segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Quádruplo X

Durante a semana, falou-se muito da operação Triplo X. O centro das operações foi o edifício Solaris, no Guarujá, onde Lula tem um tríplex, teria um tríplex, ou acha que teve um tríplex, ou possivelmente só contemplava um tríplex. Não é esse Triplo X que me interessa tanto. O prédio caiu nas malhas da Operação Lava-Jato e o tríplex com suas múltiplas explicações continuará em cartaz.

Traduzindo o X por uma incógnita, gostaria de acrescentar mais um, que escapa da rede da Lava-Jato, mas foi brandamente recebido. É o fato de os dirigentes da Bancoop terem seus apartamentos e deixarem centenas de famílias ao relento. Era um projeto comum, que eles lideravam, no entanto abandonaram o navio como aquele comandante do Costa Concordia, transatlântico que afundou na costa da Itália. Ele foi condenado a 16 anos de prisão. Ali no Costa Concordia havia vida em jogo. No Bancoop, apenas sonhos e economias para a casa própria.

Nada mais corrosivo para uma proposta política que se pretende igualitária: em caso de naufrágio, salvam-se os líderes, a galera que se dane. Surgiram inúmeras defesas de Lula para livrá-lo das garras da Lava-Jato. Como sempre, algumas falam de um suposto apartamento de Fernando Henrique. Ele é o norte moral: se fez, podemos fazer também.


O advogado de Lula, Nilo Batista, busca uma outra linha: o apartamento é pequeno, um Minha Casa Minha Vida, as obras de R$ 770 mil no sítio de Atibaia, apenas um puxadinho. Até que ponto tudo isso não é um preconceito? Com tantos blogs por aí, defensores ardorosos, o PT não encontra uma única versão para esse quarto X: a deslealdade da cúpula com os mutuários. Tudo por um apartamento diante da praia de Guarujá. Na verdade era um futuro melancólico que foi abortado pelas denúncias.

Vaccari era o presidente da Bancoop e tem um tríplex no Solaris. Ele está preso. Mas por outros motivos. O silêncio do PT diante da Bancoop revela um pouco como o respeito, o medo, ou mesmo uma vontade de proteger a cúpula a qualquer custo minaram seus fundamentos. Se não fosse tríplex mas um simples quarto e sala, se a empresa não fosse envolvida no Petrolão, a cúpula do Bancoop, os seletos donos de apartamentos escapariam das malhas do Lava-Jato, mas não das malhas da decência comum, negadas por comandantes que se salvam enquanto os outros se ferram.

Embora exista um processo na Justiça, a oposição deu pouca importância ao episódio. Mais um esqueleto num armário tão grande como a sala de um museu de história natural. Existe um outro X para mim. Houve grande empenho para soltar o empresário Leo Pinheiro. O objetivo era afastá-lo da delação premiada. Zavascki, Lewandowski, Lebowski, alguém o soltou no Supremo. Quando tudo parecia resolvido, surgem as mensagens de Pinheiro. Seu telefone contava em mensagens parte do que contaria em delação premiada.

O Triplo X traz de novo Pinheiro à cena. O Solaris foi comprado pela OAS. O tríplex que Lula ocuparia foi reformado pela OAS. Tanto esforço para soltar o homem e ele reaparece em cena. Seus tornozelos devem estar ardendo em regime de prisão domiciliar. O que adiantou soltar Pinheiro? O volume de informações sendo processado é muito grande e talvez a Lava-Jato não dependa tanto de novas delações.

O fluxo de dados vai desvendando a Operação Triplo X e se ela se aproximar de Lula através desses dois fatos secundários, um tríplex e um sítio, repetirá outras ocasiões em que a Justiça acabou chegando por atalhos a estradas mais largas. De qualquer forma, sítio e tríplex são presenças concretas. No imaginário popular pesam mais do que abstratas contas na Suíça. Maluf ou Cunha podem dizer que não têm conta no exterior, e o mundo segue seu curso. Não há imagens.

Quando não são meras montagens, as fotos tendem a reaparecer com mais nitidez e frequência quanto mais nebulosas forem as explicações. Só a verdade pode devolvê-las, no seu tempo, ao silêncio dos arquivos.

Se o edifício é Solaris, que se faça luz. Por enquanto, as sombras o cobrem, desde a origem quando os bancários foram passados para trás.

Curioso é que Solaris também é nome de um oráculo cuja função é exatamente fazer perguntas. E com a seguinte advertência: perguntas irrelevantes, do tipo “Vai chover hoje?”, não serão consideradas. Infelizmente, a consulta se faz num tempo difícil, dominado por uma pergunta que o próprio oráculo não sabe responder: como sair dessa maré? 
Fernando Gabeira

Dilma sangra. Lula se esfacela

Um Lula mais fraco do que está seria melhor ou pior para o futuro do governo Dilma? A resposta mais fácil é que seria pior. Porque dele deriva a força que assegura a respiração artificial do governo.

É por causa dele que os movimentos sociais, embora de má vontade, ainda sustentam Dilma. O PT só não se esfacelou porque sonha com Lula outra vez presidente em 2019. Parece um sonho impossível?

A levar-se em conta pesquisas de opinião, tudo indica que sim. As investigações da Lava-Jato atingiram em cheio a imagem de Lula.

