domingo, 3 de abril de 2022

Pensamento do Dia

 


Preocupação com o Brasil

A vida política brasileira cinge-se hoje à discussão distante da realidade, circunscrita a elucubrações e tratativas acerca de coligações nas eleições presidenciais e seus reflexos na composição de chapas estaduais.

Antecipa-se a eleição com atenção às pesquisas eleitorais, cujos índices são dados como definitivos, quando estes números apenas refletem o recall dos candidatos e podem, quando muito, revelar o grau de rejeição.

Com este panorama reduzido às possibilidades de acordos com vistas à eleição, tem-se a impressão de que o Brasil “vai indo” e seu destino não apresenta perigos, pois tudo é superado pelas artimanhas dos conchavos, pela satisfação das ambições daqueles que se intitulam membros da classe política dirigente, mas cuja bússola é voltada apenas para os seus interesses pessoais.

A tomografia de nosso país indica, contudo, a absoluta ausência de governo, sem qualquer planejamento estratégico a mostrar quais medidas concretas devem ser implementadas para resolver seus diversos desafios.



O País vive farsas promovidas pelo presidente da República e sua turma, a começar pela auto-outorga do mérito indigenista, quando é acusado da prática de crime contra a humanidade em face das populações indígenas durante a pandemia, com denúncia no Tribunal Penal Internacional.

Somos condenados a viver um processo esquizofrênico, com a convivência concomitante de duas realidades conflitantes: o mundo do “faz de conta”, vivenciado pelas lideranças políticas, preocupadas com os conluios e cálculos eleitorais, e principalmente por Bolsonaro, com sua central de fake news, a se fantasiar de super herói em motociatas e passeios de jet-ski.

Só que há um Brasil real, a denunciar a inconsistência desse mundo fantasioso das ambições pessoais. O Brasil composto pelos problemas efetivos: inflação; miséria e fome; desemprego elevado; crescimento pífio do PIB e redução da renda per capita; deterioração de nosso parque industrial e do meio ambiente; crise sanitária; vulnerabilidades em nosso comércio exterior; além da continuidade da corrupção.


Não há governo e também não há a atuação dos organismos de controle, fundamentais no autocrático sistema presidencialista, pois é essencial a atuação fiscalizadora e repressora da Câmara dos Deputados e da Procuradoria-Geral da República. Essas, por interesse político, renunciam à tarefa de processar as condutas ilegais promovidas pelo chefe do Executivo e seus sequazes.

Diante desta ausência de governo e de fiscalização, quem ocupa o espaço de efetivação do Orçamento, espinha dorsal do exercício do poder?

As emendas parlamentares já constituíam moeda de troca em outros governos. Todavia, até tinham valor igual para todos os parlamentares, a destinação era conhecida e sua pertinência, examinada pelo Executivo.

Na gestão de Arthur Lira criou-se, todavia, o maior instrumento de corrupção, o “orçamentão do Centrão”, por via do qual se institucionalizou a emenda do relator, cujo valor alcançou R$ 21 bilhões em 2021. Por essa emenda, o relator indica diretamente a destinação de verba aos ministérios para aplicação em obra específica em determinado município. Fica-se sem saber, posto que oculta, quem é a figura parlamentar por detrás dessa indicação feita em valores de livre fixação a municípios escolhidos a dedo, conforme a importância do interesse político.

Exemplo gritante do domínio da República pelos senhores Lira e Ciro Nogueira se colhe na denúncia do Estado de domingo retrasado sobre o poder do Centrão na destinação das verbas discricionárias do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Gere o fundo ex-chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira, hoje ministro da Casa Civil. Em absoluta desproporção com a população estudantil, Alagoas, de Arthur Lira, recebeu a maior receita do fundo, com dotação de mais de R$ 60 milhões. O Piauí, do ministro Ciro Nogueira, recebeu R$ 20 milhões, pouco menos que São Paulo, cuja população estudantil é infinitamente maior. Essas dotações aos municípios são intermediadas por pastores, que negociam com prefeitos a transferência direta aos seus municípios. Um escárnio.

