terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Efeito tequila à vista

Falências disparando, vendas caindo e empregos sumindo – mas não para todos. Três instituições prosperam e se multiplicam na crise: partidos políticos, igrejas e, agora, facções criminosas. Cada uma no seu nicho de mercado e com estratégias distintas, mas usufruindo do sucesso que escapa a governos e empresas. Em comum, mantêm uma relação especial com o estado. Embora mantenham contabilidade detalhada, nenhuma recolhe impostos.

Há 35 partidos registrados oficialmente, e outros 50 na fila para ganharem acesso a lugar na urna eletrônica, ao horário de propaganda no rádio e TV e, mais importante, ao Fundo Partidário. O Congresso está tentando diminuir a concorrência – afinal, há que repartir tempo e dinheiro com os novatos -, mas, como mostraram os repórteres Mariana Diegas e Valmar Hupsel Filho, isso não intimidou os candidatos a cacique partidário.


Todos disseram não estar nem aí para a cláusula de barreira que os grandes partidos lhes querem impor. Seguem tentando lograr seu registro e, assim, usufruir da isenção fiscal e – entre outros benefícios – acesso à listagem com nome e dados pessoais de todos os eleitores brasileiros. Sim, inclusive os seus.

Partidos vendem esperança de uma vida melhor – quando não para todos, ao menos para seus filiados. Se não der para transformar a sociedade, que transforme a vida dos caciques e viabilize algum benefício para os seus chegados – um cargo público, talvez. Acenar com a prosperidade e uma virada na vida também é o atrativo de outra instituição em alta, com ou sem crise.

Pesquisa recente do Datafolha reconfirmou que igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais são as mais bem sucedidas na conquista de novos fiéis. Em duas décadas, duplicaram sua participação no mercado religioso. De 10% dos brasileiros em 1994 arrebanharam 22% em 2014 – e mantêm essa fatia desde então. Assim como os partidos, uma característica fundamental das igrejas emergentes é a sua pulverização.

Embora as denominações mais populares reúnam milhões de fiéis, outras dezenas de milhões de pessoas se definem genericamente como “evangélicos” ou pertencentes a um de centenas de grupos neopentecostais que, isoladamente, são pequenos demais para aparecerem nas tabelas do IBGE – mas, em conjunto, estão cada vez mais presentes no dia-a-dia da população.

Seu crescimento denota a incapacidade do estado e do mercado de oferecerem a um segmento populacional tão expressivo oportunidades suficientes de ascensão social e econômica. O dízimo promete suprir aquilo que os impostos não cobrem.

Nos últimos anos, explorando o crescimento das franjas mais marginalizadas do sistema, o crime se organizou a partir dos presídios. Segundo o repórter Alexandre Hisayasu, são pelo menos 27 facções que orbitam e guerreiam em torno das duas principais: o PCC e o Comando Vermelho. Também cobram mensalidade dos associados (em troca de “proteção”), movimentam centenas de milhões de reais por ano e buscam monopólio, do narcotráfico.

A resposta dos governos estaduais e federal foi complacente. Crime organizado derruba taxas de homicídio – porque inibe disputas paroquiais entre bandidos -, até irromper em massacres, como os de policiais em 2006 e os de detentos em 2016. Nessas crises, a complacência vira incapacidade. Mesmo sabendo que matanças viriam, as autoridades não conseguiram evitá-las.

É esperado que, em suas trajetórias emergentes, as facções criminosas e a política partidária se cruzem – como já se cruzaram denominações religiosas e partidos. Para antever no que isso vai dar, basta olhar para outros países latino-americanos.

A esquerda brasileira está perdendo os novos pobres

Começa a haver um consenso sobre a crise da esquerda contemporânea e o seu abandono pelos mais marginalizados, entre eles os trabalhadores não qualificados, os desempregados, os jovens desencantados e os imigrantes. Eles são o mundo da nova pobreza.

O resultado é duplamente dramático, porque a massa dos novos deserdados começa a se refugiar na extrema direita, que roubou da esquerda o discurso anticapitalista. Está ocorrendo na democrática Europa, e existe o perigo de que ocorra também aqui no Brasil.

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No espaço de alguns dias, vários intelectuais se manifestaram em concordância com tal análise. Neste mesmo jornal, Víctor Lapuente, doutor em Ciências Políticas da Universidade de Oxford, em seu artigo “O sexo da esquerda”, alertou sobre o risco de que a esquerda contemporânea “deixe de ser vista como representante da sociedade em seu conjunto”.