Pesquisa do Instituto Ipsos, divulgada na semana passada, ouviu 1,2 mil pessoas em 72 municípios do país entre os dias 13 e 27 de janeiro. Antes, portanto, da massificação do noticiário sobre o tríplex da família Lula no Guarujá e do sítio em Atibaia.

Para 25% dos entrevistados, o ex-presidente é um político honesto. Em 2005, no auge do escândalo do mensalão, 49% pensavam assim.

Para 68%, Lula não tem mais moral para falar de ética, ante 57% no mensalão. Na avaliação de 67%, ele é tão corrupto quanto os outros políticos. No mensalão, 49% compartilhavam a mesma opinião.

Sobrou para os partidos, PT na cabeça.

Em 2002, ano em que Lula se elegeu presidente da República pela primeira vez, 37% dos entrevistados disseram que não tinham preferência por nenhum partido. Agora, espantosos 82%.

A opção pelo PT caiu de 28% em 2002 para 6% em 2016. Segundo a pesquisa, o partido é apontado por 71% como mais corrupto do que os demais.

Oito em cada dez entrevistados (82%) consideram que o PT não tem mais moral para falar de ética. Em 2005, com o mensalão, eram 68%. Apenas 15% afirmam que o PT ainda é um partido honesto contra 27% em 2005.

Dilma tem procurado manter distância do PT para tentar escapar do seu desgaste. Não o condena, mas também não o defende. Procede assim em relação a Lula também.

Nem por isso a situação de Dilma melhorou: 92% dos entrevistados acreditam que o Brasil está no rumo errado, e 79% avaliam o governo como ruim ou péssimo.

O impeachment de Dilma é defendido por 60%. Nove em cada dez entrevistados não só apoiam a Lava-Jato como dizem que as investigações devem continuar "custe o que custar", apesar dos estragos na economia.

A corrupção desbancou a saúde como o problema que mais aflige os brasileiros. É a primeira vez que isso acontece desde 2002.

Cerca de 92% dos entrevistados concordam com a afirmação de que “sempre vai existir corrupção no país”. Talvez por isso, 46% imaginam que a Lava-Jato terminará em “pizza”, contra 31% que discordam, e 23% que não responderam à pergunta.

Lula e Dilma estão impedidos de circular livremente pelo país. Só comparecem a solenidades fechadas. Mesmo assim, em sessão do Congresso, Dilma acabou vaiada.

Um panelaço nas maiores cidades do país recepcionou seu mais recente pronunciamento na televisão.

Interlocutores de Lula confidenciam que ele pensa que só se recuperará se o governo se recuperar. Não é bem assim.

O destino de Lula depende mais dos resultados das investigações policiais do que da sorte do governo.

Dilma poderá continuar sangrando até o último dia do seu mandato e, no entanto, as chances de Lula sucedê-la naufragarem antes.

Ninguém melhor do que ele sabe que isso é verdade. Ninguém melhor do que ele sabe o que fez. Daí o seu silêncio e desespero.

'D' de depressão

Circula na praça do mercado uma versão da velha piada tétrica sobre a diferença entre recessão e depressão. Na recessão, seu vizinho perde o emprego. Na depressão, você também perde o emprego. Recuperação é quando a Dilma perde o emprego.

A aversão a Dilma Rousseff entre gente graúda de empresa e finança não é novidade, embora nem sempre tenha sido assim. A alergia grave espraiou-se de modo fulminante entre 2012 e 2013, ano em que o país quase inteiro descobriria que "era infeliz e não sabia", na frase do cientista político André Singer.


Nova é a conversa sobre depressão, espécie teratológica de recessão, que nem é o caso do Brasil, embora não exista definição geral desse desastre econômico. Mas a depressão dos ânimos de consumir e investir é profunda, se prolonga de modo raro e dificulta muito a saída do atoleiro. A desesperança abissal deve ser agravada neste 2016, em que a dor maior da crise vai chegar ao cidadão comum.

Os diversos índices que medem a confiança do consumidor divergem quanto ao registro de quando começou a tendência de baixa contínua dos ânimos: abril de 2012, fevereiro de 2013. Não há dúvida sobre a derrocada sem fim que começou com o choque da virada para 2015, quando, em palavras e atos, a presidente reeleita demonstrou que mentira na campanha (vieram alta de juros, notícia de arrocho, golpe da conta de luz etc.). Qualquer que seja a medida, é uma longa desesperança.

O empresário demonstra seu desânimo no fato de que o investimento produtivo recua desde a metade de 2013. São dois anos e meio de declínio, provavelmente três anos e meio ao fim de 2016, raridade histórica.

As estimativas de crescimento continuam a piorar rápido. No início de dezembro, previa-se recessão de 2% em 2016. No fim de janeiro, de 3%. Na sexta, os economistas do Itaú previam queda de 4% em 2016.

Caso se confirmem tais previsões, pode se estimar baixa de 10% no PIB per capita no triênio 2014-16, desastre menor apenas que o da ditadura, 1981-83. Pior que isso, agora a baixa do PIB vai escorrer pelas ruas, ressalte-se: maior desemprego em uma década, queda dolorosa da renda média, piora dos serviços públicos, de saúde em particular. O sofrimento ainda será maior por causa dos preços.

