Estrada na mata (década de 1960), Edgar Walter |
domingo, 25 de março de 2018
O Brasil não é para os experientes
Curioso o país em que a ''última instância'', o Supremo Tribunal, a mais elevada Corte, não consegue decidir. E quando decide, resolve, por fim, não decidir. Apenas delonga-se o tempo e a agonia. Foi o que se deu na tarde e começo de noite desta quinta-feira, quando o país parou para conhecer o destino do ex-presidente Lula e ficou, porém, em suspenso.
O tribunal decidiu não decidir, pelo menos até 4 de abril. E nada garante que então o faça. O Brasil não é nem mesmo para os experientes.
São os rituais da Justiça e as idiossincrasias do Supremo Tribunal Federal (STF), ¡ por supuesto! De fato, suas excelências falam muito, rodeiam, não primam pela objetividade, se perdendo em rapapés e adulações mútuas. Frases de erudição desnecessária, elogios ao ''acento perfeito'', em francês, do advogado de defesa; considerações sobre as decisões do passado; estocadas implícitas e cotoveladas explícitas.
Essas cortes são mesmo assim, alguém dirá. E é um avanço. No passado, usavam perucas e pó-de-arroz. Hoje, apenas a toga. Tudo é ainda bastante performático. Com a transmissão ao vivo pela TV, então, a vaidade aflora.
Todavia, não é apenas isso tampouco. O que se viu no julgamento que nada julgou — que somente decidiu que aceitaria e, depois, julgaria o Habeas Corpus, foi um clima de muita dor, ressentimento e cautela. Os ministros andam machucados com suas escaramuças. O Brasil também se machucou com elas.
Como escorpiões, os magistrados se examinam, se rodeiam e se acautelam uns dos outros. O tribunal, como se sabe, está dividido. O que, em si, não seria problema. A divisão interna não é um mal. O mal, em si, é a falta de unidade.
Pois, pode-se conviver com frações e divergências internas, mas não se pode lidar com esgarçamento de um corpo tão necessário quanto uma suprema corte. Pode ser apenas impressão, pode ser má vontade, pode ser ignorância de quem não transita no Judiciário brasileiro, mas a percepção que se tem, hoje, do STF é que não há ''liga'', não há argamassa que unifique seus membros, sem identidade e coesão mínimas. Não, eles não precisam ser amigos. Mas, o alargamento do diálogo é imperativo.
Sinal dos tempos. O clima político e das instituições brasileiras, de um modo geral, é esse mesmo: esgarçamento. Teóricos chamariam a isto de anomia, o pesadelo dos sociólogos. Pode ser. Ou pode ser exagero. O fato é que muito do que o país vive não tem definição clara. O pior da nossa crise não é sua continuidade, sua longevidade, mas a falta de clareza quanto à sua natureza. É política ou é mais que isso: faltam referências que possam identificar e unificar a nação? Perdeu-se a capacidade de empatia?
O fato é que a instituição que tem como tarefa ser ''a última instância'' parece incapaz de decidir. Sim, o STF vive um momento de vazio de liderança. Infelizmente, Cármen Lúcia não está à altura do desafio. Mas, para sermos justos com Cármen Lúcia, com a história e com o futuro, quem estaria à altura desse destino?
A crise vai assim fragmentando os espaços de coesão: o Congresso, os partidos, o Judiciário… E isto tudo afasta a sociedade das instituições, como se ambos fossem seres estranhos. Estrangeiros no lugar e no momento.
Uma das imagens mais duras dos últimos tempos foi, na semana que passou, milhares de pessoas nas ruas em protesto pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes e, ao mesmo tempo, os magistrados do Brasil que ocupavam os salões em Brasília em defesa do auxílio-moradia. Interesses de grupos nos apequenam a todos.
Nada disso parece fazer sentido. Estamos num labirinto sem saída, expostos ao Minotauro. Não há Teseu, não há Ariadne; não há coragem e nem sagacidade. Estamos definitivamente perdidos? Cedo para dizer. O certo é que se delonga agonias e protela-se o destino. Não se trata de Lula, mas da necessidade de retirar logo essa pedra da bota, e seguir andando. Andar para onde, José? Historiadores e politólogos do futuro o dirão.
Carlos Melo
O tribunal decidiu não decidir, pelo menos até 4 de abril. E nada garante que então o faça. O Brasil não é nem mesmo para os experientes.
São os rituais da Justiça e as idiossincrasias do Supremo Tribunal Federal (STF), ¡ por supuesto! De fato, suas excelências falam muito, rodeiam, não primam pela objetividade, se perdendo em rapapés e adulações mútuas. Frases de erudição desnecessária, elogios ao ''acento perfeito'', em francês, do advogado de defesa; considerações sobre as decisões do passado; estocadas implícitas e cotoveladas explícitas.
Essas cortes são mesmo assim, alguém dirá. E é um avanço. No passado, usavam perucas e pó-de-arroz. Hoje, apenas a toga. Tudo é ainda bastante performático. Com a transmissão ao vivo pela TV, então, a vaidade aflora.
Como escorpiões, os magistrados se examinam, se rodeiam e se acautelam uns dos outros. O tribunal, como se sabe, está dividido. O que, em si, não seria problema. A divisão interna não é um mal. O mal, em si, é a falta de unidade.
Pois, pode-se conviver com frações e divergências internas, mas não se pode lidar com esgarçamento de um corpo tão necessário quanto uma suprema corte. Pode ser apenas impressão, pode ser má vontade, pode ser ignorância de quem não transita no Judiciário brasileiro, mas a percepção que se tem, hoje, do STF é que não há ''liga'', não há argamassa que unifique seus membros, sem identidade e coesão mínimas. Não, eles não precisam ser amigos. Mas, o alargamento do diálogo é imperativo.
Sinal dos tempos. O clima político e das instituições brasileiras, de um modo geral, é esse mesmo: esgarçamento. Teóricos chamariam a isto de anomia, o pesadelo dos sociólogos. Pode ser. Ou pode ser exagero. O fato é que muito do que o país vive não tem definição clara. O pior da nossa crise não é sua continuidade, sua longevidade, mas a falta de clareza quanto à sua natureza. É política ou é mais que isso: faltam referências que possam identificar e unificar a nação? Perdeu-se a capacidade de empatia?
