quinta-feira, 20 de abril de 2023

Este verde repentino

Há uma mágica que só acontece no silêncio do vento, na vontade da natureza do Sertão nordestino: a região pode estar seca como estiver, mas basta chover algumas poucas horas para a paisagem mudar de repente. O ocre deprimido dos matos se transmuta em tonalidades do verde mais verde e esse é o mistério. Em questão de horas, onde a luz e a imaginação alcançam, passa a existir um degradê de alegrias.

É surpreendente a rapidez com que o cenário passa a ser outro, como se a própria vida partisse da água. Eu sempre achei fantástica essa capacidade de refazimento do meio natural. Uma chuvinha rendinha, não digo que seja o suficiente, mas quando chove-de-juntar-água, é o próprio verde quem anuncia que coisas boas virão na sequência. É tanto que se você viu a paisagem seca, e voltar a contemplá-la, já com a terra molhada, a paisagem ou você estará mudado.

No verde-novo os pássaros reaparecem, o cheiro da clorofila enche o ar, os sapos coaxam, o vento sopra como se a manhã se prolongasse por mais tempo. Onde estavam escondidas aquelas folhas do tapete da caatinga, que reapareceram e cresceram tão rapidamente? Árvores como juazeiro, marmeleiro, baraúna, algaroba, que pontuavam dramaticamente a paisagem, igual a um quadro de Vidas Secas, passam a exibir ramagens frondosas. Agora, dão sombra e oferecem-se para os ninhos.

Os pezinhos de alfavaca chegam à beira da estrada, disputando espaços com a acácia, o melão-de-são-caetano e a canafístola de florezinhas amareladas. Passo de carro pelas estradas do Sertão, olhando a paisagem, sem buscar respostas, pois desde cedo aprendi que sou limitado e compreendi que ali há um mistério: o surgimento repentino do verde acusa que a ciência é precária. Que os critérios são frágeis. Que a transmutação acaba com o radicalismo dos céticos, dos sem-esperança. E que os olhos e o coração podem ser enganadores.

Quem gosta dessa breve estação são as abelhas. Lembro-me que era assim que dizíamos, na infância: as abelhas gostam do verde. Se o calor passa da conta, elas não param num canto e migram em enxame. Mas, fazem a viagem de volta e formam colmeia na região, quando chove, porque conhecem as floradas. As abelhas sentem o exato momento da fotossíntese e vêm provar do néctar das florezinhas do muçambê. Agradecem o pólen recebido, pagando em gotas suaves, doces e puras.

Por esses dias, estive no Sertão. Andou chovendo por lá. Na estrada, comparo as diferenças: se nas cidades grandes a gente reclama das chuvas, aqui seria desafiar a Deus. E os deuses, como se sabe, não controlam sua ira. As águas do outono escoam na beira das estradas. Há uma ordem, uma conformidade simples nessas coisas da natureza, como uma obra de arte conexa. É preciso chover para o destino se consolidar como providência.

Mas é preciso reconhecer também que a força da água é igual e contrária, em intensidade, à do fogo do Sol. É ela quem queima com competência, durante a estiagem, o mesmo Sertão radiante. Se através do fogo nada permanece, a água tudo transforma. O ar que sopra é a metáfora de toda mudança e somente a Terra é resiliente. A terra é anterior a tudo, aos processos cíclicos. Terra sertaneja onde tudo é o mesmo elemento, origem e fim. Há uma Física que une tudo.

Viajar ao Sertão é a minha Odisseia. Rever o Sertão é uma batalha entre os mitos que preservo e o meu racional. Uma luta constante contra o esquecimento para realizar o passado, reafirmar a glória dos meus mortos, salvaguardar o futuro. Pelo menos em palavras e fantasias.

Cícero Belmar

Ensino do mapa

Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) convidou 15 pessoas para pensarem o futuro da educação no século 21. Fui uma delas. O livro publicado é atualmente usado como guia para reformas da educação de base em diversos países. Daí o incômodo ao ver que, na terceira década deste século, meu país apresenta uma modesta reforma para tirar nosso "ensino médio" do século 19 para o século 20 e, no lugar de avançarmos para a proposta de que o Brasil precisa, forças conservadores tentam impedir essa modesta reforma.

O conservadorismo começa ao ignorar qual deve ser o propósito dessa etapa da educação de base para cada pessoa e para o Brasil. Ao manter o nome "ensino médio", assume que seu papel é servir como degrau ou trampolim para o ensino superior, não como a etapa que prepara o jovem para a vida ao dar-lhe o mapa necessário para viver, usufruir e construir um mundo melhor e mais belo.

Na França, essa etapa recebe o nome liceu e seu último ano é considerado conclusivo; nos Estados Unidos, high school; na Alemanha, gymnasium; na Espanha, educação secundária obrigatória (ESO). Esse sequestro da educação de base pelo ensino superior é recente, para indicar a promessa de que todos devem ingressar na universidade. Promessa hipócrita em um país com 10% de seus adultos analfabetos, onde apenas metade dos alunos conclui a educação de base, destes, no máximo a metade com razoável qualidade, e destes, apenas sua metade, da metade, da metade (12,5%) com formação para seguir um curso universitário com qualidade razoável.

A elite conservadora, que sempre viu a educação de base como o trampolim para seus filhos entrarem na universidade, aceitou, a contragosto, a proposta para criar um sistema compensatório com cotas, bolsas e financiamentos para auxiliar na disputa por vaga em uma universidade. Manteve-se o sistema educacional de base dividido entre escolas casa grande e escolas senzala, escolhendo alguns desses alunos para ascenderem, em geral, a centros universitários que não estão entre os de mais qualidade. Isso é coerente com a cultura nacional, que não privilegia o conhecimento, mas considera que cada pessoa tem direito a um diploma universitário.

Perdeu-se o propósito da educação de base para preparar todos os alunos à vida no mundo contemporâneo: falar e escrever bem o idioma português; ser fluente em pelo menos mais um dos idiomas usados internacionalmente; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes; debater com competência os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia relacionados aos principais temas do mundo moderno; saber usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir solidariedade com os vizinhos, com a humanidade e com a natureza; querer participar da construção de um mundo melhor e mais belo, com desenvolvimento sustentável; ser capaz de obter educação continuada até o final da vida nestes tempos de incertezas e rápida mutação; se quiser, disputar vaga em curso superior de qualidade em condições iguais com todo brasileiro, independentemente da renda e do endereço.

Essa ideia de um "ensino do mapa" para todos exige abolir as escolas senzala, o que requer construir um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base com qualidade máxima pelos padrões internacionais. Para tanto, é preciso haver uma consciência nacional pró-educação, pró-conhecimento, não apenas pró-diploma universitário. Essa é a dificuldade.

A elite conservadora não quer oferecer a mesma escola para todos; a elite progressista não coloca esse propósito em seus projetos eleitorais porque ela própria faz parte da classe social que estuda nas escolas casa grande, apartada dos pobres; e estes, por séculos de exclusão, não acreditam que seja possível escola com a mesma qualidade para todos, além de que seus interesses estão nas necessidades para a sobrevivência imediata, sem poder esperar os resultados da educação dos filhos. Falta um instinto nacional pró-educação de base com máxima qualidade para todos, daí uma reforma tardia e modesta é contestada. Nenhum partido e raros líderes políticos defendem uma educação conclusiva que ofereça a todo jovem brasileiro um mapa dos conhecimentos necessários para facilitar a busca individual e familiar da própria felicidade e orientar sua participação social e política na construção de um país melhor e mais belo.

Cristovam Buarque