O aumento da inflação está associado às variações de ânimo do consumidor. Pouco antes de junho de 2013, a inflação de comida e bebida chegou a 14% (a inflação média, geral, era de 6,5%), derrubando a confiança, marcando o começo do fim da pacificação dos anos petistas. A inflação da comida em janeiro deste 2016 foi a quase 13%, embora a média geral seja agora de 11%, pressionada por itens mais essenciais, como energia e transporte.

Inflação, os indícios de colapso da atividade econômica em janeiro e a baixa do número de pessoas empregadas, que começou em outubro, nos assustam ainda mais.

O Brasil padece de doença econômica rara e muito grave, uma combinação de inflação alta, recessão profunda e descontrole da dívida pública, agravada por desprestígio presidencial de duração e tamanho recordes e falta de rumo de governo. Difícil chamar de depressão econômica. É certo que há depressão da esperança.

PT vive drama: Lula virou um fardo de si mesmo

No mês em que completa 36 anos, o PT vive um drama. Com a imagem estilhaçada, o partido já tinha perdido o recato, o discurso e o monopólio das ruas. A três anos de 2018, começa a perder também as esperanças de permanecer no poder federal depois de Dilma Rousseff. Lula, derradeiro trunfo da legenda, caiu do pedestal. Tombou sozinho, sem a ajuda da oposição.

Lula já foi imbatível. Em 2006, reelegeu-se nas pegadas do mensalão. Em 2010, carregou Dilma, seu poste, nos ombros. Em 2014, a despeito do estrago produzido pelos primeiros delatores da Lava Jato, Lula reeletrificou Dilma com a ajuda da marquetagem anabolizada de João Santana, que transformou a política em mais um ramo da publicidade. Desde então, Lula definha.


O petrolão caiu no colo de Dilma, mas a plateia notou que o óleo queimado que escorre da Petrobras teve origem na gestão de Lula. Percebeu também que a competência gerencial de Dilma é uma fábula 100% criada por Lula. Agora, o inferno imobiliário transformou Lula numa caricatura do “guerreiro do povo brasileiro”.

É como se o grande líder assumisse o papel de pardal dele próprio, esforçando-se para sujar a testa de sua estátua de bronze. Em litígio com o personagem que criou, Lula admite que desistiu de incorporar o triplex do Guarujá ao seu patrimônio depois que a revelação de que a OAS despejou mais de R$ 800 mil numa reforma fizera do imóvel um escândalo.

Lula admite também que frequenta como se fosse dono o sítio de Atibaia, um Éden reformado com esmero por um pool de empresas que inclui a OAS e a Odebrecht, estrelas da Operação Lava Jato. “É a coisa mais normal do mundo”, absolveu o amigo e ex-ministro petista Gilberto Carvalho, adicionando uma pitada de insensatez ao escárnio.

Não há ilegalidade nos procedimentos, alega o petismo, sem se dar conta de que o drama não é apenas jurídico. Dissemina-se entre os brasileiros a sensação de que aquela conversa toda, aquele idealismo, aquela vontade de servir à sociedade, aquela entrega altruísta ao bem público, tudo aquilo era impulsionado pelo dinheiro. Lula virou um fardo de si mesmo, eis o drama do aniversariante PT.

Nós versus eles

O Bolsa-Família é uma fusão de vários benefícios sociais e de distribuição de renda criados no governo FHC. Um deles era o Bolsa-Escola, que consistia na remuneração de mães pela presença de seus filhos – crianças e adolescentes - na escola. Se a criança fosse às aulas, o certificado de aproveitamento era o “cartão” do benefício que remunerava a família. Havia, portanto, um pressuposto nobre e altamente funcional: só fazia jus ao benefício os quecumpriam com suas metas. O Bolsa-Escola foi feito por “eles”. O Bolsa-Família, por “nós”.

Após ter derrotado a hiperinflação, um fenômeno socioeconômico terrível que assombrava a todos, o Plano Real foi seguido de uma austeridade fiscal tão necessária quanto vital. Foi adotado o tripé macroeconômico que, desde 1999, tem combinado um regime de metas de inflação, um regime de taxa de câmbio flutuante e metas de superávit fiscal primário. O governo do PT não acredita que a austeridade fiscal, o corte de gastos e a contenção da inflação possam gerar crescimento econômico. O tripé foi adotado por “eles”; as altas taxas de juros, a defasagem cambial e o desempenho econômico negativo ficou por “nossa” conta.

Em 1992, Collor era um presidente desgastado por causa de escândalos de corrupção. Surgiu a figura nada oculta de PC Farias (o equivalente ao Bumlai do Lula), que havia comprado uma Fiat Elba para “madame” Rosane (o equivalente ao tríplex no Guarujá). Também havia o irmão rancoroso (nada se comparado à dupla dinâmica Lulinha & Luleco) e poucos dólares no Uruguai (mixaria perto dos 57 milhões “por dentro” faturados pelo Instituto Lula). Tudo isso foi numa época em que o Brasil achava que merecia algo melhor do que o presidente Collor, logo após um governo horroroso de José Sarney, que ficou com o cargo depois da morte sofrida e traumática de Tancredo Neves. O povo foi agraciado com Tancredo, maltratado por Sarney e ludibriado por Collor. Não dava mais para errar pois, além do sofrimento, haveria de haver um brasileiro que prestasse. Dois nomes aceitaram o desafio: Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Era um tempo em que todos, de fato, ainda éramos “eles”.