E nesse conjunto da sociedade vivem, por exemplo, a grande massa dos trabalhadores desqualificados, os últimos na escala da pirâmide social e os milhões que procuram trabalho. Todos eles esquecidos pelos grandes sindicatos.

Allen Berger, catedrático de economia na Universidade da Carolina do Sul, bateu na mesma tecla numa recente entrevista ao jornal O Globo, em que afirma que a esquerda de hoje “perdeu o poder de diálogo com os trabalhadores mais pobres”. Ele alerta que “esse mundo se rebelou” e está sendo “absorvido pela extrema direita”.

No Brasil, em um artigo recente no Estadão, o sociólogo José de Souza Martins, que já lecionou na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, criticava o Partido dos Trabalhadores (PT) por ter traído sua função institucional: “Poderia ter sido o canal de expressão daquela parcela da população que a história condena ao silêncio”.

O problema da esquerda brasileira, começando pelo PT, que constituía sua espinha dorsal, é, de fato, que acabou se aristocratizando, transformando-se no refúgio da classe média alta, dos artistas e intelectuais.

Os sindicatos se burocratizaram e se comprometeram mais com as categorias ricas, como os banqueiros, do que com o exército dos milhões de trabalhadores marginalizados. Deixaram para trás valores como os do mérito e a economia, cuja bandeira hoje é empunhada pela direita.

A esquerda petista escorregou, além disso, para a política da corrupção e dos privilégios. Não foi só o partido que se aburguesou, mas também muitos de seus ativistas, que descobriram o gosto pela vida cômoda dos milionários. E eles representavam a ética.

A esquerda brasileira resgatou milhões de trabalhadores da miséria, mas sem qualificá-los profissionalmente. Formou assim uma massa de novos pobres que hoje, decepcionados e castigados pela crise econômica, voltam seus olhos para a direita e para as igrejas evangélicas conservadoras (exemplos: a periferia pobre de São Paulo, que preferiu votar para prefeito no milionário João Doria, relegando o candidato do PT; e os excluídos das favelas do Rio, que elegeram como prefeito Marcello Crivella, bispo conservador da Igreja Universal, preferindo-o a Marcelo Freixo, candidato do esquerdista PSOL, que era o preferido pelas classes mais altas).

Sabemos, ao mesmo tempo, que a classe de trabalhadores pobre é conservadora. Defende a família e a tradição, por cultura e por instinto de sobrevivência, e vê com bons olhos que a polícia mate os criminosos sem os penduricalhos dos processos judiciais, sob o lema de que “bandido bom é bandido morto”.

Essa massa não se assusta com o fato de ocorrerem no Brasil 60.000 homicídios por ano, um triste recorde mundial, nem que mais de meio milhão de pessoas apodreçam em prisões desumanas, a maioria pobres e negros.

Para essa massa de novos pobres, a polícia e o Exército são seus melhores guardiões. Analisem as redes sociais e vejam como o militar e ultradireitista Jair Bolsonaro, pré-candidato a presidente, que continua defendendo a tortura e a pena de morte, desperta a simpatia de boa parte do mundo dos trabalhadores mais pobres.

Por que a esquerda não foi capaz de convencer essa massa de pobres de que os valores da democracia e da modernidade constituem a maior garantia futura de prosperidade?

Como escreve o sociólogo brasileiro Souza Martins, porque a esquerda “incluiu sem democratizar”.

Não façam, por favor, uma pesquisa sobre a democracia nesse mundo da nova pobreza, pois sofreriam uma grande decepção.

A esquerda toda, e também a brasileira, precisa se reinventar para voltar a ser capaz (se é que ainda é possível) de reconquistar os que foram seu sangue e sua razão de ser: os trabalhadores mais pobres, os mais expostos às aventuras antidemocráticas. Cada época tem os seus. Hoje, o proletariado é outro.

Seria triste e perigoso ver uma transfusão de sangue da massa de trabalhadores marginalizados, ou de jovens desencantados sem futuro, para as veias da extrema direita.

O grande teste da democracia para os brasileiros já está logo aí, na eleição presidencial de 2018. Então veremos qual força política será capaz de conquistar os votos da massa dos novos pobres, hoje desiludidos com a esquerda.

Terceirizada a pena de morte

Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios.
Darcy Ribeiro, em 1982

 
Um aluno de ensino médio na escola brasileira custa ao poder público por ano R$ 2.200; um preso, nas nossas penitenciárias, custa R$ 3.600 por mês. Essa relação está muito errada
Ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, em 2016
Assistimos nesses últimos dias à demonstração e evolução da violência em penitenciárias dos Estados do Amazonas e de Roraima, nos quais se enfrentaram facções do crime organizado imprevisível senão a divulgação pelas redes sociais das cenas que chocam qualquer ser humano pela brutalidade com que foi liquidada quase uma centena de detentos, assassinados com extremada crueldade. Monstruosidade, selvageria, a volta à barbárie é a dimensão mais próxima do acontecido.

