece o padrão de comportamento seu e de seu grupo e apoiadores, em um contexto de poder e euforia com a vitória eleitoral. Pelas afirmações dos últimos anos, se não a democracia pelo menos várias liberdades individuais estariam em perigo. Não há evidência, além da fé, de que não estejam.

O mesmo se dá com o PT. Em sua interminável pretensão hegemônica, a legenda se recusa rever seu passado, expiar seus erros e espantar temores de eleitores mais precavidos e exigentes. Na inflexão que forçosamente fariam ao centro neste segundo turno, os petistas parecem acreditar que os apoios virão por gravidade. Em Fernando Haddad desaguariam todos os votos por simples falta de opção. Ora, ora, ora… O voto nulo, o “ligar o f…” e, para alguns, a Europa serão sempre opção. Sem concessão, não haverá compromisso.

No mais, no que uma vitória do PT garantirá automaticamente que seus adversários acatem com tranquilidade o resultado das urnas? Ao inverso, a pergunta é igualmente válida.

Infelizmente, para além do “jogo de contente” de Poliana, não é possível provar que as instituições do país de fato funcionam. Até porque, se funcionassem, o país não teria chegado ao ponto em que está. A perspectiva de que funcionem como freios ao próximo presidente é uma aposta. Respeitável, mas apenas uma aposta, que, oxalá, esteja correta.
Carlos Melo 

Gente fora do mapa

Cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo (Felipe Souza)

Um roteiro para a concórdia

Não me arrisco a fazer um prognóstico para o segundo turno, mas o resultado do primeiro, as linhas gerais da discussão pública e alguns elementos factuais me levam a crer que Bolsonaro só perderá para Haddad se uma chuva de meteoros extinguir metade de seus eleitores. Essa, no entanto, é a questão apenas numérica, não a questão política que temos pela frente, cuja feição será a mesma se der Haddad.

A questão política tem que ver com o grau de discórdia a que chegamos. A indagação relevante é como chegamos a ela e como vamos sair dela. É se vamos continuar alimentando esse maniqueísmo infantil ou se vamos voltar a ser o que somos, um país dotado de instituições razoáveis e possuidor de uma forte identidade nacional.

A indagação inicial, repetindo, é como chegamos a esta insanidade. Derrotado no primeiro turno, o PT e seus adeptos nos meios cultos da sociedade retomaram (sans le savoir...) a velha mutreta ideológica do stalinismo: quem não é comunista é fascista. Como se não existissem liberais e como se a maioria de qualquer sociedade se orientasse por conceitos ideológicos notoriamente limitados a estratos minoritários de nível intelectual elevado.


No Brasil essas lorotas não se formaram ontem, elas vêm de longe, remontam pelo menos aos anos 50 do século 20. No primeiro turno eleitoral elas se configuraram em torno de dois eixos facilmente perceptíveis: o antipetismo e a antipolítica. Ou, se preferirem, um duplo rechaço, ao PT e ao que se tem chamado de política tradicional, expressão que designa principalmente o Parlamento e os partidos. Esse duplo rechaço se formou e ganhou seu tom desvairadamente raivoso em função de fatores subjacentes bem reais: a recessão econômica promovida pelo governo Dilma, que duplicou o número de desempregados, e a corrupção desvelada pela Lava Jato, cujo epicentro foi a trama instalada na Petrobrás pelos dois governos petistas, Lula e Dilma.

A essa combustão vinda de baixo é preciso acrescentar dois outros elementos: a insegurança generalizada, dramatizada pela intervenção militar no Rio de Janeiro, e alguns fatos na área dos valores e costumes, que normalmente não teriam tanta importância, mas que ganharam corpo e se somaram ao "pacote" conservador em razão da arrogância de certos grupos de alto status típicos dos principais grandes centros urbanos, que tendem a ver como irrelevante e até como ilegítimo o sistema de crenças das camadas menos instruídas e dos habitantes das cidades menores do interior do País. A família e a religião, por exemplo, significam uma coisa para a classe alta de São Paulo ou do Rio de Janeiro e outra para os estratos médios e baixos do interior. Autoritarismo, conservadorismo, pulso, firmeza, coragem – cada um escolha o termo que for do seu agrado. Alguém acaso acredita que nova-iorquinos e texanos apoiem o aborto no mesmo grau?

