sábado, 26 de novembro de 2022

Brasil do povão também pergunta

 


O covarde em questão

Acontece na guerra: o exército vencido bate em retirada e tenta se vingar do vitorioso deixando um rastro de destruição e morte. Mas, como bem sabem os militares, quem faz isto está sendo só covarde. Primeiro, porque é uma vingança a distância, a salvo, pelas costas, típica dos covardes. E também porque, ao plantar minas ao fugir, tocar fogo em cidades e florestas e envenenar rios e plantações, matarão muito mais inocentes, como crianças e animais, do que os experientes inimigos que pretendem atingir.

Jair Bolsonaro é o covarde em questão. Ao encontrar o que merecia nas urnas e ter data marcada para ir embora, está aproveitando os últimos dias no cargo para completar seus quatro anos de meticulosa demolição do país. Vide seu apoio mudo e tácito aos atos terroristas e às barricadas nas estradas. O histérico baderneiro que, há dias, impediu um pai de vencer a barreira para levar o filho a uma cirurgia que lhe garantiria a visão pode ter nome e sobrenome. Mas este é só o pseudônimo do celerado. Seu verdadeiro nome é Jair Bolsonaro, e será a este que o pai deverá exigir satisfações se seu filho perder o olho.

Como ainda tem tinta na caneta, Bolsonaro tenta passar o resto da boiada, infiltrando os derradeiros pilantras de sua confiança em órgãos judiciais, cortando verbas essenciais e desmontando os já poucos serviços de proteção às florestas. Quem perde com isso é o Brasil, mas e daí? E seu silêncio fala alto quando, agora temendo processos de verdade, ele escala Walter Braga Netto e Valdemar Costa Neto para fazer o trabalho sujo.

Bolsonaro não tem a hombridade dos grandes generais que, ao perder a guerra, entregam sua espada ao vitorioso e saem de cabeça erguida —vencidos, mas não derrotados. Sua atitude é a de um moleque.

Moleque, segundo o Houaiss, pode ser tanto um sujeito brincalhão e gaiato quanto uma criança ou um canalha. Você escolhe.

Onde está o inferno?


A nossa questão não é saber se há; é tão-somente decidir onde está o inferno
Camilo Castelo Branco

À espera do Messias em frente ao quartel ou à PF em Curitiba

Nos anos 80, ocupavam a Cinelândia, no Centro do Rio. Resistiram algumas décadas — hoje não há mais vestígios do que um dia foi a aguerrida Brizolândia. Em 2018, começaram uma vigília em frente à Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Por 580 manhãs, renovavam sua fé gritando: “Bom dia, presidente Lula!”. Desde o segundo turno das eleições de 2022, estão acampados diante de quartéis ou bloqueando estradas.

Muda a cor das roupas e bandeiras — sai o vermelho, entram o verde e o amarelo. Mudam as palavras de ordem: “Lula livre!”, “Intervenção militar!” e... (o que é mesmo que queriam os brizolistas, além de lutar contra as “perdas internacionais”?). Em comum, a inabalável fé num messias. E a negação — do resultado de eleições, da condenação ou do ocaso do seu líder, do seu capitão, do seu salvador. Nunca chegam a formar multidões — talvez daí o empenho em fazer tanto barulho.


São pessoas que se desconectaram de si mesmas e embarcaram num delírio coletivo. Não necessariamente por desinformação ou déficit cognitivo, mas para se congregar no seio de uma ficção compartilhada. Para ter a sensação de pertencimento, de estar do lado do Bem. E suprir sua grande carência — e de todo ser humano: a de amparo. Funciona para qualquer seita, religiosa ou ideológica.

Em linguagem de autoajuda: deixam de ser gota para se sentir oceano. Mal sabem que, nessa mudança, passam de sujeito a objeto, tornando-se cada vez mais manipuláveis: a permanência no grupo implica investimento psíquico incessante. Paga-se um boi para entrar e uma boiada e meia para tentar sair do rebanho.

São gente como a gente — só que, no momento, impermeável a argumentos. Como os amigos que me entopem a caixa postal com notícias falsas, falsos alarmes, teorias conspiratórias. Aponto o erro, encaminho o desmentido — em vão. Daí a pouco recomeça tudo, numa amnésia voluntária. Foi assim na época do impítimã (“É golpe!”); é agora no pós-eleições (“É fraude!”). Pessoas até outro dia bastante sensatas, mas que marcam território com bandeiras na janela (de casa ou do carro), cantam o Hino Nacional no portão de algum quartel (felizmente, não em torno de pneus) e clamam pelo fim do Estado de Direito (pelo menos não com o celular na cabeça pedindo socorro a extraterrestres). Não refletem, agem reativamente. Ao domínio cultural tirânico das esquerdas e à patrulha vingativa das minorias, respondem com o orgulho da tosquice, a celebração anticiência.

Lula elegeu Bolsonaro, Bolsonaro reelegeu Lula. Sem uma terceira via à vista, é possível que esse “Dia da Marmota” ainda dure muitos anos.