O pior é que esse choque aos normais, assombrados com o que viram, não é universal e linear: nas mesmas redes sociais está o regozijo de pessoas, muitas até que não se intimidam em identificar-se, algumas sentadas em gabinetes importantes de Brasília, ou no Congresso, ou da própria imprensa, que torcem publicamente por novas rebeliões, para que “essa gente”, os encarcerados das penitenciárias brasileiras, dê cabo da própria vida e alivie um problema do Estado.

Há na sociedade civil quem ache que o crime, o criminoso, as masmorras fantasiadas de penitenciárias e de cadeias públicas não sejam um problema social, decorrente da ausência do Estado em suas responsabilidades de prover segurança, mas também educação e a formação do cidadão. É mais cômodo depositar delinquentes numa cela, dar-lhes café da manhã, almoço e jantar, banho de sol, pensão para sua família, sempre à espera de que uma rebelião possa abrir vagas para novos hóspedes.

Não se fala na reforma do Código Penal, da Lei de Execuções Penais, na recuperação do indivíduo que num momento, quando colocado nesses espaços, ainda poderia ter como se reintegrar à sociedade, realcançar a própria cidadania, assumir responsabilidades, voltar a sua família.

O presidente Temer, quando ouvido, lamentou o “acidente pavoroso”. Foi duramente criticado por haver reduzido à dimensão de um acidente aquela tragédia sempre prevista. Pior de sua fala, no entanto, e poucos perceberam, foi que tentou explicar que o tal presídio de Manaus, palco daquela barbárie, era uma concessão do Estado a uma empresa terceirizada, como se isso abrandasse as repercussões do que ali estará gravado para exprimir sempre as falências do Estado, que condena e custodia, e, pelo que se vê há décadas, sempre mal onde atua.

Um alegre piano pela manhã

O idealismo da Constituição

O federalismo brasileiro é um desastre. E não é de hoje. Foi adotado logo após o 15 de novembro de 1889 através do decreto nº 1 do Governo Provisório. Basta recordar os dois primeiros artigos: “Art. 1º. Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira — a República Federativa; Art. 2º. As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil.” Isto permitiu consolidar o novo regime em um país que não tinha no republicanismo uma efetiva alternativa de poder. A transferência de atribuições do governo central para os estados — como ficaram denominadas as províncias após o golpe militar — era uma antiga reivindicação das elites locais, o que era negado pelo centralismo monárquico consubstanciado na Constituição de 1824. Assim, se nos Estados Unidos o federalismo foi uma consequência da autonomia histórica das 13 colônias, aqui levou ao domínio das oligarquias, que se perpetuaram no poder durante a Primeira República.

A Revolução de 1930 interrompeu, em parte, este processo. O centralismo predominou, especialmente após 1937, com a ditadura do Estado Novo e a Constituição Polaca. Mas o conservadorismo do regime e o desprezo pela democracia impossibilitaram o nascimento, nos estados, de uma sociedade civil. Sob novas formas, o coronelismo acabou se preservando. Tanto que, com a redemocratização de 1945 e, no ano seguinte, a promulgação de uma nova Constituição, os oligarcas voltaram ao primeiro plano da cena política com uma nova roupagem, a dos partidos criados em 1945-1946.

Cerca de 20 anos depois, o regime militar conciliou com os oligarcas. Na escolha indireta dos governadores, por exemplo, o indicado sempre foi alguém vinculado às poderosas famílias dos respectivos estados. Contudo, a Constituição de 1967 — e, mais ainda, a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 — e os atos institucionais e complementares limitaram a autonomia dos estados e deram ao Executivo federal um enorme poder.

Com a redemocratização de 1985, novamente o federalismo renasceu. Agora como uma panaceia democrática. Era uma resposta ao centralismo do regime militar. Enfraquecer politicamente o poder central virou sinônimo de modernidade. Isto quando, nos estados, a sociedade civil continuava frágil, especialmente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e o coronelismo, agora remoçado, permanecia poderoso.

A Constituição de 1988, entre suas platitudes, ampliou a esfera de decisão dos estados, como na segurança pública. E, para piorar, criou mais três: Amapá, Roraima e Tocantins. Ampliou, portanto, a presença do poder local e, na esfera federal, deu mais poder aos oligarcas com nove senadores e 24 deputados federais. Mas limitou a representação dos maiores estados, onde há sociedade civil relativamente organizada.