A combinação dos elementos acima referidos levou, como hoje está claro, uma parcela da sociedade a pender para um candidato pouco conhecido, mas que pareceu oferecer-lhe o "autoritarismo" que ela estava procurando.

Um roteiro para a concórdia tem como primeiro componente, isso é óbvio, a Constituição. O Brasil não é uma republiqueta desordeira, é um Estado democrático dotado de uma ordem normativa elaborada e aprovada de maneira legítima. Os candidatos podem escorregar no vernáculo ou blefar o quanto queiram, mas não podem desconhecer que a obediência à Constituição é a condição sine qua non de sua investidura.

O segundo ponto a frisar é que o Brasil tem à frente uma agenda econômica de extrema relevância, que terá de ser enfrentada com urgência e realismo. À primeira vista, ambos os candidatos parecem despreparados para essa missão, mas isso é matéria vencida. Aquele que o destino conduzir ao Planalto não poderá hesitar nem 15 minutos, porque, agora, o nome do jogo é restaurar a confiança dos mercados no País e em suas instituições. Não terá tempo para confidenciar suas dúvidas hamletianas à caveira de sua preferência. Até porque, no famigerado "presidencialismo de coalizão" que nos rege, ou ele transmite rapidamente ao Congresso a força institucional que terá colhido nas urnas ou logo verá uma fenda abrir-se sob seus pés.

O terceiro ponto é desfazer o maniqueísmo e restaurar aquele mínimo de serenidade sem o qual o convívio civilizado é impossível. O aprendizado político dos candidatos e de seus correligionários de partido é importante, mas aqui a responsabilidade dos eleitores é também muito grande. A parte de Bolsonaro afigura-se mais simples que a do PT. Dele o que se exige é, por um lado, moderação verbal e, de outro, uma consciência mais exata das prioridades do País. Por mais importante que seja, a existência de desacordos no plano dos valores e do comportamento social não tem no presente momento, nem remotamente, a urgência das prioridades referentes à reorganização da economia. Além do que o Executivo meter-se em questões moralmente carregadas é o caminho mais curto para desnortear ainda mais o País e exacerbar conflitos.

De sua parte, os petistas precisam deixar para o lixo da História sua velha imagem do partido que teria "fundado" a democracia brasileira, ou que a tenha praticado segundo os melhores padrões. Isso é uma mentira sem tamanho. Desde seus primórdios, o PT nunca adotou plenamente a democracia representativa como um valor inegociável. Sempre manteve um pezinho dentro e outro fora da ordem democrática, valendo-se daquele que taticamente lhe pareceu conveniente em cada momento. Quem melhor o disse, e isso foi poucos dias atrás, foi José Dirceu, reeditando seu velho mote do projeto petista de poder. "Nosso objetivo", declarou, "não é apenas ganhar a eleição, mas tomar o poder, coisa muito diferente."

Aumento do número de sem-teto nos EUA é 'bomba-relógio'

Elas parecem estar em toda parte. São pessoas de diversas idades, dormindo sobre papelão ou diretamente no chão, sem teto, debaixo de pontes ou em parques com seus pertences em sacolas plásticas como símbolo de suas vidas em movimento.

Muitos chegaram às ruas recentemente, vítimas da prosperidade que nos últimos anos transformou muitas cidades da costa oeste dos Estados Unidos.

Enquanto as autoridades tentam responder a essa crescente crise, alguns dizem que o mais provável é que a situação piore.

O jornalista da BBC Hugo Bachega visitou a vibrante cidade de Portland, a maior de Oregon, no noroeste dos Estados Unidos e uma das que estão vivendo o problema.

"É uma cidade de clima agradável, cultura rica e pensamento progressista", conta Bachega.

"É também um núcleo de inovação, parte do chamado Silicon Forest (Vale da Floresta, em tradução literal) - apelido dado ao grupo de empresas de alta tecnologia localizadas na área metropolitana de Portland - e os novos residentes se mudaram para lá nos anos pós-crise, atraídos pelas empresas de alta tecnologia e seus trabalhos bem remunerados".

"Mas a bonança não chegou para todos", acrescenta o jornalista.

Calçada da Fama, em Los Angeles

O que aconteceu em Portland é uma história que se repete em várias cidades dos Estados Unidos, incluindo Nova York, Los Angeles e São Francisco.