O fato é que a instituição que tem como tarefa ser ''a última instância'' parece incapaz de decidir. Sim, o STF vive um momento de vazio de liderança. Infelizmente, Cármen Lúcia não está à altura do desafio. Mas, para sermos justos com Cármen Lúcia, com a história e com o futuro, quem estaria à altura desse destino?
A crise vai assim fragmentando os espaços de coesão: o Congresso, os partidos, o Judiciário… E isto tudo afasta a sociedade das instituições, como se ambos fossem seres estranhos. Estrangeiros no lugar e no momento.
Uma das imagens mais duras dos últimos tempos foi, na semana que passou, milhares de pessoas nas ruas em protesto pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes e, ao mesmo tempo, os magistrados do Brasil que ocupavam os salões em Brasília em defesa do auxílio-moradia. Interesses de grupos nos apequenam a todos.
Nada disso parece fazer sentido. Estamos num labirinto sem saída, expostos ao Minotauro. Não há Teseu, não há Ariadne; não há coragem e nem sagacidade. Estamos definitivamente perdidos? Cedo para dizer. O certo é que se delonga agonias e protela-se o destino. Não se trata de Lula, mas da necessidade de retirar logo essa pedra da bota, e seguir andando. Andar para onde, José? Historiadores e politólogos do futuro o dirão.
Carlos Melo
Mundo dos mortos-vivos
Existe magistrado exemplar?
Não só existe, como conheci essa rara figura. Aliás, raríssima, de dar inveja (data venia) aos mais nobres magistrados. Não sei se era religioso; talvez sim, mas com uma generosa pitada de agnosticismo, que é o sal do niilismo moderno.
Sei que era francês. Eu o conheci nos meus primeiros dias de Paris, no inverno tenebroso de 1978. Passamos uma tarde inteira e uma parte da noite num café da rue Fouarre. Que magistrado incrível! Que exemplo de juiz de instrução, ainda mais neste tempo de privilégios, que há séculos é o tempo brasileiro.
Morávamos no mesmo bairro, onde ele nascera no século 19, quando a miséria em Paris saltava aos olhos, e os salteadores não davam trégua a ninguém: aristocratas decadentes, pequeno-burgueses e novos-ricos da burguesia.
Mal tomei o primeiro gole de café, percebi que a vaidade não era a paixão dominante do juiz. Mas essa modéstia é apenas uma entre muitas grandezas morais do velho senhor. Numa época remota, de guerras e extrema penúria, ele fora nomeado presidente de uma comissão para socorrer os indigentes e inválidos do nosso bairro. E então, o grande jurisconsulto, o percuciente criminalista cuja superioridade moral e profissional parecia aos colegas uma aberração, percebeu as verdadeiras causas dos resultados judiciários.
Contou que depois de ver tanta miséria e refletir sobre as cruéis necessidades que conduzem gradualmente os pobres a ações reprováveis, avaliou a longa luta pela sobrevivência de seus conterrâneos. Foi, enfim, acometido pela compaixão. Tornou-se uma espécie de São Vicente de Paula de crianças órfãs, de homens e mulheres que esmolavam e dormiam em calçadas, de famílias que procuravam abrigo ou um prato de sopa. Não entendia por que alguns colegas mandavam prender mães paupérrimas que furtavam ovos e pães para dar aos filhos famintos.
“Um juiz pode ser inflexível e, ao mesmo tempo, caridoso”, sentenciou. “Em alguns casos, a caridade deve contrariar a letra da lei, que é sempre fria, e não raramente ambígua, senão estúpida. De tanto confrontar a letra da lei com o espírito dos fatos, acabei percebendo o desacerto de aplicações violentas e espontâneas.”
Jean-Jules começou a exercer funções gratuitamente, sem qualquer ostentação. Agia em várias frentes: prevenia o crime, arranjava trabalho aos desempregados, distribuía com discernimento uma parte de seus próprios recursos. Dedicava o período matutino aos pobres, o vespertino aos criminosos, e o noturno aos trabalhos judiciários. Ninguém, no Tribunal do Sena nem em Paris, conhecia essa vida secreta do juiz Jean-Jules. Por não ser intrigante, muito menos bajulador e carreirista, era alheio às lutas internas do tribunal e ao “esprit de corps”, que ele julgava um mal maior.
“O esprit de corps dos três poderes republicanos é a desgraça do povo, meu jovem. Se você for advogado, lembre-se disso. Se for apenas cidadão, jamais se esqueça disso.”
Memorizei outras frases notáveis da nossa longa conversa, na verdade um monólogo. “Há ingratidões forçadas, jovem. Mas nenhum coração pode considerar-se grande semeando o bem para colher a gratidão.”
Ele falou durante mais de três horas, sem sucumbir à meia garrafa de poire gelado. Anoitecia no La Ruse, um café silencioso do quinto distrito. Talvez nem exista mais. A memória da voz, sim, sobreviveu. Citou um punhado de moralistas franceses, depois exaltou os iluministas, Rousseau à frente, e não sei quantos outros atrás.
Na luz baça do La Ruse via seus olhos acesos, suas imensas orelhas de abano, seu rosto sacerdotal, seu pescoço taurino que sustentava uma cabeça de bezerro, insípida de tão terna. A solidão no La Ruse e na vida nos deixara tête-à-tête. Ele parecia um fantasma vestido à moda antiga, olhando o poire na taça de cristal. E eu era apenas um jovem arquiteto expatriado, com poucas ilusões, e sem cinco francos para pagar uma dose de conhaque. Ah, grande e nobre magistrado: não fosse minha timidez, terias pago três, cinco, dez doses de conhaque. Uma garrafa inteira! Pagaste o café e um croissant, e eu ainda recebi de graça uma inesquecível aula de ética.
Na semana passada, quando bateu uma saudade do velho juiz Jean-Jules Popinot, reli a história dele na novela escrita por Balzac: A Interdição.
Um magistrado assim, tão exemplar, compassivo, só existe na ficção?
Em todo caso, leiam A Interdição, moços e moças de direito! Leiam vocês também, jovens e velhos juízes e procuradores. Há ficções, como O Processo, que valem mais do que mil códigos e tratados nesse mar de misérias e crueldades. Mas se lerem a noveleta de Balzac, já será alguma coisa. E se não apreciarem o livrinho, direi, como o Bruxo do Cosme Velho: “Pago-lhes com um piparote, e adeus”.