Hoje, em boa parte dos estados, Executivo, Legislativo e Judiciário são territórios controlados com mão de ferro por poderosas famílias. A parentela pode até divergir, mas os interesses fundamentais dos senhores do baraço e do cutelo, como escreveu Euclides da Cunha, continuam preservados. Os cidadãos não passam de reféns dos oligarcas que transformaram os estados em fontes de riqueza privada.

O avanço do crime organizado agravou este processo. Em muitas unidades da Federação, não há mais dissociação entre a elite política e os chefes das organizações criminosas.

Eles estão presentes no Executivo, elegem deputados e têm influência no Judiciário — neste poder teriam, inclusive, comprado benesses, como a recente denúncia de que no Amazonas o preço de uma decisão sobre a concessão de prisão domiciliar custaria R$ 200 mil.

Os oligarcas não querem enfrentar o crime organizado. E a sociedade está à mercê do poder discricionário constituído e dos criminosos. Não tem a quem recorrer. Tudo está dominado — pelos inimigos da coisa pública. O que fazer? É caso de intervenção federal, como dispõe a Constituição nos artigos 34-36. A ordem só poderá ser restabelecida desta forma. Como é sabido, no caso de intervenção, não pode tramitar proposta de emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 1º). É um complicador. Neste caso, cabe perguntar se é melhor ter PECs tramitando no Congresso ou enfrentar incontinentemente o crime organizado?

A inércia governamental está levando à desmoralização do estado democrático de direito.

Com todos os seus problemas — e são muitos —, a Constituição dá instrumentos para a ação do Executivo federal, mesmo que limitados. A intervenção acaba sendo — apesar de traumática — uma solução emergencial. Ataca imediatamente o problema, mas não tem condições de resolver as questões estruturais. Isso passa por uma mudança constitucional, retirando poder dos estados em relação à segurança pública. Ainda mais — e para atingir a raiz do problema — pela revisão do trágico pacto federativo. E o governo pode convocar o Conselho da República, conforme reza o artigo 90, inciso I, para tratar da intervenção.

Neste caso — e até parece piada pronta — será necessário preencher seis vagas do Conselho que estão desocupadas há uma década.

O idealismo da Constituição é uma praga tupiniquim. Já o foi na Constituição de 1891. Hoje o é na Constituição de 1988. Por mais paradoxal que seja, a emergência do crime organizado poderá abrir a discussão sobre a necessidade de reformar a Carta Magna — mas não somente com intervenções pontuais, como as PECs. É urgente reformar os “princípios federalistas” que, ao invés de aprofundar a democracia, não passam de instrumentos das oligarquias para o saque da coisa pública.

A crise dos presídios

No livro "A quarta revolução", dos britânicos John Micklethwait e Adrian Wooldridge, um dos temas abordados com relação à crise do Estado e das democracias ocidentais é a chamada Lei de Orson, referência a A lógica da ação coletiva, de Mancur Orson, que trata da atuação dos grupos de pressão nas democracias. A tese é de que, quanto menor e mais corporativo o grupo, mais eficiente é seu lobby. “Quanto maior for o grupo, menos eficiente será a ação”, explica Orson. Os grupos sociais maiores, com interesses difusos, são menos eficientes e estão mais sujeitos a aproveitadores.

Organização requer dinheiro, tempo e energia. Isso explica o sucesso de Don Novey, um político conservador da Califórnia que era agente penitenciário do presídio de Folson State, em 1970, quando assumiu a liderança da Associação dos Guardas Penitenciários da Califórnia. Eram apenas 2,6 mil homens para cuidar da “missão mais difícil” do estado: a guarda de 36 mil internos. Hoje, a Califórnia tem 130 mil presos, a associação dos agentes tem 31 mil membros e gasta com o sistema carcerário quase o mesmo que dispende com o sistema de educação superior.

Segundo os autores, Novey formou um “triângulo de ferro” com os legisladores republicanos e os construtores de presídios, com uma fórmula que contava com amplo apoio na opinião pública: sentenças mais duras para os criminosos. E patrocinou a lei dos “três golpes”, que prevê a pena de prisão perpétua para três crimes considerados hediondos. Também financiou a formação de grupos de defesa das vítimas.