A crescente demanda em uma área com falta de moradias rapidamente elevou o custo de vida e aqueles que estavam financeiramente no limite perderam a capacidade que tinham de pagar um lugar para viver.Image captionA situação que o país enfrenta é pior na região oeste, um destino normalmente escolhido por trabalhadores jovens com alta qualificação

Muitos foram resgatados por familiares e amigos ou programas governamentais e organizações de ajuda. Outros, no entanto, acabaram na rua. Os mais sortudos encontraram lugar em abrigos públicos. Não poucos estão agora em barracas de acampamento e veículos nas ruas.

"Mesmo que a economia esteja mais forte do que nunca", disse o prefeito de Portland, Ted Wheeler, do Partido Democrata, "a desigualdade está crescendo a um ritmo alarmante e os benefícios de uma economia em crescimento se concentram cada vez mais em menos mãos".

Muitos especialistas acreditam que é "uma bomba-relógio" nas ruas americanas que pode explodir para as autoridades, já que o problema está aumentando. "Temos mais desigualdade nos Estados Unidos, e isso, sem dúvida, tem impacto sobre as pessoas".

O número de moradores de rua aumentou em outras cidades prósperas da costa oeste do país, geralmente locais de destino para trabalhadores jovens com alto nível de qualificação, como São Francisco e Seattle - onde a culpa também tem sido atribuída aos preços em alta e aos despejos.

Os números exatos são sempre difíceis de serem estabelecidos, mas 553.742 pessoas estavam sem moradia em uma mesma noite nos Estados Unidos em 2017, segundo o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano.

Foi a primeira alta em sete anos. O número, no entanto, ainda foi 13% inferior ao de 2010, graças ao declínio registrado em 30 estados - uma queda ofuscada pelos altos aumentos no resto dos EUA, com Califórnia, Oregon e Washington entre os piores estados.

Los Angeles, onde a situação é descrita como um fenômeno sem precedentes e crescente, tem mais de 50 mil pessoas desabrigadas, logo atrás de Nova York, com cerca de 75 mil pessoas.

Apenas mamar

A função do governo cifra-se em lançar e receber os tributos e gastar depois o produto com as classes privilegiadas em que o poder público se apoia para exercer a sua dominação
Eduardo Frieiro

O raio

Aconteceu-me uma vez, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém. Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E comecei a rir. Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras. Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção dos passantes e – Parem um momento! – gritei – tem algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo! Onde vamos acabar? As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava ali no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torna-las participantes do raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque no momento em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que engolida e as palavras saíram de mim assim, de chofre. - E daí? – perguntaram as pessoas. – O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é conseqüência da outra. Cada coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado! E ali fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar e tudo me parecia natural, semáforos, monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de trem, mendigos, passeatas; e no entanto não me sentia tranqüilo, mas atormentado. - Desculpem – respondi. – Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão. Mas está tudo no lugar. Desculpem. – E me afastei entre seus olhares severos. Mas, mesmo agora, toda vez (freqüentemente) que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante. 
 Ítalo Calvino, "Um general na biblioteca"

Imagem do Dia


Candidatos não passariam em teste para bombeiros

Há uma emergência na economia brasileira. Com o Tesouro esburacado e a dívida púbica em disparada, o País está arriscado a quebrar e a ter de pedir socorro em poucos anos, talvez ainda no mandato do próximo presidente. O alarme soa sem parar, mas os candidatos à Presidência parecem desconhecer o óbvio: seu desafio mais urgente será cuidar das finanças oficiais e impedir um desastre. Sem isso nenhum plano de governo, de qualquer coloração política, terá sentido prático. 

Mas eles continuam falando de seus planos como se o maior dos obstáculos fosse problema secundário, facilmente superável ou mesmo distante. Nenhum dos dois passaria num teste para o Corpo de Bombeiros ou para o serviço de pronto-socorro. Mas há uma diferença. Um reconhece explicitamente a existência de um problema fiscal importante, mas continua sem dizer com clareza como vai enfrentá-lo a partir de 2019. O outro mal admite a importância do problema e acena com aumento de gastos públicos no primeiro ano de mandato.