Milton Hatoum
Sei que era francês. Eu o conheci nos meus primeiros dias de Paris, no inverno tenebroso de 1978. Passamos uma tarde inteira e uma parte da noite num café da rue Fouarre. Que magistrado incrível! Que exemplo de juiz de instrução, ainda mais neste tempo de privilégios, que há séculos é o tempo brasileiro.
Morávamos no mesmo bairro, onde ele nascera no século 19, quando a miséria em Paris saltava aos olhos, e os salteadores não davam trégua a ninguém: aristocratas decadentes, pequeno-burgueses e novos-ricos da burguesia.
Mal tomei o primeiro gole de café, percebi que a vaidade não era a paixão dominante do juiz. Mas essa modéstia é apenas uma entre muitas grandezas morais do velho senhor. Numa época remota, de guerras e extrema penúria, ele fora nomeado presidente de uma comissão para socorrer os indigentes e inválidos do nosso bairro. E então, o grande jurisconsulto, o percuciente criminalista cuja superioridade moral e profissional parecia aos colegas uma aberração, percebeu as verdadeiras causas dos resultados judiciários.
Contou que depois de ver tanta miséria e refletir sobre as cruéis necessidades que conduzem gradualmente os pobres a ações reprováveis, avaliou a longa luta pela sobrevivência de seus conterrâneos. Foi, enfim, acometido pela compaixão. Tornou-se uma espécie de São Vicente de Paula de crianças órfãs, de homens e mulheres que esmolavam e dormiam em calçadas, de famílias que procuravam abrigo ou um prato de sopa. Não entendia por que alguns colegas mandavam prender mães paupérrimas que furtavam ovos e pães para dar aos filhos famintos.
“Um juiz pode ser inflexível e, ao mesmo tempo, caridoso”, sentenciou. “Em alguns casos, a caridade deve contrariar a letra da lei, que é sempre fria, e não raramente ambígua, senão estúpida. De tanto confrontar a letra da lei com o espírito dos fatos, acabei percebendo o desacerto de aplicações violentas e espontâneas.”
Jean-Jules começou a exercer funções gratuitamente, sem qualquer ostentação. Agia em várias frentes: prevenia o crime, arranjava trabalho aos desempregados, distribuía com discernimento uma parte de seus próprios recursos. Dedicava o período matutino aos pobres, o vespertino aos criminosos, e o noturno aos trabalhos judiciários. Ninguém, no Tribunal do Sena nem em Paris, conhecia essa vida secreta do juiz Jean-Jules. Por não ser intrigante, muito menos bajulador e carreirista, era alheio às lutas internas do tribunal e ao “esprit de corps”, que ele julgava um mal maior.
“O esprit de corps dos três poderes republicanos é a desgraça do povo, meu jovem. Se você for advogado, lembre-se disso. Se for apenas cidadão, jamais se esqueça disso.”
Memorizei outras frases notáveis da nossa longa conversa, na verdade um monólogo. “Há ingratidões forçadas, jovem. Mas nenhum coração pode considerar-se grande semeando o bem para colher a gratidão.”
Ele falou durante mais de três horas, sem sucumbir à meia garrafa de poire gelado. Anoitecia no La Ruse, um café silencioso do quinto distrito. Talvez nem exista mais. A memória da voz, sim, sobreviveu. Citou um punhado de moralistas franceses, depois exaltou os iluministas, Rousseau à frente, e não sei quantos outros atrás.
Na luz baça do La Ruse via seus olhos acesos, suas imensas orelhas de abano, seu rosto sacerdotal, seu pescoço taurino que sustentava uma cabeça de bezerro, insípida de tão terna. A solidão no La Ruse e na vida nos deixara tête-à-tête. Ele parecia um fantasma vestido à moda antiga, olhando o poire na taça de cristal. E eu era apenas um jovem arquiteto expatriado, com poucas ilusões, e sem cinco francos para pagar uma dose de conhaque. Ah, grande e nobre magistrado: não fosse minha timidez, terias pago três, cinco, dez doses de conhaque. Uma garrafa inteira! Pagaste o café e um croissant, e eu ainda recebi de graça uma inesquecível aula de ética.
Na semana passada, quando bateu uma saudade do velho juiz Jean-Jules Popinot, reli a história dele na novela escrita por Balzac: A Interdição.
Um magistrado assim, tão exemplar, compassivo, só existe na ficção?
Em todo caso, leiam A Interdição, moços e moças de direito! Leiam vocês também, jovens e velhos juízes e procuradores. Há ficções, como O Processo, que valem mais do que mil códigos e tratados nesse mar de misérias e crueldades. Mas se lerem a noveleta de Balzac, já será alguma coisa. E se não apreciarem o livrinho, direi, como o Bruxo do Cosme Velho: “Pago-lhes com um piparote, e adeus”.
Milton Hatoum
STF, uma visão do inferno
Não, três vezes não! Eles não farão um Brasil à sua hedionda imagem e semelhança.
Nesta noite de 22 de março, enquanto escrevo, sinto o coração apertado. Sei que, neste momento, os ratos se regozijam nos porões do submundo e os grandes abutres festejam nas iluminadas coberturas do poder. Aos olhos escandalizados da nação, o STF testemunhou contra si mesmo. Falou aos trancos com o “humanitário” Gilmar Mendes. Soprou vaidade e ironia matreira com Marco Aurélio Mello. Tartamudeou e olhou assustado com Rosa Weber. Perdeu resquícios de pudor militante e se fantasiou de amor ao próximo com Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Deu razão a Saulo Ramos com os floreios monocórdios de Celso de Mello.
Enquanto confessavam suas culpas e exaltavam a impunidade, viralizava o crime, a corrupção e o pandemônio moral. Suas palavras nos aprisionavam ainda mais, corroendo esperanças que juízes de verdade haviam plantado em nossas almas. Acabamos o dia numa cidadania vã, sugados feito bagaço, desprovidos de qualquer poder e capturados pelo mecanismo que nos tomou como servos submissos, pagadores das contas que não cessam de nos impor. Ironicamente, queriam convencer-nos de que era tudo para o nosso bem e que impunidade também pode ser chamada – vejam o sacrilégio! – de liberdade. Ora, isso é tão ridículo que não prosperará!