Novey também aproveitou as primárias do sistema eleitoral da Califórnia para ampliar sua influência política: quem não estivesse de acordo com ele enfrentaria um candidato financiado pela associação. Quando deixou a presidência da associação, em 2002, a Califórnia havia construído mais 21 novos presídios e alguns guardas faturavam até US$ 100 mil por ano, com direito a pensão de 90% dos salários, com aposentadoria a partir dos 50 anos. Há alguns anos, o escândalo veio à tona e a Califórnia começou a reformar o sistema.

O massacre de Manaus, no qual 60 presos foram mortos, sendo 36 decapitados, pôs na ordem do dia a discussão sobre o sistema prisional brasileiro, que está em xeque desde o massacre do Carandiru, em São Paulo, em 1992. É um problema muito complexo, que talvez esteja sendo enfrentado com o conceito errado. A lógica adotada para combater a violência no Brasil vem sendo o endurecimento das penas, como defendia lobby de Novey na Califórnia, e a redução do tamanho e isolamento dos presídios. Como os estados brasileiros são muito pobres, o resultado é a superlotação dos presídios, agravada pela ineficiência da Justiça, que aumenta o estoque de presos.

É indiscutível a situação desumana de nossos cárceres; algo precisa ser feito com urgência. Mas será que vamos resolver o problema apenas construindo mais e melhores presídios? Essa discussão é necessária, embora a situação seja de emergência e exija medidas práticas. O controle dos presídios pelos traficantes de drogas é uma realidade em todo território nacional, com exceção da Papuda, aqui em Brasília, notabilizada mundialmente pelos presos na Operação Lava-Jato, na qual mandam os guardas penitenciários.

O resultado geral é a morte de um detento por dia nos cárceres, sendo a taxa de assassinatos de 57 para cada 100 mil habitantes, maior do que a de qualquer estado, numa população carcerária de mais de 600 mil presos. A polícia mata nove pessoas por dia, enquanto na Inglaterra, por exemplo, as estatísticas registram seis por ano. Ou seja, na prática, as execuções já vigoram dentro e fora dos presídios.

A maioria da sociedade apoia docemente constrangida o chiste “bandido bom é bandido morto”. Não é outro o sentido nas declarações do governador José Melo (Pros), ao minimizar o massacre de Manaus: “Não tinha nenhum santo”. Comprovou-se que o comando da facção Família do Norte (FDN) estava numa única cela e fez acordo com representantes do governo do Amazonas para manter a paz no presídio e, talvez, fora dele. Com certeza, não é um caso único.

Os centros de excelência do nosso sistema prisional são os presídios federais e paulistas de segurança máxima, cujos guardas têm um lobby muito eficiente. É neles que estão os principais chefões do tráfico. Enquanto não brigam, não correm o menor risco de serem assassinados como seus “soldados”. São os donos da vida e da morte dentro e fora das cadeias do país. Alguma coisa aí está errada.

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O país da farsa como tragédia

2017 acordou o país com um direto no queixo. Há uma semana, das biroscas aos palácios, em ampla conecção com a mídia, o assunto é a falência do sistema carcerário, que nem sequer existe plenamente como deveria.

O Brasil nunca teve penitenciária, mas depósito subumano para negros e pobres, infratores ou marginais, o que contentou a sociedade, certa de que encarceramento resolve o problema da segurança pública. Sempre se virou as costas para a questão com mais desumanidade do que a maioria dos países, em particular os democráticos, inclusive porque nunca houve no país uma lei para todos.

Os brancos e de classe mais alta, quando não privilegiados pelo sistema, foram em número infinitamente menor nas celas. Só frequentaram o cárcere por motivos políticos. Estiveram e ainda estão livres e soltos pelo foro privilegiado ou pelo apadrinhamento.

A primeira semana do ano foi gasta pela salivação inútil. Nem 60 nem 600 trucidados em presídios farão o problema prisional brasileiro ser resolvido, porque ninguém tem os dados sobre a população carcerária. Com exceção dos líderes de alta periculosidade, o restante dos presos brasileiros são massa falida.

Para manter essa população e a farsa de instituição em funcionamento, se paga muito caro. A caixa preta penitenciária só interessa ao poder político para a abastecer a máquina eleitoreira e os bolsos dos inescrupulosos brasileiros, protegidos pelas facções partidárias. 


O plano emergencial, anunciado pelo governo Temer, recebeu muito aplausos da hipocrisia. O papel do anúncio é meramente empurrar com a barriga como sempre se fez e está claro nas suas intenções. Começa-se por criar, em época de bolsos magros, novos presídios para reduzir uma suposta "superlotação", mesmo que ninguém tenha números que a comprovem. Será mais um luxo com dinheiro público para ofertar celas dignas para a elite do crime, também privilegiada, com vínculos políticos-empresariais, continuando a ralé penitenciária vivendo no cocho.