Dentre os aspectos do Brasil real está a absoluta vulnerabilidade do País no campo do comércio exterior, objeto de artigo nesta página do embaixador Rubens Barbosa, seguido de exposição na Academia Paulista de Letras. O panorama é assustador, pois nossas exportações centram-se em ferro e em dois produtos agrícolas, soja e milho, com poucos compradores no mercado internacional, dependendo em grande parte da China.

A Academia Paulista de Letras, ao tomar ciência dessa situação, decidiu, como cultora de nossa soberania, fazer uma conclamação alertando para esses perigos que podem levar à bancarrota.

Assim, na ausência de lideranças efetivas, com o País em degenerescência, a Academia pede aos que se preocupam com o futuro do Brasil esforços para promover debate sobre as mudanças necessárias para enfrentar, com pensamento estratégico de médio e longo prazos, as nossas vulnerabilidades.

Os donos do poder

Muita gente pode achar o caso dos pastores e do Ministério da Educação algo um tanto bizarro e irrelevante. Não é o meu caso. O episódio todo, que levou à saída do ministro Milton Ribeiro, mostra a sobrevivência de velhos males de nosso mundo político. Para começar, a desorganização da política pública. Um órgão que se supunha técnico, como o FNDE, surge como presa fácil ao pequeno grupo de compadrio, com acesso ao poder. Com uma agravante: a mistura da religião com política, algo sem cabimento em um Estado laico. Por último, a lembrança de que nosso velho patrimonialismo continua vivo e forte. Sua melhor definição foi aquela frase do ministro: “A prioridade são os amigos do pastor Gilmar”. É a realização da profecia de Sérgio Buarque: a cordialidade como o doce pecado de nosso mundo público. A vitória do trato pessoal sobre o procedimento técnico, imparcial, regrado, republicano. A polidez que esconde critérios de exclusão, de quem comanda, e não faz muito segredo disso.

O escândalo do MEC é uma escaramuça pré-eleitoral ou traduz um padrão no trato da coisa pública? “Não há novidade nenhuma nisso”, ouvi de um comentarista. “Em Brasília tem pressão de tudo que é lado.” Se o veredicto é esse, segue-se o barco. Meu ponto é dizer que não. Há um problema aí precisamente porque se configura um padrão, feito da captura de nacos de poder, recursos, pequenos e grandes monopólios por parte do estamento público. Ainda esta semana se divulgou o excelente estudo do professor Luciano de Castro e outros pesquisadores sobre nosso Congresso. Os dados são de cair o queixo. Nosso Parlamento custa 0,15% do PIB. É o mais caro do mundo. Cada parlamentar custa 5 milhões de reais por ano. Na Inglaterra, 477 000 reais. Eles fizeram o Bill of Rights, em 1688, e são bem mais ricos do que nós, mas custam dez vezes menos. Vamos lá, só pode haver um problema bastante complicado por aqui.


No mundo dos partidos e das eleições, o padrão se repete. Estudo conduzido pela economista Marina Helena Santos mostrou a situação do Fundão Eleitoral. Candidatos que já eram parlamentares, nas últimas eleições, receberam, na média, 996 000 reais para fazer campanha. Os de fora, 70 000 reais. Os deputados-candidatos já tinham seus 25 assessores, dinheiro para viagens e despesas, e já haviam distribuído coisa de 60 milhões de reais, em emendas individuais, ao longo do mandato. No final, levam catorze vezes mais recursos do que seus competidores de primeira viagem. É o que o cinismo nacional costuma chamar de garantir mais “equidade” na disputa eleitoral.

No campo do Judiciário não é diferente. Nosso sistema de Justiça é o mais caro, proporcionalmente, entre as grandes democracias. Nos custa 1,4% do PIB, contra apenas 0,4% na Alemanha. Colecionamos notícias de vencimentos muito acima do teto do funcionalismo, por parte de nossos magistrados. Mesmo assim, tramita no Congresso, com chances de aprovação, a PEC 63, criando um adicional de 5% a cada cinco anos, nos vencimentos da magistratura. E pasmem: com chance de ser retroativo, extensivo aos aposentados e não sujeito ao teto salarial. Temendo alguma injustiça, o Senador Alessandro Vieira propôs que o benefício seja dado a todo o funcionalismo. Ou seja: além de termos engavetado a reforma administrativa, que iria extinguir as progressões por tempo de serviço, corremos o risco de criar agora uma superprogressão. O mesmo Congresso que descumpre a determinação da Constituição, no Artigo 41, de disciplinar a avaliação de desempenho dos servidores, arrisca criar agora um benefício sem conexão alguma com mérito. Talvez não passe. Mas só o fato de que isso seja seriamente considerado já é um indicativo do peso da cultura estamental, na elite política de Brasília.