Reconheço. Assim como, em Cuba, tive medo do Estado, esta tarde tive medo aqui. Medo de também nos tomarem a esperança. Senti a dormência de sua perda e me lembrei das palavras lidas por Dante no sinistro portal do Inferno: “Por mim se vai a cidade dolente; por mim se vai a eterna dor; por mim se vai a perdida gente...”. E, ao fim do verso, a sentença terrível que, há sete séculos, ecoa com letras escuras nas horas sombrias: “Lasciate ogni speranza voi ch’entrate” (Deixai toda esperança, vós que entrais).
Não exagero, leitor amigo. Ali estava, mesmo, o portal do Averno, do Inframundo. Cinco dos sete pecados capitais eram encenados por uma tribo de togas. Os dardos da ira cruzavam o salão como tiroteio na favela. A soberba se refestelava na própria voz. Ah, o poder sem freios! A inveja se esbaforia entre duas malquerenças: a do brilho e a da altivez. A preguiça, sim ela, fez parar a sessão às 18 horas; ela mesma admitiu as férias pascais. A avareza fremia de cupidez, olhos postos nos bilhões em honorários que se derramarão para a imediata soltura de milhares de criminosos endinheirados, já cumprindo pena de prisão por condenação em segunda instância. São sentenciados cujas condenações extinguiram completamente a presunção de inocência, mas em relação às quais não se completou – e talvez não se complete jamais – o rito do trânsito em julgado. Ao menos enquanto houver talão de cheques com fundos suficientes para puxar os cordéis da impunidade.
Todavia, não! Este é o país de Bonifácio, de Pedro II, de Nabuco, de Caxias! Esse STF fala por si e haverá de passar! Os corruptos não nos convencem nem nos vencem. Trouxeram-nos às portas do Inferno. Exibiram-nos o portal de Dante. Que entrem sozinhos. Perseveraremos.
Percival Puggina
Nesta noite de 22 de março, enquanto escrevo, sinto o coração apertado. Sei que, neste momento, os ratos se regozijam nos porões do submundo e os grandes abutres festejam nas iluminadas coberturas do poder. Aos olhos escandalizados da nação, o STF testemunhou contra si mesmo. Falou aos trancos com o “humanitário” Gilmar Mendes. Soprou vaidade e ironia matreira com Marco Aurélio Mello. Tartamudeou e olhou assustado com Rosa Weber. Perdeu resquícios de pudor militante e se fantasiou de amor ao próximo com Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Deu razão a Saulo Ramos com os floreios monocórdios de Celso de Mello.
Reconheço. Assim como, em Cuba, tive medo do Estado, esta tarde tive medo aqui. Medo de também nos tomarem a esperança. Senti a dormência de sua perda e me lembrei das palavras lidas por Dante no sinistro portal do Inferno: “Por mim se vai a cidade dolente; por mim se vai a eterna dor; por mim se vai a perdida gente...”. E, ao fim do verso, a sentença terrível que, há sete séculos, ecoa com letras escuras nas horas sombrias: “Lasciate ogni speranza voi ch’entrate” (Deixai toda esperança, vós que entrais).
Não exagero, leitor amigo. Ali estava, mesmo, o portal do Averno, do Inframundo. Cinco dos sete pecados capitais eram encenados por uma tribo de togas. Os dardos da ira cruzavam o salão como tiroteio na favela. A soberba se refestelava na própria voz. Ah, o poder sem freios! A inveja se esbaforia entre duas malquerenças: a do brilho e a da altivez. A preguiça, sim ela, fez parar a sessão às 18 horas; ela mesma admitiu as férias pascais. A avareza fremia de cupidez, olhos postos nos bilhões em honorários que se derramarão para a imediata soltura de milhares de criminosos endinheirados, já cumprindo pena de prisão por condenação em segunda instância. São sentenciados cujas condenações extinguiram completamente a presunção de inocência, mas em relação às quais não se completou – e talvez não se complete jamais – o rito do trânsito em julgado. Ao menos enquanto houver talão de cheques com fundos suficientes para puxar os cordéis da impunidade.
Todavia, não! Este é o país de Bonifácio, de Pedro II, de Nabuco, de Caxias! Esse STF fala por si e haverá de passar! Os corruptos não nos convencem nem nos vencem. Trouxeram-nos às portas do Inferno. Exibiram-nos o portal de Dante. Que entrem sozinhos. Perseveraremos.
Percival Puggina
Mistério: 2019 e seus perigos sumiram do radar
Cadê 2019? De repente o próximo ano desapareceu do radar. A economia funciona como se a política pouco importasse, o Judiciário fosse um imponente farol, nenhuma reforma fosse urgente e a herança destinada ao novo presidente fosse, no mínimo, aceitável. A assombração da dívida pública parece ter sido esquecida ou exorcizada, assim como o risco de rompimento da regra de ouro das finanças oficiais – a proibição de tomar empréstimos para cobrir conta de luz, folha de pessoal e outras despesas correntes. A dúvida, no mercado, é se o País terá fôlego para crescer 3% em 2018 ou se os brasileiros terão de se contentar com pouco menos. Não há sinal de euforia, até porque o Brasil ainda convalesce da recessão, mas as projeções apontam expansão econômica na faixa de 2,5% a 3% neste ano e pouco mais em 2019 e 2020, com inflação perto da meta ou mesmo abaixo. E a pauta de ajustes e reformas? Deus proverá, assumindo tarefa mais ampla que a mencionada por Jesus no Sermão da Montanha?
Mas a pauta emperrou, afinal, e nada notável ocorreu no mercado. Nem sequer o rebaixamento da nota brasileira pela Fitch, uma das mais importantes agências de classificação de risco, gerou sobressalto visível. Estava tudo previsto, disseram as fontes mais consultadas. Mais que isso: já se absorveu, disse um banqueiro, o abandono da reforma da Previdência até o fim deste ano. Tudo bem, mas haverá alguma preocupação com 2019? O presidente eleito cuidará do assunto inevitavelmente?
Tanto no setor financeiro quanto no industrial a incerteza política parece ter produzido pouco ou nenhum efeito nos últimos meses. A insegurança pode limitar o investimento em bens de produção, é verdade, mas, apesar de tudo, as compras de máquinas e equipamentos têm crescido. Além disso, levantamentos periódicos apontam maior disposição de investir e maior certeza quanto à realização dos planos.