Ninguém também está levantando o custo de bloqueadores de celulares e aparelhos de checagem de objetos em revistas de visitantes. Há muito já se solucionou o problema em outros países, a custo bem menor, com a criação do parlatório com presos só falando por telefone atrás de paredes de vidro. Não há como passar armas ou celulares através de vidro. E a revista pessoal, impedindo entrada de bolsas nos presídios, não tem gastos.

Quanto a investimento em inteligência e maior segurança nas fronteiras são medidas mais velhas do que Matusalém, e já no pó há muito tempo, empurradas por seguidos governos. Compõem o plano apenas para formar "agenda positiva", essa desgraça política de quem não tem interesse algum em resolver o problema.

A grande questão neste acordar de novo ano é que a cara do Brasil não mudou. Os problemas são os mesmos, as "soluções" repetitivas e nenhuma vontade de mexer nos vespeiros político-administrativos. A atual "crise" nas penitenciárias é mais uma que vem e que passará, porque o Brasil não quer mudar, ou os governos e Poderes estão bem, obrigado, para suplício dos que neles não vivem.
Luiz Gadelha

A perda de cada dia

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Quando os poderosos usam sua posição para abusar de outros, todos perdemos
Meryl Streep

Precisamos de uma saída de emergência

Não é novidade para ninguém que os tempos atuais estão mais amargos do que gostaríamos de saborear. No âmbito político, o núcleo duro da nossa realidade, discursos não projetam mais idealizações. Corrupção, desmandos e conluios são corrosivos e desaguam em frustrações e desencantos.

Com líderes abalados e a economia em desalinho, a confiança entra em colapso. As estruturas sociais perdem força, e aquele escapismo fundamental para sobreviver em um ambiente de pressão se esvaia. Negar nossa essência sonhadora é uma sentença de aprisionamento, que nos deixa moribundos à espera do fatídico fim. E agora, para onde olhamos quando tudo promete implodir?

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O tempo presente é um terreno árido, no qual o passado se apresenta como um pequeno oásis de esperança. Crises nos fazem olhar para trás com saudosismo, um refúgio de memórias, uma vida ainda com expectativas. Fantasiar nos tira da inércia, desperta um ser mais capaz e criativo às adversidades.

Esse exercício simula uma experiência curiosa, um efeito de máquina do tempo. Quantas vezes nos pegamos desejosos de uma época que nunca vivemos? Aqueles lugares que criamos em nossas cabeças a partir de recortes de jornais e histórias que ouvimos nos dão fôlego para encarar o hoje. É a inventividade salvando o ser humano da loucura do pragmatismo.

Às vezes, regredimos para fases mais ternas das nossas vidas, a infância. Ali, a inocência e a ideia de que o futuro seria um amigo caridoso nos carregam para a sensação de conforto e acolhimento. Família, amigos e as descobertas do mundo preenchem a lacuna do momento, que está vazio de sentimentos bons.

A juventude recria uma fase de possibilidades mil. Inventamos cenários, temos a audácia e a coragem para driblar os problemas e, normalmente, não pensamos no amanhã com receio. O desejo de descobrir a liberdade e experimentar o novo é combustível que nos transforma.

Viajar pelo tempo é a nossa saída de emergência, um grito de socorro que ecoa no mundo das coisas concretas. Revirar o baú de lembranças, construir projeções e desenvolver o lado lúdico são atitudes indispensáveis para estabelecer uma relação produtiva com a sociedade e o Estado. Somos ávidos pelo futuro quando o presente nos mostra um sorriso, mas fugimos dele assim que percebemos um olhar carrancudo nos observando. O passado é algo inerte, mas que movimenta o agora de todos nós.

Pedro Couto 

Paisagem brasieira

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Paraty (Manlio Moretto, 1968)

Jorge, 47 anos depois

Na manhã de segunda-feira, 2 de março de 1970, quatro homens assaltaram um veículo em Canoas (RS). Roubaram o equivalente a R$ 565 mil da Ultragraz. Na ação estava um jovem de 19 anos, alto, magro, emplastro no rosto e revolver calibre 38 na mão. O mineiro Jorge era da VAR-Palmares, derivado do Comando de Libertação Nacional (Colina) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), devotados à luta armada contra a ditadura.

Mês seguinte, interceptaram outro carro, em Porto Alegre. Naquela noite de sábado, 4 de abril, Jorge desceu do Fusca apontando um calibre .45 para o cônsul americano Curtis Carly Cutter, 42 anos. Veterano da guerra da Coreia, Cutter acelerou seu vigoroso Plymouth Fury. Levou bala no ombro. Deixou um deles estirado, com o tornozelo ferido pela roda — logo foi preso, torturado, e amargou três anos na cadeia.