Para entender a emergência é bom começar pela dívida pública. O leitor pode escolher o critério. Pelo padrão de Brasília, em agosto o governo geral devia R$ 5,22 trilhões, soma equivalente a 77,3% do produto interno bruto (PIB). Em dezembro do ano passado a relação estava em 70%. No fim de 2018 estará bem próxima de 80% e continuará crescendo nos próximos anos. Pelo critério do Fundo Monetário Internacional (FMI), a relação dívida/PIB chegou a 84% no ano passado, deve atingir 88,4% em 2018, baterá em 97,1% em 2022, no fim do próximo mandato presidencial, e alcançará 98,3% no ano seguinte.

O critério oficial brasileiro exclui os títulos do Tesouro mantidos na carteira do Banco Central (BC). O padrão do Fundo facilita comparações internacionais. No ano passado a dívida do governo geral, no caso dos países emergentes e de renda média, equivalia a 48,7% do PIB. No caso da América Latina, a proporção média correspondia a 62,5%, mas esse número é obviamente distorcido pelo peso da dívida brasileira. O quadro, porém, é até pior: no ano passado a dívida média nas economias avançadas era igual a 75,1% do PIB, segundo o FMI.

Por qualquer critério, do Fundo ou do governo brasileiro, a situação do País é muito ruim e chama a atenção de financiadores e investidores do mercado internacional, especialmente, é claro, das agências de classificação de risco.
Quanto pior a classificação, maior o custo do financiamento conseguido no exterior. Mesmo sem esse peso adicional, o custo da rolagem da dívida pública brasileira é muito alto e assim continuará enquanto as contas oficiais permanecerem muito frágeis. 

O governo geral, considerado nesses cálculos, inclui os três níveis da administração. O problema é explicável principalmente pelo mau desempenho financeiro do governo central. Mas o endividamento de alguns Estados também cresceu perigosamente nos últimos anos, quando o governo petista afrouxou os controles e concedeu garantias de forma irresponsável.

A dívida continuará em expansão enquanto a administração for incapaz de pagar pelo menos os juros vencidos. Para pagar esse compromisso será necessário obter superávit primário, isto é, uma sobra nas contas do dia a dia do governo. Se o dinheiro for suficiente para cobrir apenas uma parte dos juros, o endividamento continuará a crescer, porque será preciso refinanciar também uma parcela dos encargos.

Enquanto esse quadro perdurar, os juros continuarão elevados e faltarão recursos para o investimento empresarial. Para captar dinheiro no mercado as empresas terão de competir, como tem ocorrido há muitos anos, com um governo devorador de uma enorme fatia da poupança disponível.

Tentar controlar o custo do crédito será inútil, como sempre foi, porque juros tabelados ou de alguma forma controlados acabam resultando em desajustes. Um dos mais visíveis é o aumento da inflação, como os brasileiros deveriam ter aprendido. Inflação baixa, ou em queda, e contas públicas no rumo do ajuste são os caminhos mais seguros para baratear o crédito, liberar recursos para investimento – público e privado – e elevar o potencial de crescimento econômico.

O guru econômico do candidato Jair Bolsonaro coordena uma grande equipe envolvida no planejamento do governo. Pouco se revelou, no entanto, sobre a estratégia de arrumação das finanças públicas e sobre o desenho para a reforma da Previdência. Privatizações e concessões foram apontadas como fontes de recursos para a redução da dívida. Mas o processo continua obscuro. Além disso, a dívida voltará a crescer, depois dessa operação, se faltar um ajuste efetivo do Orçamento público. Os detalhes permanecem misteriosos.

O petista Fernando Haddad mal admite a existência de um problema fiscal. Ao contrário: tem falado em eliminar o teto de gastos, em discutir a reforma da Previdência com o funcionalismo e em gastar mais para animar a economia. De onde virá o dinheiro? Como recursos dificilmente caem do céu, o caminho será um maior endividamento. Empresários poderão até aplaudir o impulso inicial, mas um desarranjo maior será inevitável, até porque os amigos da corte cobrarão incentivos fiscais e financeiros e proteção comercial.

O Haddad do segundo turno permanece incapaz de apresentar propostas econômicas claras e compatíveis com a experiência acumulada no Brasil e no exterior. Parou de falar em constituinte especial e de propor censura aos meios de comunicação (a tal regulação da mídia) e controle social dos Poderes (algo acima da democracia representativa). Mas continua representando, no essencial, o velho papel. Deixando de ir a Curitiba e reduzindo o uso da cor vermelha, ele apenas cumpre ordens de Lula – como sempre. O discurso pode ter mudado. Lula, o verdadeiro candidato, certamente é o mesmo.