Os brizolistas conseguiam, no máximo, atravancar a passagem de pedestres na Cinelândia. Os lulistas, que penaram no frio de Curitiba, perturbaram apenas o sossego do pacato bairro de Santa Cândida. Os “patriotas” infernizam a vida de quem precisa viajar ou transportar sua carga e podem causar estragos à economia, ao convívio civilizado, à democracia.

Vai ser um desafio trazê-los de volta ao diálogo. É longo e penoso o luto de um messias.

Os arrependidos

Os mais antigos vão se lembrar das multidões que tomaram as ruas das grandes cidades em 1964. Defendiam a família, a propriedade e atacavam o comunismo que, segundo as lideranças da época, estava às vésperas de dominar o Brasil. Essas marchas, apoiadas pela grande imprensa na época, abriram o caminho para que os militares colocassem seus tanques na rua e determinassem a falência dos governos civis. João Goulart deposto, conseguiu fugir do país. Dezenas de parlamentares foram cassados, buscaram asilo em embaixadas amigas ou encontraram meios para sair do território nacional.

Os líderes civis entendiam que os militares iriam permanecer por pouco tempo nas funções político-administrativas da Nação. A eleição de Castello Branco para a presidência da República foi realizada por intermédio de voto indireto, no Congresso Nacional. Juscelino Kubitschek votou a favor de Castello Branco, no maior erro de sua vida política. Passados alguns anos, com a adoção da tortura, censura e desrespeito aos direitos políticos dos cidadãos, os mesmos integrantes das marchas com Deus pela família contra o comunismo voltaram as ruas do país. Desta vez para gritar slogans em favor da liberdade, do fim do estado policial e da censura no teatro, na televisão, na música e nos jornais. E exigir que os militares voltassem para os quartéis. Os arrependidos perceberam a extensão de seu erro.


Militares são treinados para cumprir missões. Missão dada é missão cumprida. Não são sutis. O chamado Comando Supremo da Revolução passou a prender gente à vontade. Sem prestar atenção as conexões familiares, nem aos sobrenomes. As famílias de classe média começaram a ser afetadas pelo rigor militar. Uma tentativa de reforma do sistema educacional jogou os jovens contra o regime. E a coisa desandou. Mais passeatas, mais repressão, mais prisões, mais torturas, mais desaparecidos. Até que o governo chegou ao paroxismo do AI-5, o ato que instituiu a ditadura pura e simples no país. Pequeno grupo, incentivado pelo PC do B, radicalizou com a guerrilha do Araguaia. O Exército perseguiu e matou quem se jogou nesta aventura no centro-oeste do país.

Naquele momento os generais já não tinham o controle total do Exército, que era dividido em alas e correntes políticas. Uma delas, o pessoal de informações em conjunto com o da repressão, tinha efetiva influência no poder. Pessoas desapareciam num piscar de olhos. Chegaram a influir na imprensa. A reposta veio da forma de uma abertura política lenta, segura e parcelada de forma a controlar a esquerda e a direita. Foi o trabalho desenvolvido pelo governo Geisel e completado na administração Figueiredo. Aquele movimento de 64, com pessoas protestando na rua, foi desmontado em 1984 também com pessoas nas ruas pedindo eleições diretas para Presidências da República. Somente em 1985, um presidente civil chegou a presidência da República, 21 anos depois daquelas marchas com Deus, Pátria e Família pela liberdade.

Em tempos recentes, o pessoal que votou em Lula descobriu as ilicitudes cometidas durante os governos do Partido dos Trabalhadores e votou em massa no candidato Jair Bolsonaro. O presidente eleito em 2018 pegou carona, em 2013, nos primeiros movimentos de rua que pipocaram no Brasil sem controle da esquerda. Eles revelaram grupos violentos, os black blocs orientados pelas redes sociais, que conseguiram sensibilizar as igrejas neopentecostais e abrir espaço para o surgimento de uma extrema direita radical no Brasil. O governo Bolsonaro também foi radical na implantação das ideias reacionárias de seu guru Olavo de Carvalho. Promoveu farto desmatamento da Amazônia, cortou verbas das universidades, desmontou a proteção social e esqueceu da saúde do brasileiro. Transformou o país num pária internacional.

Os arrependidos descobriram o erro que haviam cometido e tornaram a eleger em 2022 o Lula que haviam repudiado em 2018. Agora, de novo, radicais movimentam as ruas das principais capitais brasileiras e se aglomeram na frente dos quartéis do Exército pedindo o golpe de estado. Os generais ficam envaidecidos por serem lembrados como pais da Pátria. A sucessão de erros e arrependimentos deve ensinar ao brasileiro que é muito difícil, trabalhoso e demorado recolocar o país nos trilhos constitucionais depois que arbitrariedades passam a ser cometidas em nome da defesa do país, da família, da Pátria, ou pior, em nome de Deus.

Os brasileiros conhecem os passos dessa estrada. A história torna evidente o tamanho do equívoco. Esse pessoal na porta dos quartéis é massa de manobra, exatamente como foram os que desfilaram em 1964. Quem não se lembra de seus erros está condenado a repeti-los.