Com a sedimentação dos princípios do tripé macroeconômico e o fortalecimento do Real, com a adoção de mecanismos que mantivessem a inflação sob controle e um maior profissionalismo na gestão pública, o Brasil começou a despontar no mercado internacional como uma nação séria, preocupada com suas contas e com o conservadorismo econômico vital para a perseguição do desenvolvimento. Trabalho longo feito por “eles”.

Eis que, em 2002, assume o primeiro Presidente da República que havia sido pobre, simples, um operário e líder sindical amado por milhões e incensado por artistas, intelectuais e lideranças de diversos matizes. Junto com seus parceiros José Dirceu, Delúbio Soares, Silvinho, Gushiken, Celso Daniel e outros tantos, declarou que o “PT não rouba nem deixa roubar”. Hoje, apesar dos erros cometidos às toneladas, o PT continua com Dilma (a de Pasadena, do fim da Petrobras e do desastre econômico que já dura 3 nos) e foge das ruas, das pessoas e da polícia todos os dias. Essa galerinha hoje compõe o “nós”.

Agora você já sabe quem é quem quando algum petista vir com o papo do “nós” versus “eles”. O “nós” são os que acabaram com o Brasil. E os “eles” serão os que terão de fazer a limpeza e começar tudo de novo...

Tristes trópicos

A nação irrompera no século 21 com motivos de sobra para andar de cabeça erguida. Um líder amado e representativo de sua gente fora eleito em pleito histórico, injetando gosto por democracia e apetite por cidadania aos redutos mais esquecidos do vasto território. O resto do continente olhava para esse Bric emergente com um misto de curiosidade, e que até mesmo Copa do Mundo abrigou!

Hoje orgulho e esperança se esfarelaram. “Estamos rumando para um Estado predador, onde uma elite poderosa, corrupta e demagoga de hienas políticas usa cada vez mais o Estado para enriquecer”, acusa um sindicalista histórico. “Estamos traindo os mais pobres, parece pacto com o diabo”, acrescenta outro companheiro.

Estamos falando da África do Sul, é claro.

Dias atrás, após anos de escandalosas tergiversações e delongas, o presidente Jacob Zuma achou prudente aceitar devolver pelo menos parte do dinheiro público que gastou na reforma de sua residência. Dessa forma ele tenta encerrar um processo judicial cuja audiência está marcada para esta terça-feira e que arrasta seu corrupto governo ladeira abaixo.

Charge que gerou processo de Zuma contra o The Sunday Times

No continente africano, abusar de fundos públicos para erigir mirabolantes domínios privados costumava fazer parte do receituário de cleptocratas ditatoriais como Jean-Bedel Bokassa ou Mobutu Sese Seko. “O Grande Leopardo” Mobutu, por exemplo, que reinou no antigo Zaire (hoje República Democrática do Congo) por 32 anos, tinha uma Versalhes privada na selva de Gbadolite com aeroporto capaz de receber aviões Concorde, um bunker nuclear para 500 pessoas, vários palácios e um elaborado complexo de pagodes construído por chineses.

Bokassa, o autoproclamado imperador da República Centro-Africana, cuja cerimônia de coroação foi tão extravagante que consumiu algo como um terço do orçamento do Estado, manteve-se no poder por 13 anos. Já o tirano-mor de Uganda Idi Amin, que enviava telegramas à rainha Elizabeth II da Inglaterra tratando-a de “Liz”, costumava chegar a reuniões de cúpula do Commonwealth em cima de um andor carregado por quatro esquálidos caucasianos.

Mas a África do Sul democrática do pós-apartheid que emergiu orgulhosa junto com seu fundador Nelson Mandela em 1994 tinha outros parâmetros e lições de retidão a dar ao continente. E de início assim foi. A erosão veio com o apego à máquina do poder pela elite do histórico Congresso Africano Nacional pós Mandela. Lambuzaram-se, diria o ministro Jacques Wagner. E o atual presidente Jacob Zuma, no poder desde 2009, está enterrando de vez o que resta da confiança tão duramente conquistada pelo país.

Não é de hoje que ele se vê enredado em acusações pesadas de corrupção, tráfico de influência, lotação de cargos para apadrinhados, estelionato e até mesmo um caso de estupro, dos quais sempre conseguiu escapulir. O que nunca sumiu da lupa da Defensora do Povo, cargo equivalente a um ombudsman dos cidadãos, foi a tal reforma “de segurança nacional” iniciada em sua residência particular pouco após tomar posse.

Foram adicionados um conjunto de edificações de estilos e formas variadas, uma piscina, um heliporto, um anfiteatro, um centro de recepção com cúpula, um estábulo para gado e um galinheiro — tudo em nome da segurança do chefe da nação e em meio à paisagem rural e paupérrima de Nkandla, sua terra natal, na província de KwaZulu-Natal, uma das mais desoladas do país. Ali, apenas 10 mil domicílios têm energia elétrica, 7 mil não têm água encanada e dos cerca de 120 mil habitantes da região mais de 40% estão desempregados.

O terreno agora ocupado por Zuma equivale a oito campos de futebol e a reforma engoliu o equivalente a 246 milhões de rands (equivalente a R$ 60 milhões), enquanto o upgrade do último governante branco do país, F. W. de Klerk, custara 236 mil rands uma década antes.