Por que os militares não serão atingidos pela reforma da Previdência?

Economistas de todas as tendências demonstram consenso em dois pontos da crise brasileira, que precisam ser equacionados para que haja uma retomada sólida do desenvolvimento socioeconômico – a reforma da Previdência e a redução da dívida pública bruta, que engloba governo federal, INSS, governos estaduais e municipais. Sem essas duas providências, continuará a falta de recursos para gastos de primeira necessidade, como infra-estrutura, assistência à saúde, serviços de segurança e educação pública. Ou seja, sem solucionar esses dois desafios, o Brasil não tem futuro, será uma gigantesca Grécia tropical.


Diante dessa realidade, seria de se esperar que a campanha eleitoral dos presidenciáveis abordasse prioritariamente esses dois problemas gravíssimos, mas não é isso que se vê nos programas eleitorais, em que os candidatos irresponsavelmente nos prometem céus e terras, representando partidos que mais parecem as Organizações Tabajara a nos informar: “Seus problemas acabaram!”. Mas na verdade eles estão apenas começando…

O governo pega dinheiro emprestado com investidores para honrar os compromissos. Em troca, compromete-se a resgatar seus títulos com alguma correção, que pode ser prefixada (definida com antecedência) ou seguir a Selic, a inflação ou o câmbio.

Atualmente, a Selic está em 6,5% ao ano, no menor nível da história. No entanto, por causa das turbulências no mercado financeiro, esse papel continua a ser o mais atraente aos investidores. Como o governo não consegue pagar, vai rolando a dívida através da emissão de mais títulos, e a bola de neve segue aumentando, ameaçadoramente.

Apesar da gravidade da situação, o assunto não é discutido e a mídia se omite, criminosamente, porque está tão endividada quanto o governo e não pode enfrentar os banqueiros.

O buraco nas contas da Previdência chegou a R$ 268,8 bilhões no ano passado, em meio às discussões sobre a reforma no Congresso. Mas também no caso do déficit do INSS os candidatos são reticentes. E não é para menos. Os militares pesam 16 vezes mais no rombo da Previdência do que os segurados do INSS.

É espantoso que as Forças Armadas estejam fora da reforma da Previdência. O déficit da reforma (aposentadoria) de cada militar foi de ficou em R$ 99,4 mil no ano passado. E entre os servidores civis da União, o prejuízo do INSS foi de R$ 66,2 mil, contra apenas R$ 6,25 mil de cada segurado do INSS.

Não há um estudo, nenhuma palavra sobre os prejuízos bilionários da pejotização – a transformação de empregados em pessoas jurídicas, para que as empresas e seus funcionários possam sonegar INSS, FGTS e Imposto de Renda.

Ruína ideológica torna 2018 parecido com 1989

Recomeçou o horário eleitoral, agora em ritmo de mata-mata, com tempo de propaganda igual para os dois presidenciáveis. Num ponto, a disputa atual lembra a sucessão de 1989. A exemplo do que fizeram Collor e Lula na primeira eleição direta depois da ditadura militar, Bolsonaro e Haddad insultam-se em rede nacional, ocultando dos eleitores as fragilidades de suas propostas para um país em crise.


Há sobre a mesa do próximo presidente da República uma turbulência fiscal, uma crise moral e um Congresso fragmentado. O resultado das urnas não fará desaparecer os problemas. O que pode desaparecer é a legitimidade de um presidente eleito que tenha vendido na campanha soluções simplistas para encrencas complicadas.

Há 29 anos, Collor achincalhava Lula, acusando-o de planejar “luta armada”, inspirado em “Hitler e Khomeini”. Lula afrontava Collor, tachando-o de filho de uma família que “mata trabalhador rural”. Hoje, Bolsonaro trata Haddad como doutrinado do Foro de São Paulo, que fará do Brasil uma Cuba ou uma Venezuela. E Haddad insinua que Bolsonaro mergulhará o país na barbárie. O Brasil não será comunista. Também não há sinal de guerra civil. Mas as ruínas ideológicas de 2018 revelam que aquele horizonte bonito que viria junto com a democracia continua sendo uma utopia irrealizável.