O manquejar de Fernando Pimentel, governador de Minas, é herança desse confronto, quando vestia a máscara do terrorista Jorge na liderança da “Unidade de Combate Manoel Raimundo Soares” da VAR-Palmares gaúcha.

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Passaram-se 47 verões. Pimentel agora é um governante recluso, sitiado pela calamidade administrativa e processos por corrupção.

Em dezembro, arriscou passeio num shopping em São Paulo. Saiu hostilizado, sob gritos de “ladrão”. Semana passada foi flagrado usando helicóptero do governo para resgatar parente em festa de ano-novo num balneário, a 270 quilômetros da capital. Minas, na falência, descobriu que o governador gastara R$ 21,8 milhões em dois novos helicópteros.

Aos 65 anos, Pimentel é um político na sala de espera do tempo. Aguarda que o correr da vida embrulhe tudo, como dizia Guimarães Rosa.

Governa com finanças em desgraça, por efeito da recessão num estado dependente de indústrias antigas, como siderurgia, mineração e automóveis. Os danos ao Erário foram potencializados por decisões errôneas suas e dos antecessores, mas atribui a eles toda culpa pelo infortúnio.

Minas se destaca no grupo dos falidos. Ampliou isenções fiscais e aumentou em 78% o gasto com pessoal, entre 2009 e 2016. Mantém um buraco de R$ 8 bilhões, pelo segundo ano.

O governador resiste ao socorro federal. Prefere parcelar salários, reduzir gastos na Saúde e insistir na loteria dos cenários. Num deles, o governo Temer seria pressionado a atender a todos, sem condicionalidades. Noutro, haveria imediata retomada da economia nacional.

Pimentel joga também com o tempo em processos nos quais é acusado de transformado em balcão de negócios o Ministério da Indústria, no governo Dilma. Seu antigo aliado, Benedito Rodrigues, detalhou a lavagem de R$ 10 milhões recebidos do grupo Caoa em troca de benefícios fiscais na importação de autopeças. Relatou, ainda, propina de R$ 15 milhões do grupo Odebrecht para liberação de créditos do BNDES em obras no exterior. Pimentel aposta na chancela do Supremo à Constituição mineira, pela qual processos contra ele só seriam possíveis com autorização da Assembleia — onde tem maioria.

Ao conquistar o governo do segundo maior colégio eleitoral do país, em 2014, o ex-guerrilheiro Jorge foi saudado como símbolo da renovação de um PT em crise. Pimentel chegou à metade do mandato isolado, dentro e fora do partido, prisioneiro de si mesmo.

José Casado

Massacraram os contribuintes soltos

No último domingo houve o primeiro massacre de presos. Já na segunda-feira, começou o massacre dos soltos. O processo de empulhação foi disparado quando o Ministério da Justiça soltou uma nota oficial referindo-se aos “R$ 44,7 milhões de repasse” do Fundo Penitenciário Nacional, recebidos pelo governo do Amazonas no dia 29 de dezembro.

Não juntaram lé com cré. O dinheiro que chegou no dia 29 nada tem a ver com um massacre ocorrido no dia 1º de janeiro. Ademais, o descontingenciamento desses recursos cumpria uma ordem de agosto, do Supremo Tribunal Federal.

Dada a senha, o massacre prosseguiu. O governador do Amazonas disse que entre os 56 mortos “não tinha santo”. Santo, por lá, só ele. Na quinta-feira, numa entrevista, três ministros anunciaram satélites artificiais, sensores, radares, tornozeleiras, mais um milagroso e ainda inacabado Plano Nacional de Segurança. Os ministros têm idade suficiente para saber que, só neste século, FHC, Lula e Dilma Rousseff coreografaram o lançamento de três Planos Nacionais de Segurança, todos com esse nome. O truque é velho e beneficia sobretudo quem vende equipamentos. A fantasia de Star Wars foi colocada no lugar no dia seguinte, com a matança de Roraima, a quem o governo negara 180 pistolas.

Os dois massacres chocaram pela proporção, mas neles houve muito de rotina. Roraima já tivera 18 mortos, quatro deles decapitados. Aconteceram degolas nos presídios dos governadores Sérgio Cabral (Rio), Ivo Cassol (Rondônia), Roseana Sarney (Maranhão) e Paulo Hartung (Espírito Santo), onde guardavamse presos em contêineres.