A primeira tentativa de fazê-lo responder a processo fracassara devido à imaginativa defesa das reformas encaminhada pelo ministério da Polícia. Um bombeiro chamado a depor afirmara que a piscina representava “a melhor fonte de água disponível para abastecer as bombas em caso de incêndio de grandes proporções”. O anfiteatro fora necessário para prevenir a erosão do solo por onde circulam os pesados veículos blindados, o centro de recepção poderia ser necessário para abrigar a grande família do presidente polígamo (ele tem 20 filhos) em caso de emergência, estábulo e galinheiro têm “valor espiritual”.

Só que a Defensora do Povo Thuli Madonsela manteve a pressão. Titular do cargo instituído pelo Artigo 181 da Constituição de 1996 e cuja indicação é feita pela Assembleia Nacional, ela se sabe amparada pela indignação popular. O relatório 2015 da Transparência Internacional com a rede Afrobarometer aponta a África do Sul, seguida de Gana e Nigéria, como o país africano em que a corrupção é citada como tendo piorado mais ao longo do último ano.

Jacob Zuma, o menino zulu que cuidava de rebanhos, frequentou a escola apenas por alguns anos e não recebeu nenhuma educação formal além do primário, engajou-se cedo na luta pela sua gente e tornou-se um competente líder do Partido Comunista sul-africano e do ANC. Não foi por acaso que penou dez anos na prisão de Robben Island ao lado de Nelson Mandela. Sempre teve sintonia fina com o homem do povo, em contraponto com seu antecessor mais austero, Thabo Mbki. Pena que tenha perdido o rumo quando o caminho ficou fácil.

No ano em que o movimento de libertação comemora 104 anos especula-se se o presidente de 73 anos conseguirá chegar ao término de seu segundo mandato, em 2019.

Uma declaração de Ronnie Kasrils, ex-ministro dos Serviços de Inteligência, ao jornal “The Guardian” dois anos atrás, diz tudo: “Mais importante do que o partido são as ideias do partido. São elas que devemos defender. Se o partido esquece essas ideias, vamos ficar do lado do povo que exige o que lhe prometemos a vida toda — uma vida melhor. Não podemos ficar calados quando vemos esses crimes de corrupção.”
Dorrit Harazim

O certo e o errado

Charge O Tempo 07/02

É urgente corrigir os desatinos fiscais do lulopetismo, desaparelhar o Estado, reconquistar a confiança da sociedade e retomar a agenda de reformas que o lulopetismo abandonou em favor de anabolizantes pró-crescimento que produziram medonhos efeitos colaterais para o país.
Há forças capazes de corrigir os desatinos cometidos. Para isso, é preciso que lideranças não comprometidas com o lulopetismo, apoiadas pelos grupos sociais que nunca se deixaram ou não se deixam mais seduzir pelo seu falso encanto, assumam a sua responsabilidade histórica, dentro da Constituição, para fazer o certo em benefício do povo e do país.

Os números da saúde não são ouvidos

Em 2015, o Ministério da Saúde sabia que os casos de dengue haviam chegado a 1,6 milhão. O estrago provocado pelo mosquito crescera em todas as regiões do país e dobrara no Centro-Oeste. Deu no que deu.

Os números da Saúde falam claro, mas quando são colocados em planilhas não são ouvidos, ou as respostas do governo vêm sob a forma de projeto marqueteiro. Sem ter nada a ver com o mosquito, sabe-se que o sistema de saúde privado brasileiro padece dos males de uma contabilidade de padaria, e a quebra dos planos Unimed está aí para expor o risco dessa conduta.

Elas devem R$ 1,2 bilhão à Viúva porque cobraram dos associados, mas não pagaram seus impostos. Os médicos receitam, os hospitais gastam, os planos pagam, e a conta explode no bolso do freguês.

Segundo estatísticas de 2013, a taxa de exames de ressonância magnética na rede do SUS é de 4,9 para cada 100 mil habitantes. No sistema de saúde privado é de 89,1. Tudo bem, SUS é coisa de pobre, quem tem plano privado deve ter melhor atendimento.

A porca torce o rabo quando se vê que a taxa brasileira só perde para a da medicina americana (97,7). Nos Estados Unidos os custos hospitalares são um dos principais itens da agenda nacional. No Brasil os burocratas fazem de conta que esse problema não existe. As ressonâncias estão na faixa dos exames caros e lucrativos do sistema.

A taxa de exames de ressonância do sistema privado brasileiro bate as dos 36 países membros da OCDE (46,3), do Canadá (46,7) e da Austrália (23,9).

Alguns fornecedores de aparelhos de ressonância vendem suas máquinas oferecendo aos hospitais plantéis de pacientes obtidos com operadoras que se comprometem a remetê-los para lá quando o médico credenciado achar necessário. Nisso não há só desperdício, há também roubalheiras.

Desse jeito, um dia os hospitais farão exames de ressonância nos familiares dos pacientes.

Elio Gaspari

E no país do 'chutômetro'

Esse meu “chutômetro” não tem nada a ver com futebol, mas sim com as mentiras da presidente, que lamenta não poder ensacar vento e se rejubila pela conquista da mandioca, além de outras esquisitices do gênero. Penso que já passou da hora de escutarmos tanta “bestagem” sobre assuntos sérios e de vermos tamanha insensatez praticada pelo atual governo, sem uma reação correspondente do povo ou da parte do povo, que vê o país soçobrar pela incompetência e incapacidade civil de sua comandante.