“A recuperação da produção e do investimento refletiu, entre outros fatores, a melhora acentuada nos indicadores de confiança”, segundo a Carta de Conjuntura publicada nesta semana pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No caso da indústria, assinalam os autores do informe, o indicador superou em fevereiro, pela primeira vez desde setembro de 2013, a linha de 100 pontos. Índices acima de 100 pontos denotam otimismo.
Tudo se passa, enfim, como se o andamento da produção, do consumo e até do investimento fosse basicamente auto-alimentado. A vida prossegue como se pouco importasse a correção dos enormes problemas das contas públicas, ou, enfim, como se tivesse escassa relevância o nome escolhido para ocupar o Palácio do Planalto a partir de 1.º de janeiro.
Além disso, projetos importantes para a gestão do Orçamento neste ano estão emperrados. Outros têm sido desfigurados nas comissões, como o da reoneração da folha de pagamentos. Muitos bilhões previstos como reforço das finanças públicas podem ser perdidos.
O bloqueio orçamentário de mais R$ 2 bilhões, anunciado na quinta-feira pelo Ministério do Planejamento, foi uma reação a esse obstáculo político. Com isso o total congelado no Orçamento chegou a R$ 18,2 bilhões. A reoneração poderia proporcionar R$ 8,9 bilhões. Outro projeto emperrado, o da privatização da Eletrobrás, poderia render R$ 12,2 bilhões ao Tesouro.
E daí? Daí, nada, pelo menos no dia a dia da produção, do consumo e até do investimento na capacidade produtiva das empresas. Como ocorre desde o ano passado, a vida e os negócios continuam, sem grandes abalos, num ambiente quase alpino ou escandinavo.
Mas o desempenho mais notável, nesse campeonato de tranquilidade e confiança, é o do Comitê de Política Monetária do Banco Central, o Copom. Além de reduzir os juros básicos de 6,75% para 6,5% na quarta-feira, o comitê acenou com mais um possível corte na próxima reunião, marcada para maio. A inflação tem ficado abaixo das previsões e, além disso, o cenário externo continua favorável, sem sinal de aperto mais forte na política do Federal Reserve, o banco central americano. E o resto?
Bom, a nota distribuída depois da reunião do Copom, às 6 da tarde de quarta-feira, ainda menciona a pauta de ajustes e reformas como muito importante. Se falhar, pode mexer nas expectativas e desequilibrar todo o quadro. Mas a referência fica por aí, como se alguém tivesse incluído esse parágrafo, mais uma vez, apenas para cumprir tabela. Talvez tenha sido esse o caso.
Se a história vai por aí, os eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) talvez estejam certos. Suspenderam na quinta-feira uma das sessões mais importantes do ano, deram salvo-conduto provisório ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e adiantaram o feriado da Semana Santa.
O réu mais ilustre da Lava Jato poderá continuar tranquilo, pelo menos por alguns dias, se o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região confirmar na segunda-feira, 26, sua condenação. Quanto aos meritíssimos do STF, só voltarão a bater ponto três dias depois da Páscoa. Poderão, enfim, julgar o pedido de habeas corpus a favor de Lula, recusado por cinco a zero no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Se o concederem, darão diplomas de bobos aos cinco juízes. Afinal, esses ministros votaram com base na jurisprudência criada pelo STF. A bobagem terá consistido em levar a sério essa jurisprudência. Quem mandou acreditar?
É arriscado dizer se o habeas corpus será concedido ou negado. Bem mais difícil é prever se uma decisão dessa natureza ainda afetará os mercados.
Por que Gilmar Mendes e o Supremo temem o clamor das ruas?
Ao mesmo tempo, o espírito da lei é pisoteado muitas vezes. E é a quebra desse espírito que as ruas advertem quando se defende para os poderosos a possibilidade de recursos infinitos a todas as instâncias para evitar a prisão. Algo que pode levar anos e acabar favorecendo aqueles que têm a possibilidade de pagar advogados que mantenham o condenado em liberdade. E os outros? Os pobres que não têm esses recursos? Para eles é impossível eternizar o processo até a prescrição da sentença. Somos realmente todos iguais perante a lei?
É mais fácil que seja a sociedade e não os legisladores quem indique essa dissonância que leva a distinguir os criminosos poderosos dos simples mortais. Estamos, portanto, diante de dois direitos conflitantes: o da presunção de inocência e o da Justiça que deve ser igual para todos. São dois conceitos igualmente importantes que devem valer para todos ou acabam prejudicando os menos favorecidos.
Dado que com aqueles que não são poderosos os escrúpulos pela presunção de inocência acabam sendo esquecidos e eles são, portanto, arrastados para a prisão sem mais, seria mais próximo da Justiça igualitária que todos, pobres e ricos, começassem a cumprir a pena ao mesmo tempo. Com presos sem nome há menos escrúpulos do que com os famosos e eles são presos tantas vezes antes mesmo de serem julgados. Quantos milhares desses presos anônimos apodrecem nas prisões nessa situação? No Brasil aparentemente eles são mais de duzentos mil.
Mesmo com prisão depois da condenação em segunda instância, os presos privilegiados continuarão levando a melhor, pois permanecerão menos tempo atrás das grades por disporem de advogados que fornecem habeas corpus, que na maioria dos casos lhes permitem cumprir a pena em liberdade. Pergunte-se a Gilmar Mendes, tão cheio de compaixão pelos presos de luxo. Os outros, aqueles sem advogados presunçosos, continuarão presos enquanto Deus quiser, abandonados à própria sorte.
Daí que, diante de dois direitos legítimos, o da presunção de inocência e o de que todos devem ser iguais perante a lei, a sociedade acabe vendo o primeiro como um biombo para evitar a prisão dos privilegiados e se sinta mais sensível ao outro direito não menos sagrado de que a lei é a mesma para todos. São as ruas que entenderam, por exemplo, que Carmen Lúcia e Barroso –mais do que Gilmar Mendes– estão mais próximos do espírito da lei do que de sua letra fria. Ou será que alguém acredita que, se, por exemplo, Lula foi preso, permanecerá na cadeia o mesmo tempo de um condenado comum e anônimo, réu pelos mesmos crimes que ele, mas sem advogados ilustres e magistrados amigos? Quando os membros do Supremo reclamam que não podem ser pressionados pelo clamor das ruas, esquecem que muitas vezes a sensibilidade e o senso comum da sociedade são os melhores interpretes do espírito da lei.