Muita gente não vê problema algum nisso tudo. “A democracia custa caro”, escuto em rodas elegantes. Custa caro no Brasil, respondo. Temos a maior carga tributária da América Latina, fora Cuba, e fomos o país que mais expandiu o gasto público, na década que se seguiu à crise de 2008. Em pouco mais de dez anos, fomos de 29,5% para 41% de comprometimento do PIB com despesa pública. Pouco mais de 13% gastamos com funcionalismo. Nosso aparado estatal tem tamanho europeu; nossa miséria, padrão latino-americano. Gastamos o equivalente à Itália e países com welfare state consolidado, como o Canadá e a Alemanha. Em matéria de pobreza, ficamos atrás de países como Peru, Bolívia e Paraguai.

Vai aí o dilema: nosso aparato público é caro, para o contribuinte, e funciona, ele mesmo, como entrave ao crescimento e fator a mais de concentração de renda. Não há como entender isso sem decifrar nosso vezo patrimonialista. O vezo que vem do fundo de nossa formação. Do país que nasce do Estado. Do rei que se apossa da terra e distribui à vassalagem, da república dos coronéis, do Estado Novo organizando o sindicalismo oficial. O vezo que está lá, em cada privilégio, em cada monopólio, em cada priorização dos “de cima”, em cada desoneração fiscal gerada pelo lobby. Signo de um país vulnerável à ação dos grupos organizados, diante de uma sociedade passiva e uma legião de brasileiros dependentes de transferências públicas. País carente de grupos de advocacy para os interesses difusos, a começar pelos direitos do contribuinte, e de uma cultura frágil de direitos individuais.

Por essas e outras que volto à leitura da obra-prima de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Ela já tem mais de seis décadas, mas prossegue atual. Nos mostra como a oposição fundamental de nosso mundo político não se dá entre quem produz, no mercado, seja grande ou pequeno empreendedor, trabalhador com carteira ou entregador de aplicativo, nas ruas de São Paulo. A clivagem essencial é entre o mundo que gira em torno da captura do Estado e o restante da sociedade, que paga a conta. O contribuinte, o cidadão destituído de lobby, o usuário dos serviços públicos, o tomador de risco, na economia real.

É sobre isso o debate que vamos travar nas eleições deste ano. Haverá muita bobagem, como sempre, mas a questão central continua a mesma: se desejamos um país moderno e de mercado, com um Estado enxuto e feito de direitos iguais, ou se vamos seguir com nossos pastores-lobistas, e parlamentares recebendo 528 vezes a renda média de um trabalhador. Se o desejo for de mudança, será preciso enfrentar a “social enormity”, na expressão dura de Faoro, que herdamos da tradição. A deformação segundo a qual “instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem”. Vai aí meu toque de otimismo. A tradição nos puxa pelo pé, mas não nos amarra. A democracia nos dá, a cada momento, uma nova chance. Nos assopra ao ouvido a ideia por vezes incômoda de que somos o resultado de nossas próprias escolhas.

Que valor damos à água?

Cada vez mais temos consciência de que a água tem valor, muito valor. Mas quanto vale a água? E que valor lhe damos nós?

Dizem-nos que o valor não se deve confundir com o preço, que é o que se paga por um produto ou serviço, nem com o custo, que corresponde ao montante incorrido na produção desse produto ou serviço.

Efetivamente, o valor é o benefício proporcionado por esse produto ou serviço. No que respeita aos serviços de água e saneamento, é uma percepção difusa e nem sempre adequada. Pois, se a água é essencial à vida, é também um recurso fundamental a todas as atividades humanas, à saúde pública, ao desenvolvimento económico e à qualidade e bom funcionamento dos ecossistemas naturais, considerando mesmo o acesso a estes serviços um direito.

O direito ao acesso aos serviços de água e saneamento foi formalmente reconhecido pela Organização das Nações Unidas em julho de 2010 numa resolução que estabelece que a água potável limpa e o saneamento são essenciais para a concretização de todos os direitos humanos.

Garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU e a água ocupa nesta agenda um papel central e transversal a todos os objetivos.

O facto de milhões de pessoas em todo o mundo ainda não terem acesso a algo tão básico como água potável tem movido instituições e pessoas em torno deste objetivo primordial.

Ainda esta semana foi publicado o livro “The Worth of Water” que o ator Matt Damon coautor com Gary White, o engenheiro com quem fundou a Water.org, onde são apresentados exemplos de como a água faz a diferença na vida das pessoas.

Além de apreciar o seu trabalho como ator, admiro muito o seu empenho e generosidade que coloca neste objetivo maior de, através da promoção do acesso à água, combater a pobreza, promover a saúde e a igualdade de género, que são apenas alguns exemplos dos impactes positivos da água, no atingimento de outros objetivos do desenvolvimento sustentável.

Concordo inteiramente com a sua opinião de que é difícil dar valor à água quando a temos em abundância nas nossas vidas.

Inversamente, temos o exemplo recente do que aconteceu na Cidade do Cabo, na África do Sul, quando no início de 2018, após três anos de seca, se aproximava do “Dia Zero”, já com o racionamento de água nos 50 litros por pessoa.

Em Itália, no contexto de seca que se vive atualmente no país, foram impostas restrições ao uso de água e multas para desperdícios.

Também nós, embora já sem esta emergência extrema, estamos a sair de uma situação de seca extrema ou severa que, ainda no final de fevereiro, assolava 95% do território português. A chuva que caiu em março veio atenuar a gravidade desta situação, mas sabemos bem a escassez de água é uma tendência especialmente agravada pelas alterações climáticas.

As consequências cada vez mais graves das alterações climáticas, provocadas através das crescentes pressões sobre os ecossistemas e do aumento da poluição ambiental, são megatendências e constituem ameaças às condições de habitabilidade do planeta e um dos grandes desafios que a nossa civilização enfrenta.

A água está presente em todos estes cenários, por falta ou por excesso, pela qualidade ou pela garantia do acesso.

Volto, por isso, à questão essencial: que valor damos à água?

Que valor damos a abrir a torneira de manhã para lavar os dentes, tomar banho, fazer o café? Quanto vale a água que descarregamos no autoclismo ou usamos para lavar a loiça ou a roupa?

Para estes exemplos e até para os usos indiretos de água que fazemos através do consumo de outros produtos e serviços, podemos estimar um valor recorrendo a calculadoras de pegada hídrica.

Mais complexo será calcular o valor de nadar numa praia, ir pescar no rio com os amigos ou simplesmente estar à beira de um lago a saborear a frescura da água.

Existem múltiplos e diversos valores da água para diferentes grupos e interesses sendo que para o cálculo desse valor devem também ponderar as interconexões entre as necessidades humanas, o bem-estar social e económico e a viabilidade dos ecossistemas.

Para enfrentar o desafio da água, impõe-se a gestão, proteção e valorização dos recursos hídricos e dos serviços associados e também a promoção da educação e sensibilização das pessoas e outros utilizadores sobre o valor intrínseco da água e seu papel essencial em todos os aspetos da vida.

Estamos a aprender a valorizar água como um recurso natural finito a ser salvaguardado. Com a crescente escassez, o valor percebido da água deverá aumentar e as secas, cada vez mais frequentes, dão-nos lições que devemos usar em nosso favor.

As nossas decisões e ações de hoje servem de rascunho para a escrita do futuro. Esta é uma história que a humanidade cria em conjunto e que deve ser capaz de valorizar a água para as pessoas, as atividades e o planeta para as próximas gerações, promovendo desta forma a sua utilização racional e a sua reutilização.
Carla Correia

A lição esquecida da Guerra Fria

A condenação da brutalidade da invasão russa da Ucrânia, não dispensa, antes exige uma profunda reflexão para compreender a magnitude do que está em causa, as suas raízes, e sobretudo as suas consequências prováveis.