Eu nunca fui favorável ao impeachment de Dona Dilma, porque sempre achei que seu caso é de interdição por incapacidade civil. Não a incapacidade civil de que trata o Código Civil em seu artigo 1.767. A incapacidade de que falo, na política, é declarada pelo Congresso Nacional, que se resolve no voto, sem pensar em curatela – pois seria necessário, no caso, a indicação de um curador, que poderia ser um pau-mandado do PT, o que significaria trocar seis por meia dúzia... 


Uma presidente que não toma conhecimento de que o país está tomado por banqueiros, agiotas, ladrões de casaca – fora da Lava Jato –, que chegam a cobrar juros de 430% ao ano por utilização de cheque especial ou crédito rotativo, e, consequentemente não toma providência para prender essa gente por crime de usura e contravenção contra a economia popular, na forma da Lei 1.521/1951, não pode ser vereadora nem de “currutelas”, quanto mais presidente da República.
Porém, é assim que estamos vivendo, nós, brasileiros... Está ruim viver em um país como o nosso, que mais parece um carro velho, desgovernado pela quebra da barra de direção...

Compreendo, até certo ponto, a incapacidade da presidente para a vida pública, já que demonstrou essa inabilidade também na vida privada. Afinal, como se explicar que uma pessoa equilibrada, no fulgor de seus vinte anos, como no seu caso, tenha saído por aí de metralhadora em punho, para fazer valer seu sonho, possivelmente “robinhoodiano”, de viver numa Sherwood comunista?
Aquele que, estupidamente, se diz o homem mais honesto do mundo deve ter escolhido a candidata por um critério de exclusão, de forma a não deixar dúvida alguma de que foi ele, o tal “honesto em excesso”, que fez sozinho a presidente da República. Não podia ser alguém que se distinguisse na sociedade pela cultura, pelo procedimento, ou por qualquer atributo que pudesse, deixando essa dúvida ferir a vaidade pessoal de um analfabeto.

Digo à presidente o que muitos gostariam de dizer: chute o pau da barraca, assuma sua condição de mulher que precisa ser simples, reconheça suas dificuldades pessoais, peça perdão ao povo brasileiro por sua petulância em fazer o papel de presidente – o mais surpreendente: da República, que muitos acham que é das bananas –, e surpreenda seu criador, reconhecendo que os governos do PT acabaram com nosso orgulho natural de sermos nação de um povo feliz e altaneiro, sem ser pedante e metido a besta. Quebre esse galho pra nós, vai...

Denúncias sobre sítio e triplex ajudam a desconstruir mito Lula

No baralho do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o ás, o rei e o valete. Quadro mais importante da legenda, puxador de votos e formador de sucessores no Planalto, o petista foi jogado nas últimas semanas no meio de um turbilhão das operações Lava Jato e Zelotes, que ameaçam torná-lo carta fora da disputa de 2018. Um sítio de amigos e um tríplex de luxo reformados por empreiteiras investigadas por participação no caso de corrupção da Petrobras colocaram o mito de Lula novamente em uma posição desfavorável. Vale lembrar que não é a primeira vez que o petista tem sua popularidade arranhada por escândalos no partido: apesar de sofrer desgaste durante o mensalão, o ex-presidente escapou quase ileso do episódio, e foi reeleito em 2006.

Mas agora, ao ter seu nome envolvido no que as autoridades acreditam ser um possível episódio de troca benesses – que incluiriam um elevador privativo no tríplex – por contratos com o Governo, a reputação do líder petista sentiu o abalo. Vale lembrar que todos os ex-presidentes, de José Sarney a Lula, passando pelo tucano Fernando Henrique Cardoso, e políticos de modo geral, são frequentemente cortejados com presentes, favores e agrados por parte do empresariado, em relações que muitas vezes se encontram na fronteira entre o imoral e o ilegal. "Não basta parecer sério, é preciso ser sério", diz o provérbio atribuído ao imperador romano Júlio César, referindo-se à sua ex-esposa Pompeia.

Se no passado outros políticos brasileiros tiveram 'agrados' questionados, agora é Lula quem está no centro das atenções, justamente quando sua sucessora está no poder, e quando seu partido tem declarado interesse nas eleições de 2018. Por isso, cabe a ele justificar que o que parece ser não é exatamente. Nos últimos dias a seriedade do ex-presidente foi posta à prova com a divulgação de um ofício do delegado da Polícia Federal Marlon Cajado, responsável pela Zelotes, no qual ele confirma a existência de um inquérito para apurar se o ex-presidente e outras pessoas participaram do esquema investigado ou se foram vítimas do mesmo. Assim, Lula entrou de vez nas duas operações da Polícia Federal: seu nome começou a ser atrelado à Lava Jato e já é investigado na Zelotes.