Em sua última coluna para este jornal, o escritor espanhol Juan José Millás usou uma metáfora entre a letra das palavras e seu significado, usando para isso a imagem da gaiola e do pássaro. A gaiola, com seu engradado, é apenas a palavra escrita ou o seu som; o pássaro é o significado. O perigo dos legalistas, como a maioria dos magistrados do Supremo parece ser, é confundir o envoltório das palavras da lei com a alma do que palpita dentro dela.
A sociedade –que possui um radar especial para detectar as manobras em favor dos poderosos– aumenta a cada dia o divórcio entre ela e aqueles que deveriam oferecer-lhe a garantia de uma Justiça sem dois pesos e duas medidas. É um esgarçamento da credibilidade que aumenta a cada dia entre o povo e seus representantes. Até onde pode levar essa perda de fé na autoridade e como ela pode prejudicar a já frágil democracia brasileira?
O Leviatã em coma
Sociedades são arranjos complexos e dinâmicos. Têm suas contradições, suas diferenças, suas forças internas. Movem-se em função delas. São, como diz uma máxima, o “mundos dos homens” e mulheres.
Sociedades conhecem altos e baixos, crises, fases de bem-estar e felicidade e fases de fracasso e incerteza, em que o futuro parece solto no ar. Há períodos em que o arranjo desanda de tal jeito que se generaliza a sensação de que a tarefa de aprumá-lo não poderá ser cumprida. Esses são períodos de confusão e turbulência, de desânimo cívico, indignação e revolta.
É onde está hoje o Brasil. Numa estrada repleta de curvas, depois das quais não se antevê nenhum belvedere.
A Lava Jato encurralou a corrupção instalada no Estado. Tem prendido e condenado políticos, empresários e intermediários poderosos, fato que acende muitas esperanças. Mas há ao mesmo tempo judicialização excessiva e a elite togada não se mostra qualificada para dar conta do recado.
O assassinato da vereadora Marielle Franco foi um atentado contra a democracia e contra os direitos humanos. Mas causou uma indignação social tão grande que pode ter inaugurado uma nova situação. Não há escalada autoritária no País, em que pese a violência se reproduzir.
O problema é o que se vê e sente. Os cidadãos só conseguem vislumbrar escombros, que recobrem conquistas políticas e sociais duramente alcançadas nos anos mais “heroicos”, em que a maioria caminhava numa mesma direção e acreditava nas mesmas coisas.
Olham para o Estado, esse guardião da comunidade, e ficam ainda mais ressabiados e inseguros. O Leviatã simplesmente parece em coma. Da Presidência da República ao Legislativo, passando pelo Judiciário, sucede-se o mesmo quadro: cabeças batendo entre si, mediocridade generalizada, reações adaptativas e defensivas, uma recorrente demonstração de que ninguém sabe bem que direção tomar.
A crise do Supremo Tribunal Federal (STF) é o indicador mais recente do quanto a comunidade política nacional está em condição de sofrimento. Não é preciso analisar as minúcias do problema para ver a gravidade da situação. Afinal, estão ali sentadas 11 sumidades jurídicas, intérpretes autorizados da Constituição. Esse panteão de figuras consideradas superiores, porém, não consegue entender-se. Dissonâncias ultrapassam o razoável, o individual sobrepõe-se ao institucional, as decisões são erráticas, a tal ponto que a sociedade fica a se perguntar se os magistrados não seriam somente personagens de um drama que não conseguem decifrar. Em vez de paz e consenso, o STF produz atrito, fogo e fumaça. Basta a ameaça a um interesse poderoso para que a Corte trema de cima a baixo e passe a flertar com o casuísmo, ameaçando modificar jurisprudências e entendimentos procedimentais ainda frescos de tinta, como é o caso da prisão em segunda instância. A oscilação de alguns ministros deixa transparecer que alguma força externa pesa nas avaliações.
Os cidadãos afastam-se, assim, dos juízes. Assistem a bate-bocas pesadíssimos, cheios de ofensas verbais e agressões. O ministro Luís Roberto Barroso disse a Gilmar Mendes: “Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Vossa excelência é uma desonra para todos nós, um temperamento agressivo, grosseiro, rude. Sozinho desmoraliza o tribunal”. E se Barroso estiver certo?
Agindo nos bastidores, ministros forçaram a presidente da Corte, Cármen Lúcia, a levar a plenário o julgamento de um habeas corpus (HC) preventivo para livrar Lula da prisão após decisão em segunda instância. Na quinta-feira, 22, o Tribunal decidiu aceitar o HC, mas não conseguiu apreciar seu mérito, transferindo a decisão para 4 de abril e aprovando uma liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfiança e sensação de parcialidade.
Assustados, os cidadãos procuram os partidos, que deveriam dedicar-se à valorização da política, mas apenas conseguem encontrar entes desnervados, que só fazem lustrar os próprios sapatos. Pensam em recorrer aos políticos e se deparam com pessoas que preferem semear ventos para colher tempestades, na vã ilusão de que depois delas a bonança prevalecerá.
Chegam, então, à sociedade civil, esse setor que carreia tantas esperanças, mas, com o tempo, foi sendo estressada pelos particularismos – partidários, ideológicos, identitários – e pela guerra de “narrativas”. Impulsionada por redes sociais destemperadas, não consegue articular-se e tem pouca incidência consistente na vida dos cidadãos, da cultura, da política, do País.
Atingido esse ponto, os cidadãos perguntam: o que fazer?
Diz-se que é nos piores momentos que aparecem as melhores ideias. Foi assim durante os anos da ditadura, quando, por volta de 1975, ao abrir-se a “transição lenta, gradual e segura”, as nuvens se carregaram a ponto de ameaçar o País com uma tormenta bíblica. Foi assim na luta para conter a inflação, introduzir maior racionalidade na administração pública e adotar programas de transferência de renda e assistência social, durante os governos de FHC e Lula. Nesses momentos, o País como que se re-uniu e avançou.