Odoutor Alexandre de Moraes, um ministro encantado com a própria voz, teve dois momentos de fama e remeteu a origem dos males das prisões brasileiras ao período colonial, como se a privataria do Compaj viesse das ordenações manuelinas.

O contribuinte foi massacrado três vezes. Na primeira, quando um bandido assaltou-o; na segunda, quando usaram o dinheiro dos seus impostos para sustentar máquinas privadas e públicas ineptas; e na terceira, quando ministros foram ao palco para empulhá-lo.

Elio Gaspari,

Barbaridades e barbeiragens

Pior do que está pode ficar sim. Pior do que o que vemos, sentimos e não estamos acreditando como é que pode, e acontece bem sob as nossas barbas, é que estas – as nossas barbas – estão de molho. Os causadores, criadores, desgovernadores, irresponsáveis e apaniguados, podem ver, passa minuto a minuto e ainda estão lá em suas cadeiras, sentadinhos com seus enormes traseiros. Como se nada estivesse acontecendo, não devessem satisfação para ninguém

Barbárie é pouco para descrever tudo isso. É o horror, o terror, o mais inimaginável no mais louco Filme B que se possa criar, dos de quinta categoria, cheios de catchup e outros efeitos toscos. É mais do que Sexta-feira, 13, Jason, O Exorcista, A Vingança dos Zumbis das facções, Pânico 1, 2,3 e 4, O Massacre da Serra Elétrica, Tubarão, Piranha, o filme. Todos juntos.

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E nós sabemos o que eles fizeram nos governos passados que se prolongam nesse nosso futuro. Nada nada. Ou fizeram errado. Ou estavam ocupados roubando. Nos esbofeteando com suas frases feitas, explicações vazias, promessas que se repetem , nunca cumpridas – apenas se repete mais uma vez a lista das providências que serão tomadas no Dia de São Nunca, depois que o buraco abriu muito mais lá em baixo.

Adoraria saber que quando você estiver lendo esse artigo o Ministro da Justiça – este ser que vem colecionando fatos demonstrativos de sua total incapacidade para um cargo importante como esse – já terá sido demitido. (E que depois disso alguém conte a ele que em boca calada não entra mosquito, e que dizer que vai querer erradicar a maconha no Brasil é coisa de quem tomou droga bem ruim). Adoraria saber. o Governador do Amazonas já tenha sido, digamos, transferido e internado no hospício: coitado, este anda procurando santos por aí, e até na cadeia!

Espero ainda que o Temer já tenha posto um bom dicionário em cima da mesa dele para conhecer o valor das palavras na realidade brasileira. Acidente pavoroso, presidente? O senhor teve três dias – enquanto ficou caladinho depois das mortes em Manaus – para treinar na frente do espelho, falar em voz alta o discurso que faria. Se o seu ouvido for suprapartidário ele logo o teria alertado. Acidente pavoroso, presidente?

Mas, infelizmente, creio que nada disso terá sido feito; não teremos essa sorte. Passaremos mais alguns dias ouvindo patacoadas, contradições, vendo suas caras atônitas como se essas pedras já não viessem vindo e sendo cantadas a plena voz. Essa, a do barril estourando nas grandes prisões, é só uma. Grande. Vergonhosa. Com suas dezenas de cabeças decapitadas, membros decepados, requintes de crueldade e insanidade como olhos e corações arrancados – cenas gravadas e enviadas às redes sociais numa produção cinematográfica macabra.

Grande a ponto de sobrepujar e mandar para o rodapé uma grande explosão ocorrida em Cubatão, na Vale Fertilizantes, que liberou o altamente tóxico nitrato de amônio. Que pode ter contaminado gente, bichos, plantas, água, terras. Uma enorme nuvem vermelha. Aguardamos mais informações.

Grande a ponto de nem ligarmos tanto para o ataque no aeroporto americano, que ainda se discute se foi terrorismo ou não. Desculpem, para mim, é terrorismo sim, pode até ser sem causa, solitário, mas é terrorismo. É terrorismo a situação que deixaram o Rio de Janeiro. Teve terrorismo em Manaus, Boa Vista, Campinas, onde um doido entrou o ano matando toda a sua família e quem mais estivesse perto dela. É terrorismo o que fazem as facções criminosas de letrinhas e nomes exóticos. É terrorismo o que estão fazendo com nosso país.

É a barbárie sim. É primitivo. Barbárie também é além da selvageria, erro crasso de linguagem ou de escrita. Acidente pavoroso, presidente?

É barbeiragem. Param em local proibido. Ultrapassam pela direita. Não sabem como dirigir sem fazer ziguezagues.