O reflexo da crise na imagem do petista se traduz em números. Pesquisa do instituto Ipsos divulgada nesta semana apontou que apenas 25% dos entrevistados consideram que o petista é honesto. Durante o escândalo do mensalão eram, 49% acreditavam na idoneidade do líder. E não é só: 68% das pessoas acham que Lula não tem moral para falar de ética, (ante 57% em 2005), e 67% disseram que a Lava Jato mostra que o ex-presidente é tão corrupto quanto outros políticos (no mensalão 49% tinham essa percepção). Soma-se a isso a péssima avaliação do Governo de Dilma Rousseff, o naufrágio ainda sem socorro da economia brasileira e a expectativa de mais um ano de martírio na relação do PT com o Congresso – sem contar o surto de doenças com o zika vírus –, e têm-se os ingredientes que podem jogar vinagre nas aspirações do ex-sindicalista de subir, pela terceira vez, a rampa do Palácio do Planalto.

Os números são influenciados fortemente pelo bombardeio sofrido pelo ex-presidente na imprensa, que colocou sob escrutínio seu patrimônio – e de seus amigos. Alguns veículos fizeram até mesmo o levantamento de quantas vezes Lula esteve no sítio de Atibaia (111 vezes), filmagens aéreas da região, e o cálculo do tamanho da propriedade: 173.000 metros quadrados ou 24 campos de futebol, como repetem diariamente os noticiários. É aí que mora o perigo, segundo alguns analistas. O brasileiro simples pode se perder dentro das notícias que falam sobre desvios de 100.000 reais ou 100 milhões. Mas ele entende perfeitamente a figura de linguagem que chegou agora para falar sobre as posses do ex-líder sindical. Ou sobre uma cozinha planejada adquirida para o triplex no Guarujá, pago por uma construtora.

“Quando você fala que o mensalão desviou milhões, bilhões, de reais, ou menciona compra de apoio parlamentar, isso não quer dizer nada para o ‘brasileiro médio”, diz Ricardo Caldas, da Universidade de Brasília. “Agora quando você fala em elevador privativo e reformas no sítio pagas por empreiteiras, isso choca demais a população, que passa a ver o Lula como uma farsa. As pessoas tendem a se questionar: ‘esse era o presidente pai dos pobres?”. Segundo ele, nesse cenário o valor envolvido na reforma, por exemplo, não é o fundamental para provocar o desgaste da imagem do petista, mas sim a questão dos valores e da ética.

A vantagem que Lula sempre teve em relação a seus rivais desde que foi eleito em 2003, que é justamente o imaginário popular sobre o homem que saiu da pobreza para olhar pelos menos favorecidos, entra em curto-circuito neste momento em que o juiz Sergio Moro foi elevado a categoria de herói nacional. Vale lembrar, de qualquer forma, que o Guarujá é hoje uma praia de classe média mas está longe dos circuitos dos milionários, assim como a cidade de Atibaia, a uma hora da capital paulista.

A polícia investiga se o sítio seria efetivamente de Lula, embora esteja em nome de amigos, o que caracterizaria ocultação de propriedade. Para aliados do ex-presidente, que saiu do poder com 80% de aprovação, essa leitura é absurda. Em entrevista ao jornal O Globo,o prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, diz que qualquer pessoa poderia comprar um sítio ou casa na praia e emprestar a alguém. “Vamos imaginar que eu tenho uma casa na praia e disponibilize para você usar todo final de semana, alguém tem alguma coisa ver com isso? É o caso do sítio”, afirmou. “O problema é que não estão atrás da verdade. Estão atrás de encontrar um jeito de mostrar que o Lula está envolvido na Lava-Jato”, completou Marinho.

Se real ou apenas perseguição política, o fato é que já há quem duvide que o ex-presidente chegue com fôlego de concorrer à eleição em 2018. A empresa de consultoria política e de risco Eurasia Group, que costuma ser ponderada em suas avaliações políticas sobre o Brasil – nunca encampou a tese do impeachment de Dilma, por exemplo – chegou a cravar em um relatório que “Lula está fora da corrida presidencial de 2018”. Para justificar a análise, cita um estudo segundo o qual as chances de um presidente emplacar sucessor quando sua popularidade é menor do que 40% gira em torno de 6%. “A aprovação de Dilma gira em torno de 10% a 15%”, diz o relatório. Soma-se a isso “a profundidade com que o escândalo da Lava Jato já rebaixou Lula aos olhos de 70% da população”.

Caldas, da Universidade de Brasília, hesita em tirar Lula do páreo em 2018, em todo caso. “Prova disso é o mensalão. Todos davam ele como acabado em 2004, e no entanto em 2006 ele se reergueu e foi reeleito”, afirma o professor, que, no entanto, vê diferenças no tipo de escândalo que resvala no ex-presidente agora. O único cenário no qual o cientista político vê o fim das pretensões presidenciais do petista é caso ele seja condenado na Justiça.

O analista político Thiago de Aragão, da Arko Advice, concorda com a avaliação de Caldas. “É complicado colocá-lo como carta fora do baralho faltando dois anos para as eleições, principalmente no Brasil, onde a população tem uma enorme capacidade de perdão e esquecimento”, afirma. No entanto, ele faz uma ressalva com relação à diferença nos momentos econômicos vividos no país à época do mensalão e agora: “Quanto mais a economia cresce, mais a sociedade é tolerante com a política, e o contrário também é verdade. Os anos do mensalão foram de esperança, foi um momento positivo para a economia nacional”. Hoje, com a atual crise econômica e o aumento do desemprego, Aragão diz existir uma parcela da população que relaciona o “o petrolão com a crise”. “Um indivíduo que acabou de perder o emprego e está em casa assistindo TV vê uma reportagem com os números dos desvios na Petrobras, e faz essa associação. E no final, tudo isso é canalizado para o Lula e o PT”.