Não dá para dizer que o mesmo acontecerá hoje. Faltam-nos alguns ingredientes básicos – lideranças, ideias, um pacto de convivência, unidade democrática. E não há aquela fagulha mágica que incendeia mentes e corações.
É preciso, porém, resistir. Buscar um eixo, viver a hora da verdade. O coma do Leviatã não pode calcificar as esperanças. Com boa vontade e empenho, os democratas – liberais, de centro, socialistas, de esquerda – têm como atuar de forma “anticíclica” e promover uma articulação que pavimente outro caminho. As instituições estão aí, prontas para ser recuperadas. E a política, acima de tudo, é uma atividade vocacionada para inventar saídas. Mesmo quando tudo parece conspirar contra.
Sociedades conhecem altos e baixos, crises, fases de bem-estar e felicidade e fases de fracasso e incerteza, em que o futuro parece solto no ar. Há períodos em que o arranjo desanda de tal jeito que se generaliza a sensação de que a tarefa de aprumá-lo não poderá ser cumprida. Esses são períodos de confusão e turbulência, de desânimo cívico, indignação e revolta.
É onde está hoje o Brasil. Numa estrada repleta de curvas, depois das quais não se antevê nenhum belvedere.
A Lava Jato encurralou a corrupção instalada no Estado. Tem prendido e condenado políticos, empresários e intermediários poderosos, fato que acende muitas esperanças. Mas há ao mesmo tempo judicialização excessiva e a elite togada não se mostra qualificada para dar conta do recado.
O assassinato da vereadora Marielle Franco foi um atentado contra a democracia e contra os direitos humanos. Mas causou uma indignação social tão grande que pode ter inaugurado uma nova situação. Não há escalada autoritária no País, em que pese a violência se reproduzir.
O problema é o que se vê e sente. Os cidadãos só conseguem vislumbrar escombros, que recobrem conquistas políticas e sociais duramente alcançadas nos anos mais “heroicos”, em que a maioria caminhava numa mesma direção e acreditava nas mesmas coisas.
Olham para o Estado, esse guardião da comunidade, e ficam ainda mais ressabiados e inseguros. O Leviatã simplesmente parece em coma. Da Presidência da República ao Legislativo, passando pelo Judiciário, sucede-se o mesmo quadro: cabeças batendo entre si, mediocridade generalizada, reações adaptativas e defensivas, uma recorrente demonstração de que ninguém sabe bem que direção tomar.
A crise do Supremo Tribunal Federal (STF) é o indicador mais recente do quanto a comunidade política nacional está em condição de sofrimento. Não é preciso analisar as minúcias do problema para ver a gravidade da situação. Afinal, estão ali sentadas 11 sumidades jurídicas, intérpretes autorizados da Constituição. Esse panteão de figuras consideradas superiores, porém, não consegue entender-se. Dissonâncias ultrapassam o razoável, o individual sobrepõe-se ao institucional, as decisões são erráticas, a tal ponto que a sociedade fica a se perguntar se os magistrados não seriam somente personagens de um drama que não conseguem decifrar. Em vez de paz e consenso, o STF produz atrito, fogo e fumaça. Basta a ameaça a um interesse poderoso para que a Corte trema de cima a baixo e passe a flertar com o casuísmo, ameaçando modificar jurisprudências e entendimentos procedimentais ainda frescos de tinta, como é o caso da prisão em segunda instância. A oscilação de alguns ministros deixa transparecer que alguma força externa pesa nas avaliações.
Os cidadãos afastam-se, assim, dos juízes. Assistem a bate-bocas pesadíssimos, cheios de ofensas verbais e agressões. O ministro Luís Roberto Barroso disse a Gilmar Mendes: “Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia. Vossa excelência é uma desonra para todos nós, um temperamento agressivo, grosseiro, rude. Sozinho desmoraliza o tribunal”. E se Barroso estiver certo?
Agindo nos bastidores, ministros forçaram a presidente da Corte, Cármen Lúcia, a levar a plenário o julgamento de um habeas corpus (HC) preventivo para livrar Lula da prisão após decisão em segunda instância. Na quinta-feira, 22, o Tribunal decidiu aceitar o HC, mas não conseguiu apreciar seu mérito, transferindo a decisão para 4 de abril e aprovando uma liminar que suspende uma eventual prisão de Lula. Deixou tudo em suspenso, criando mais desconfiança e sensação de parcialidade.
Assustados, os cidadãos procuram os partidos, que deveriam dedicar-se à valorização da política, mas apenas conseguem encontrar entes desnervados, que só fazem lustrar os próprios sapatos. Pensam em recorrer aos políticos e se deparam com pessoas que preferem semear ventos para colher tempestades, na vã ilusão de que depois delas a bonança prevalecerá.
Chegam, então, à sociedade civil, esse setor que carreia tantas esperanças, mas, com o tempo, foi sendo estressada pelos particularismos – partidários, ideológicos, identitários – e pela guerra de “narrativas”. Impulsionada por redes sociais destemperadas, não consegue articular-se e tem pouca incidência consistente na vida dos cidadãos, da cultura, da política, do País.
Atingido esse ponto, os cidadãos perguntam: o que fazer?
Diz-se que é nos piores momentos que aparecem as melhores ideias. Foi assim durante os anos da ditadura, quando, por volta de 1975, ao abrir-se a “transição lenta, gradual e segura”, as nuvens se carregaram a ponto de ameaçar o País com uma tormenta bíblica. Foi assim na luta para conter a inflação, introduzir maior racionalidade na administração pública e adotar programas de transferência de renda e assistência social, durante os governos de FHC e Lula. Nesses momentos, o País como que se re-uniu e avançou.
Não dá para dizer que o mesmo acontecerá hoje. Faltam-nos alguns ingredientes básicos – lideranças, ideias, um pacto de convivência, unidade democrática. E não há aquela fagulha mágica que incendeia mentes e corações.
É preciso, porém, resistir. Buscar um eixo, viver a hora da verdade. O coma do Leviatã não pode calcificar as esperanças. Com boa vontade e empenho, os democratas – liberais, de centro, socialistas, de esquerda – têm como atuar de forma “anticíclica” e promover uma articulação que pavimente outro caminho. As instituições estão aí, prontas para ser recuperadas. E a política, acima de tudo, é uma atividade vocacionada para inventar saídas. Mesmo quando tudo parece conspirar contra.