No verão de 2018, a convite da revista Visão História (n.º 47), escrevi um texto que agora retomo, pois ganhou uma trágica e clamorosa atualidade. A tese é simples: o fim pacífico da guerra-fria poderia ser lido de duas maneiras. A primeira, em que Gorbachev e milhões de cidadãos de todo o mundo acreditaram nos anos 80 e 90, como uma rutura epistemológica, capaz de nos libertar das milenares doutrinas bélicas e da secular conceção de soberania estadual absoluta gizada desde a Paz de Vestefália (1648). A segunda, praticada de forma continuada pelas administrações dos EUA, a partir de 1999, como a guerra-fria ter sido vencida pelo Ocidente e a Rússia, como potência derrotada, poder ser ignorada na reconstrução do novo mapa-mundo geopolítico.


A invasão da Ucrânia por Putin, num perigoso gesto que coloca em risco a paz mundial, não resulta de uma divergência, mas sim de uma concordância fundamental entre Putin e o Ocidente. Também ele acha que a tradicional doutrina da soberania nacional/estadual absoluta é a válida. Também ele considera que a Rússia perdeu a guerra-fria, e que é tempo de reverter o curso dessa derrota. A tragédia que nos poderá levar, mais tarde ou mais cedo, a uma hecatombe atómica global resulta, não de uma discordância, mas de uma mortífera concordância entre o Ocidente e a Rússia. Como explico abaixo, esquecemos a lição fundamental da guerra-fria, aquela que nos poderia unir como humanidade, forjando um sistema internacional pacífico, guiado pela luta comum contra a ameaça ontológica da crise global do ambiente e clima. Retomo de seguida, integralmente, esse texto de 2018.

No verão de 1983, uma das canções mais populares nas discotecas alemãs – da autoria de um grupo de rock de Bochum, Geier Sturzflug – intitulava-se “Besuchen Sie Europa, solange es noch steht” (“Visite a Europa enquanto ela ainda está de pé”). A inspiração para o tema havia sido retirada de um folheto de propaganda de uma agência turística norte-americana, e o sucesso popular da banda estava ligado de modo diretamente proporcional à dramática escalada da tensão bélica entre a URSS e os EUA, naquela que ficaria conhecida como a crise dos euromísseis.

No dia 1 de setembro desse ano, um voo civil sul-coreano (KAL007) foi derrubado por um caça Su-15 depois de ter entrado em espaço aéreo soviético, morrendo todos os 269 passageiros. Ainda no dia 26 desse mês ocorreu um gravíssimo incidente: o centro soviético de deteção de eventuais ataques com mísseis balísticos intercontinentais sinalizou, ao longo de 15 minutos, o que aparentava serem 6 ICBM dos EUA lançados, um após outro. Felizmente, o tenente-coronel Stanislav Petrov (1939-2017), que estava no turno de comando, assumiu com uma sensatez heroica que se tratava de um erro do sistema, e não informou a hierarquia.

O governo de Andropov estava na altura convencido da possibilidade de um “primeiro ataque” (first-strike) nuclear da NATO. Não será uma temeridade imaginar que, perante essa informação, e de acordo com o princípio em vigor de que a resposta deveria ser o mais rápida possível (launch-on-warning), talvez um erro informático pudesse ter transformado esse dia no maior holocausto da história humana…

Uma semana antes da nomeação de Mikhail Gorbachev como líder da URSS, em 11 de março de 1985, foi publicado em Lisboa o meu livro Europa: O Risco do Futuro (Publicações Dom Quixote). Essa obra, que seria a única do género publicada no nosso país, continha os resultados de dois anos de intensa e apaixonada pesquisa sobre a complexidade da guerra-fria, as suas doutrinas estratégicas, os seus armamentos, os seus dilemas políticos e militares, as suas perspetivas de evolução futura. O foco principal era a segurança de uma Europa ameaçada pelos planos para uma “guerra nuclear limitada”.

Felizmente que com Gorbachev, a sua tentativa de reforma interna do regime soviético, no plano político-social (glasnost: transparência) e económico (perestroika: reestruturação), foi acompanhada de uma decidida aposta no desarmamento, que encontrou eco positivo nos líderes da NATO, em especial em Reagan e Margaret Thatcher. O resultado menor culminaria, em dezembro de 1991, no desmembramento pacífico da URSS. O essencial, contudo, foi ter-se evitando uma III Guerra Mundial que teria dizimado a humanidade e afetado criticamente o ecossistema planetário.