Até o momento o ex-presidente prestou depoimento no âmbito da operação Zelotes, que investiga a compra de Medidas Provisórias durante seu Governo e a venda de sentenças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. No entanto até o final do mês ele e sua mulher, Marisa Letícia, devem depor na condição de investigados. Para o Instituto Lula, "fracassaram todas as tentativas de envolver o nome do ex-presidente no processo da Lava Jato, apesar das expectativas criadas pela imprensa, pela oposição e por alguns agentes públicos partidarizados, ao longo dos últimos dois anos".

De acordo com a nota, tentativas do mesmo gênero feitas no âmbito da Zelotes também devem fracassar. Não há nenhum elemento que justifique a mudança do tratamento. Sobre o inquérito que irá apurar eventuais responsabilidades de Lula no caso de vendas de MPs, o advogado do ex-presidente, Cristiano Zanin Martins, afirmou que o petista "foi ouvido no dia 6 de janeiro na condição de informante, sem a possibilidade de fazer uso das garantias constitucionais próprias dos investigados", e que "não há nenhum elemento que justifique a mudança do tratamento (de tratá-lo como investigado)".

A inveja, a crise e as trevas

“Eu matei Mozart!”, grita o invejoso Antonio Salieri criado por Milos Forman em Amadeus. Nada poderia ser mais distante da realidade. Salieri foi um músico extremamente bem-sucedido, suas obras foram aclamadas em vida e ele chegou a dar aulas para Beethoven, Schubert e Lizst, enquanto Mozart lutava para sobreviver. Mesmo assim, a ficção acabou colando em Salieri a pecha de um dos mais odiosos e ressentidos personagens da história, que terminou seus dias solitário e taciturno num manicômio.

Outro ícone da inveja é Iago, criado por William Shakespeare em Otelo. Iago convence o mouro da infidelidade da esposa Desdêmona por ter sido preterido numa promoção. O invejoso fabrica em sua mente perturbada uma injustiça irreal cometida por seu superior como forma de explicar a própria derrota. O final é trágico para todos.

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O maior de todos os invejosos, sem dúvida, é Satanás. Como descrito em Paraíso Perdido, de John Milton, Lúcifer é um líder protorrevolucionário que fomenta uma rebelião fracassada contra Deus. Sua maior arma é a astúcia, a persuasão, a mentira dissimulada e o carisma. Sua meta é corromper o espírito dos anjos por causa de sua própria sede de poder: “melhor reinar no Inferno do que servir no Céu”.

A inveja que envenena a alma do indivíduo é capaz de destruir um país. Alain Peyrefitte explica: “a sociedade de desconfiança é uma sociedade temerosa, ‘ganha-perde’: uma sociedade na qual a vida em comum é um jogo cujo resultado é nulo, ou até negativo; propícia à luta de classes, ao mal-viver nacional e internacional, à inveja social, ao fechamento, à agressividade da vigilância mútua. A sociedade de confiança é uma sociedade em expansão, ‘ganha-ganha’; sociedade de solidariedade, de projeto comum, de abertura, de intercâmbio, de comunicação”.

Em outubro último, num momento sintomático da miséria ideológica nacional, professores que faziam uma manifestação em São Paulo apedrejaram um carro de luxo, raríssimo no Brasil, pertencente a um desconhecido. O veículo apenas passava pelo local rebocado por um guincho. O que leva gente que vai formar as novas gerações de brasileiros a acreditar que o vandalismo bestial e invejoso fará algum bem a ele ou ao país? Como conseguiram corromper de tal forma suas almas?

O Brasil é uma sociedade de desconfiança, de “ganha-perde”. Muitos brasileiros já entenderam o papel deletério exercido pelo Estado hipertrofiado e tentacular em suas vidas, que obriga o país a trabalhar cinco meses por ano para sustentar sua máquina corrupta, inepta e perdulária. Pelo quinto ano seguido, o país ocupa o último lugar no ranking sobre retorno dos impostos.

Professores que apedrejam carros nas ruas são a face visível de uma doença social e moral muito mais grave e profunda. Eles agem como esbirros de uma engrenagem que há décadas envenena e racha o país, destruindo a capacidade de associação e colaboração dos brasileiros a partir das instituições sociais tradicionais como família, trabalho, escola, associações de bairro, igrejas e instituições filantrópicas, deixando apenas o Estado no lugar.

Uma sociedade em que o cidadão perde a confiança nela própria será sempre disfuncional. A confiança, com responsabilidade e liberdade, sem a intermediação autoritária, ineficaz e corrupta do poder estatal, é o pilar de relações sociais frutíferas e moralmente saudáveis.

Enquanto o Brasil não acabar com a onipresença sufocante do Estado e voltar a fomentar a liberdade, o empreendedorismo e a associação voluntária e mutuamente benéfica entre os cidadãos, estará sempre refém de governantes e burocratas que buscam arbitrar cada aspecto de suas vidas para pilhar seus recursos e consolidar o próprio reino de trevas, um objetivo em estágio já bastante avançado.

Alexandre Borges