Holanda destina mais de R$ 100 milhões para avaliar a solidão dos idosos
No fim do ensino primário, as crianças holandesas costumam visitar algum lar de idosos de sua cidade. Os alunos do ensino médio também o fazem, especialmente no Natal, e tomam alguma coisa com eles. Uma tradição bonita, ainda que efêmera. Desde que o Governo da Holanda anunciou, em 2013, a substituição do Estado de bem-estar por uma “sociedade participativa”, as residências tradicionais para idosos foram fechando quartos, para que os aposentados sem problemas motores ou demência passassem a ser cuidados por familiares, amigos, vizinhos ou voluntários. Todos cheios de boas intenções mas, às vezes, com pouco tempo. O problema é que o ajuste de então, resultado da crise, chegou às Prefeituras, que dispõem de menos fundos para gerir o novo modelo de assistência. E a solidão dos que continuam em casa é um fato para 700.000 pessoas com mais de 75 anos, segundo o Escritório Central de Estatística. O Ministério da Saúde considera que “ajudá-los é uma tarefa comum”, e acaba de destinar 26 milhões de euros (mais de 100 milhões de reais) para visitá-los uma vez por ano.
Querem verificar “se a solidão deixou marcas, ou se começa a aparecer, com suas consequências físicas, psíquicas e financeiras”, explicam fontes do ministério. O plano do Executivo envolve desde motoristas de ônibus até cabeleireiros, “para que deem uma olhada nos passageiros e clientes, e notem se parecem solitários”. A Fundação Nacional para os Idosos calcula por sua vez que cerca de 200.000 holandeses com mais de 75 anos se sentem muito sozinhos “e muitos se envergonham disso”, segundo Corina Gielbert, diretora da Fundação. Logo depois do anúncio do plano, ela afirmou que “o tabu é cada vez menor, mas há quem acredite que se você se sente sozinho a culpa é sua; por isso essa iniciativa governamental é ótima”.
Para Kees, um veterano que “passa dos 75” e passeia com seu cachorro com regularidade por um bairro de classe média alta de Haia, a situação é preocupante. Há dois anos, foi operado no joelho e se recuperou em uma casa de convalescença na cidade. Depois voltou para casa. “Vivo em uma casa térrea, como tantos idosos na Holanda, para não ter de subir escadas, e espero não precisar logo de outros cuidados. Mas sim, a solidão é um assunto muito sério”, afirma sorridente. Gerda, uma senhora “velha, velha”, como ela se apresenta, que compra o almoço em um supermercado na mesma cidade, reconhece que é inevitável. “Agora temos tudo, televisão, Skype para falar com filhos e netos. Além disso cada um tem sua situação familiar, e aí você não se mete. E os voluntários são admiráveis, mas sim, existe a solidão”, afirma.
Entre 75 e 85 anos, 50% dos idosos se sentem solitários. A partir dos 85, a cifra chega a 60%, segundo o Instituto Nacional de Saúde Pública e Meio ambiente. A isso se acrescenta o temor de não saber bem a quem recorrer para evitar, por exemplo, golpes como o do falso cobrador de gás. Desde 2012, dispõem para isso do defensor de idosos, um tipo de ombudsman, que faz parte da própria Fundação Nacional para os Idosos. Podem telefonar ou entrar em contato com ele pela Internet quando precisam. Porque a solidão vem junto com a vulnerabilidade e entre as perguntas mais frequentes sobre segurança ou normas da prefeitura aparece uma inesperada. É sobre suas acomodações, “já que devido ao fechamento de alas inteiras de lares, os residentes devem mudar para outro, ou voltar para as casas do mercado”. “E é preciso saber como gerenciar isso”, diz uma das páginas mais visitadas da defensoria.
Querem verificar “se a solidão deixou marcas, ou se começa a aparecer, com suas consequências físicas, psíquicas e financeiras”, explicam fontes do ministério. O plano do Executivo envolve desde motoristas de ônibus até cabeleireiros, “para que deem uma olhada nos passageiros e clientes, e notem se parecem solitários”. A Fundação Nacional para os Idosos calcula por sua vez que cerca de 200.000 holandeses com mais de 75 anos se sentem muito sozinhos “e muitos se envergonham disso”, segundo Corina Gielbert, diretora da Fundação. Logo depois do anúncio do plano, ela afirmou que “o tabu é cada vez menor, mas há quem acredite que se você se sente sozinho a culpa é sua; por isso essa iniciativa governamental é ótima”.
Para Kees, um veterano que “passa dos 75” e passeia com seu cachorro com regularidade por um bairro de classe média alta de Haia, a situação é preocupante. Há dois anos, foi operado no joelho e se recuperou em uma casa de convalescença na cidade. Depois voltou para casa. “Vivo em uma casa térrea, como tantos idosos na Holanda, para não ter de subir escadas, e espero não precisar logo de outros cuidados. Mas sim, a solidão é um assunto muito sério”, afirma sorridente. Gerda, uma senhora “velha, velha”, como ela se apresenta, que compra o almoço em um supermercado na mesma cidade, reconhece que é inevitável. “Agora temos tudo, televisão, Skype para falar com filhos e netos. Além disso cada um tem sua situação familiar, e aí você não se mete. E os voluntários são admiráveis, mas sim, existe a solidão”, afirma.
Entre 75 e 85 anos, 50% dos idosos se sentem solitários. A partir dos 85, a cifra chega a 60%, segundo o Instituto Nacional de Saúde Pública e Meio ambiente. A isso se acrescenta o temor de não saber bem a quem recorrer para evitar, por exemplo, golpes como o do falso cobrador de gás. Desde 2012, dispõem para isso do defensor de idosos, um tipo de ombudsman, que faz parte da própria Fundação Nacional para os Idosos. Podem telefonar ou entrar em contato com ele pela Internet quando precisam. Porque a solidão vem junto com a vulnerabilidade e entre as perguntas mais frequentes sobre segurança ou normas da prefeitura aparece uma inesperada. É sobre suas acomodações, “já que devido ao fechamento de alas inteiras de lares, os residentes devem mudar para outro, ou voltar para as casas do mercado”. “E é preciso saber como gerenciar isso”, diz uma das páginas mais visitadas da defensoria.
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