Para quem mergulhou na compreensão do software, delicado e sofisticado, da tensão bélica que de 1945 a 1990 dividiu o mundo entre duas potências centrais e seus aliados, respetivamente os EUA e a NATO, e a URSS e o Pacto de Varsóvia, causa náusea intelectual assistir à repetida tese de que o Ocidente “ganhou” a guerra-fria. Mais do que um erro analítico, tal afirmação reflete uma profunda ignorância. A questão central na guerra-fria é perceber a sua singularidade em toda a história universal conhecida.

Pela primeira vez, desde os impérios antigos até à II Guerra Mundial, uma oposição entre duas megapotências dominantes não culminou, depois das habituais guerras indiretas e de procuração entre aliados e vassalos (proxy wars), num conflito total. Lembro-me de alguns peritos, que entrevistei na preparação do livro, me terem confessado que só um milagre poderia evitar uma guerra atómica, limitada ou total, mas sempre com dezenas ou centenas de milhões de vítimas. Que razões explicam esse milagre?

Charles De Gaulle tinha razão quando insistia, em 1963, na tese de que tanto para a URSS como para os EUA “o estandarte das ideologias [capitalismo versus comunismo] apenas esconde as ambições”. Isso significava que o comportamento de Washington e Moscovo se pautava pelos interesses de conservação e aumento de poder da razão de Estado, como ficou provado no sinistro Pacto Germano-Soviético de 23 de Agosto de 1939, entre Hitler e Estaline. Dois inimigos ideológicos, partilhando de um conjuntural interesse comum, à custa de terceiros.

Mais tarde, nos anos 60, quando a China maoísta considerou a URSS como seu inimigo principal, a proximidade ideológica foi esmagada pela tradicional rivalidade imperial entre a China e a Rússia. Por outras palavras, para percebermos a guerra-fria temos de aceitar a teoria desenvolvida por Carl von Clausewitz no seu clássico e póstumo tratado, Da Guerra (1832), cuja essência pode ser resumida nas seguintes quatro teses principais: a) os sujeitos da guerra moderna são Estados, dotados de interesses potencialmente idênticos, e por isso motivo de contenda; b) a guerra é a continuação da política por outros meios; b) o objetivo da guerra visa a vitória, que se atinge quando se impõe a nossa vontade política ao inimigo; d) a vitória implica, geralmente, a destruição da capacidade militar do inimigo.

O segredo dos mais de 40 anos da guerra-fria reside numa enorme luta, de ideias e de tecnologia bélica, para manter ou invalidar a racionalidade clausewitzeana. Tanto Washington como Moscovo sabiam que com as armas nucleares a realidade da guerra se alterava substancialmente em relação à situação dos campos de batalha napoleónicos, ou das duas guerras mundiais. Com os mísseis balísticos terrestres (ICBM), aéreos (ALBM) ou submarinos (SLBM) um poder de fogo, centenas de vezes superior ao de todas as guerras do passado, podia ser acionado num máximo de 30 minutos! O conceito de frente, de mobilização estratégica, de vitória, no fundo, o léxico da própria racionalidade da guerra estava ameaçado…

A melhor expressão desse estado de coisas foi manifestada pelo secretário da Defesa de J. F. Kennedy, Robert McNamara, na doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD, em inglês). A paz significaria uma eterna corrida aos armamentos para manter um equilíbrio que impedisse uma guerra total, em que todos sairiam derrotados! Contudo, em 1983, tanto no lado ocidental, com a doutrina Rogers (Air-Land Battle), como no lado soviético, com a doutrina do Grupo Operacional de Manobra, do marechal Ogarkov, estavam gizados planos que poderiam tornar possível a guerra, mesmo nuclear, desde que fosse possível mantê-la dentro de certos limites.

O agora esquecido milagre da guerra-fria, dessa guerra que nunca se travou, não foi nem de natureza ideológica, nem de âmbito tecnológico. Foi uma mudança qualitativa, ética e política, na maneira de pensar a guerra. Com armas nucleares e outras de destruição maciça, a guerra deixa de ser um instrumento, para se transformar no principal inimigo da política. A racionalidade bélica dá lugar, com essa metamorfose, à tese de que a construção da paz, e não a guerra, deve ser o obrigatório instrumento e permanente objetivo de uma nova razão de Estado.